Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1183/15.0T9BRG-D.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: ESCUSA
PROCESSO ANTERIOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DEFERIMENTO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Constitui motivo legítimo de escusa a circunstância de o juiz já ter julgado alguém como arguido num determinado processo, de cujos factos se inteirou, e sobre os quais já formou um juízo de culpabilidade, ser o mesmo que, por factos parcialmente idênticos, o vai julgar num outro.
II – Na verdade, é razoável supor que tal arguido, e até o cidadão comum, suscite dúvidas e fique de algum modo apreensivo se confrontado com o mesmo juiz que interveio em julgamento anterior no qual considerou num determinado sentido a sua participação nos factos aí dados como assentes e que o vai julgar tendo precisamente em vista apreciar factos que, não sendo acessórios, relevam para o preenchimento do crime que é lhe imputado.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
           
1. No âmbito do Processo Comum Singular nº 1183/15...., que corre termos no Juízo Local Criminal de Guimarães, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, o Exmo. Sr. Juiz de Direito, Dr. AA, a exercer funções nesse tribunal, veio ao abrigo do disposto nos Artºs. 43º, nºs. 2 e 4, e 45º, nº 1, al. a), do C.P.Penal, requerer escusa de intervenção em tal processo.

O pedido mostra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição [1]):
“(...)
O signatário já presidiu ao julgamento do Processo nº 2663/15...., no qual tinham sido pronunciados, além do mais, os arguidos BB, CC e DD, pela prática de um crime de insolvência dolosa agravada, previsto e punível, pelo artº 227º, nº 1, al. a) e c), nº 3 e 229º-A do Código Penal - os dois primeiros -, e o último pela prática de um crime de insolvência dolosa agravada, previsto e punível, pelo artº 227º, nº 1, al. a) e c), e nº 2 e 229º-A do Código Penal.

Nesse processo os factos pronunciados e que foram dados como provados na sentença são, além do mais, os seguintes:

1. "A "EMP01..., Lda" era uma sociedade comercial por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial dc Guimarães, com o NIPC ...50, que teve a sua sede na Estrada ..., ..., na freguesia ..., em Guimarães.
2. Desde a data da sua constituição, em 1982, a sociedade "EMP01..., Lda" exercia actividade de indústria de acabamentos e confecções.
3. A referida sociedade tinha como sócios EE e FF.
4. Contudo, em 18.03.2013, GG adquiriu as quotas e foi nomeado gerente.
5. Em 02.07.2013, o capital social da sociedade foi aumentado para 500.000,00€, através da utilização de reservas de resultados transitados.
6. Em ../../2015, foi registada a gerência na pessoa de CC com efeitos a 03.04.2014.
7. Bem como foi registada a renúncia à gerência por GG com efeitos a 11.04.2014.
8. Sucede que, na prática, pelo menos desde ../../2013, eram os arguidos BB e o GG quem exerciam a gerência da sociedade.
9. Efectivamente, eram estes arguidos quem davam instruções aos empregados, celebravam e rescindiam contratos de trabalho, contactavam com os fornecedores, decidiam do pagamento das dívidas da sociedade e da obtenção de crédito, ordenavam o pagamento dos salários e forneciam a documentação e as informações necessárias à elaboração da contabilidade da sociedade.
10. A sociedade "EMP01..., Lda" exercia a sua actividade na Estrada ..., ..., na freguesia ..., em Guimarães, instalações estas que se encontravam em regime de locação financeira em que é locatária a sociedade EMP02..., Lda.
11. O arguido HH é advogado, atualmente com domicílio profissional na Rua ..., ..., cm ..., titular da cédula profissional nº ...84....
12. Nos anos de 2012 a 2014, era a seguinte a situação financeira da EMP01..., Lda.:

201220132014
Volume de Negócios11.655.940,814.021.361,59.257.884 €
Resultados Operacionais126.978,40 c228.328,74 €
Resultados líquidos66.426,97 €77.771,72 €
Resultados Financeiros34.928,19 €120.609,86 €-109.665,48
Total activo1.499.520,883.179.455,23
Total Capital Próprio536.617,38 €614.389,10 €
Total Passivo962.903,50 € 2.565.066,232.553.407


