Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | ALCIDES RODRIGUES | ||
| Descritores: | EXECUÇÃO CHEQUE MÚTUO NULO RELAÇÕES IMEDIATAS DATIO PRO SOLVENDO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 02/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I – A excepção de nulidade da relação jurídica subjacente (nulidade do contrato de mútuo por vício de forma) é oponível ao exequente pelo executado/embargante em sede de relações imediatas (cfr. art. 22º da LUCh), fazendo nascer para este a obrigação de restituição das quantias entregues (art. 289º do Cód. Civil). II. Tendo o cheque dado à execução sido emitido por valor correspondente ao valor do contrato de mútuo nulo, esse cheque consubstancia, nos termos do art. 840º, n.º 2, do Cód. Civil, dação pro solvendo quanto à satisfação do crédito respeitante à restituição da quantia em causa. III. A nulidade do contrato de mútuo subjacente à emissão de um cheque provido de eficácia cambiária não afecta a exequibilidade de tal cheque (art. 703º, n.º 1, alínea c), do Cód. Processo Civil). | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório. EMP01... Unipessoal, Lda deduziu oposição, mediante embargos de executado, à execução para pagamento de quantia certa que é movida por AA, invocando, no essencial, a prescrição do direito de acionar, a inexequibilidade do título e, bem assim, o pagamento da obrigação exequenda (ref.ª ...54). * Liminarmente recebidos, o exequente/embargado apresentou contestação, na qual concluiu pela improcedência dos embargos de executado e pelo prosseguimento da execução (ref.ªs ...73 e ...84). * Findos os articulados, foi realizada tentativa de conciliação, que se mostrou infrutífera (ref.ª ...57).* Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador – onde se afirmou a validade e regularidade da instância – e despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, tendo sido admitidos os meios de prova (ref.ª ...86).* Procedeu-se à audiência de julgamento (ref.ª ...50).* Posteriormente, o Mm.º Julgador “a quo” proferiu sentença (ref.ª ...25), datada de 30/09/2024, nos termos da qual decidiu julgar os embargos de executado improcedentes e, em consequência, determinou o prosseguimento da instância executiva contra a embargante.* Inconformada com esta sentença, dela interpôs recurso a embargante/executada (ref.ª ...92), tendo rematado as suas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):«I - Decidiu o Meritíssimo Juiz julgar os embargos improcedentes, porquanto entendeu que “… não resultou assente que o empréstimo não foi efectuado à executada, como a mesma alega “ e, por outro lado, “…não resultou provado que a embargante ou um terceiro a seu mando pagou a dívida por ele confessada”. II -A Embargante, ora Apelante, entende que esta decisão é errada e contrária ao Direito, tendo o Meritíssimo Juíz apreciado mal a prova produzida e julgado incorrectamente a matéria de facto obrante nos autos e violado a lei, nomeadamente a norma do Art. 22º da LURCH, dos Art. 1.143º e 220º do CC e dos Art. 6º, 260º do Código das Sociedade Comerciais e 160º do CC pelo que, com o presente recurso, pretende também impugnar a matéria de facto, para além de versar sobre a matéria de direito. III - No que ao presente recurso interessa, foram dados por provados os seguintes factos: “1 – O Exequente é o legítimo portador de um cheque preenchido, assinado e entregue pela Executada, com o nº ...69, sacado sobre o Banco 1... no valor de 5.000,00€, emitido em ../../2023, conforme documento nº 1 junto com o requerimento executivo, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos”. 2. Esse valor foi efectivamente mutuado pelo exequente à executada”. IV - E, na douta motivação da sentença, o Meritíssimo Juíz afirma ter criado a sua convicção nos factos firmados pelo acordo das partes e pela confissão das partes, nomeadamente a confissão do representante da executada e do exequente “de que este emprestou ao legal representante da executada o valor inscrito no cheque e entregue pelo legal representante da executada ao exequente com vista a garantir o pagamento desse empréstimo”. V - A Apelante entende que estes factos dados por provados sob 1 e 2 foram incorrectamente julgados como tal e contra as provas produzidas e obrantes nos autos e aquela parte da motivação é errada e carecida de fundamento, nomeadamente tendo em conta e consideração a confissão do Exequente/Embargado e o depoimento do BB, os quais, devidamente apreciados e valorados, necessariamente determinariam que aqueles factos fossem dados por provados de forma diferente e imporiam necessariamente uma decisão contrária da ora recorrida. VI - Na “assentada” do depoimento de parte do BB, fez-se constar expressamente: - Este cheque titulava um empréstimo do exequente à minha pessoa; - Eu tinha autorização para movimentar a conta da executada; - O empréstimo do exequente foi feito em numerário; - Ficou acordado pagar em prestações esse empréstimo; - Entreguei este cheque ao exequente como espécie de caução; - Já paguei o valor ao exequente em numerário. VII - E, na “assentada” do depoimento de parte do Exequente AA, fez-se constar expressamente: - O Sr. BB pediu-me o valor em numerário e emprestei-lhe esse dinheiro; - O cheque foi entregue como prova da dívida; - Ele pediu-me ajuda e não sei se foi para a empresa ou em nome próprio; - O cheque já tinha valor, só coloquei a data. VIII - O BB, no seu depoimento gravado e para o qual aqui se remete, disse repetidamente que se tratou de um préstimo que o Exequente lhe fez a ele próprio, a título particular, em numerário. IX - Por seu turno, o Exequente, no seu depoimento gravado e para o qual aqui se remete, declarou, além do mais, que emprestou o dinheiro, em numerário, ao BB, não sabendo qual o destino que este deu ao dinheiro. X - Destes depoimentos gravados resulta prova clara e inequívoca de que o negócio subjacente à emissão e entrega do título executivo foi um contrato de mútuo nos termos do qual o Exequente emprestou ao BB, em numerário, a quantia de 5 mil euros para que este lhos devolvesse quando pudesse, não havendo nos autos qualquer outra prova que contrarie ou infirme este facto, resultante da confissão expressa do