Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
713/12.4JAPRT.G2
Relator: PAULO CORREIA SERAFIM
Descritores: CRIME DE TRÁFICO DE PESSOAS
CRIME DE ESCRAVIDÃO
CO-AUTORIA
PERDA DAS VANTAGENS DO CRIME
PERDA ALARGADA DE BENS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A coautoria pressupõe a execução conjunta do facto pelos agentes, estribada num acordo firmado entre eles (expresso ou tácito, prévio ou concomitante à execução) sobre a repartição de tarefas, com o fito comum de realização do facto. Exige-se, por via da existência do acordo, a consciência bilateral de colaboração entre os participantes.
II – No caso concreto, como sucede nesta forma de comparticipação, os comportamentos da arguida contribuíram de modo relevante, essencial para a execução dos factos, no âmbito da acordada repartição de tarefas, sendo que o exercício do domínio do facto coube, em conjunto, a ambos os arguidos, pois a atuação de cada um deles, integrando a globalidade dos factos cometidos, foi imprescindível para a concretização do plano criminoso.
III – A «escravidão» tanto se pode referir, na sua aceção mais tradicional, vetusta, a pessoa que não é de condição livre, que está sob a dependência absoluta de outrem, que se assume como seu proprietário e a trata como uma coisa, sem vontade própria atendível, um objeto suscetível de ser ofertado e transacionado, como, numa vertente hodiernamente mais comum, à vítima de exploração laboral, em que o sujeito passivo vivencia uma situação de servidão em que é plenamente dominado pelo agente, submetido a um clima de temor, frequentemente intimidado por ameaças de morte ou ofensas à sua integridade física, privado de poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho e não recebendo qualquer parte da sua retribuição.
IV – Na denominada “escravidão laboral”, a vítima presta trabalho em condições impostas, não negociadas, inadmissivelmente árduas e degradantes, emocional e fisicamente, sendo comum a limitação dos seus movimentos e a negação dos imprescindíveis cuidados de saúde, no fundo, em condições análogas à de um cativo, a quem não é reconhecida a dignidade inerente ao ser humano.
V - O ofendido encontra-se impotente para reagir ou se eximir a tal condição, em função da sua incapacidade em razão da idade, anomalia psíquica ou deficiência física ou qualquer outro casuístico motivo, nomeadamente, por sério e justificado medo de serem concretizados sobre si os graves males anunciados pelo agente.
VI – O regime da perda alargada de bens consagrado na Lei nº 5/2002, de 11.01, distingue-se do regime da perda das vantagens do facto ilícito típico, regulada no art. 111º do CP – atualmente, art. 110º -, desde logo porque neste se exige a demonstração de que determinados bens constituem vantagem da atividade criminosa, nos termos ali definidos, inexistindo qualquer presunção que justifique estabelecer o nexo de causalidade entre a mesma e a prática do facto ilícito culposo.
VII – Nessa medida, os bens ou vantagens, direta ou indiretamente provenientes do crime do catálogo que está na origem do confisco, não devem ser incluídos no montante global da liquidação do património incongruente.
VIII – Não obstante ter sido realizada no processo a liquidação de bens a que alude o art. 8º da Lei nº 5/2002, ou caso esta não cumpra as exigências legais, o Tribunal deve declarar a perda dos bens que comprovadamente constituem vantagem da atividade criminosa nos termos do art. 111º do CP (atual art. 110º), por se ter demonstrado inequivocamente que resultaram da prática do crime ajuizado.
IX – O Ministério Público concretizou na liquidação do montante que deve ser perdido a favor do Estado o valor dos vencimentos que os arguidos deveriam ter pago pela prestação de trabalho aos ofendidos, como constituindo uma vantagem patrimonial decorrente do facto ilícito típico, pelo que, na parte em que se provaram, deveria o Tribunal a quo ter condenado os arguidos ao pagamento ao Estado do respetivo valor, independentemente de os ofendidos terem deduzido contra os arguidos lesantes pedidos de indemnização civil, que incluíam, ao nível dos danos patrimoniais, as retribuições do seu trabalho que deixaram de auferir, por os demandados se terem apropriado ilicitamente das mesmas, e que vieram, nessa parte, a obter procedência.
X - A perda de vantagens tem natureza punitiva análoga à de uma medida de segurança, norteando-se a sua aplicação por finalidades de prevenção geral e especial, na vertente “negativa”, de obstaculizar o cometimento de futuros crimes pelo agente e restantes membros societários, não podendo assim o Estado prescindir do seu exercício, independentemente do direito dos lesados ao ressarcimento dos danos sofridos como consequência do crime – assim foi julgado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 5/2024, de 9 de maio, publicado no DR, Série I, de 09-05-2024.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:
           