13. Sucede que os arguidos BB e GG, apercebendo-se da situação económica débil da sociedade "EMP01..., Lda", em data não concretamente apurada de 2013, tomaram a resolução de proceder à alienação do património daquela por forma a impedi-la de continuar a laborar, colocando-a em situação de incapacidade para solver as dívidas para com os seus credores, incluindo os seus trabalhadores, e assim determinar a insolvência da mesma.
14. Por acordo, os arguidos BB, GG, em data não concretamente apurada mas anterior a ../../2015, nomear como gerente da sociedade "EMP01..., Lda" o arguido CC, fazendo retroagir falsamente os efeitos de tal nomeação a 03.04.2014, para assim tentarem afastar a responsabilidade de GG e António Teixeira de quaisquer actos que viessem a praticar para dissipação de património, facto com o qual aquele CC concordou.
15. Em Março de 2015, na AT, alteraram a contabilidade da sociedade para II.
16. Em execução desse plano por acordo delineado e executado, no ano de 2014, os arguidos transferiram bens da sociedade "EMP01..., Lda" sem qualquer contrapartida financeira para esta, para pessoas e empresas especialmente relacionadas, tais como EE, FF JJ, a sociedade "EMP03..., S.A." e a sociedade "EMP04..., Unipessoal, Lda".
17. No ano de 2013, a sociedade "EMP01..., Lda" possuía o seguinte património, que compunha o seu imobilizado e constituía o recheio do seu estabelecimento: a viatura da marca ... com a matrícula ..-.. -ZI; a viatura da marca ... com a matrícula ..- DJ-..; a viatura da marca ... com a matrícula ..-FG-..; a viatura da marca ... com a matrícula ..-..-JU; a viatura da marca ... com a matrícula ..-.. -RJ; máquinas e existências com que a sociedade "EMP01...", Lda. em valor não concretamente apurado, mas sempre superior a 350.000,00 €.
18. No dia 31.10.2014, os arguidos BB, GG, em nome da "EMP01..., Lda" transmitiram para EE, sogro de BB, a viatura da marca ... com a matrícula ..-..-ZI.
19. No dia 31.10.2014, os arguidos BB, GG, em nome da "EMP01..., Lda" transmitiram também para EE, a viatura da marca ... com a matrícula ..- DJ-...
20. No dia 07.11.2014 os arguidos BB, GG, em nome da "EMP01..., Lda" transmitiram para FF, sogra de BB, a viatura da marca ... com a matrícula ..-FG-...
21. No dia 27.01.2015, os arguidos BB, GG, em nome da "EMP01..., Lda" transmitiram para a sociedade "EMP03..., S.A", a viatura da marca ... com a matrícula ..-..-JU, que, em 25.02.2015, foi transmitida para a "EMP04..., Unipessoal, Lda".
22. No dia 27.01.2015, os arguidos BB, GG, em nome da "EMP01..., Lda" transmitiram para a sociedade "EMP03..., S.A", a viatura da marca ... com a matrícula ..-..-RJ, que, em 25.02.2015, foi transmitida para a "EMP04..., Unipessoal, Lda".
23. Os arguidos não depositaram qualquer quantia referente a tais transações na conta bancária da sociedade EMP01..., Lda, nem foram quaisquer montantes afectos à satisfação de necessidades da mesma.
24. Ocorreu uma mera alteração do proprietário no registo automóvel para que tais bens não fossem afectados à satisfação dos credores da "EMP01..., Lda".
25. Acresce que os arguidos, transmitiram todas as máquinas e existências com que a sociedade "EMP01..., Lda" laborava para a sociedade "EMP05..., Unipessoal, Lda", em valor não concretamente apurado, mas sempre superior a 350.000,00 € (pelo menos as existências).
