Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1132/21.7T8VVD-A.G1
Relator: CARLA OLIVEIRA
Descritores: INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO DE BENS
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O poder do inquisitório não é um poder discricionário, mas antes um poder dever, um ónus que lhe cabe exercer conjugadamente com os princípios do dispositivo, da auto-responsabilidade e da igualdade das partes, da preclusão dos direitos processuais destas e da imparcialidade a que o juiz vê subordinada toda a sua actuação.
II - É na fase da instrução do processo que o aludido princípio do inquisitório assume plena eficácia, ao impor ao tribunal o ónus de realizar ou ordenar, ainda que oficiosamente, todas as diligências probatórias que entenda necessárias ao apuramento dos factos essenciais, complementares e instrumentais e que se justifiquem pela necessidade de evitar que, pela falta de prova, a decisão da causa seja imposta pelo non liquet probatório e não pela realidade das coisas averiguadas em juízo.
III - O uso de poderes instrutórios do juiz está sujeito aos seguintes requisitos:
i) a admissibilidade do meio de prova;
ii) a sua manifestação em momento processualmente desadequado;
iii) a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio; e
iv) a prova a produzir incidir sobre factos que é lícito ao juiz conhecer».
IV - O incumprimento pelo juiz da determinação dos poderes/deveres que lhe estão cometidos, pode, assim, em algumas situações influir na decisão da causa e consequentemente ser geradora de uma nulidade processual, nos termos do disposto no art.º 195º, nº 1, do NCPC.
V - A nulidade processual por inobservância, pelo juiz, dos poderes deveres instrutórios, pode ser suscitada no recurso – apelação autónoma - da decisão interlocutória de rejeição de meio de prova (al. d), do nº 2, do art.º 644º, do NCPC).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA e mulher BB instauraram processo de inventário para partilha dos bens das heranças abertas por óbito de CC (falecido em ../../1986) e DD (falecida em ../../2009), requerendo que fosse nomeado cabeça de casal o requerente e tendo de imediato identificado os demais herdeiros e apresentado relação de bens.
Após citação dos interessados directos na partilha, a interessada EE apresentou reclamação da relação de bens, dizendo que faltava relacionar, para além do mais e para o que ora interessa, saldos das contas bancárias, depósitos à ordem ou a prazo e aplicações financeiras de que os inventariados eram titulares e solicitou a recolha de informações bancárias.
O cabeça de casal apresentou resposta, pugnando pela improcedência da reclamação contra a relação de bens.

Na sequência, em 3.10.2022, foi proferido o seguinte despacho:
“Solicite ao BANCO DE PORTUGAL – DEPARTAMENTO DE SUPERVISÃO BANCÁRIA, para que este proceda à notificação de todas as instituições Bancárias, a fim de estas virem aos presentes autos indicar os saldos de todas as contas abertas à ordem, depósitos e aplicações a prazo, fundos de investimentos, ações, obrigações e todas e quaisquer outras aplicações financeiras que os inventariados CC, falecido no dia ../../1986 e DD, falecida em ../../2009, eram respetivamente titulares ou co- titulares à data dos respetivos óbitos e os seus respetivos saldos e montantes.”.
O Banco de Portugal, em cumprimento do assim solicitado, veio informar os autos ter procedido à sua divulgação pelo sistema bancário nacional.
Na sequência, o Banco 1..., SA respondeu a tal solicitação nos seguintes termos (cfr. ofício de 27.02.2023):
“Em resposta ao processo e ofício supra identificados, e considerando a legislação sobre o dever de guarda de sigilo bancário, decorrente do disposto nos artigos 78.º e seguintes do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, solicitamos o favor de identificarem o diploma legal que dispensa as Instituições de Crédito do cumprimento de tal dever, ou de informarem se o cabeça de casal e/ou herdeiro(s) autoriza(m) este Banco a fornecer as informações/documentos em causa.”.
Notificados desta e das respostas remetidas pelas demais entidades bancárias, o cabeça de casal e os restantes interessados nada disseram ou requereram, tendo em, 19.04.2023, sido proferido o seguinte despacho:
“Em face das informações juntas aos autos, notifique-se os interessados e o CC para informarem os autos se pretendem a realização de mais diligências probatórias.”.
Em resposta, veio apenas o cabeça de casal dizer não vislumbrar ser necessário realizar mais diligências probatórias, para além das requeridas declarações e depoimentos de parte.
De seguida, foi prolatado despacho a admitir as requeridas declarações e depoimentos de parte, bem como a inquirição de testemunhas e designada data para produção da prova assim admitida.
Finda a produção da referida prova, foi dada palavra aos mandatários e à patrona dos interessados para proferirem alegações e determinado que os autos fossem conclusos para ser proferida decisão.
Antes de ser proferida decisão sobre a reclamação da relação de bens, a interessada/reclamante atravessou nos autos, em 25.10.2023, um requerimento com o seguinte teor:
«EE, interessada nos autos de inventário à margem referenciados e aí devidamente identificada, atento o princípio geral da descoberta da verdade material, que sobressai do disposto nos artigos 411º e 436º, do CPC, vem requerer a V. Ex.a se digne insistir, novamente, junto do “Banco 1..., S.A.” no sentido de prestar informações sobre os saldos das contas existentes em nome dos inventariados.
De facto, ficou claro pelos testemunhos na audiência de produção de prova que havia conta(s) bancária(s) na referida instituição bancária, bem como, foi confirmado pelo cabeça de casal que este foi autorizado, juntamente com a inventariada numa conta dela pertencente.
Por outro lado, não há qualquer motivo legítimo para a recusa do Banco em ceder tais informações.