mutuante Exequente e confirmado pelo próprio mutuário, o mesmo BB. XI – Não é legítimo nem correcto ter-se dado por provado que o cheque dos autos tenha sido entregue ao Exequente “pela Executada” e que o valor mutuado de 5 mil euros o tenha sido à própria Apelante EMP01..., LDA. XII - Consequentemente, os factos referidos naqueles pontos 1 e 2 foram incorrectamente julgados como provados quando, na verdade e face às provas produzidas nos autos, deveria ter sido dado por provado que o cheque foi entregue ao Exequente pelo BB e que o empréstimo foi feito por aquele ao próprio BB. XIII - Assim, da matéria dada por provada, correctamente julgada, resulta que: - o cheque dado à execução foi entregue pelo BB ao Exequente para garantia de um contrato de mútuo celebrado entre estes dois. - não existiu nenhum negócio entre o Exequente e a Apelada, nomeadamente, aquele nenhum empréstimo fez a esta. - este contrato de mútuo, no valor de 5 mil euros entregues pelo mutuante ao mutuário em numerário, foi celebrado de forma verbal entre os seus outorgantes, não existindo nenhum documento escrito e assinado pelo mutuário/devedor. XIV - Tendo ficado provado que nenhum negócio jurídico existiu ou foi celebrado entre a Apelante e o Exequente, ou seja, tendo ficado provado que a Apelante não foi interveniente nem parte na relação subjacente à emissão do cheque, evidente se torna que este, supostamente destinado a “garantir” o cumprimento de uma obrigação substantiva que a vinculasse, nenhum valor tem. XV - Tendo ficado provado que o cheque foi entregue ao Exequente para garantia de um contrato de mútuo no valor de € 5.000,00, celebrado de forma meramente verbal entre o mutuante e o mutuário, resulta ser este negócio nulo por falta de forma e, não o tendo sido, tal contrato é nulo por inobservância da forma legal, nos termos do art. 220º do Cód. Civil, nulidade que pode ser invocada a todo o tempo, por qualquer interessado ou oficiosamente conhecida pelo tribunal (v. Art. 286º) e que aqui vai, agora, expressamente invocada e alegada para os legais efeitos. XVI - Assim, ao não ter aplicado correctamente as normas jurídicas dos Art. 22º da LUCH e 731º do CPC e ainda os Art. 1.143 e 220º do Código Civil, violou o Meritíssimo Juiz as mesmas e decidiu mal, “contra legem”. XVII - O representante da Apelante BB confessou expressamente ter dado o cheque, sacado sobre a conta bancária da Apelante, ao Exequente como garantia de pagamento daquele empréstimo pessoal que recebeu deste. XVIII - Ao apresentar como garantia de um negócio pessoal um cheque da sociedade, o gerente age com falta de poderes para vincular a sociedade, visto que se trata de um acto que transcende a capacidade jurídica da própria sociedade (artºs 6º e 260º do CSCom e 160º CC), sendo por isso um acto nulo, por violação daquelas normas legais imperativas (cfr. artigo 294.° CC), nulidade que aqui vai, agora, expressamente invocada e alegada para os legais efeitos. XIX- Assim, também ao não ter aplicado correctamente as normas jurídicas dos Art. 6º e 260º do CSC, não tendo conhecido da nulidade do acto praticado pelo legal representante da Apelante, violou o Meritíssimo Juíz as mesmas normas e decidiu mal, “contra legem”. Nestes termos e nos demais de Direito que V.Ex.ªs mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e merecer provimento e, em consequência, ser a douta sentença recorrida revogada e substituída por Douto Acórdão que julgue os embargos procedentes, com todas as consequências legais. COMO É DE JUSTIÇA!». * Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.* O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (ref.ª ...34).* Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.* II. Delimitação do objeto do recurso Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber: i) – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto; ii) – Da falta de prova da relação subjacente à emissão do cheque; iii) – Da nulidade do contrato de mútuo por vício de forma; iv) – Se o cheque dado à execução pode obrigar a executada. * III. FundamentosIV. Fundamentação de facto A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos: 1.- O Exequente é legítimo portador de um cheque preenchido, assinado e entregue pela Executada, com o n.º ...69, sacado sobre o Banco 1... no valor de 5.000,00 €, emitido em ../../2023, conforme documento n.º 1 junto com o requerimento executivo, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 2.- Esse valor foi efetivamente mutuado pelo exequente à executada. 3.- Apresentado a pagamento no dia 27/09/2023, o cheque foi devolvido com indicação e fundamento "apresentado fora do prazo". 4.- A quantia constante do referido título não foi paga pela executada. *** E deu como não provados os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes, nomeadamente, os seguintes:- A executada ou alguém a seu mando pagou o valor inscrito no cheque. - O referido cheque, na verdade, foi emitido e entregue pelo gerente da Executada ao Exequente no início de julho de 2022, tendo sido alterado e rasurado com aquela data de 26 de setembro de 2023. - Em 2 de Julho de 2022, o gerente da Executada necessitou de novo empréstimo, que pediu ao Exequente, pelo prazo de um mês, no valor de € 4.600,00 e com os mesmos juros de 8% ao mês. - Para garantia deste segundo empréstimo, o Exequente exigiu ao Denunciante novo cheque de garantia, ao que este acedeu, tendo-lhe entregue o cheque agora dado à execução, no valor de € 5.000,00, valor do capital agora mutuado, acrescido de um mês de juros à referida taxa de 8% ao mês de que se cobrou antecipadamente. - Nessa ocasião, o gerente da Executada pediu ao Exequente que lhe restituísse o cheque de € 13.000,00 entregue para garantia do primeiro empréstimo, uma vez que já estava pago. - O Exequente disse então ao gerente da Executada que aquele cheque já estava “fora de validade” e já não tinha qualquer valor judicial e não lho restituiu. - E em 8 de Outubro de 2022, o Exequente emprestou de novo ao gerente da Executada mais € 4.600,00, novamente garantidos por um cheque, agora sacado sobre uma conta bancária da então sua esposa CC, pelo valor de € 5.000,00. - O gerente da Executada pediu então ao Exequente que lhe devolvesse