26. Os arguidos reflectiram na contabilidade da "EMP01..., Lda" a diminuição desse imobilizado dos activos da sociedade, mas na verdade, não foi depositada qualquer quantia referente a tal transação na conta bancária daquela sociedade, nem foram quaisquer montantes afectos à satisfação de necessidades da mesma.
27. Acresce que, na sede da "EMP01..., Lda" passou a exercer actividade a sociedade "EMP04..., Unipessoal, Lda," cujo gerente nomeado era DD, pessoa próxima dos arguidos António Teixeira, GG e HH.
28. E a sociedade "EMP03..., Lda" era gerida por BB.
29. Assim, em data não concretamente apurada do ano de 2015, os arguidos BB, GG, CC tomaram a resolução de proceder à alienação da maior parte do património da "EMP01..., Lda", por forma a impedi-la de continuar a laborar, colocando-a em situação de incapacidade para solver as dívidas para com os seus credores, designadamente a V..., o Instituto da Segurança Social e os seus trabalhadores, e assim determinar a insolvência da mesma.
30. Por sentença proferida no processo de insolvência n.0 1504/15...., que correu termos na Secção de Comércio de Guimarães, em 10.08.2015, transitada em julgado no prazo legal, foi a sociedade "EMP01...,Lda" declarada insolvente.
31. Foi nomeado Administrador de Insolvência KK.
32. No processo de insolvência foram apreendidos bens móveis obsoletos, no valor de 450,00 € e acções no valor de 5.340,22
33. Depois de resolvidos os negócios celebrados em prejuízo da massa, o Administrador de insolvência apreendeu os veículos automóveis, aos quais atribuiu o valor de 28.000,00 €.
34. No processo de insolvência foram reconhecidos créditos no valor de 2.285.739,55€.
35. Assim, ficaram por liquidar créditos em valor superior a 2.200.000,00 €, incluindo créditos laborais, designadamente, os reclamados por LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, SS, TT, UU e VV.
36. Os arguidos BB, GG, CC agiram com o propósito conseguido de fazer desaparecer quase a totalidade do património da sociedade EMP01..., Lda., e de prejudicar os credores desta, bem sabendo que, dessa forma, estes, incluindo os seus trabalhadores, ficavam, como ficaram, impedidos de obterem satisfação dos seus créditos através do património da sociedade.
37. Assim como o arguido DD, aderindo aos propósitos referidos, aceitou, simular a aquisição dos bens da sociedade EMP01..., Lda, em representação da sociedade EMP04..., Lda., sabendo que assim impedia que os mesmos fossem afectos à satisfação dos credores da EMP01..., Lda.
38. Todos os arguidos actuaram em execução de um plano conjunto e em conjugação de esforços e intentos, com o propósito de fazer desaparecer e dissimular o património que possuía a insolvente, no intuito de prejudicar os credores.
39. Mais sabiam os arguidos que, ao actuar da forma supra descrita, impediam a sociedade de continuar a laborar e, em consequência, de obter receitas que lhe permitissem satisfazer os seus compromissos e saldar as dívidas que tinha para com os seus credores.
40. Os arguidos actuaram de forma livre, deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei." (negrito nosso).

