Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3183/22.5T8BRG-C.G1
Relator: MARGARIDA PINTO GOMES
Descritores: AÇÃO ESPECIAL DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
COMPETÊNCIA POR CONEXÃO
APENSAÇÃO AO PROCESSO DE INVENTÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Visando a acção especial de prestação de contas, regulada nos artºs 941º e ss. do Código de Processo Civil, o apuramento e a aprovação de receitas obtidas e realizadas, por quem administra bens alheios. pode ser proposta por quem tenha o direito de as exigir ou por quem tenha o dever de prestá-las.
II. Dissolvido por divórcio o casamento por divórcio, encontra-se obrigado a prestar contas o ex-cônjuge administrador dos bens comuns, desde a data da propositura da ação de divórcio, uma vez que, como resulta do nº 1 do artº 1789º, do Código Civil), os efeitos daquele, designadamente, os patrimoniais, se retroagem àquela data.
III. A leitura do artº 947º do Código de Processo Civil, abarca as situações que a administração dos bens comuns é feita por pessoa diversa daquela que vem a ser investida como cabeça de casal, ou foram administrados por este, mas em período antecedente ao da sua nomeação, pelo que nestes caso se impõe a competência por conexão, uma vez que se mostra conveniente o tratamento das diferentes causas em conjunto e isto porque, num caso e noutro, dos bens a que se refere a prestação de contas serem os mesmos.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório:

Por apenso aos autos de inventário para partilha dos bens comuns do casal, deduzidos por AA contra o seu ex marido BB veio a mesma instaurar, contra o mesmo, ação especial de prestação de contas, nos termos dos artºs 941º a 947º do Código de Processo Civil, pedindo que as mesmas sejam apresentadas desde a data da propositura da acção de divórcio, ocorrida em ../../2021, porquanto, relativamente a relações patrimoniais, os efeitos do divórcio retroagem à data da propositura da acção nos termos do artº1789º do Código Civil.
Alega a mesma, em suma que, por sentença transitada em julgado a 20 de setembro de 2021, proferida pelo Tribunal de Família e Menores de ..., foi decretado o divórcio entre a aqui autora e réu em 5 de julho de 2021, por acção proposta em ../../2021.
O casamento entre Requerente e Requerido, dissolvido por divórcio, foi contraído sob o regime da comunhão de adquiridos, sendo certo que, enquanto casados, Requerente e Requerido, adquiriram diversos bens, pelo que, atento o facto de não ter sido possível obter conciliação das partes quanto a uma partilha extrajudicial, a aqui Autora deu entrada de processo de inventário que corre termos nos autos principais, competindo ao aqui Requerido o cargo de cabeça de casal do património comum e nesse cargo tendo já sido investido judicialmente, através de despacho datado de 26 de maio de 2022 nos autos principais.
Não obstante ter decorrido já mais de um ano e meio sobre a sentença que decretou o divórcio entre Requerente e Requerido, as partilhas ainda não foram feitas, sendo que este último tem a totalidade dos bens na sua posse e deles a administração exclusiva, sem nunca ter prestado contas à Requerente, sendo certo que o Requerido tem vindo a receber assim todos os proveitos da administração do património comum, designadamente as rendas dos prédios já relacionados.
Desconhece igualmente por qual motivo o Requerido deixou de assegurar o pagamento dos créditos contraídos por ambos para aquisição dos imóveis supra identificados, pelo que, tem vindo a Requerente a promover depósitos/créditos nas contas bancárias respectivas para garantir tal pagamento.
Acresce que, a Requerente detém uma participação social na sociedade comercial EMP01... (sociedade constituída em 17 de maio de 2014) e na sociedade comercial EMP02..., pelo que requer prestação de contas de todos os activos financeiros e dividendos das participações detidas por ambos, à data de ../../2021, e rendimentos desde essa data, nas referidas sociedades e contas bancárias tituladas pelas mesmas, pois que tem direito de informação enquanto sócia, pretendendo a A. que lhe seja entregue metade das quantias apuradas.