o primeiro cheque de € 5.000,00 (agora dado à execução), uma vez que o empréstimo que titulava já estava integralmente pago, mas este voltou a dizer-lhe que o título não tinha qualquer validade e não lho restituiu. - Todos os empréstimos feitos pelo Exequente foram-no sempre em numerário e as prestações para os respetivos pagamentos feitas pelo gerente da Executada foram também sempre em numerário por exigência expressa daquele. - No final do ano de 2023, o gerente da Executada fez os seus cálculos e chegou à conclusão de que já tinha pago ao Exequente bem mais do dobro do que aquele lhe tinha emprestado na totalidade e, por isso, mais uma vez, pediu-lhe que conferisse essas mesmas contas e lhe devolvesse os cheques que lhe haviam sido confiados como garantia, considerando que os empréstimos e os juros estavam totalmente pagos. - Desde então, o Exequente passou sistematicamente a evitar o contacto com o gerente da Executada, tendo-lhe dito apenas que a dívida ainda existia e que faltava pagar ainda muito dinheiro. - O Exequente sabe bem que não teve nenhuma relação ou transação comercial com a Executada, da qual tivesse ficado alguma vez credor de qualquer importância. - O Exequente, aproveitando-se da situação de extrema necessidade económica e financeira da Executada, forçou o seu gerente a entregar-lhe quantias monetárias avultadas como contrapartida e a título de remuneração de 3 empréstimos, manifestamente desproporcionadas com os valores e prazos destes. - Consequentemente, a Executada nada deve ao Exequente, seja a que título fôr, nomeadamente a titulo de mútuo ou empréstimo, pelo que a execução carece de fundamento real e a dívida exequenda não existe por ter sido integralmente paga. * V. Fundamentação de direito.1. Da impugnação da decisão da matéria de facto. 1.1. Em sede de recurso, a apelante/embargante impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância. Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o/a recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no artigo 640º do CPC, no qual se dispõe: “1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)». Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que a recorrente indica quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redacção que deve ser dada quanto à factualidade que entende estar mal julgada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua óptica o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que fazem assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação e localização, pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o triplo ónus de impugnação estabelecido no citado art. 640º. * 1.2. Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o art. 662.º, n.º 1, do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa». Aí se abrangem, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pela recorrente. Por referência às suas conclusões, extrai-se que a embargante/executada pretende a alteração das respostas positivas para negativas dos pontos n.ºs 1 e 2 dos factos provados da sentença recorrida. Os referidos pontos impugnados têm a seguinte redacção: «1.- O Exequente é legítimo portador de um cheque preenchido, assinado e entregue pela Executada, com o n.º ...69, sacado sobre o Banco 1... no valor de 5.000,00 €, emitido em ../../2023, conforme documento n.º 1 junto com o requerimento executivo, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 2.- Esse valor foi efetivamente mutuado pelo exequente à executada». Na motivação da sentença impugnada, o Mm.º Juiz “a quo” afirma ter criado a sua convicção nos factos firmados pelo acordo das partes e pela confissão das partes, nomeadamente a confissão do representante da executada e do exequente “de que este emprestou ao legal representante da executada o valor inscrito no cheque e entregue pelo legal representante da executada ao exequente com vista a garantir o pagamento desse empréstimo”. Do assim decidido e da explicitada convicção discorda a recorrente, a qual entende que «estes factos dados por provados sob 1 e 2 foram incorrectamente julgados como tal e contra as provas produzidas e obrantes nos autos e aquela parte da motivação é errada e carecida de fundamento, nomeadamente tendo em conta e consideração a confissão do Exequente/Embargado e o depoimento do BB, os quais, devidamente apreciados e valorados, necessariamente determinariam que aqueles factos fossem dados por provados de forma diferente e imporiam necessariamente uma decisão contrária da ora recorrida». Cumpre, pois, analisar das razões de discordância invocadas pelo apelante e se as mesmas se apresentam de molde a alterar a facticidade impugnada, nos termos por si invocados. Iniciando a nossa análise pela “assentada” do depoimento de parte do legal representante da embargante, BB[1], dela fez-se constar: - Este cheque titulava um empréstimo do exequente à minha pessoa; - Eu tinha autorização para movimentar a conta da executada; - O empréstimo do exequente foi feito em numerário; - Ficou acordado pagar em prestações esse empréstimo; - Entreguei este cheque ao exequente como espécie de caução; - Já paguei o valor ao exequente em numerário. E, na “assentada” do depoimento de parte do exequente AA[2], fez-se constar: - O Sr. BB pediu-me o valor em numerário e emprestei-lhe esse dinheiro; - O cheque foi entregue como prova da dívida; - Ele pediu-me ajuda e não sei se foi para a empresa ou em nome próprio; - O cheque já tinha valor, só coloquei a data. Sem embargo das mencionadas assentadas, com relevo nos termos e para os efeitos do disposto no art. 463º do CPC, com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à audição integral da gravação dos depoimentos de parte prestados, quer do legal representante da embargante, BB, como do exequente, AA. O legal representante da embargante declarou, com relevância, o seguinte: - O dinheiro, em numerário (no valor de 4.600€) foi-lhe emprestado, a título particular. - Instado se “(…) o Sr. AA emprestou 5 mil euros à sociedade…?”, o depoente respondeu: “Emprestou-me a mim (…) a título particular (…)”, ou seja, foi feito a si pessoalmente. - Tal empréstimo surgiu na sequência de empréstimos anteriores – um de 13.000,00€, outro de 