Na realidade o artigo 80º, número 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro (doravante, designado por RGICSF) impõe o dever de segredo a todos os que exerçam (ou tenham exercido) funções no Banco de Portugal, bem como a todos aqueles que lhe prestem (ou tenham prestado) serviços a título permanente ou ocasional, relativamente a factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício daquelas funções ou da prestação destes serviços; dispondo o número 2 do mesmo preceito que: “Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal”.
Subjacente à tutela do segredo bancário está (para além da salvaguarda do interesse público quanto ao correcto e regular funcionamento da actividade bancária), nomeadamente, o direito à reserva da intimidade da vida privada (cfr. artigo 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa), como tem vindo a ser reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência. Especificamente, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem seguido o entendimento de que as operações bancárias integram a esfera de reserva da vida privada – cfr., neste sentido, Acórdãos daquele Tribunal: nº 278/95, de 31/05/1995, proc. nº 510/91, disponível em www.tribunalconstitucional.pt; nº 602/2005, proc. nº 514/2005, in DR nº 243/2005, Série II de 21/12/2005; e, nº 145/2014, de 14/02/2014, proc. nº 521/2013, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Todavia, nem o dever de sigilo profissional, nem o de sigilo bancário são deveres absolutos, daí que possam ceder face à necessidade de salvaguardar outros direitos, nomeadamente, aqueles que contendem com o direito de acesso à justiça e à tutela efectiva que aquele visa alcançar, tal como constitucionalmente consagrado no artigo 20º, números 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
No contexto do direito civil e direito processual civil, o artigo 2º, nº 2 do Cód. Proc. Civil reflecte a garantia constitucional de acesso aos tribunais, ao estabelecer que, a todo o direito corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.
Por sua vez, o artigo 417º, nº 1 do Cód. Proc. Civil prevê o dever de cooperação para a descoberta da verdade que recai sobre todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, incumbindo-lhes, designadamente, facultar o que for requisitado e praticar os actos que forem determinados. E, pese embora a al. c) do nº 3 daquele preceito reconheça a legitimidade da recusa de colaboração com fundamento em violação do sigilo profissional, o número 4 do mesmo preceito permite que seja deduzida escusa desse dever, determinando a aplicação, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, do disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
O que significa que o número 4 do mencionado artigo 417º do Cód. Proc. Civil remete para o artigo 135º do Código de Processo Penal, que, nos termos do seu nº 3, prevê, no que ao segredo profissional diz respeito, que o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir a sua quebra sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante e a necessidade de protecção dos bens jurídicos em causa.
Com pertinência nesta sede, dispõe, ainda, o artigo 573º do Cód. Civil, sob a epígrafe “obrigação de informação”, que esta obrigação “existe, sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias.”.
Este normativo abrange todos os casos em que uma pessoa, para definir o seu direito ou determinar o respectivo conteúdo, necessita da informação de um terceiro que esteja, por quaisquer especiais razões, em condições de a prestar, como sucede, por exemplo, como referem Pires de Lima e Antunes e Varela, no caso de se pretender saber de terceiro onde se encontrava certo objecto à data da morte do seu titular, para efeitos de eventual determinação de um legatário (cfr. “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed. revista e actualizada, p. 589).
Assim, quem esteja em situação de prestar informação sobre a existência ou o conteúdo de um direito (seja este real, obrigacional, social, intelectual, familiar, sucessório) está obrigado a prestá-la ao alegado titular que tenha fundadas dúvidas sobre essa existência ou conteúdo. Quando judicialmente exercido, o direito à informação pode ter lugar em sede de acção declarativa instaurada para esse efeito ou na pendência de outro processo, aplicando-se então o disposto no artigo 417º do Cód. Proc. Civil, cabendo ao julgador verificar a ocorrência dos pressupostos do direito à informação e a necessidade ou utilidade desta – cfr., neste sentido, Ana Prata (Coordenação), in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 2ª ed. revista e actualizada, p. 771.
Como decorre das mencionadas disposições legais e do que se deixou dito, o incidente de quebra ou levantamento do sigilo bancário destina-se a resolver o conflito de interesses entre, por um lado, o interesse tutelado pelo dever de segredo bancário, e, por outro lado, o interesse na realização da justiça, no caso, na vertente do direito à prova. Ou seja, entre os interesses em conflito figura, por um lado, o dever de sigilo e, por outro, o dever de colaboração com a administração da justiça, que prossegue, naturalmente, o interesse público que é o da realização da justiça – cfr. Acórdão do TRC de 10/03/2015, Falcão de Magalhães, acessível em www.dgsi.pt, onde se escreve: “O dever de colaboração com a administração da justiça tem por finalidade a satisfação de um interesse público, que é o da realização da Justiça.”.
Assim, o critério de decisão a adoptar será o de fazer prevalecer o interesse preponderante, isto é, o tribunal superior poderá dispensar o titular do sigilo profissional - no caso, sigilo bancário - se considerar relevante o interesse civil a satisfazer com a sua quebra - cfr. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2, 2ª ed., Coimbra Editora, 2008, p. 441 e 443.
A questão de saber qual destes interesses deve prevalecer deve ser resolvida à luz das circunstâncias de cada caso concreto, e de acordo com os critérios enunciados no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, o qual consagra o princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade, que, por sua vez, se desdobra nos subprincípios da adequação ou idoneidade, da exigibilidade ou necessidade e justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito.
Como esclarecem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado Parte Geral e Processo de Declaração”, Vol. I, Almedina, 2019, p. 491-492, “casuisticamente há que determinar se prevalece o direito à prova ou as razões que justificam a invocação do sigilo, sendo que tal ponderação se rege necessariamente pelo princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade (artigo 18º, nº 2, da CRP), o qual se desdobra nos subprincípios da adequação ou idoneidade, da exigibilidade ou da necessidade e justa medida ou proporcionalidade em sentido. Face à existência de um interesse probatório legítimo, deve fazer-se um reequilíbrio dos valores em conflito, rejeitando uma conceção intangível das normas sobre o sigilo.”. Cfr., ainda, neste sentido, o Ac. do TRC de 28/04/2015, Isabel Silva, acessível em ww.dgsi.pt, ali citado por aqueles autores.