Foi então proferida decisão nos seguintes termos:
“AA instaurou a presente ação de prestação de contas contra BB pedindo a condenação deste a prestar contas e a pagar-lhe metade do saldo que se vier a apurar.
Alega, para o efeito, que foi proposta em ../../2021 ação de divórcio, na qual foi proferida sentença em 05.07.2021 que transitou em julgado em 20.09.2021 e, decorrido já mais de um ano e meio sobre a sentença que decretou o divórcio entre A e R, as partilhas ainda não foram feitas, sendo que o R. tem a totalidade dos bens na sua posse e deles a administração exclusiva, sem nunca ter prestado contas à aqui A.
Mais alega que integram o património comum cinco imóveis que se encontram arrendados, cujas rendas são recebidas pelo R e a A detém uma participação social na sociedade comercial EMP01... (sociedade constituída em 17.05.2014) e na sociedade comercial EMP02..., pelo que requer prestação de contas de todos os ativos financeiros e dividendos das participações detidas por ambos, à data de ../../2021, e rendimentos desde essa data, nas referidas sociedades e contas bancárias tituladas pelas mesmas, pois que tem direito de informação enquanto sócia.
O processo especial de prestação de contas encontra-se regulado nos art os. 941º a 947º do CPCivil.
Esta ação pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las, ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e a aprovação de receitas obtidas e realizadas, por quem administra bens alheios.
A obrigação de prestar contas “tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios. Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou do princípio geral da boa-fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte” (cf. VAZ SERRA, Scientia Iuridica, vol. XVIII, 115).
A obrigação de prestação de contas pressupõe que alguém administrou ou está a administrar bens ou interesses alheios e, por isso, deve prestar contas dessa administração, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para estar a administrar os bens ou interesses em causa, mas a que a lei faz corresponder a fonte dessa obrigação (cf. Alberto dos Reis, “Processos Especiais, vol I, pag. 303 Coimbra, 1956).
A ação com processo especial de prestação de contas pode ser proposta por quem tem direito a exigir a prestação de contas (prestação forçada), ou por quem tem o dever de prestá-las (prestação espontânea).
Para além do processo especial de prestação de contas autónomo, prevê também a lei processual, no art.º 947º do CPCivil, os casos em que o processo de prestação de contas é dependência de outra causa.
O artº. 947º do CPCivil estabelece uma regra de competência por conexão, determinando que “as contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça-de-casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”.
Este processo segue a tramitação do processo de prestação de contas autónomo, apenas com a particularidade de ser apensado aos autos de que são pendência pois apenas se aplica à prestação de contas pelas entidades referidas no art.º 947º do CPCivil.
Uma dessas entidades e no que releva para o caso é o cabeça-de-casal que, por regra, no período em que fica investido neste cargo, em sede de inventário, tem o dever de administrar o património objeto de partilha.
Assim, qualquer interessado pode requerer a prestação de contas por parte do cabeça de casal no período do exercício do cabeçalato, através do processo de prestação de contas na dependência do inventário.
Contudo, a prestação de contas pelo cabeça-de-casal como dependência do inventário, só é devida quanto aos bens que efetivamente administra, pois que pode suceder que, de facto, alguns bens sejam detidos por outro interessado, que os administram.
Neste caso, o interessado administrador de facto, não fica na posição de cabeça de casal, mas nem por isso fica desonerado da obrigação de prestar contas pela sua administração.
Seguindo o entendimento de Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, 4.º edição, vol III, p. 64 e 65), quer o cabeça-de-casal, quer os demais interessados podem exigir a prestação de contas não por via do dito processo especialíssimo, ou seja por dependência do inventário, mas antes intentando processo de prestação de contas autónomo.
In casu, a A pretende que o R apresente contas da administração de facto de bens comuns do casal, por apenso ao processo de inventário, quando neste o R foi nomeado como cabeça de casal em 26.05.2022.
Ora, assim sendo, é bom de ver que, nestes autos e por dependência do inventário, a A apenas pode pedir contas da administração do cabeça de casal no período após a sua nomeação no inventário e até efetivação da partilha.
No período anterior a essa nomeação e prestação de compromisso de honra (que
ocorreu em 26.05.2022), a prestação de contas deve ser pedida noutro processo e não por dependência do inventário.
Assim sendo, este Tribunal é incompetente, em razão da forma de processo aplicável, para o julgamento das contas da administração do cabeça de casal no período anterior a 26.05.2022 pelo que, nessa parte, deverá o R ser, desde já, absolvido da instância.
Por tudo o exposto, absolvo o R requerida da instância quanto ao pedido de prestação de contas relativo ao período anterior a 26.05.2022.
Custas do incidente pela A fixando em 2 Ucs a taxa de justiça.
Notifique.
*
No mais, cumpra o disposto no artº. 942º, nº 1 do Código de Processo Civil (ex vi do disposto no artº. 947º do mesmo diploma), devendo o R ser concomitantemente notificado do teor do despacho que antecede.
(…)”.