5.000,00€ e o presente de 5.000,00€ –, titulados por cheques. - Precisou do dinheiro para a sua vida particular; o dinheiro era para resolver os seus problemas (“os dinheiros eram para mim…para pagar compromissos…o dinheiro foi para mim…”). - Entregou ao exequente um cheque da sociedade para titular esse pagamento. - O empréstimo foi no valor de 4.600,00€, sendo que o remanescente de 400,00€ corresponde aos juros (a uma taxa de 8%/10%/mês), pelo que o cheque já incorporava o valor dos juros. - À data, a gerente da executada era a sua mulher, sendo que o depoente tinha autorização para movimentar a conta da sociedade. - Entregou o cheque a título de caução. Por seu turno, o exequente AA referiu, resumidamente, que: - A pedido do BB, emprestou-lhe dinheiro em numerário e dele recebeu esse cheque como prova da dívida. - Quando lhe pediu o dinheiro, o BB disse-lhe que estava a passar por dificuldades financeiras e pediu-lhe para ver se o podia ajudar; não sabe indicar (por referência a tais dificuldades) se seria a nível particular ou da empresa. Confiava na pessoa, no sr. BB, e fosse a título particular ou para empresa, teria emprestado o dinheiro da mesma forma. - Mais adiante à pergunta “Não sabe se foi a ele ou se foi à empresa?...”, esclareceu: (3.09) AA: “Sim…ele pediu-me ajuda… sinceramente não sei se seria para a empresa, se seria para ele próprio…não sei…”. - Confirmou ter feito empréstimos ao Sr. BB. - O empréstimo em causa foi feito em final de 2021 ou início de 2022, tendo entregado 5.000,00€ em numerário. - O cheque foi passado sem data. - Não acordaram nenhum prazo de pagamento, sendo que o Sr. BB disse-lhe que quando tivesse a situação financeira resolvida lhe pagaria. - Não foi estabelecido valor de juros. - A dada altura, a empresa (embargante) começou a dar sinais de dificuldades, nomeadamente a deixar de ter produtos para venda e encerrou a parte do armazém. O exequente foi aconselhado a meter o cheque a pagamento ao banco. - O BB (leia-se a executada) era fornecedor do exequente. - Nunca lhe pediram o cheque de volta, nem lhe disseram que o valor não era devido. - O valor do empréstimo não foi pago. Ora, do teor dos depoimentos de parte prestados podemos concluir que, a pedido do BB, o exequente emprestou uma determinada quantia em numerário – inexiste consenso quanto ao valor mutuado, se bem que nas alegações do recurso o recorrente reconheça o empréstimo no valor de 5.000,00€ –, sendo que, como contrapartida, o BB entregou o cheque a título de caução ou como prova da dívida. Dir-se-ia que a prova produzida não permite concluir, sem mais, que o dinheiro foi efetivamente mutuado à executada ou, ao invés, a título pessoal ao BB. Como se extrai do resumo dos depoimentos produzidos, o próprio exequente desconhece se o mútuo se destinou à sociedade ou, antes, ao BB, tendo especificado que, por este lhe merecer confiança, fosse a título particular ou para empresa, de igual modo teria emprestado o dinheiro. Contudo, se bem atentarmos na petição de embargos de executado, constatamos que a embargante jamais alegou que o empréstimo havia sido concedido a título particular ou pessoal ao gerente desta. Para além de sempre fazer alusão ao gerente da executada (por ex., arts. 2º, 5º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 21º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 34º, 35º e 37º), a propósito do primeiro empréstimo concedido alegou que, em «2018, estando a Executada a passar por uma grave crise económica e financeira, em riscos de insolvência, o Exequente ofereceu-se ao gerente da Executada para o ajudar com um empréstimo oneroso (…)»; «o gerente da Executada, encontrando-se numa situação desesperada, com a empresa quase a entrar em insolvência, não logrando receber dos seus clientes e incapaz de honrar os seus compromissos para com fornecedores e para com a banca, viu-se na contingência de aceitar a oferta do Exequente»; «naquele ano de 2018, (…), o Exequente emprestou, em numerário, ao gerente da Executada a quantia de € 10.000,00, (…)»; «Como garantia do cumprimento da obrigação de restituição do empréstimo, o Exequente exigiu ao gerente da Executada a emissão e entrega do cheque (…), no valor do capital mutuado e dos juros previamente calculados, ou seja, de € 13.000,00, o que aquele efectivamente fez»; «Em 2 de Julho de 2022, o gerente da Executada necessitou de novo empréstimo, que pediu ao Exequente, pelo prazo de um mês, no valor de € 4.600,00 e com os mesmos juros de 8% ao mês»; «Para garantia deste segundo empréstimo, o Exequente exigiu ao Denunciante novo cheque de garantia, ao que este acedeu, tendo-lhe entregue o cheque agora dado à execução, no valor de € 5.000,00, valor do capital agora mutuado, acrescido de um mês de juros à referida taxa de 8% ao mês de que se cobrou antecipadamente». Depreende-se da referida alegação fáctica que os empréstimos destinaram-se estritamente a acorrer a necessidades da executada, mercê da situação de extrema necessidade económica e financeira por que a mesma atravessava, tendo sido contraídos junto do exequente pelo gerente da executada, e não a satisfazer necessidades pessoais ou particulares do gerente da executada, hipótese esta que nem sequer foi aventada nos articulados dos embargos. Ademais, não obstante o legal representante ter referido que o dinheiro, em numerário (no valor de 4.600€) lhe foi emprestado a si, a título particular/pessoal, a verdade é que não esclareceu a que problemas pessoais visava acorrer, pois os únicos que reportou e explicitou circunscreviam-se à difícil situação financeira da executada. Acresce ainda que a entrega de um cheque da sociedade a fim de garantir a referida dívida serve também como elemento indiciador no sentido do empréstimo se ter destinado à executada. Aliás, o gerente da executada não indicou que se encontrava inibido do uso ou da emissão de cheques, pelo que, no caso de o empréstimo ter sido concedido a titulo particular, inexistia obstáculo a que o mesmo tivesse emitido e entregado ao exequente um cheque particular. O que significa que, embora não de um modo direto, a valoração crítica da prova produzida concatenada com a versão fáctica trazida aos autos pela própria embargante legitima ou habilita a convicção formada pelo Tribunal da 1ª instância, no sentido de o empréstimo ter sido feito pelo exequente em prol da executada. Logo, jamais a pretensão impugnatória poderia proceder. É, contudo, de excluir do ponto 2 dos factos provados a palavra “efectivamente”, a qual consubstancia um advérbio de frase e reveste um cariz conclusivo, sendo também de substituir o termo “mutuado” por emprestado (dado o cariz normativo que aquele reveste), passando o referido ponto a valer com a seguinte redação: 2.