No caso vertente, afigura-se-nos que as informações pretendidas destinam-se a efectuar a prova de factos relevantes para a boa administração da justiça e o “Banco 1..., S.A.” está, sem dúvida, habilitado para prestar as solicitadas informações, tendo a ora Requerente, na qualidade de interessada no processo de inventário, dúvida fundada (por falta de elementos) quanto à extensão do património do inventariado à data do óbito, dúvida essa que resultou claramente da diligência referida supra.
Neste sentido, se requer, em nome do princípio geral da descoberta da verdade material, que V. Ex.a insista junto do “Banco 1..., S.A.” para que este indique quais os saldos e respectivos movimentos, se os houve, por parte do autorizado nas contas para além dos inventariados. Mais uma vez se ressalva que tal necessidade decorreu do testemunho do cabeça de casal na diligência de produção de prova.».
Na sequência, o tribunal recorrido proferiu, em 30.10.2023 o seguinte despacho:
«Ref. citius 15236079 (de 25.10.2023):
Por requerimento apresentado em juízo em 25.10.2023, a interessada EE requer que se insista junto do Banco 1..., S.A., para que indique quais os saldos e respetivos movimentos, se os houve, por parte do autorizado nas contas para além dos inventariados. E justifica tal pedido alegando que tal necessidade decorreu das declarações do cabeça de casal na diligência de produção de prova.
Atenta a simplicidade, sendo caso de manifesta desnecessidade, dispensa-se o contraditório em relação aos demais interessados, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC.
Cumpre apreciar e decidir.
Compulsados os autos verificamos que a ora requerente EE apresentou reclamação à relação de bens, por via da qual alegou, além do mais, a falta de inclusão de dinheiro depositado em contas bancárias abertas em nome dos inventariados e em aplicações financeiras de que os inventariados eram titulares.
Nesse seguimento, por despacho proferido em 03.10.2022, foi determinado que se oficiasse ao Banco de Portugal para que procedesse à notificação de todas as instituições bancárias para indicarem os saldos de todas as contas abertas à ordem, depósitos e aplicações a prazo, fundos de investimento, ações, obrigações e todas e quaisquer aplicações financeiras em nome dos inventariados à data dos seus óbitos.
Foram juntas aos autos as informações bancárias solicitadas.
Em 27.02.2023, foi junta aos autos a comunicação remetida pelo Banco 1..., S.A., a invocar o sigilo bancário quanto à prestação das informações solicitadas por despacho de 03.10.2022 e foi solicitado que se informasse se o cabeça de casal e/ou herdeiro(s) autoriza(m) este Banco a fornecer as informações/documentos em causa (cf. ref. citius 14222987, de 27.02.2023).
Os interessados e a reclamante EE foram notificados das informações bancárias juntas aos autos, inclusivamente, da comunicação prestada pelo Banco 1..., S.A., de 27.02.2023, a que supra se alude (cf. ref. citius 183873959, de 06.03.2023; 184403426, de 04.04.2023, e ref. citius 184403427, de 04.04.2023).
A reclamante EE foi notificada em 04.04.2023 da comunicação efetuada pelo Banco 1..., S.A., em 27.02.2023 (cf. ref. citius 184403426, de 04.04.2023) e nesse seguimento nada requereu, nada declarou nem juntou aos autos a declaração de autorização a que o Banco 1..., S.A., alude naquela comunicação, nos termos previstos no artigo 80.º, n.º 2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo D.L. n.º 298/92, de 31.12.
De igual modo, os demais interessados, notificados da comunicação do Banco 1..., S.A., datada de 27.02.2023, nada requereram a esse respeito nem juntaram aos autos a declaração de autorização a que o Banco 1... alude nesse oficio.
Após tais notificações, em 19.04.2023 foi proferido o seguinte despacho: “Em face das informações juntas aos autos, notifique-se os interessados e o CC para informarem os autos se pretendem a realização de mais diligências probatórias”. A reclamante EE, notificada deste despacho, nada requereu e nada declarou.
Apenas o cabeça de casal respondeu a este despacho, solicitando que se produzisse a prova por declarações e depoimento de parte (cf. ref. citius 14515224, de 03.05.2023), a que se seguiu o despacho a designar data para a produção da prova por depoimento e declarações de parte e para inquirição de testemunhas (cf. despacho de 17.05.2023).
Notificada dos despachos proferidos em 19.04.2023 e em 17.05.2023, a reclamante FF nada requereu nem nada declarou.
E realizada a audiência de julgamento no passado dia 11.10.2023, a reclamante nada requereu durante a produção de prova, tendo sido concluída a produção de prova e encerrada a audiência de julgamento.
Pelo que, salvo o devido respeito por opinião contrária, o ora requerido pela reclamante, já depois de concluída a produção de prova e encerrada a audiência de julgamento quando os autos se encontravam a aguardar a prolação de sentença, afigura-se-nos manifestamente extemporâneo.
Mais se diga, salvo o devido respeito por melhor opinião, que o ora requerido pela reclamante EE afigura-se-nos igualmente inócuo face à comunicação efetuada pelo Banco 1..., S.A., em 27.02.2023, porquanto a interessada EE, intervindo nos autos como herdeira dos inventariados, em momento algum juntou aos autos a declaração de autorização solicitada pelo Banco 1..., S.A., naquela comunicação, documento essencial para que tais informações pudessem ser prestadas. E nem com o requerimento que antecede essa interessada juntou a aludida declaração de autorização.