Inconformada com tal decisão veio a requerente, da mesma apresentar recurso, formulando as seguintes conclusões:

A. Vem o presente recurso interposto do Despacho proferido pelo Tribunal de Primeira Instância, no qual considera a incompetência do Tribunal em razão da forma de processo aplicável, para julgamento das contas da administração do cabeça de casal no período anterior àquele em que foi investido judicialmente nesse cargo, absolvendo o Réu da instância relativamente a tal período,
B. A Autora, ora Recorrente, não são conforma com tal entendimento por contrário àquele que vem sendo defendido pela jurisprudência mais recente, que pugna pela aplicação da competência por conexão e dos princípios da economia e da adequação
processual.
C. Na verdade, a Autora, aqui Recorrente, deu entrada de acção de prestação de contas por apenso ao processo de inventário para partilha de bens subsequente a divórcio, nos termos do artigo 947.º do CPC;
D. Fê-lo, requerendo a prestação de contas pelo Réu, aqui Recorrido, desde a data da propositura da acção de divórcio – ../../2021, alegando ter sido sempre aquele quem
administrou o património comum do casal desde tal data;
E. Padece, pois, de errada interpretação e aplicação de Direito o Despacho Recorrido, ao considerar que ser o Tribunal recorrido apenas competente para julgamento da administração das contas ulteriores à data em que o cabeça de casal foi investido judicialmente nessa qualidade no processo de inventário (26.05.2022),
F. Pois que, salvo o devido respeito, entende a Recorrente, na linha da jurisprudência mais recente, não se coaduna com os princípios da economia e da adequação processual ter de lançar mão de acção autónoma com vista a reclamar a prestação de contas ao cabeça de casal, ainda que por referência a um espaço temporal anterior ao inventário e à sua nomeação pelo menos, na circunstância em que, conforme veio alegado na petição inicial, a administração de facto coincide com o cabeça de casal investido e que diz respeito aos mesmos bens e compreende receitas ou despesas que se repetem anualmente.
G. Não se vislumbra razão plausível para obrigar à instauração de duas acções para prestação de contas pelo mesmo cabeça-de-casal, uma autónoma respeitante ao período em que administrou a herança anteriormente à sua investidura judicial, e outra por apenso ao processo de inventário referente ao período subsequente, quando é certo que a tramitação processual é exactamente a mesma.
H. A agilidade e celeridade na administração da justiça, não admite que se desaproveite a conveniência que poderá decorrer da maior facilitação no tratamento das causas que advém da competência por conexão, quando esta faça sentido, como se entende ser o caso.
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TERMOS EM QUE, E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE VOSSAS EXCELÊNCIA DOUTAMENTE SUPRIRÃO, revogando o Despacho proferido pelo Tribunal de Primeira Instância e substituindo-o por outro que ordene a citação do cabeça de casal para prestar contas desde a data da propositura da acção de divórcio (../../2021).
FARÃO INTEIRA JUSTIÇA!

Veio o requerido apresentar contra alegações, formulando questão prévia, requerendo que as alegações de recurso, porque apresentadas fora do prazo sejam desentranhadas, devendo ainda, se tal não se verificar, ser o recurso interposto julgado totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra o despacho recorrido, assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA!