I.1 No âmbito do Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 713/12...., do Tribunal Judicial da Comarca de ... - Juízo Central Cível e Criminal de ... – Juiz ..., por acórdão proferido no dia 25.05.2022 e depositado no dia 26.05.2022 (referências ...54 e ...28, respetivamente), foi decidido:

“A) Julgar a acusação parcialmente procedente, nos termos e com a convolação sobreditos.
Consequentemente:
§ 1.
a) Absolvem o arguido AA da prática dos crimes de burla relativa a trabalho ou emprego, que lhe eram imputados.
b) Absolvem o mesmo arguido da prática de dois dos crimes de detenção de arma proibida, que lhes eram imputados. Mas,
c) Condenam o mesmo arguido pela prática de dois crimes de detenção de armas proibidas, p. e p. pelo art. 86º nº 1, al. d) da Lei 5/2006 (na versão da Lei 12/2011, de 27.4), nas penas de 5 (cinco) meses e de 6 (seis) meses, de prisão, respectivamente.
d) Absolvem o mesmo arguido da prática de três dos crimes de tráfico de pessoas, que lhe eram imputados. Mas,
e) Condenam o mesmo arguido, pela prática, em coautoria, de três crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º al. a) CP, nas penas de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão e de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão para dois deles, cometidos nas pessoas de AA e BB, e de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão para o terceiro, cometido na pessoa do CC.
f) Condenam o mesmo arguido, pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo art. 160º nº 1, al. d) CP, na pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão.
g) Em cúmulo jurídico, condenam o mesmo arguido, AA, na pena única de 11 (onze) anos de prisão.
§ 2.
a) Absolvem a arguida DD da prática dos crimes de burla relativa a trabalho ou emprego, que lhe eram imputados.
b) Absolvem a mesma arguida DD da prática dos crimes de tráfico de pessoas, que lhe eram imputados. Mas,
c) Condenam a mesma arguida, pela prática, em coautoria, de três crimes de escravidão, p. e p. pelos arts. 159º al. a), 72º nºs 1 e 2, al. d), e 73º, nº 1, als. a) e b) CP, nas penas de 3 (três) anos e 3 (anos) para dois deles, cometidos nas pessoas de AA e BB, e de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão para o terceiro, cometido na pessoa do CC.
d) Em cúmulo jurídico, condenam a mesma arguida, DD, na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução, por 4 (quatro) anos, com regime de prova.
§ 3.
a) Absolvem a arguida EE da prática do crime de burla relativa a trabalho ou emprego, que lhe era imputado.
b) Absolvem a mesma arguida da prática dos crimes de detenção de arma proibida, que lhes eram imputados.
c) Absolvem a mesma arguida da prática de dois dos crimes de tráfico de pessoas, que lhe eram imputados. Mas,
d) Condenam a mesma arguida, pela prática, em coautoria, de dois crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º al. a) CP, nas penas de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão e 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão (cometidos nas pessoas de FF e de BB).
e) Condenam a mesma arguida, pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo art. 160º nº 1, al. d) CP, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão.
f) Em cúmulo jurídico, condenam a mesma arguida, EE, na pena única de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão.

B) Julgar improcedente o pedido de perdimento, a favor do Estado, da quantia de 62.287,46€, liquidada pelo MP a título de perda ampliada, e, consequentemente:
§ 1. Dele absolvem os arguidos AA e EE.

§ 2. Ordenam o levantamento dos arrestos decretados nos autos e melhor referidos supra em I. B) § 1 e § 2.