Pelo que, em face do explanado, o ora requerido pela reclamante EE é manifestamente extemporâneo, razão pela qual se indefere o requerido sob a ref. citius 15236079 (de 25.10.2023).».

Inconformada, a interessada/reclamante apelou da aludida decisão, em 20.11.2023, tendo formulado as seguintes conclusões:
«I. A Reclamante, em tempo útil, efectuou a sua Reclamação à relação de bens apresentada.
II. Da Reclamação apresentada foi solicitado que se oficiasse o Banco de Portugal com vista a obter informações bancárias dos inventariados.
III. O “Banco 1..., S.A.” escusou-se a prestar tal informação, requerendo que o cabeça de casal e/ou herdeiro(s) autorizassem o Banco a fornecer as informações/documentos em causa.”
IV. Ora a Reclamante já havia dado a autorização, caso contrário não havia requerido.
V. Ora face a novo pedido de mais diligências provatórias, entendeu que não necessitava efectuar mais alguma coisa, para além do que havia requerido aos autos.
VI. Mas mais, aquando da diligência de produção de prova, foi referido pelo cabeça de casal que foi juntamente com os inventariados autorizado numa conta, precisamente do Banco 1..., S.A., tendo havido movimentos na conta.
VII. Ora face a isto, a Reclamante volta a requerer que se “insista” com o banco em questão.
VIII. Nada que já não tivesse sido efectuado anteriormente.
IX. Entende a Reclamante que o juiz dentro do seu poder de inquisitório deveria ter insistido, igualmente, pela obtenção de tal informação importante para o processo,
X. E mais, não poderia referir que tal pedido de insistência se encontra precludido quando foi solicitado em tempo útil,
XI. Dando a Reclamante, ao solicitar, a autorização necessária.
XII. E como decorre do princípio do inquisitório, consagrado no artigo 411.° do CPC, “incumbe ao juiz realizar ou ordenar mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio”.
XIII. Reforço do inquisitório, do poder de direção e gestão processual que sai reforçado com o novo processo de inventário, do inquisitório que sai reforma no novo processo de inventário, designadamente pelo disposto nos artigos 1105º, nº 3, 1109º, 1110º, 1118º do CPC.
XIV. Tendo em conta que o Tribunal a quo, ao não ordenar a diligência, violou o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa, estamos perante uma nulidade por omissão que se deixa expressamente arguida para todos os devidos efeitos legais.
XV. As diligências de prova requeridas afiguram-se essenciais, e não meramente úteis, para a justa composição do litígio, por forma a determinar o real valor do acervo hereditário a partilhar.
XVI. Não havendo qualquer preclusão,
XVII. Devendo, pois, o Tribunal insistir com o Banco 1..., S.A. a prestar a informação necessária ao processo para se obter a verdade material dos factos.”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, constitui objecto do recurso a questão de saber se o tribunal recorrido incorreu em nulidade por ter omitido diligência essencial à decisão da reclamação da relação de bens, devendo, ainda que oficiosamente, ter insistido junto da instituição bancária pela prestação da informação solicitada.
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III. Fundamentação

3.1. Fundamentação de facto
Como factualidade relevante interessa aqui ponderar os trâmites processuais consignados no relatório da presente decisão sumária e o teor da decisão recorrida que supra se transcreveu e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
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3.2. Fundamentação de direito
Como decorre do relatório da presente decisão, no presente recurso está apenas em causa saber se o tribunal recorrido incorreu em nulidade por ter omitido diligência essencial à decisão da reclamação da relação de bens, devendo, ainda que oficiosamente – nomeadamente ao abrigo do inquisitório -, ter insistido junto da instituição bancária pela prestação da informação solicitada.
Vejamos.
As provas são os meios que têm por função a “demonstração da realidade dos factos”.
Regras existem, para as balizar, de direito probatório material, de natureza substantiva, a regular a admissibilidade e força probatória, inseridas no Código Civil, e de direito probatório formal, a regular os procedimentos probatórios, e que têm sede no Código de Processo Civil.
Os factos que interessam ao julgamento de uma causa são os relacionados com os temas de prova, ou “os necessitados de prova” no caso de não haver enunciação de temas de prova – cfr. art.º 410º do NCPC.
Tenha-se, no entanto, presente que as partes gozam da garantia de participação em todo o desenvolvimento do litígio e relativamente a toda a materialidade pertinente.
O principio do contraditório na sua moderna concepção abrange a possibilidade de influenciar a prova em termos paritários, facultando às partes, em igualdade de armas, o direito de apresentação de todos os meios de prova potencialmente relevantes para apurar a realidade dos factos – cfr. art.ºs 3º, nº 3 e 410º, do NCPC.
Na verdade, o primeiro princípio geral que norteia a admissibilidade dos meios de prova é o da sua pertinência e, o segundo, é o da sua necessidade, o que decorre da conjugação dos art.ºs 410º e 411º, do NCPC. Deles se infere que a prova tem de ter por objecto a factualidade com interesse para a decisão da causa e tem por pressuposto que seja necessária ao apuramento da verdade sobre esses factos.
A ausência destes requisitos torna a prova inútil ou dilatória, redundando em ineficiência por dispêndio acrescidos de recursos desnecessários e em retardamento do processo, devendo ser recusada pelo juiz.
Nesta medida, há, assim, que ter também presente que a lei faz imperar o ónus da afirmação, correspondente ao ónus de prova, por caber às partes oferecer as provas que hão-de convencer o juiz da veracidade das afirmações feitas, dado que são as partes as mais idóneas para a indagação dos factos e recolha das provas respectivas, por melhor conhecerem as ocorrências, que têm interesse em as produzir no processo e em condições mais favoráveis para descobrir os meios de prova necessários para a sua demonstração.