Veio a apelante alegar que, se apercebeu de que, por manifesto lapso, aquando da submissão das alegações de recurso não terá ficado gravada na plataforma Citius a referência de DUC relativo a taxa de justiça devida, mas, ainda assim e, uma vez que, a mesma procedeu ao pagamento da mesma em momento anterior à sua submissão, vem requerer a junção aos dos respetivos comprovativos.

Admitido o recurso subiu o mesmo a este Tribunal.

Colhidos os vistos cumpre apreciar.
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II. Objeto do recurso:

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, impondo-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes, bem como as que sejam de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas, cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, sendo certo que o tribunal não se encontra vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e que visam sustentar os seus pontos de vista, isto atendendo à liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.
Assim, atendendo às conclusões apresentadas pela recorrente, cumpre apreciar se saber se o Tribunal de Família e Menores é incompetente, em razão da matéria, para o julgamento das contas da administração do cabeça de casal no período anterior àquele em que foi judicialmente investido.
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III. Fundamentação de facto:

Com relevo para a decisão, são os seguintes os factos provados:

1. BB e AA contraíram casamento sem convenção antenupcial, a ../../2002.

2. A ../../2021 BB instaurou ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge que correu termos sob o nº 3090/21...., contra AA, no Tribunal de Família e Menores de ....

3. Por douta sentença proferida a 5 de julho de 2021 e transitada em julgado em 20 de setembro de 2021, proferida pelo Tribunal de Família e Menores de ..., foi decretado o divórcio entre BB e AA.

4. Por não ter sido possível obter conciliação das partes quanto a uma partilha extrajudicial, AA deu entrada de processo de inventário que corre termos nos autos principais,

5. Competindo ao Requerido o cargo de cabeça de casal do património comum e nesse cargo tendo já sido investido judicialmente, através de despacho datado de 26 de maio de 2022 nos autos principais.

IV. Do direito:

Conforme já, em sede de definição do objeto do recurso nos pronunciamos, a questão essencial a decidir nestes autos consiste em saber o Tribunal de Família e Menores é incompetente, em razão da matéria, para o julgamento das contas da administração do cabeça de casal no período anterior àquele em que foi judicialmente investido.