C) Quanto aos objectos apreendidos.
§ 1. Declarar o perdimento, a favor do Estado, dos seguintes objectos, veículos e documentos:
a) Blocos de notas, agendas, caderno e pasta, papéis, cartões de visita.
b) Caixa com as cinquenta munições e as duas bengalas com tachas de metal.
c) Três telemóveis (“...”, com o IMEI ...27, contendo inserido o cartão SIM da rede móvel “...” relativo ao nº ...65; “...”, modelo ...”, com o IMEI ...53, contendo inserido o cartão SIM da rede móvel          “...”            relativo            ao        nº        ...51;    “...”,     com     o          IMEI ...00, contendo inserido o cartão SIM da rede móvel “...” relativo ao nº ...88).
d) Os veículos “...”, com a matrícula (espanhola) .... BTK e “...”, com a matrícula (espanhola) .... FKW, e respectivos documentos.
§ 2. Determinar a restituição ao arguido AA, se reclamados no prazo legal, a contar da notificação para o efeito, e sob pena de perdimento a favor do Estado, dos seguintes objectos, veículo e documentos:
a) Veículo ...” com a matrícula espanhola .... HHV e respctivos documentos. 
b) Vara em material tipo cana, apresentando numa das extremidades um “trabalhado” em formato de pequena “bola”.
c) Documentos relativos á “denuncia de infracción penal” e à “Tesoreria General de la Seguridad Social”.
§ 3. Determinar a restituição á arguida EE, se reclamados no prazo legal, a contar da notificação para o efeito, e sob pena de perdimento a favor do Estado, dos seguintes documentos:
Os dois talões de depósito bancários e o documento referente á “EMP01...”.

D) Julgar os pedidos de indemnização civil parcialmente procedentes e provados.
Consequentemente:
§ 1.
a) Condenam o arguido AA a pagar á herança aberta por óbito de FF, representada pela cabeça-de-casal BB, a quantia de 63.289,72€.
b) Condenam a arguida DD a pagar á referida herança, uma parcela da quantia referida em a), correspondente a 26.868,96€, em regime de solidariedade com o arguido referido em a).
c) Condenam a arguida EE a pagar á referida herança, uma parcela da quantia referida em a), correspondente a 31.922,11€, em regime de solidariedade com o arguido referido em a).
d) Condenam os arguidos AA e EE, em regime de solidariedade, a pagarem á referida herança, o montante de 2.768,22 €.
e) Condenam os arguidos AA, DD e EE, em regime de solidariedade, a pagarem á referida herança, o montante de 10.000,00€.
§ 2.
a) Condenam o arguido AA a pagar a BB, a quantia de 60.514,18€.
b) Condenam a arguida DD a pagar á referida BB, uma parcela da quantia referida em a), correspondente a 24.955,56 €, em regime de solidariedade com o arguido referido em a).
c) Condenam a arguida EE a pagar á referida BB, uma parcela da quantia referida em a), correspondente a 31.152,23€, em regime de solidariedade com o arguido referido em a).
d) Condenam os arguidos AA, DD e EE, em regime de solidariedade, a pagarem á referida BB, o montante de 10.000,00€.
§ 3. Sobre as quantias vencem-se juros de mora, á taxa legal, nos termos supra referidos em II D) § 8.4, sendo que, quanto ás quantias acabadas de referir em § 1 e) e § 2 d), vencem-se desde a data do presente acórdão.
§ 4. No mais, absolvem os arguidos.
*
Custas criminais pelos arguidos, com taxas de justiça que se fixam em 6 Ucs para cada um.
Custas cíveis por arguidos/demandados – que, no fundo, tiveram total decaimento.”

Da predita decisão interpuseram recurso o Ministério Público (referência ...28), a arguida EE (referência ...03) e o arguido AA (referência ...14), sobre os quais recaiu a decisão proferida por este Tribunal da Relação de Guimarães de 10/07/2023, com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em:

IV.1 – Julgar parcialmente procedente o douto recurso interposto pela arguida EE e, em conformidade, declarar a nulidade do douto acórdão recorrido, cominada no art. 379º, nº1, al. b), do Código de Processo Penal, por condenar os arguidos recorrentes por factos diversos (materialidade mais ampla) dos descritos na acusação que, face à qualificação jurídica ali operada, podia sustentar as suas condenações, sem que tivesse dado cumprimento ao disposto no art. 359º do CPP (e não do art. 358º, nºs 1 e 3, como fez o juiz presidente do tribunal coletivo). A ora declarada nulidade do acórdão recorrido, torna-o inválido, bem assim os ulteriores atos processuais que com aquele contendem – cf. art. 122º, nº1, do CPP.
IV.2 – A decretada nulidade deve ser suprida pelo Tribunal recorrido, a quem compete proferir novo acórdão, expurgado da sobredita invalidade, e retirar as consequências jurídicas do ora decidido (ainda que, na sua incólume liberdade de decisão, decida comunicar previamente à defesa do arguido “nova” alteração nos termos do art. 358º ou 359º do CPP).
IV.3 - Em conformidade com o supra decidido, julgar prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelos recursos da arguida EE, do arguido AA e do Ministério Público.»