Foi prolatada sentença, em 22.02.2024, e, além do mais, os arguidos condenados, nos seguintes termos:

1. "Condena-se o arguido BB pela prática de um crime de insolvência dolosa agravado p. e p. pelo artigo 227.0, n.0 1, alíneas a), b), e n.0 3 e 229-A do Código Penal na pena de 02 (dois) anos e 03 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.
2. Condena-se o arguido CC pela prática de um crime de insolvência dolosa agravado p. e p. pelo artigo 227.0, n.0 1, alíneas a), b), e n.0 3 e 229-A do Código Penal na pena de 02 (dois) anos e 03 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.
3. Condena-se o arguido DD pela prática de um crime de insolvência dolosa p. e p. pelo artigo 227.0, n.0 1, alíneas a), b), e n.0 2 do Código Penal na pena de 01 (um) ano e 03 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período."
*
Já nos presentes autos, os arguidos foram pronunciados nos seguintes termos: BB na prática de um crime de insolvência dolosa agravada, previsto e punível, pelo art. 227.0, n.0 1, al. a), b) e c), n.0 3 e 229.0A, do Código Penal. - CC na prática de um crime de insolvência dolosa agravada, previsto e punível, pelo art. 227.0, n.0 1, al. a), b) e c) e 229.0A, do Código Penal. - DD na prática de um crime de insolvência dolosa agravada, previsto e punível, pelo art. 227.0, n.0 1, al. a) b) e c), e n.0 2 e 229.0A, do Código Penal.
Segundo a pronúncia, está em causa a insolvência dolosa na sociedade "EMP06...", tendo sido utilizado modus operandi, nomeadamente pelos mesmos arguidos, semelhante aquele que foi dado como provado no processo supra aludido, além do mais:
"10. BB decidiu, em data não concretamente apurada mas anterior a ../../2015, nomear como gerente da sociedade EMP06..., Lda, o arguido CC, para assim tentar em afastar a responsabilidade do primeiro de quaisquer actos que viessem a praticar para dissipação de património, facto com o qual aquele CC concordou.
22. As sociedades EMP02..., Lda; EMP03..., Lda; EMP03... SGPS, S.A., EMP07..., Lda e EMP01..., Lda eram, naquela data, geridas de facto por BB.
23. E as sociedades EMP08..., Lda, EMP09..., Lda, eram geridas por DD, pessoa que mantinha relações pessoais e comerciais próximas com os arguidos HH e António Teixeira.
34. Assim como DD, aderindo aos propósitos referidos, aceitou simular a cedência de créditos da sociedade EMP06..., Lda, em representação das sociedades EMP09..., Lda., sabendo que assim impedia que os mesmos fossem afectos à satisfação dos credores da EMP06..., Lda." (negrito nosso)
*
Analisados os factos dados como provados na referida sentença, nomeadamente referentes à gerência de facto das sociedades "EMP01..." e "EMP04..., Lda", conclui-se que o signatário ficou convencido que os arguidos BB e DD, efetivamente, as exerciam, o que foi explanado na motivação da decisão (cfr. fls. 20 e seguintes). Isto, não obstante a tese das defesas fosse em sentido contrário.
Desta feita, e atentando que o signatário presidiu ao julgamento do Processo no 2663/15.... (o qual tem objecto, parcialmente, idêntico ao destes autos), após produção de prova, veio a proferir sentença condenatória, não pode haver dúvida que formou já uma convicção de que a versão invocada pela defesa (quanto aqueles factos) não corresponde à verdade.
Ora, face a esta sucessão de factos, entendo haver motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a minha imparcialidade, correndo, assim, risco de ser considerada suspeita a minha intervenção na qualidade de juiz no julgamento dos autos presentes autos.
Atente-se que o próprio tipo de ilícito, prevê que "1. O devedor que com intenção de prejudicar os credores: a) Destruir, danificar, inutilizar ou fazer desaparecer parte do seu património;
b) Diminuir ficticiamente o seu activo, dissimulando coisas, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida;
c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros; ou
d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente; é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. )
2 - O terceiro que praticar algum dos factos descritos no nº 1 deste artigo, com o conhecimento do devedor ou em benefício deste, é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada.
3 - Sem prejuízo do disposto no artigo 12º, é punível nos termos dos n.ºs. 1 e 2 deste artigo, no caso de o devedor ser pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva e houver praticado algum dos factos previstos no nº 1." (negrito e sublinhado nossos)
Isto é, a gerência de facto é elemento essencial do tipo, quanto ao no 1, e o terceiro (não representante do devedor) que praticar os actos típicos com conhecimento do devedor ou em benefício deste, neste caso como gerente de facto da sociedade "EMP04...", quanto ao nº 2.
Neste jaez, tendo sido já discutido nesse processo parte do mesmo pedaço de vida, e tendo o signatário já formado a convicção sobre o sucedido, designadamente quanto às gerências de facto das empresas, o que traz implícito que a versão das defesas não corresponde à verdade, julgo que tal circunstância é suficiente para criar desconfiança sobre a minha imparcialidade nos presentes autos, dado que os arguidos já sabem a convicção formada pelo julgador no âmbito do processo 2663/15.....
Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 43º, nº 2 e 4, 44º e 45º, nº 1, alínea a), todos do CPP, roga-se a V. Exas. escusa de intervenção nos presentes autos.
(...)”.
*
2. O pedido de escusa foi instruído com certidão das peças processuais atinentes ao incidente suscitado, não havendo necessidade de proceder a diligências de prova.
*
3. Subidos os autos a este TRG, pelo despacho de 25/03/2024, constante de fls. 74, foi ordenada a notificação do Ministério Público para, querendo, se pronunciar sobre o pedido de escusa.
*
4. Nessa sequência, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal da Relação emitiu o douto parecer que se mostra junto a fls. 73/75, preconizando dever ser deferido o pedido de escusa apresentado.