Mas a possibilidade de apresentar prova opera independentemente de a parte que as apresenta ter ou não ter o ónus da prova (cfr. art.º 413º, do NCPC). Aliás, a parte contrária, tem o direito de contraprova quanto a factos cujo ónus probatório caiba à outra parte e que sobre eles apresente prova (cfr. art.º 346º, do CC).
Tudo isto, sem embargo do princípio da cooperação, tanto nas relações das partes e de terceiros com o tribunal, como nas do tribunal com as partes, que também deve existir na fase de instrução, como decorre do disposto no art.º 7º, do NCPC.
Ademais, nos termos do art.º 6º, nº 1, do mesmo compêndio legal, cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
Assim e sem prejuízo do objecto do processo se encontrar, em geral, submetido à disponibilidade das partes (cfr. art.º 5º, ainda do mesmo diploma), o juiz tem o poder, em geral, de ordenar oficiosamente diligências probatórias.
Com efeito, segundo o princípio do inquisitório consagrado no art.º 411º, do NCPC, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
O poder do inquisitório que é reconhecido ao juiz pelo mencionado art.º 411º não é, no entanto, um poder discricionário, mas antes um poder dever, um ónus que lhe cabe exercer conjugadamente com os princípios do dispositivo, da auto-responsabilidade e da igualdade das partes, da preclusão dos direitos processuais destas e da imparcialidade a que o juiz vê subordinada toda a sua actuação, pelo que, o juiz não é livre de exercer ou não esse poder inquisitorial ou sequer de ao abrigo desse princípio determinar toda e qualquer diligência instrutória que entenda pertinente para esclarecer todo e qualquer facto, como arredando aqueles outros princípios que se mantêm vigorantes no Código Processual Civil vigente (cfr. quanto à noção do referido poder/dever, entre outros, o ac. da RL, de 17.05.2018, processo nº 32063/15.9T8LSB.L1, disponível in www.dgsi.pt).
Com efeito, o princípio do dispositivo, segundo o qual as partes dispõem do processo, cabendo ao juiz controlar a observância das normais processuais e, por fim, proferir a decisão acerca do conflito de interesses que determinou a proposição da acção, continua a ser um dos princípios estruturantes e basilares da lei adjectiva nacional.
Note-se, porém, que o princípio do dispositivo desde há muito que se encontra temperado no ordenamento processual civil nacional pelo princípio do inquisitório, que é precisamente o princípio inverso, e que atribui ao juiz um papel mais activo na condução do processo, tendo com a revisão operada ao Código de Processo Civil pela Lei nº 41/2013, sido dado passos decisivos no sentido de libertar as partes das amarras decorrentes da consideração tradicional do princípio do dispositivo e na incrementação da mitigação entre esse princípio e o do inquisitório, tudo com vista a fomentar a prolação de decisões materialmente justas em detrimento das decisões de forma.
E é na fase da instrução do processo que o aludido princípio do inquisitório assume plena eficácia, ao impor ao tribunal o ónus de realizar ou ordenar, ainda que oficiosamente, todas as diligências probatórias que entenda necessárias ao apuramento dos factos essenciais, complementares e instrumentais e que se justifiquem pela necessidade de evitar que, pela falta de prova, a decisão da causa seja imposta pelo non liquet probatório e não pela realidade das coisas averiguadas em juízo (vide, Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex 1997, p. 322 e 323).
No cumprimento desse princípio, em sede de instrução da causa, assiste, pois, ao tribunal o poder dever de, por sua iniciativa, determinar a prestação de informações pelas partes ou por terceiros necessários à descoberta da verdade material, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados, conforme prescreve o art.º 417º, nº 1, do NCPC.
Como assiste ainda ao tribunal o poder/dever de requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objectos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade, nos termos do art.º 436º, do mesmo diploma; determinar a comparência pessoal de qualquer das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa (art.º 452º, nº 1); ordenar a realização da perícia por mais de um perito (art.º 468º, nº 1, al. a)); ou uma segunda perícia (art.º 487º, nº 2); inspeccionar coisas ou pessoas (art.º 490º, nº 1); inquirir testemunhas no local da questão (art.º 501º); mandar notificar para depor uma pessoa que não tenha sido oferecida como testemunha, quando no decurso da acção, se venha a apurar que esta tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa (art.º 526º, nº 1); determinar a comparência dos peritos na audiência final, a fim de prestarem os esclarecimentos que lhes sejam solicitados (art.º 486º) e, ainda, quando a matéria de facto suscite dificuldades de natureza técnica, cuja solução dependa de conhecimentos especiais que o tribunal não possua, designar técnico para assistir à audiência final e para aí prestar esclarecimentos que se venham a mostrar necessários, podendo o tribunal ouvir esse técnico, em qualquer momento, antes das alegações orais, durantes estas ou depois de findas e, bem assim requisitar, em qualquer estado da causa, os pareceres técnicos que se mostrem indispensáveis ao apuramento da verdade dos factos (art.ºs 601º, nº 1 e 604º, nº 7).
O cumprimento do princípio do inquisitório que impende sobre o juiz em sede de instrução da causa, não é um poder discricionário do juiz, mas um autêntico poder dever que lhe é legalmente imposto, com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, pretendendo-se que “nenhum facto relevante para a decisão da causa fique por esclarecer” (cfr. Teixeira de Sousa, ob. cit., p. 323).
De todo o modo, e conforme já adiantamos supra, o princípio do inquisitório tem de ser impreterivelmente avaliado, delimitado e aplicado tendo em consideração os restantes princípios que continuam vigentes no Código de Processo Civil e ao qual o tribunal vê a sua actividade instrutória e decisória submetida, como sejam os princípios do dispositivo, da auto-responsabilidade e da igualdade das partes e da preclusão dos direitos processuais que assistem às partes, sem esquecer o dever da imparcialidade do juiz (cfr. ac. da RC de 12.03.2019, processo nº 141/16.2T8PDL-A.C1; ac. da RG de 20.03.2018, processo nº 14/15.6T8VRL-C.G1, acessíveis in www.dgsi).