Na sequência da mencionada decisão deste Tribunal superior, pelo Tribunal de primeira instância foi cumprido o disposto no art. 359º do Código de Processo Penal, tendo os arguidos declarado opor-se à continuação do julgamento pelos novos factos (cf. despacho judicial com a referência ...07 e requerimentos com as referências ...95 e ...96).
Em seguida, foi reaberta a audiência e proferido novo acórdão, em 22/03/2024 (referência ...93), depositado em 25/03/2024 (referência ...79), onde se decidiu:
  
“Pelo e exposto, acordam os Juízes que constituem o Tribunal Colectivo em:
A) Julgar a acusação parcialmente procedente, nos termos e com a convolação sobreditos.     
Consequentemente:
§ 1. Quanto à arguida DD:
Absolvem esta arguida de todos os crimes que lhe eram imputados.
§ 2. Quanto ao arguido AA:
§ 2.1. Absolvem este arguido da prática dos crimes de burla relativa a trabalho ou emprego, que lhe eram imputados.
§ 2.2. Absolvem o mesmo arguido da prática de dois dos crimes de detenção de arma proibida, que lhes eram imputados. Mas,
§ 2.2.1. Condenam o mesmo arguido pela prática de dois crimes de detenção de armas proibidas, p. e p. pelo art. 86º nº 1, al. d) da Lei 5/2006 (na versão da Lei 12/2011 de 27.4), nas penas de 4 (quatro) meses e de 5 (cinco) meses, de prisão, respectivamente.
§ 2.3. Absolvem o mesmo arguido da prática de três dos crimes de tráfico de pessoas, que lhe eram imputados. Mas,
§ 2.3.1. Condenam o mesmo arguido, pela prática, em coautoria, de dois crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º al. a) CP, na pena de 6 (seis) anos de prisão, para cada um.
§ 2.3.2. Condenam o mesmo arguido, pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo art. 160º nº 1, al. d) CP, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
§ 2.4. Em cúmulo jurídico, condenam o mesmo arguido na pena única de 8 (oito) anos de prisão.       
§ 3. Quanto à arguida EE:
§ 3.1. Absolvem esta arguida da prática dos crimes de burla relativa a trabalho ou emprego, que lhe eram imputados.
§ 3.2. Absolvem a mesma arguida da prática dos crimes de detenção de arma proibida, que lhes eram imputados.
§ 3.3. Absolvem a mesma arguida da prática de três dos crimes de tráfico de pessoas, que lhe eram imputados. Mas,
§ 3.3.1. Condenam a mesma arguida, pela prática, em coautoria, de dois crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º al. a) CP, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão, para cada um.
§ 3.3.2. Condenam a mesma arguida, pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo art. 160º nº 1, al. d) CP, na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão.
§ 3.4. Em cúmulo jurídico, condenam a mesma arguida na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
B) Julgar improcedente o pedido de perdimento, a favor do Estado, da quantia de 62.287,46€, liquidada pelo MP a título de perda ampliada, e, consequentemente:
§ 1. Dele absolvem os arguidos AA e EE.
§ 1.2. Ordenam o levantamento dos arrestos decretados nos autos e melhor referidos supra, no relatório, em I. B) § 1 e § 2.
C) Quanto aos objectos apreendidos.
§ 1. Declarar o perdimento, a favor do Estado, dos seguintes objectos, veículos e documentos:
a) Blocos de notas, agendas, caderno e pasta, papéis, cartões de visita.
b) Caixa com as cinquenta munições e as duas bengalas com tachas de metal.
c) Três telemóveis (“...”, com o IMEI ...27, contendo inserido o cartão SIM da rede móvel “...” relativo ao nº ...65; “...”, modelo ...”, com o IMEI ...53, contendo inserido o cartão SIM da rede móvel “...” relativo ao nº ...51; “...”, com o IMEI ...00, contendo inserido o cartão SIM da rede móvel “...” relativo ao nº ...88).
d) Os veículos “...”, com a matrícula (espanhola) .... BTK e “...”, com a matrícula (espanhola) .... FKW, e respectivos documentos.
§ 2. Determinar a restituição ao arguido AA, se reclamados no prazo legal, a contar da notificação para o efeito, e sob pena de perdimento a favor do Estado, dos seguintes objectos, veículo e documentos:
a) Veículo ...” com a matrícula espanhola .... HHV e respectivos documentos.
b) Vara em material tipo cana, apresentando numa das extremidades um “trabalhado” em formato de pequena “bola”.
c) Documentos relativos á “denuncia de infracción penal” e à “Tesoreria General de la Seguridad Social”.
§ 3. Determinar a restituição á arguida EE, se reclamados no prazo legal, a contar da notificação para o efeito, e sob pena de perdimento a favor do Estado, dos seguintes documentos:
Os dois talões de depósito bancários e o documento referente á “EMP01...”.
D) Julgar os pedidos de indemnização civil parcialmente procedentes e provados.
Consequentemente:
§ 1.
a) Condenam o demandado AA a pagar á herança aberta por óbito de FF, representada pela cabeça-de-casal BB, a quantia de 63.289,72€.
b) Condenam a demandada DD a pagar á referida herança, uma parcela da quantia referida em a), correspondente a 26.868,96€, em regime de solidariedade com o demandado referido em a).
c) Condenam a demandada EE a pagar á referida herança, uma parcela da quantia referida em a), correspondente a 31.922,11€, em regime de solidariedade com o arguido referido em a).
d) Condenam os demandados AA e EE, em regime de solidariedade, a pagarem á referida herança, o montante de 2.768,22 €.
e) Condenam os demandados AA, DD e EE, em regime de solidariedade, a pagarem á referida herança, o montante de 10.000,00€.
§ 2.
a) Condenam o demandado AA a pagar a BB, a quantia de 60.514,18€.
b) Condenam a demandada DD a pagar á referida BB, uma parcela da quantia referida em a), correspondente a 24.955,56 €, em regime de solidariedade com o demandado referido em a).
c) Condenam a demandada EE a pagar á referida BB, uma parcela da quantia referida em a), correspondente a 31.152,23€, em regime de solidariedade com o demandado referido em a).
d) Condenam os demandados AA, DD e EE, em regime de solidariedade, a pagarem á referida BB, o montante de 10.000,00€.
§ 3. Sobre as quantias vencem-se juros de mora, á taxa legal, nos termos supra referidos em II D) § 11.4, sendo que, quanto ás quantias acabadas de referir em III D) § 1 e) e § 2 d), vencem-se desde a data do presente acórdão.
§ 4. No mais, absolvem os demandados.
**
Custas criminais pelos arguidos AA e EE, com taxas de justiça que se fixam em 6 Ucs para cada um.
Custas cíveis pelos demandados – que, no fundo, tiveram total decaimento.”