- Esse valor foi emprestado pelo exequente à executada. Acresce que, ainda que tivesse sido julgada procedente a impugnação da matéria de facto relativamente ao ponto 2 dos factos provados, sempre seria de manter inalterada a resposta ao ponto 1 da matéria provada, visto ser inequívoco que o cheque foi entregue ao Exequente pelo gerente da executada (como alegado na 1ª parte do art. 2º da petição de embargos), sem que tenha sido invocado qualquer desconformidade, vício de vontade ou ilegalidade a respeito da entrega do cheque[3]. Nesta conformidade, afora a apontada retificação de escrita quanto ao ponto 2 dos factos provados, é de concluir pela improcedência da impugnação da matéria de facto, mantendo-se inalterada a decisão fixada nesse âmbito na sentença recorrida. * 2. Reapreciação da matéria de direito.2.1. Da falta de prova da relação subjacente à emissão do cheque. Sustenta a recorrente que, tendo ficado provado que nenhum negócio jurídico existiu ou foi celebrado entre a Apelante e o Exequente, ou seja, tendo ficado provado que a Apelante não foi interveniente nem parte na relação subjacente à emissão do cheque, sendo este supostamente destinado a “garantir” o cumprimento de uma obrigação substantiva que a vinculasse, conclui que o cheque não possui nenhum valor (conclusão XIV da apelação). Sucede que, no que concerne ao referido fundamento da apelação, a eventual alteração da solução jurídica alcançada na sentença impugnada dependia, na sua totalidade, do prévio sucesso da impugnação da decisão da matéria de facto [em concreto, do não apuramento da materialidade fáctica constante dos pontos 1 e 2 dos factos provados e demonstração de que o empréstimo foi feito pelo exequente ao próprio BB], condição esta que não se verificou. Donde seja de considerar que ficou necessariamente prejudicado o conhecimento desse concreto fundamento recursório, o que aqui se declara, nos termos do art. 608º, n.º 2 do CPC “ex vi” do art. 663º, n.º 2, in fine, do mesmo diploma. Sem embargo do que antecede, sempre se justificará fazer uma breve referência sobre a natureza e as funções do título executivo dado à execução. Nos termos do n.º 5 do art. 10º do CPC, “[t]oda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”. E o art. 703º, n.º 1 do CPC enuncia as várias espécies de títulos executivos admitidos na lei, que podem servir de base a uma execução. Entre eles, a al. c), do n.º 1, daquele art. 703º, enuncia os «títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo». Incluem-se nesta previsão, entre outros, as letras, as livranças e os cheques, cujo regime jurídico se encontra regulado, respetivamente, na Lei Uniforme das Letras e Livranças (LULL) e na Lei Uniforme dos Cheques (LUCh). No que ao caso releva, o cheque enuncia uma ordem pura e simples dada por uma pessoa (sacador) a um banco (sacado) para que pague determinada quantia por conta de fundos lá depositados (arts. 1º e 2º da LUCh). É pacífica na doutrina e na jurisprudência a definição do cheque como um meio de pagamento pelo qual uma pessoa (sacador) ordena a um banco (sacado), onde tenha fundos disponíveis (provisão), o pagamento à vista, de determinada importância a seu favor ou de um terceiro (tomador ou beneficiário). Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos[4], «no que respeita ao cheque, o direito cartular consiste num crédito pecuniário do qual é credor o respetivo portador e são devedores todos os intervenientes no título, sacador, endossantes, avalistas, principalmente o sacado - o banqueiro. O prazo de prescrição é de seis meses (art. 52.º da LUC). Subjacente ao saque do cheque à ordem do sacador existe um crédito do sacador (cliente) sobre o sacado (banqueiro) resultante do contrato de depósito bancário em vigor entre ambos; subjacente ao saque do cheque à ordem de um terceiro existe além do referido crédito do sacador sobre o sacado, também um débito do sacador sobre o beneficiário-tomador do cheque». O acesso à ação cambiária implica a prévia apresentação do cheque a pagamento no prazo legal e a sua recusa por alguma das formas previstas no art. 40º da LUCh. Com base na simples invocação da relação cartular, e independentemente da existência ou da alegação de factos integradores de uma relação jurídica, o portador do cheque pode exigir do sacador o pagamento da quantia nele inscrita, dos juros de mora e despesas, nos termos do art. 45º da LUCh. A exequibilidade do referido título de crédito e a sua oponibilidade pelo exequente ao executado obedecem a regras específicas, a mais importante das quais é a de que o credor não tem que invocar outra relação para além da que resulta do próprio título, bastando a sua conjugação com as normas jurídicas que atribuem ao portador um direito de crédito e que vinculam o obrigado ao correspondente cumprimento[5]. O cheque, apesar de constituir um título cambiário – e de um título cambiário nasce uma obrigação cambiária –, é, não raras vezes, utilizado como “cheque de garantia”, isto é, como forma de garantir o cumprimento de uma determinada obrigação. Ora, como se explicita no Ac. do STJ de 11/12/2008 (relator Pires da Rosa), in www.dgsi.pt., «alguém que subscreve, assina, um cheque dá ao seu banqueiro uma ordem incondicionada de pagamento ao tomador do cheque de uma determinada quantia. Assume, de motu proprio, uma obrigação própria, autónoma e abstracta, desligada da sua causa, desligada da obrigação jurídica fundamental. O cheque é um meio de pagamento». Pois bem, no caso de cheque de garantia, a função normal do cheque – qual seja a de constituir um meio de pagamento, e não de garantir o pagamento – é de algum modo desvirtuada. Nessa situação, pretendendo colocar em causa a força executiva de um “cheque de garantia”, o executado terá de alegar e provar não só a natureza ou a função garantística desse cheque, como também que “a obrigação fundamental para cuja garantia nasceu a obrigação cambiária ou não existe ou se extinguiu ou se modificou”[6] (arts. 731º e 729º, al. g) do CPC). No caso, a executada/embargante não logrou fazer essa prova (cfr. facticidade não provada). Em contraponto, resultou provado que o Exequente é legítimo portador de um cheque preenchido, assinado e entregue pela Executada, com o n.