Da conjugação de todos esses princípios resulta que o juiz tem de exercitar os seus poderes inquisitoriais (que, reafirma-se, são poderes vinculados e nunca discricionários), em sede de instrução da causa, preservando sempre o necessário equilíbrio de interesses que a acção pressupõe, critérios de objectividade e uma relação de imparcialidade.
Desse equilíbrio decorre que “a intervenção oficiosa do juiz” em sede de princípio do inquisitório apenas pode assumir “uma natureza complementar relativamente ao ónus da iniciativa da prova que impende sobre cada uma das partes, não podendo aquele servir para superar, de forma automática, falhas processuais reveladas, designadamente, através da omissão da apresentação do requerimento probatório em devido tempo” (cfr. ac. da RP de 21.10.2019, processo nº 18884/18.4T8PRT-A.P1, disponível in ww.dgsi.pt).
Neste sentido pronuncia-se Lopes do Rego, ao ponderar que “o exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicar tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste – não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseiros ou indesculpavelmente negligentes das partes” (in, Comentário ao Código de Processo Civil, Almedina, 1999, p. 425).
No mesmo sentido postula Abrantes Geraldes, referindo-se aos poderes inquisitoriais conferidos pelo art.º 662º do NCPC à Relação, mas cujos argumentos são inteiramente transponíveis para a 1ª instância em sede de cumprimento do princípio do inquisitório a que se encontra adstrita em sede de instrução da causa, sustentando que: “Trata-se de uma diligência que não está circunscrita a depoimentos, podendo incidir sobre quaisquer meios de prova, desde que se revele a existência de dúvida fundada sobre a prova realizada que seja suscetível de sanação mediante a produção de novos meios de prova. (…) não estamos perante um direito potestativo de natureza processual que seja conferido às partes e que à Relação apenas cumpra corresponder, antes deve ser encarado como um poder/dever atribuído à Relação e que esta usará de acordo com critérios de objetividade, quando percecione que determinadas dúvidas sobre a prova ou falta de prova de factos essenciais poderão ser superados mediante a realização de diligências probatórias suplementares. Afinal, a alteração legislativa não modificou as regras de distribuição do ónus da prova que se colhem do direito material, nem aboliu os efeitos que emanam de um sistema em que ainda predomina o princípio do dispositivo (e também o da aquisição processual, nos termos do art. 413º). Igualmente não poderá deixar de ser ponderado que o ónus de proposição de meios de prova se deve materializar também através da sua apresentação em momentos processualmente ajustados, com previsão de efeitos preclusivos que não podem ser ultrapassados só pela livre iniciativa da parte. (…), como critério orientador, pode servir a apreciação critica da atuação que o juiz de 1ª instância teve ou deveria ter tido aquando da realização da audiência final, ponderando casuisticamente a amplitude dos poderes de averiguação que a lei lhe confere (art. 411º) e que podem ser transpostos naqueles circunstâncias para a Relação quando esta se depare com as aludidas dúvidas sérias suscetíveis de serem dirimidas”, trata-se de “uma medida paliativa destinada a resolver situações patológicas que emergem simplesmente de uma nebulosa que envolva a prova que foi produzida e que não foi convenientemente resolvida (devendo sê-lo) segundo o juízo crítico da Relação” (in, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, p. 283).
Tudo visto, podemos concluir que o dever funcional do juiz emergente do disposto no art.º 411º, do NCPC, como poder dever subordinado ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, vigora com os limites que se sintetizam no ac. desta Relação de Guimarães de 14.05.2020, relatado por Alcides Rodrigues (in, www.dgsi.pt), citando Nuno Lemos Jorge [in “Os problemas instrutórios do juiz: alguns problemas”, “Julgar”, nº 3, 2007, p. 75 e 76]:
«I- O uso de poderes instrutórios está sujeito aos seguintes requisitos:
i) a admissibilidade do meio de prova;
ii) a sua manifestação em momento processualmente desadequado;
iii) a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio; e
iv) a prova a produzir incidir sobre factos que é lícito ao juiz conhecer».
Ainda com especial interesse para o caso que nos ocupa, refere Nuno Lemos Jorge (obra citada, p. 75): «O desrespeito pelo segundo requisito atrás indicado será de verificação mais difícil, na prática. A lei é generosa quanto ao momento até ao qual o tribunal pode ainda determinar a realização de diligências instrutórias, prescrevendo o artigo 653.º, n.º 1 (actual art. 607º, nº 1 do CPC), que, mesmo depois de recolher à sala de conferências para decidir, o tribunal, “se não se julgar suficientemente esclarecido, pode voltar à sala da audiência, ouvir as pessoas que entender e ordenar mesmo as diligências necessárias”.».
Por conseguinte, como tem sido assinalado, a amplitude dos poderes/deveres do juiz, decorrentes do princípio do inquisitório impõe que o julgador admita, por exemplo, um requerimento probatório ainda que apresentado intempestivamente sempre que existam fortes razões para concluir que os meios de prova em causa podem contribuir decisivamente para a apreciação do mérito das pretensões das partes [vide, António Júlio Cunha, in Direito Processual Civil Declarativo, p. 69, apud ac. RP de 11.01.2021, relatado por
Pedro Damião e Cunha e acessível in www.dgsi.pt).

Assim configurados os poderes deveres instrutórios decorrentes do princípio do inquisitório, vem sendo entendido que o incumprimento pelo juiz da determinação dos poderes/deveres que lhe estão cometidos, pode, assim, em algumas situações influir na decisão da causa e consequentemente ser geradora de uma nulidade processual, nos termos do disposto no art.º 195º, nº 1, do NCPC (cfr., neste sentido, o ac. da RE de 22.11.2018, relatado por Albertina Pedroso e o ac. RG de 11.04.2024, relatado por GG, e acessíveis in www.dgsi.pt).