I.2. Recursos e respostas apresentados:

I.2.1 - Inconformado parcialmente com tal decisão, dela veio o Ministério Público interpor recurso, cuja motivação culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...31):

“I. OBJETO E DELIMITAÇÃO DO RECURSO

1.º O presente recurso tem como objeto o Acórdão proferido a 22.03.2024 com a referência ...93, de fls. 3425 a 3491verso, depositado em 25.03.2024, por via do qual, naquilo que ora releva, tendo sido condenados os arguidos AA e EE, na parte criminal, foram os mesmos absolvidos do pedido de perdimento de bens a favor do Estado (perda alargada do património incongruente ou confisco).
2.º Com esta parte não concordando o Ministério Público, ora se recorre do douto Acórdão, versando o presente recurso sobre matéria de Direito.
3.º Foram, assim, violados os artigos 1.º, n.º 1, al. n), 7.º e 8.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro e 110.º, n.º 1, al. b) e 4 do Código Penal. Assim:

II. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO

4.ºO montante cujo perdimento o Ministério Público requereu – perda alargada de bens fundada no património incongruente – deveria ter sido julgado provado e, assim, se declarar o seu perdimento, com a subsequente condenação dos arguidos, por se verificarem todos os pressupostos a que alude o artigo 1.º, n.º s 1, al. n), 7.º e 8.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, a saber: i. a condenação pela prática de um crime do catálogo, no caso, de tráfico de pessoas (artigo 1.º, n.º 1, al. n) do referido Diploma); ii. património do condenado; iii. incongruência desse património com o seu rendimento lícito.
5.ºNão obstante a quantia peticionada, de 62.287,46Eur (sessenta e dois mil, duzentos e oitenta e sete euros e quarenta e seis cêntimos) – ou, no limite, o valor de 50.287,46Eur (cinquenta mil, duzentos e oitenta e sete euros e quarenta e seis cêntimos) conforme o entendeu o Tribunal a quo –, dever ser declarada perdida a favor do Estado em sede de perda alargada de bens e não de perda clássica de bens (esta prevista no artigo 11.º, n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal), sempre se dirá que, considerando o Tribunal que no valor do património total foram contabilizadas as quantias atinentes aos vencimentos não pagos ao casal FF e BB – considerando o seu não pagamento como uma vantagem, sendo esse também o produto da atividade criminosa (perda clássica) – impunha-se, pelo menos, ao Tribunal que tivesse declarado perdido a favor do Estado tal quantia, pelo menos, a título de perda de vantagens (perda clássica), independentemente da dedução e procedência do pedido de indemnização civil (como veio a ser deduzido e, assim, a proceder).
6.ºEntende o MINISTÉRIO PÚBLICO que se verificam todos os elementos de facto e de Direito que impõem a declaração do perdimento, a favor do Estado do património incongruente, pelo montante indicado, previstos nos artigos 1.º, n.º 1, al. n), 7.º e 8.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, devendo, assim, o Tribunal ad quem revogar, nesta parte, o douto Acórdão recorrido e substitui-lo por outro que declare tal perda alargada de bens.
Ou, se assim se não entender:

7.ºMantendo-se o entendimento de que tais montantes integram o conceito de vantagem dos fatos ilícitos típicos, nos termos e para os efeitos do artigo 110.º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal, – o que igualmente se verifica, é certo –, impunha-se, pelo menos, que o Tribunal a quo tivesse conhecido tal perda, declarando-a, porquanto devida e imperativa, em face das distintas finalidades e natureza desse instituto quando confrontado com o fundamento e natureza do pedido de indemnização civil deduzido, donde deve, assim, o Tribunal ad quem revogar, nesta parte, o douto Acórdão recorrido e substitui-lo por outro que declare tal perda de vantagens (perda clássica).

8.ºNeste preciso sentido se pronunciaram, entre muitos outros, os seguintes Acórdãos: do Tribunal da Relação do Porto de 12.05.2021, proferido no processo n.º 1771/18.3T9PRT.P1 (relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador Paulo Costa), e de 26.01.2022, proferido no processo n.º 2769/16.1T9PRT.P1, (relatado pela Exma. Sra. Juiz Desembargadora Liliana Páris Dias) e do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.04.2019, proferido no processo n.º 1487/17.8T9FNC.L1-9, (relatado     pelo     Exmo.     Sr.     Juiz Desembargador Almeida Cabral).
9.ºDestarte, julgando V. Exas. procedente o presente recurso e, assim, decidindo nos precisos termos sobreditos farão, como sempre, a mais avisada e tão acostumada JUSTIÇA.”

Os arguidos/recorridos EE e AA não deduziram resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público.

I.2.2 - Inconformada com a decisão condenatória contra si proferida, dela veio a arguida EE interpor recurso, cuja motivação culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...27):

“a. 1ª QUESTÃO PRÉVIA – prescrição e iniquidade
I – O tribunal errou ao não ponderar sobre a prescrição do procedimento criminal quanto aos factos vertidos na acusação/pronúncia.
II – Errou do mesmo modo ao não conhecer e pronunciar-se sobre o muito longo percorrido desde a data dos factos que deram origem a este processo.
III – Deixando que a morosidade se instalasse, sem responsabilidade da arguida para, agora de novo a condenar, prante a pena anterior já extinta e assim a tratando objetivamente de modo injusto e em evidente iniquidade.