º ...69, sacado sobre o Banco 1... no valor de 5.000,00 €, emitido em ../../2023, cujo valor foi emprestado pelo exequente à executada (cfr. pontos 1 e 2 dos factos provados). E, apresentado a pagamento no dia 27/09/2023, o cheque foi devolvido com indicação e fundamento "apresentado fora do prazo"., sendo que a quantia constante do referido título não foi paga pela executada (cfr. pontos 3 e 4 dos factos provados). Porque é assim o indicado fundamento da oposição à execução é improcedente. * 2.2. Da nulidade do contrato de mútuo por vício de forma. Defende a recorrente que, “[t]endo ficado provado que o cheque foi entregue ao Exequente para garantia de um contrato de mútuo no valor de € 5.000,00, celebrado de forma meramente verbal entre o mutuante e o mutuário, resulta ser este negócio nulo por falta de forma e, não o tendo sido, tal contrato é nulo por inobservância da forma legal, nos termos do art. 220º do Cód. Civil, nulidade que pode ser invocada a todo o tempo, por qualquer interessado ou oficiosamente conhecida pelo tribunal (v. Art. 286º) e que aqui vai, agora, expressamente invocada e alegada para os legais efeitos” (conclusão XV da apelação). Vejamos como decidir. Nos termos constantes do art. 1142º (“Noção”) do Código Civil (CC), “mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”. Ao regular este contrato a lei tem em vista o empréstimo de dinheiro ou outra coisa fungível feito à margem de qualquer outra relação jurídica. Como notas características deste contrato temos um acordo em que a parte, denominada mutuante ou prestamista, empresta certa coisa a outra; o objecto emprestado é dinheiro ou outra coisa fungível, ficando o mutuário obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade. A entrega da coisa é elemento essencial à perfeição do negócio, sem o qual este não se completaria, daí que se diga que o mútuo é, de sua natureza, um contrato real (quod constitutionem)[7]. A consequência mais relevante da celebração do mútuo é a transferência da propriedade para o mutuário, de acordo com o art. 1144º do CC. “As partes podem convencionar o pagamento de juros como retribuição do mútuo; este presume-se oneroso em caso de dúvida” (art. 1145º, n.º 1, do CC). Nos termos do disposto no art. 1143º (“Forma”) do CC, e “[s]em prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a (euro) 25 000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a (euro) 2500 se o for por documento assinado pelo mutuário”. A exigência da forma escrita depende, portanto, do valor da coisa mutuada: até € 2.500 não carece de forma (liberdade de forma); acima deste valor e até € 25.000, é necessário documento assinado pelo mutuário (forma especial unilateral); acima deste valor, exige-se escritura pública ou documento particular autenticado (forma especial bilateral). A consequência da falta de forma exigida é a nulidade do contrato (art. 220º do CC). Aos efeitos da nulidade do mútuo é aplicável o disposto no art. 289º, n.º 1 do CC, e não a doutrina do enriquecimento sem causa (art. 474º do CC)[8]. Se o devedor (mutuário) subscrever um título de crédito cambiário para assegurar o cumprimento da obrigação emergente do mútuo por falta de forma, “a boa doutrina (…) ensina a distinguir, no que respeita à validade da obrigação cartular, entre o domínio das relações imediatas e a área das relações mediatas”; naquelas, o mutuário poderá opor ao mutuante a nulidade da obrigação proveniente do mútuo sem forma bastante; nestas, “por força da abstracção da obrigação cambiária, o subscritor do título [mutuário] não poderá opor ao portador a nulidade da relação subjacente ou fundamental”[9]. No caso, o cheque de 5.000,00 euros titula um contrato de mútuo celebrado entre o exequente e a executada. Para ser válido, devia o mesmo ter sido celebrado por documento assinado pelo mutuário (art. 1143º do CC). Não o tendo sido, o contrato de mútuo dos autos é nulo por falta de forma[10]. Mas será que a nulidade do contrato de mútuo afecta a exequibilidade do cheque dado à execução ? Responde-se negativamente com base na seguinte argumentação[11]: - Ainda que a emissão do cheque tenha implicado “a constituição de uma obrigação cambiária que é dotada de autonomia em relação à relação subjacente”, há que ter em conta que, “porque nos encontramos no domínio das relações imediatas, a excepção proveniente da falta de forma dos negócios mutuários é oponível ao portador (art. 22.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque)”; - Da nulidade do contrato de mútuo resulta “que impenda[e] sobre o primeiro a obrigação de restituição das quantias mencionadas nos cheques (n.º 1 do art.º 289.º do Cód. Civil)”; - A consequência da nulidade do mútuo é a de que o mutuário/executado/opoente/recorrente fica vinculado a restituir o valor que lhe foi emprestado, nos termos do art. 289º, n.