5. Efectuado exame preliminar, colhidos os vistos legais, cumpre conhecer e decidir [2].
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

As regras da independência e imparcialidade do tribunal são inerentes ao princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado pelo Artº 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e bem assim uma importante dimensão das garantias de defesa do processo criminal e do princípio do juiz natural (Artºs. 32º, nº 1, e 32º, nº 9, da Constituição da República Portuguesa).
Nessa perspectiva, a imparcialidade do tribunal constitui, pois, um dos elementos integrantes da garantia do chamado processo equitativo, com consagração expressa no Artº 6º, § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e no Artº 20º, nº 4, da nossa lei fundamental.
Ora, tendo em vista assegurar a efectiva imparcialidade do julgador, o C.P.Penal regula, no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.

No que concerne às recusas e escusas, prescreve o Artº 43º:

“1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.
3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.
4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.
(...)”.

Recusa e escusa são, assim, duas figuras processuais que visam o mesmo objectivo: obstar a que um juiz intervenha num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Sendo certo que o que as distingue é a diferente legitimidade para a respectiva dedução: a recusa pode ser deduzida pelo Mº Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis [Artº 43º, nº 3, do C.P.Penal], ao passo que a escusa só pode ser pedida pelo próprio juiz [nº 4 do mesmo preceito legal].
Porém, como vem sendo afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, cumpre referir que a imparcialidade deve ser avaliada sob duas perspectivas: uma perspectiva subjectiva, e uma perspectiva objectiva.
Efectivamente, como salienta o Exmo. Conselheiro Henriques Gaspar, in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2016, 2ª Edição Revista, págs. 110/113, “na perspectiva subjectiva, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro íntimo perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão”. Acrescentando que “a dimensão subjectiva, por princípio, impõe que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjectiva presume-se até prova em contrário (...)”.
Já na perspectiva objectiva – diz – “em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulação de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, que seja objectivamente justificado quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra os seus interesses”.
Na mesma senda pronuncia-se o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, págs. 132/133, em anotação ao artigo 43º e citando jurisprudência do TEDH, quando refere que “a imparcialidade pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo. O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjectivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção”. Por outro lado, explica o mesmo autor: “O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade (…). A perspectiva do queixoso pode ser importante, mas não é decisiva”.

E, a nível jurisprudencial, citamos, a título meramente exemplificativo, o acórdão deste TRG de 29/11/2010, proferido no âmbito do Proc. nº  728/09.0PBGMR-A.G1, in www.dgsi.pt, no qual se afirma:
“A questão tem duas componentes. Uma subjectiva, atinente à posição pessoal do juiz e àquilo que ele, perante um certo dado ou circunstância, guarda em si e possa representar motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão. Deste ponto de vista subjectivo impõe-se, em regra, a demonstração da predisposição do julgador para favorecer/desfavorecer um interessado na decisão e, por isso, presume-se a imparcialidade até prova em contrário; e outra objectiva, relacionada com as aparências susceptíveis de serem avaliadas pelos destinatários da decisão, suscitando motivo sério e grave acerca da imparcialidade da intervenção do juiz.”.