Ii – 2ª QUESTÃO PRÉVIA
1. O tribunal a quo, um novo acórdão ultrapassando os preceitos legais que, a nossos modestos olhos deveriam possibilitar à arguida a notificação de uma nova acusação pelo M.P. e, posteriormente um novo julgamento constituído por diferentes magistrados do anterior.
2. Ao não cumprir o disposto no art. 359º do CPP, o tribunal aplicou efetivamente uma interpretação inconstitucional, a saber que, a alteração substancial dos factos comunicados ao arguido, com a sua oposição formal à continuação do julgamento pelos novos factos, tem o mesmo regime que o da comunicação da alteração não substancial dos factos, que fere o direito do arguido a ver asseguradas todas as garantias de defesa, inscritas no art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
3. Devendo, por tais motivos aduzidos, ser o novo acórdão reenviado e declarado ilegal e inconstitucional.
4. O Tribunal manteve a alteração da qualificação jurídica relativamente aos crimes pelas quais a coarguida Recorrente EE vinha acusada pelo M. Publico, entendendo que poderiam estar em causa a pratica pela arguida de crimes de escravidão em vez de crimes de trafico de pessoas, conforme lhe foi imputado na acusação publica.
5. A arguida/recorrente opôs-se a essa alteração jurídica, atendendo que prejudicava a sua posição enquanto arguida, face ao agravamento da moldura penal dos crimes em causa, bem como ao facto do crime de escravidão estar tipificado na lei desde data anterior ao crime de trafico de pessoas para fins de exploração laboral e escravidão (que foi tipificado na reforma do C. penal de 2007).
6. Acima de tudo, por ser seu entendimento da acusação deduzida não resultarem factos e elementos objetivos e subjetivos (e não foram outros, aditados pelo Tribunal) que consubstanciem a prática do crime de escravidão, p.p. pelo artigo 159º alínea a) do C. P., mas de trafico de pessoas, p. e p. pelo artigo 160º1 do CP.
7. O Tribunal não julgou dessa forma e acabou por condenar a recorrente pela prática de dois crimes de escravidão, p. e p. pelo artigo 159º do CP (na pessoa dos ofendidos AA e BB), bem como por um crime de trafico de pessoas, p.e p. pelo artigo 160. 1, alínea d) do CP, na pessoa do ofendido GG.
8. Sendo que o crime de trafico de pessoas, conforme definido na acusação publica apenas foi tipificado desde setembro de 2007.
9. Ao assim ter procedido, entende a Recorrente que foram violadas as disposições legais mencionadas, mais os artigos 358º1 e 3 do CPP, bem como o artigo 1º1, 2º 1 do C.P. e 29º 3 da CRP.
10. Nos pontos da matéria de facto dada como provada e que vêm concretamente enunciados nas motivações de recurso, o Tribunal “a quo” não apreciou corretamente toda a prova produzida em audiência, bem como, uma análise crítica da prova produzida, segundo as regras da experiência comum e critérios lógicos impõe decisão diversa, isto é, dar como não provado o que foi dado como provado e a exclusão de qualquer responsabilidade criminal por parte da arguida, levando à sua ABSOLVIÇÃO.
11. De acordo com as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, conjugado com a analise critica dos meios probatórios referidos e identificados nas motivações de recurso e tudo o mais aí alegado e referido e que aqui se da integralmente por reproduzido, o Tribunal “ a quo” não devia ter dado como provado; o facto 3º a partir de “…final de 2004 até Setembro de 2013 em acordo e comunhão de esforços com a arguida EE, o ponto 7º, no que concerne à arguida EE, o facto 14º na parte onde refere que confiscava/retia a documentação dos trabalhadores.
12. O facto 16º e 21º, na parte referente à arguida EE.
13. Os factos enunciados nos artigos 25º, designadamente na parte onde é referido “…executaram por conta dos arguidos AA e DD e depois AA e EE”, 26º na parte onde menciona que trabalhavam nas suas propriedades (da recorrente EE). Os factos enunciados no ponto 28º no que concerne à arguida EE, na parte onde é mencionado que agredia fisicamente a ofendida BB, batendo-lhe.
14. O factos enunciados no ponto 29º, onde é referido que a arguida EE limitava os gastos com a saúde dos FF, o ponto 32º, onde refere que “ o arguido AA (…) depois com a nova companheira a arguida EE, em conjugação de esforços e de vontades, dispôs a seu bel-prazer da força de trabalho do casal FF, seja em benefício próprio, em trabalhos agrícolas, sem qualquer remuneração, seja mediante a colocação do casal ao dispor de terceiros em Espanha, a quem prestavam serviços no ramo agrícola, apropriando-se das remunerações que lhes eram devidas”.