º 1 do CC; - Assim, a entrega do cheque pelo valor correspondente ao mútuo ajustado que padece de nulidade por falta de forma, deve ser considerada como uma dação pro solvendo; - Pelo que a nulidade dos contratos de mútuo não afecta a exequibilidade do cheque. É este o entendimento que o Supremo Tribunal de Justiça tem seguido, aduzindo para tanto que a nulidade do contrato de mútuo não afecta a relação cartular constituída a título de datio pro solvendo (que caracteriza, em regra, a assunção das obrigações cambiárias) a favor do exequente, ou seja, a fim de este realizar mais facilmente o seu direito de crédito[12]. E isto é assim porque “como a nulidade do contrato de mútuo sempre implica a obrigação de restituição existe uma causa justificativa da constituição da obrigação cambiária que o cheque envolve, autónoma daquele contrato e dotada de validade”[13]. Reproduzindo parte da fundamentação do Ac. do STJ de 13/11/2003 (relator Salvador da Costa), in www.dgsi.pt.: “2. Conforme acima se referiu, a causa da emissão do cheque que a recorrida deu à execução foi um contrato de mútuo nulo por falta de forma. Os cheques enunciam uma ordem de pagamento dirigida a um banqueiro em cujo estabelecimento o emitente tem fundos depositados ou crédito de saque (artigos 1º e 3º da Lei Uniforme Sobre Cheques). A emissão por parte da recorrente, a favor da recorrida, do cheque mencionado com o valor global inscrito correspondente ao mencionado contrato de mútuo nulo por falta de forma, traduziu-se na constituição de uma obrigação cambiária, com autonomia em relação à primeira, dita subjacente. A recorrida é legítima portadora do cheque em causa, por virtude do acto cambiário de endosso em branco operado por C (artigos 14º, 1ª parte, 16º e 19º da Lei Uniforme Sobre Cheques). Um cheque está no domínio das relações imediatas quando os sujeitos cambiários e os que figuram nas respectivas relações jurídicas extracartulares coincidem. Como o cheque em causa foi emitido pela recorrente a favor de uma pessoa que era procurador da recorrida, certo é, que se está, na espécie, no domínio das relações jurídicas imediatas. Em consequência, a recorrente pode discutir nos embargos à execução a excepção de nulidade da relação jurídica subjacente e impor à recorrida os efeitos jurídicos desse vício decorrente (artigo 22º, a contrario, da Lei Uniforme Sobre Cheques). 3. A lei reporta-se, por seu turno, à dação em função do cumprimento ou datio pro solvendo, expressando, por um lado, que se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito e na medida respectiva (artigo 840º, nº. 1, do Código Civil). E, por outro, que se a dação tiver por objecto a cessão de um crédito ou a assunção de uma dívida, se presume feita nos termos do número anterior (artigo 840º, nº. 2, do Código Civil). Resulta do nº. 1 do referido artigo a realização pelo devedor de uma prestação diferente da devida ao credor, naturalmente no âmbito do acordo de ambos nesse sentido, não extingue a obrigação enquanto a prestação dada, simultânea ou subsequentemente, não satisfizer o direito de crédito do segundo. O traço característico da dação em função cumprimento traduz-se, pois, na circunstância de as partes não pretenderem a extinção imediata da obrigação do devedor, e que ela subsista até à satisfação integral do direito de crédito concernente, como se de um mandato conferido ao credor pelo devedor de se pagar por via da coisa ou do crédito em causa se trate. Não raro surge a dúvida sobre se na espécie ocorre a intenção das partes de extinção do direito de crédito mediante a dação ou de condicionar essa extinção à realização do direito que a última envolve. Para obstar a esse impasse, no caso de o objecto da dação ser a cessão de um direito de crédito ou a assunção de uma dívida, a lei estabeleceu a presunção no sentido de que ela ocorreu para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu direito de crédito. Trata-se, naturalmente, de uma presunção legal a favor do credor, que o dispensa de provar o facto presuntivo, incidindo sobre o devedor o ónus da sua ilisão (artigo 350º do Código Civil). Dir-se-á, em síntese, que na situação de datio pro solvendo, o direito de crédito não se extingue pela mera entrega da coisa, cessão de crédito, ou assunção de alguma obrigação, mas só pela realização efectiva do seu valor ou conteúdo, conforme os casos. Assim, a emissão por parte da recorrente, a favor da recorrida, do cheque mencionado com o valor global inscrito correspondente ao mencionado contrato de mútuo, nulo por falta de forma, traduziu-se em mera datio pro solvendo. 4. Sabe-se que o cheque em causa não foi pago na data do vencimento (…) A recorrida, como portadora legítima do cheque, pode, assim, exercer os seus direitos de acção contra a recorrente, como sacadora, exigindo-lhe, além do mais, a importância respectiva não paga e juros desde a data da apresentação a pagamento (artigo 40º, proémio, nºs. 1º e 2º, 44º, 2ª parte, e 45º, proémio, 1º e 2º da Lei Uniforme Sobre Cheques). Acresce que a recorrida não tem de recorrer a acção declarativa a fim de realizar o seu direito cambiário, certo que pode recorrer à acção executiva desde que o cheque tenha a pertinente força executiva. Constituindo-se por via do cheque uma obrigação de pagamento de determinada quantia, certo é que ele vale como título executivo e, como tal, pode fundar a instauração de uma acção executiva (artigo 46º, alínea c), do Código de Processo Civil). Está subjacente à emissão do cheque, conforme já se referiu, a obrigação de restituição de € 24.939,89 decorrente da celebração de um contrato de mútuo nulo por falta de forma. Como a nulidade do contrato de mútuo implica a obrigação de restituição da mencionada quantia à recorrida por D, a emissão do cheque tem uma causa justificativa da constituição da obrigação cambiária que ele envolve, autónoma daquele contrato e envolvida de validade. A afirmada pela recorrente afectação da relação jurídica cambiária em causa, de sua natureza abstracta, dependia da verificação da sua inexistência ou da existência de algum vício substancial ou formal que a envolvesse, o que não ocorre no caso vertente. Dir-se-á, em síntese, que a nulidade do contrato de mútuo não afecta a relação cartular constituída a título de datio pro solvendo a favor da recorrida, ou seja, a fim de ela realizar mais facilmente o seu direito de crédito (Acs. do STJ, de 23.7.80, BMJ, nº. 299, pág. 371; de 12.11.87, BMJ, nº. 371, pág. 465). O referido cheque tem, por isso, a força executiva que decorre da alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil e, consequentemente, assume as características legais de título executivo idóneo a basear a acção executiva em causa.” Considerando que esta orientação se mantém válida à luz do regime do art. 703º, n.