Aqui chegados, importa aplicar estas considerações ao caso concreto, tendo ainda presente que a questão a apreciar se insere no âmbito da tramitação do processo de inventário para partilha de bens de herança.
Com efeito e como muito bem se alerta no ac. RG de 15.06.2021 (relatado por Conceição Sampaio e disponível in www.dgsi.pt) «O processo de inventário é hoje uma verdadeira ação, obrigando a que os interessados concentrem os “meios de defesa” na reclamação que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova. As provas são indicadas com a reclamação, seguindo-se a fase de instrução na qual o juiz exerce o inquisitório, ordenando a produção das provas que considere necessárias. O juiz não está limitado pelos meios de prova indicados, mas, por outro lado, também não está vinculado a realizar todas as diligências probatórias que tenham sido requeridas, bastando aquelas que, em concreto, se revelem necessárias para cumprir a função do inventário, qual seja, fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens (art.º 1082º, al. a), do CPC).» (o sublinhado é nosso).
Assim, no caso em apreciação, em sede de reclamação sobre a relação de bens apresentada pelo requerente do inventário, a interessada, ora recorrente, apontou a falta de relacionação de saldos das contas bancárias, depósitos à ordem ou a prazo e aplicações financeiras de que os inventariados eram titulares e requereu que se solicitasse ao Banco de Portugal a notificação de todas as instituições bancárias, a fim de estas virem aos presentes autos indicar os saldos de todas as contas abertas à ordem, depósitos e aplicações a prazo, fundos de investimentos, acções, obrigações e todas e quaisquer outras aplicações financeiras que os inventariados, eram respetivamente titulares ou co-titulares à data dos respectivos óbitos e os seus respetivos saldos e montantes, o que veio a ser deferido.
Tendo sido juntas aos autos as respostas das entidades bancárias, nomeadamente a do Banco 1..., SA a invocar o sigilo bancário e a solicitar informação se o fornecimento das ditas informações bancárias foi autorizado.
Notificadas as partes, estas nada vieram requerer.
E o tribunal a quo nada promoveu, não tendo sequer se pronunciado sobre a legitimidade ou ilegitimidade da recusa, como lhe incumbia, nos termos do disposto no art.º 417º, nº 4, do NCPC.
Com efeito, a lei impõe certos limites ao dever de colaboração de terceiros, mormente quando a colaboração implicar a violação de sigilo bancário (cfr. art.º 417º, nº 3 e art.º 78º, do DL 298/92, de 31.12), cabendo ao tribunal verificar, oficiosamente e a todo o tempo da legitimidade da escusa.
Ver, neste sentido, os acs. da RP de 10.02.2020, relatado por Jorge Seabra e da RL de 14.09.2021, relatado por Micaela Sousa, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Por outro lado, do que acima deixamos dito, a interessada/recorrente cumpriu oportunamente o ónus imposto pelo art.º 1105º, nº 2, do NCPC, de indicação dos meios de prova com o seu requerimento de reclamação à relação de bens; e o Tribunal a quo considerou e bem os mesmos admissíveis, nomeadamente no que tange à notificação das entidades bancárias para informassem que contas existiam em nome dos inventariados, à data do respectivo óbito e qual o respectivo saldo.
Teve, assim, por verificado o juízo contido no art.º 436º, do NCPC, isto é, a impossibilidade da obtenção directa dessa informação pela parte a quem aproveita (no caso, evidente, face ao sigilo bancário a que qualquer instituição de crédito está obrigada) - e do interesse de que se revestia para o esclarecimento da verdade (no caso, evidente, face à acusação de falta de relacionação dos valores correspondentes aos saldos das contas bancárias dos inventariados, à data da sua morte).
Deste modo, o tribunal a quo não só podia, como deveria se ter pronunciado sobre a legitimidade ou ilegitimidade da escusa apresentada pelo banco, promovendo oficiosamente, como vimos, o incidente previsto no art.º 135º, do CP (caso concluísse pela legitimidade da recusa) ou insistindo pela prestação das informações bancárias (caso entendesse a recusa ilegítima).
E, assim sendo, o tribunal recorrido podia e deveria exercer tais poderes deveres instrutórios, mesmo após ter encerrado a produção de prova, ao abrigo do disposto no art.º 607º, nº 1, parte final, do NCPC, como também já aludimos supra.
Ou seja, ainda que a interessada/recorrente só tenha vindo requerer que o tribunal recorrido insistisse junto do Banco 1..., SA pelo fornecimento das informações bancárias, após o encerramento da produção de prova (mas ainda antes da prolação da decisão no incidente de reclamação da relação de bens), a fase processual em que o presente processo se encontrava nesse momento nada obstava ao uso dos poderes deveres instrutórios que se impunham ao tribunal recorrido.
Tanto mais que, compulsados os elementos constantes dos autos, não há dúvidas que se mostra indiciado o pressuposto da necessidade da realização das diligências probatórias em causa para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio – nomeadamente, para definição dos bens a partilhar no processo de inventário.
Por conseguinte, não havendo dúvidas que as aludidas diligências probatórias são absolutamente indispensáveis para a boa decisão da causa, o princípio do inquisitório na sua formulação actual impunha ao tribunal recorrido que, no caso, este fizesse uso obrigatório dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelo art.º 411º do NCPC.
Interessa ainda referir que a tal conclusão não obsta o facto da recorrente e demais interessados no processo de inventário não terem junto aos autos a autorização solicitada para o fornecimento das informações bancárias.