Vejamos.
Estabelece o artº 941º do Código de Processo Civil que "a ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las, ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se".
Deste preceito resulta a regra de que quem está encarregado da administração de interesses alheios (ou alheios e simultaneamente próprios) está obrigado a prestar contas perante o titular desses interesses.
Ora, sob a epígrafe “exercício da administração”, estabelece o nº 1 do artº 1681º do Código Civil que “O cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 1678.º, não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge”.
Resulta ainda do nº 2 do preceito acima citado que, “Quando a administração, por um dos cônjuges, dos bens comuns ou próprios do outro se fundar em mandato, são aplicáveis as regras deste contrato, mas, salvo se outra coisa tiver sido estipulada, o cônjuge administrador só tem de prestar contas e entregar o respectivo saldo, se o houver, relativamente a actos praticados durante os últimos cinco anos”.
Ou seja, ao contrário da generalidade dos administradores de bens alheios, durante a constância do matrimónio o cônjuge administrador não é obrigado a prestar contas.
Como referem os Drs Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2021 Reimpressão, Vol. II, pág 388-389, “Em termos gerais, assume-se que quem administra bens ou interesses, total ou parcialmente alheios, está obrigado a prestar contas ao titular ou contitular desses bens ou interesses. Mas, ao abrigo do princípio da autonomia privada (artº 405º, nº 1, do CC), as partes podem convencionar a obrigação de prestar contas associada aos contratos que firmem. Tal obrigação encontra-se casuisticamente consagrada em várias normas e pode derivar de negócio jurídico ou mesmo do principio geral da boa fé. Já o cônjuge que administra bens comuns não é obrigado a prestar contas, atento o disposto no artº 1681º, nº 1 do CC (STJ 11-4-19, 3185/12)”.
Ora, dissolvido o casamento, como nos autos, por divórcio, cessa aquela isenção, uma vez que, cessam as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, conforme decorre dos artºs 1788º e 1688º do Código Civil.
Acontece porém, como bem refere o Acordão desta Relação de Guimarães, de 30 de abril de 2020, relatado pelo Sr Desembargador Alcides Rodrigues, in www.dgsi.ptNo entanto, apesar dos efeitos do divórcio se produzirem a partir do trânsito em julgado da sentença que o decretou, a consequente cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges retroage, pelo menos, à data da propositura da ação de divórcio (art. 1789º, n.º 1 do CC); podendo, inclusive, se a separação de facto entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles requerer que os efeitos patrimoniais do divórcio retroajam à data, que a sentença fixará, em que a separação tenha começado (cfr. n.º 2 do citado normativo).
A retroatividade, à data da propositura da ação, da eficácia do decretamento do divórcio, aplicável apenas às relações de natureza patrimonial entre os cônjuges, opera automaticamente sem necessidade de formulação de pedido nesse sentido, nem de qualquer apreciação adicional (16).
Tal retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio, à data da propositura da ação, enquanto exceção à regra geral de que os efeitos do divórcio se produzem a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, decorrente da natureza constitutiva desta, visa defender cada um dos cônjuges contra os abusos ou delapidações patrimoniais realizadas pelo outro cônjuge na pendência da ação de divórcio sobre o património comum (17); no fundo, destina-se a evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a propositura da ação, sobre os valores do património comum (18).
Neste contexto, após a dissolução do casamento por divórcio, o ex-cônjuge que detenha a posse de bens comuns e deles colha os seus frutos ou utilidades é obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge desde a data da propositura da ação de divórcio, uma vez que, como vimos, os efeitos do divórcio retrotraem à data da propositura da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, sendo para esse efeito estes havidos como divorciados a partir daquela data (art. 1789º, n.º 1, do CC) (19). Tal como, de resto, o está o cabeça-de-casal, subsequente ao divórcio (art. 2093.º, n.º 1, do CC)”.
Feitas estas considerações importa aferir, se como se decidiu, em 1ª instância, é o Tribunal de Família e Menores incompetente, em razão da forma de processo aplicável, para o julgamento das contas da administração do cabeça de casal no período anterior a 26 de maio de 2022 (data da nomeação e prestação de compromisso de honra) pelo que, nessa parte, deve ser o requerido, ora recorrido, absolvido da instância.

Decorre do artº 947º Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Prestação de contas por dependência de outra causa” que “As contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça de casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”.
acordo com o disposto no nº 1 do artº 1133º do Código de Processo Civil “Decretada (…) o divórcio, (…) qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns”, referindo o nº 2 desta mesma disposição que “As funções de cabeça de casal incumbem ao cônjuge mais velho”.