Como se alcança do supra transcrito Artº 43º, nº. 1, 2 e 4, do C.P.Penal, para que o juiz possa pedir escusa torna-se necessário que:

- A sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita;
- Por se verificar motivo, sério e grave;
- Adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Como lapidarmente se expende no Ac. da Relação de Évora, de 5/12/2000, in CJ XXV-V-284, “O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar de objectiva justificação, avaliando as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstancias, a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador; o que importa é, pois, determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado deixe de ser imparcial e injustamente o prejudique.”.
Ora, tendo em conta as considerações jurídicas supra sumariamente explanadas, atentemos na situação sub-judice.
Desde logo se dizendo, numa perspectiva subjectiva de imparcialidade, que não está minimamente em causa qualquer comportamento concreto do Exmo. Sr. Juiz Requerente susceptível de levantar suspeita da sua imparcialidade, tanto mais que, como se viu, tendo sido o mesmo a suscitar este incidente, tal é claramente revelador de uma conduta irrepressível e escrupulosa.
E à luz da perspectiva objectiva de imparcialidade, o que nos dizem os autos?

Como supra se mencionou, foram os presentes autos [ou melhor, os autos do qual dimanou a certidão que instruiu o presente Apenso] distribuídos ao Exmo. Sr. Juiz Requerente tendo em vista o julgamento dos arguidos:
- BB, pronunciado pela prática de um crime de insolvência dolosa agravada, p. e p. pelos Artºs. 227º, nºs. 1, als. a), b) e c), 3 e 229º-A, do Código Penal;
- CC, pronunciado pela prática de um crime de insolvência dolosa agravada, p. e p. pelos Artºs. 227º, nºs. 1, als. a), b) e c), e 229º-A, do Código Penal; e
- DD,  pronunciado pela prática de um crime de insolvência dolosa agravada, p. e p. pelos Artºs. 227º, nºs. 1, als. a), b) e c), 2 e 229º-A, do Código Penal.