Decorre do disposto no referido art.º 78º do RGICSF (aprovado pelo DL nº 298/92 de 31.12, na redacção dada pelo DL nº 157/2014, de 24.10) sob a epígrafe “Dever de Segredo” que: “Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
E o nº 2 prevê que “Estão designadamente, sujeitos a segredo o nome dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.”
Porém, dispõe o art.º 79º deste diploma legal, sob a epígrafe “Excepções ao dever de segredo” que:
“1. Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.
2. Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:
(…) d) às autoridades judiciárias, no âmbito do processo penal;
(…) f) quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.”.
Assim, o dever de sigilo bancário tem como sujeitos passivos, isto é, como destinatários directamente vinculados por esse dever de segredo profissional, os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional.
E tem como sujeitos activos, isto é, como titulares e beneficiários do direito ao sigilo, os clientes da instituição de crédito. Ainda que o sigilo bancário tutele o interesse público do correcto e regular funcionamento da actividade bancária, na medida em que contribui para a criação de um clima de confiança imprescindível para o funcionamento eficiente da actividade creditícia, o primeiro e fundamental bem jurídico que aquele sigilo visa proteger é a reserva da intimidade da vida privada, enquanto direito fundamental constitucionalmente garantido (cfr. art.º 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), numa época histórica caracterizada pela generalização das relações bancárias, que facultam às instituições bancárias o acesso a verdadeiras “biografias pessoais em números”, nas palavras do Tribunal Constitucional (cfr. acórdão do nº 442/2007, de 14.08.2007, publicado em www.tribunalconstitucional.pt).
A respeito desta dupla ordem de interesses tutelados pelo sigilo bancário, vide o acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Pleno das Secções Criminais do STJ nº 2/200814.
Deste modo, se compreende que, nos termos do art.º 79º do mesmo diploma, os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição possam ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.
Tendo em conta o exposto, é manifesto que o dever de sigilo bancário não pode ser oposto aos próprios titulares dos produtos financeiros, como será intuitivamente consabido.
Como se escreve no sumário do acórdão do STJ, de 07.10.2010 (processo nº 26/08.6TBVCD.P1.S1, relatado por Azevedo Ramos e acessível in www.dgsi.pt), «[o] titular de uma conta bancária, para aceder às informações sobre os seus movimentos ou obter um qualquer extracto bancário, não necessita, para além de comprovar que é titular da conta, de demonstrar um qualquer interesse concreto na obtenção de informações. (…) O direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta».
E como se acrescenta no mesmo acórdão, «[t]al direito deverá considerar-se transmitido os herdeiros, uma vez que os depósitos, enquanto bens, fazem parte do acervo da herança aberta por morte do depositante». Com efeito, decorre do disposto no art.º 2024º do CC que a titularidade das relações jurídicas patrimoniais – entre as quais se inclui, indiscutivelmente, a titularidade de contas bancárias ou outras aplicações financeiras – se transmite, por falecimento do respectivo titular, para os seus herdeiros, que assim passam a ser os novos titulares dessas relações.
No caso concreto, os titulares das contas bancárias e demais aplicações financeiras anteriormente tituladas pelos inventariados são, actualmente e enquanto a partilha da herança não estiver realizada, os herdeiros daqueles, ou seja, os interessados no presente inventário, cabendo ao cabeça-de-casal a administração desse e dos demais bens que integram o acervo hereditário (cfr. art.º 2087º do CC), pelo que, voltando a citar o acórdão antes mencionado, os referidos herdeiros «não podem ser tidos como terceiros, relativamente às contas do mesmo, razão por que não lhes pode ser oposto o segredo bancário».
No mesmo sentido, escreve-se no ac. da RC, de 28.11.2018 (processo nº 1771/18.3T8PBL-B.C1, relatado por Carlos Moreira e acessível in www.dgsi.pt), que «o segredo bancário apenas se coloca relativamente a pessoas que possam ser consideradas terceiros relativamente à relação jurídica de depósito que se constitui entre o banco e o depositante. Obviamente que o segredo não pode pôr-se, entre as partes de um contrato de depósito bancário, ou seja, entre o Banco depositário e o cliente depositante».
Deste modo, no caso, não subsiste qualquer fundamento para que o Banco 1..., SA se recuse a prestar informações aos actuais titulares das eventuais contas tituladas pelos inventariados.
E, assim sendo, não tinham os interessados que autorizar tal instituição a prestar as informações solicitadas.
Isto posto, só nos resta concluir que, no caso, a inobservância pelo tribunal a quo no despacho recorrido do princípio do inquisitório gera nulidade processual, nos termos gerais do nº 1, do art.º 195º, do NCPC, porquanto ocorreu a omissão de um acto que a lei prescreve e a irregularidade cometida tem influência no exame ou na decisão da causa.
Nulidade esta que, embora seja processual, pode e deve ser arguida no recurso do despacho que indefira a realização do meio probatório, ao abrigo do inquisitório.
 Com efeito, como se diz, no ac. da RP, 21.10.2019, relatado por Eugénia Cunha (in www.dgsi.pt) “a nulidade processual por inobservância, pelo juiz, dos poderes instrutórios, pode ser suscitada no recurso da decisão interlocutória (…), apelação autónoma e imediata da decisão de rejeição de meio de prova (al. d), do nº2, do art. 644º, do CPC).”, como sucedeu no caso que nos ocupa.
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Em conclusão, julgamos dever proceder o recurso interposto e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, mais se determinando que pelo tribunal recorrido sejam solicitados ao Banco 1..., SA os documentos/informações pretendidos pela apelante.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, mais se determinando que pelo tribunal recorrido sejam solicitadas as informações bancárias pretendidos pela apelante.
Sem custas.
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Guimarães, 23.05.2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Alexandra Rolim Mendes
2ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Raquel Baptista Tavares