Ora, chamamos aqui, o Acordão da Relação de Lisboa, de 19 de Abril de 2012, relatado pela Srª Desembargadora Maria Teresa Albuquerque, quando refere:
“A questão colocada implica que se tenham presentes duas circunstâncias:
A primeira é a de que o desempenho das funções de cabeça de casal não depende da nomeação em inventário. Desempenha as funções de cabeça de casal, no caso de partilha decorrente de divórcio, o cônjuge mais velho, e deve entender-se que este é cabeça de casal – com os inerentes direitos e deveres – desde que é decretado o divórcio, não dependendo esta sua qualidade da pendência dos autos de inventário e da investidura judicial nesse cargo que deles decorra.
Como o adverte Lopes Cardoso [1] não é verdade que a «entidade» cabeça de casal só tenha existência dentro do processo de inventário depois de aí reconhecida por despacho transitado, antes se devendo considerar que o cabeça de casal deve entrar de facto no exercício das funções de administração que lhe competem logo que se dê a abertura da herança ou, no caso de património conjugal, logo que ocorra o divórcio ou a separação judicial de bens[2].
E a segunda é a de que, não obstante ser ao cabeça de casal que cabe o encargo da administração de todos os bens que integram o património cuja partilha está em causa que, no caso do falecido ter sido casado em regime de comunhão, se tratarão dos bens comuns do casal nos termos do art 2087º/1 CC, a verdade é que pode acontecer – e acontece frequentemente – que, quem estava na administração dos bens comuns até à data do divórcio se mantenha nessa administração, porque não seja sido interpelado pelo cabeça de casal a proceder à entrega desses bens (art 2088ºCC), ou porque, tendo-o sido, não haja correspondido extra-judicialmente a tal interpelação.
E quando assim seja – isto é, quando os bens a partilhar estão a ser administrados pelo cônjuge que não é cabeça de casal - como é evidente e flui da regra mais geral do art 1014º CPC, deverá ainda, quem assim administra bens comuns, prestar contas dessa administração”.
Ora, lido aquele Douto aresto daí se conclui que, mesmo nos casos em que a administração do património comum tenha sido realizada por outro que não aquele a quem cabe o exercício das funções de cabeça de casal, ainda assim, é competente por conexão, para a prestação de contas, por apenso, ao inventário, o Tribunal onde corre este último processo.
Por maioria de razão, no caso sub judice, em que se alega que o requerido, ora recorrido, que veio a ser nomeado cabeça de casal, administrou, desde o casamento, os bens comuns, caberá ao Tribunal onde corre o inventário, a competência para aferir das contas a prestar pelo administrador das mesmas e que veio a ser nomeado cabeça de casal, desde a data da instauração da ação de divórcio.
Como se refere no Douto Acordão atrás citado, “A questão – ainda que apenas no que se refere ao (estritamente) cabeça de casal de facto, isto é, a pessoa a quem cabe o papel de cabeça de casal, mas age como tal antes da sua investidura judicial - recebeu respostas diferentes na jurisprudência [3] e conta com a posição muito peremptória de Lopes Cardoso no sentido da acção em causa dever ser interposta como acção autónoma.
Refere o referido autor: [4]«Portanto, o cabeça de casal de facto prestará as suas contas pelo processo geral dos arts 1014º e ss, e o cabeça de casal investido judicialmente em inventário pelo processo do art 1019º CPC, sendo competente para as primeiras o tribunal do domicílio do réu (art 85º) e processando-se as segundas por dependência do processo de inventário (art 1019º)».
Ora, entendemos nós que, seguindo de perto os argumentos do citado aresto, que as razões que terão levado o legislador a prevenir que as contas a prestar pelo cabeça de casal o sejam por dependência do processo em que a nomeação tenha sido feita, nos termos do já citado artº 1133º do Código de Processo Civil “(…) se sentem em hipóteses em que se verifica que os bens a que respeita o processo em que vem a ocorrer a nomeação do cabeça de casal, foram, ou estão a ser administrados por pessoa diversa daquela que vem a ser investida como cabeça de casal, ou foram administrados por este, mas em período antecedente ao da sua nomeação”.
Ou seja, a leitura do artº 947º do Código de Processo Civil, abarca as situações que a administração dos bens comuns é feita por pessoa diversa daquela que vem a ser investida como cabeça de casal, ou foram administrados por este, mas em período antecedente ao da sua nomeação, pelo que nestes caso se impõe a competência por conexão, uma vez que se mostra conveniente o tratamento das diferentes causas em conjunto e isto porque, num caso e noutro, dos bens a que se refere a prestação de contas serem os mesmos.
Conforme refere o D. Acordão que aqui de perto seguimos, “Em tempos como o presente em que se impõe agilidade e celeridade na administração da justiça, não fará sentido que se desaproveite a conveniência que poderá decorrer da maior facilitação no tratamento das causas que advém da competência por conexão, quando esta faça sentido, como se entende ser o caso”.
Assim sendo, ao contrário do decidido na 1ª instância entendemos que a prestação de contas, relativa ao período entre a data da instauração da ação de divórcio e a data em que é nomeado efetivamente o cabeça de casal, deverão correr por apenso ao processo de inventário, atenta a competência por conexão.

V. Decisão:

Nestes termos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães, julgar o recurso totalmente procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se o Tribunal competente para aferir das contas a prestar pelo cabeça de casal, ora recorrido, desde a data da instauração da ação de divórcio – ../../2021.

Custas pelo recorrido.

Guimarães, 2 de maio de 2024

Relatora: Margarida Pinto Gomes
Adjuntas: Anizabel Sousa Pereira
Maria Amália Santos.