º 1, alínea c), do CPC de 2013[14], aplicável ao caso dos autos, entende-se que a excepção de nulidade da relação jurídica subjacente (nulidade do contrato de mútuo dos autos por vício de forma) é oponível ao exequente em sede das relações imediatas (cfr. art. 22º da Lei Uniforme relativa ao Cheque), fazendo nascer a obrigação de restituição das quantias entregues (art. 289º do Código Civil). Tendo o cheque, identificado ponto 1 dos factos provados, sido emitido por valor correspondente ao contrato de mútuo nulo, consubstancia, nos termos do art. 840º, n.º 2, do Código Civil, dações pro solvendo relativamente à satisfação do crédito respeitante à restituição da quantia em causa. O cheque dado à execução possui, assim, uma causa justificativa da constituição da obrigação cambiária que implica, a qual é válida e autónoma em relação ao contrato de mútuo. Consequentemente, na linha da orientação seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, é de concluir que a nulidade do contrato de mútuo não afecta a exequibilidade do cheque. * 2.3. Se o cheque dado à execução pode obrigar a executada.Em abono da pretensão recursória em apreço, aduz a recorrente que o «representante da Apelante BB confessou expressamente ter dado o cheque, sacado sobre a conta bancária da Apelante, ao Exequente como garantia de pagamento daquele empréstimo pessoal que recebeu deste», pelo que, ao «apresentar como garantia de um negócio pessoal um cheque da sociedade, o gerente age com falta de poderes para vincular a sociedade, visto que se trata de um acto que transcende a capacidade jurídica da própria sociedade (artºs 6º e 260º do CSCom e 160º CC), sendo por isso um acto nulo, por violação daquelas normas legais imperativas (cfr. artigo 294.° CC)». Ao não ter conhecido da nulidade do acto praticado pelo legal representante da Apelante, conclui a apelante que o Mm.º Juiz violou as referidas normas e decidiu mal, “contra legem” (cfr. conclusões XVII, XVIII e XIX da apelação). À semelhança do decidido no item 2.1., igualmente nesta parte se dirá que a procedência da questão jurídica agora levantada pela recorrente pressuporia o prévio sucesso da alteração da decisão de facto [em concreto, do não apuramento da materialidade fáctica constante dos pontos 1 e 2 dos factos provados e da demonstração de que o empréstimo foi feito pelo exequente ao próprio BB], o que não sucedeu. Relembre-se que não ficou provado que o empréstimo foi feito pelo Exequente ao próprio BB. Resultou, sim, provado que o valor titulado no cheque dado à execução (5.000,00 €) foi emprestado/mutuado pelo exequente à executada. Donde se apresenta manifestamente infundado o pressuposto erigido pela recorrente no sentido de o cheque da sociedade dado à execução se apresentar como garantia de um negócio pessoal, para o qual o gerente age com falta de poderes para vincular a sociedade, visto tratar-se de um acto que transcende a capacidade jurídica da própria sociedade (arts. 6º e 260º do CSCom e 160º do CC). Como vimos, não é esse o circunstancialismo fáctico que emerge dos presentes autos, posto estar demonstrada a efectiva existência de um mútuo entre o exequente e a executada. Consequentemente, face ao fracasso da pretendida alteração da decisão de facto julga-se prejudicada a apreciação da questão em causa (cfr. art. 608º, n.º 2 do “ex vi” do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do CPC). Termos em que improcede este fundamento da apelação. * Será, assim de confirmar a sentença recorrida, improcedendo a apelação.* As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).* VI. DECISÃO Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida. Custas da apelação a cargo da apelante (art. 527º do CPC). * Guimarães, 13 de fevereiro de 2025 Alcides Rodrigues (relator) Maria dos Anjos Melo Nogueira (1ª adjunta) Joaquim Boavida (2º adjunto) [1] Prestado na audiência de julgamento do dia 27/09/2024 e constante da respectiva acta (ref.ª ...50). [2] Prestado na mesma audiência de julgamento do dia 27/09/2024 e constante da respectiva acta (ref.ª ...50). [3] Diverso é saber se o montante titulado no cheque já foi pago, o que a recorrente – em sede da presente apelação – reconhece não ter ficado provado nos autos. [4] Cfr. Direito Comercial, Vol. I, 2017, Almedina, p. 310. [5] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II - Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventário Judicial, Almedina, 2020, pp. 25/26. [6] Cfr. Ac. do STJ de 11/12/2008 (relator Pires da Rosa), in www.dgsi.pt. e Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2016, Almedina, p. 86. [7] Cfr, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, 1986, p. 680, Joana Farrajota, Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume I, 2017, Almedina, p. 1408, e A. Santos Justo, Manuel de Contratos Civis, Petrony, p. 357. [8] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, (…), p. 683. [9] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, (…), p. 684. [10] Em sentido não coincidente com a solução jurídica acima propugnada, no Ac. do STJ de 05/07/2018 (relator José Sousa Lameira), in www.dgsi.pt., decidiu-se que, sendo a quantia mutuada inferior a 20.000,00€ – no caso, o valor era de 19.952,00€ –, o cheque subscrito pelo devedor constitui título bastante para formalizar o contrato, não sendo este nulo por falta de forma. Nesse aresto, validando a decisão do Tribunal da Relação, que, face ao disposto no art. 1143° do C.C., entendeu que o referido cheque podia servir de título executivo, uma vez que apenas relativamente aos mútuos de valor superior a 20.000,00 euros é que se faz a exigência de escritura pública, concluiu que, «não sendo nulo, seja por vício de forma ou por qualquer outro, o contrato de mútuo subjacente à emissão do cheque em questão - no valor de €19.952,00 - tal cheque subscrito pelo devedor/executado constitui título escrito bastante para formalizar o contrato e para constituir título executivo». [11] Socorremo-nos da fundamentação do Ac. do STJ de 7/02/2019 (relatora Maria da Graça Trigo), in www.dgsi.pt. [12] Cfr. Acs. do STJ de 13/11/2003 (relator Salvador da Costa), de 9/03/2004 (relator Araújo Barros), de 7/02/2019 (relatora Maria da Graça Trigo), de 11/10/2022 (relator António Magalhães), in www.dgsi.pt. [13] Cfr. Ac. do STJ de 9/03/2004 (relator Araújo Barros), in www.dgsi.pt. [14] Cfr., nesse sentido, reconhecendo-o expressamente, o citado Ac. do STJ de 7/02/2019 (relatora Maria da Graça Trigo), in www.dgsi.pt. |