Sucede que o Mmº Juiz Requerente já presidiu ao julgamento no âmbito do Processo Comum Singular nº 2663/15...., em cujo âmbito  tinham sido pronunciados [para além de outro], os arguidos BB, CC e DD, o primeiro pela prática de um crime de insolvência dolosa agravado p. e p. pelos Artºs. 227º, nºs. 1, als. a) e c), 3, e 229º-A do Código Penal, o segundo pela prática de um crime de insolvência dolosa agravado p. e p. pelos Artºs. 227º, nºs. 1, als. a) e c), e 229-A, do Código Penal, e o terceiro pela prática de um crime de insolvência dolosa p. e p. pelos Artºs. 227º, nºs. 1, als. a) e c), 2, e 229º-A, do Código Penal, acabando os mesmos por ser condenados, por sentença de 22/02/2024, nos seguintes termos:
- O arguido BB pela prática de um crime de insolvência dolosa agravado p. e p. pelo Artº 227º, nºs. 1, als. a) e b), 3, e 229-A do Código Penal, na pena de 02 (dois) anos e 03 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período;
- O arguido CC pela prática de um crime de insolvência dolosa agravado p. e p. pelo artigo 227º, nºs. 1, als. a) e b), 3 e 229-A, do Código Penal, na pena de 02 (dois) anos e 03 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período; e
- O arguido DD pela prática de um crime de insolvência dolosa p. e p. pelo Artº 227º, nºs. 1, als. a) e b), e 2, do Código Penal, na pena de 01 (um) ano e 03 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.
Mais se constatando que, em tal processo, esteve em causa a insolvência dolosa da sociedade "EMP01..., Lda", enquanto no Proc. Comum Singular nº 1183/15.... está em causa a insolvência dolosa da sociedade “EMP06..., Lda”, tendo alegadamente sido utilizado modus operandi, nomeadamente pelos mesmos arguidos, idêntico àquele que foi dado como provado no processo supra aludido, já submetido a julgamento, havendo factos sobreponíveis aos já apreciados aquele processo e aos factos a apreciar na audiência de discussão e julgamento no âmbito do Proc. Comum Singular nº 1183/15.....
Afirmando o Mmº Juiz requerente ter formado já uma convicção no que respeita à gerência de facto das sociedades “EMP01..." e "EMP04..., Lda”, factos esses com relevância para o preenchimento do crime em apreço.
Ora, em situações como a presente, afigura-se-nos que a questão da eventual desconfiança sobre a imparcialidade do julgador ganha uma acuidade acrescida que resulta, naturalmente, de o juiz que já julgou alguém como arguido num determinado processo, de cujos factos se inteirou, e sobre os quais já formou um juízo de culpabilidade, ser o mesmo que, por factos parcialmente idênticos, o vai julgar num outro.
Podendo, no caso concreto, a posição que o Exmo. Sr. Juiz plasmou na sentença que subscreveu naqueloutro processo acerca da intervenção dos ora arguidos BB, CC e DD, na perspectiva do homem comum e do cidadão médio, fazê-lo suspeitar que o juiz deixe de ser imparcial e que, como tal, prejudique a livre apreciação da prova a produzir.
Na verdade, é razoável supor que tais arguidos, e até o cidadão comum, suscitem dúvidas e fiquem de algum modo apreensivos se confrontados com o mesmo juiz que interveio em julgamento anterior no qual considerou num determinado sentido a sua participação nos factos aí dados como assentes e que os vai julgar tendo precisamente em vista apreciar factos que, como bem aduz a Exma. PGA, não sendo acessórios, relevam para o preenchimento dos crimes que lhes são imputados.
Assim sendo, perante o circunstancialismo acabado de relatar, afigura-se-nos estarem verificados os enunciados requisitos relativos à imparcialidade objectiva.
Pois - e repetindo-nos -, sem pormos em questão a idoneidade do Exmo. Sr. Juiz Requerente, cremos que, a ter de intervir nos presentes autos, ou melhor, no Processo Comum Singular nº 1183/15...., a sua actuação poderia colocar em crise o reconhecimento público da sua imparcialidade enquanto juiz (de julgamento) do processo, sendo adequada a levar um cidadão médio, representativo da comunidade a, fundadamente, suspeitar que o Requerente, pelas invocadas circunstâncias, possa não manter uma posição de isenção na audiência de discussão e julgamento a que teria de presidir.
Não sendo demais salientar que a mais avalizada doutrina nacional coloca o acento tónico da salvaguarda da imparcialidade precisamente nesta vertente objectiva, como sucede com o Prof. Manuel Cavaleiro Ferreira [3], que a propósito afirma:
“(...) Não importa, aliás,  que, na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial; interessa, sobretudo, considerar se em relação ao processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados. É este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza: a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios; mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento de suspeição (...)”.
Pelo que, sendo este o plano em que se deve situar e decidir a questão, entendemos existir fundamento válido para a escusa que vem solicitada a este tribunal.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em deferir o pedido de escusa formulado pelo Exmo. Sr. Juiz de Direito, Dr. AA, relativamente ao Processo Comum Singular nº 1183/15...., do Juízo Local Criminal de Guimarães, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, devendo ser cumprido o disposto no Artº 46º do C.P.Penal.

Sem custas.

Notifique.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo na primeira página as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários – Artºs. 94º, nº 2, do C.P.Penal, e 19º, da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto).
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Guimarães, 23 de Abril de 2024

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Bráulio Martins (Juiz Desembargador Adjunto)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)



[1] Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
[2] Nos termos do disposto no Artº 44º do C.P. Penal, a formulação do pedido de escusa é admissível até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório, só o sendo posteriormente, e apenas até à sentença ou até à decisão instrutória, quando os factos que o fundamentam sejam supervenientes ou de conhecimento posterior ao início da audiência ou do debate.
No caso vertente, o pedido de escusa é tempestivo, uma vez que foi deduzido pelo Exmo. Sr. Juiz a quem compete tramitar os autos, e designadamente presidir à audiência de discussão e julgamento.
Por outro lado, conforme dispõe o Artº 45º, nº 1, al. a), do C.P.Penal, o pedido de escusa deve ser apresentado perante o tribunal imediatamente superior. Estando em causa o pedido de escusa de um Juiz de Direito, mostra-se o mesmo correctamente apresentado perante este TRG, o competente para o apreciar.
[3] In “Curso de Processo Penal”, I, pág. 237.