15. O ponto 33º na parte onde é referido que a arguida EE beneficiava da remuneração dos ofendidos que era apropriada pelo arguido AA.
16. O ponto 35º na parte que refere que “que o dinheiro era por eles entregue aos arguidos AA e/ou EE, por exigência destes…”.
17. Bem como o ponto 36, onde é mencionado que a documentação pessoal dos ofendidos e a documentação das contas bancárias ficava na posse da arguida EE, os factos 40º e 41º, onde é referido” …sempre a mando e por conta dos arguidos AA e EE” e onde é mencionado que a arguida EE se apoderava da pensão do ofendido AA.
18. Também mão deveria ter sido dado por provado o ponto 42º, onde refere “para o efeito, aqueles arguidos, um ou outro indiscriminadamente, deslocavam-se mensalmente com o referido ofendido à estação dos Correios de ...…até final.
19. O ponto 44º onde é referido que o arguido AA se apoderou da remuneração proveniente do trabalho dos ofendidos e “gastando-o em seu proveito e da co arguida EE, em execução do mesmo propósito delineado, bem sabendo que tal dinheiro não lhes pertencia”, os factos enunciados no ponto 49º, designadamente “No dia 18 de Junho de 2013, o arguido AA, em conjugação de esforços e na execução do propósito delineado com a arguida EE, e quando GG se encontrava apeado na zona da rotunda ...…”.
20. Os factos elencados no ponto 51º na parte “…por os arguidos AA e EE dela se apoderarem não lha entregando” e o facto inserido no ponto 53º, “os quais decidiram apropriar-se de tal quantia pertencente àquele ofendido e que lhe havia sido atribuída em razão da sua incapacidade para o trabalho”.
21. Os factos apontados nos pontos 54 e 55 atinentes á participação da arguida/recorrente EE e os elencados nos pontos 56, 61º, 62º, 63º, 65º e por consequência os factos inseridos nos pontos 66º e 67º (no que respeita á recorrente), bem como os pontos 70º, 72º 76º.
22. Por outro lado, face à prova produzida deviam ter sido considerados por provados que: O casal FF foi morar para casa dos arguidos AA e EE apenas em 26.8.2010 e que a arguida EE sempre tratou o casal FF e o GG de forma respeitadora, sem lhes dar ordens nem os constranger e nunca lhes ficou com o dinheiro/produto do seu trabalho, bem como que a arguida EE levava o FF ao médico, não retirando documentos pessoais/bancários aos ofendidos
23. Todos estes pontos e factos descritos deverão ser alterados, sendo dados por não provados e provados consoante o que supra dissemos, pelas razões, fundamentos e meios de prova apontados e aduzidos nas motivações de recurso e que aqui se dão integralmente por reproduzidos.
24. Não tendo, com o devido respeito, o Tribunal apreciado devidamente a prova produzida na sua globalidade, tendo-se cingido, quase em exclusividade às declarações dos ofendidos, sem cuidar de a ajuizar com a demais prova produzida, conforme imperativo legal, com clara violação dos artigos 127º e 124º do C.P.
25. Imputando à arguida/recorrente factos que foram condicionados (na nossa humilde opinião) pelo facto de esta coabitar com o coarguido à data da pratica dos mesmos.
26. Tal situação foi notória, na nossa humilde opinião, relativamente á apreciação da conduta da arguida/Recorrente para com os ofendidos, bem como a forma que o I. Tribunal considerou como provados factos que foram negados pelos próprios ofendidos designadamente o acompanhamento aos Correios ... do ofendido FF, pela Recorrente e a retenção da sua pensão.
27. Tal como o Tribunal considerou por provado um facto relevantíssimo, que foi extremamente considerado na determinação da pena, o comportamento agressivo da arguida/recorrente para com os ofendidos, designadamente para a ofendida BB (ponto 28 dos factos provados).
28. Quando o único episodio relatado sobre um comportamento agressivo da recorrente, foi a ofendida BB que o referiu quando falou que uma vez, lhe deu “duas lambadas”.
29. Absolutamente mais ninguém referiu algum episódio desta natureza ou sequer de que a recorrente tenha sido injuriosa para com os ofendidos e ninguém confirmou o depoimento da assistente, que até foi colocado em causa pela demais prova produzida nos autos e melhor referenciada nas motivações (declarações de testemunhas, designadamente HH e outras, relatório social, declarações do ofendido FF e declarações do ofendido GG), havendo uma violação do principio in dubio pro reo, atendendo à duvida patente e inultrapassável sobre a ocorrência desse factos, violando o tribunal o artigo 32.2 da CRP.
30. Também essa circunstância foi notória quando o I. tribunal considerou que a coarguida EE tinha agido em comunhão de esforços, com o coarguido AA no convencimento do ofendido GG em os acompanhar para ... (facto 49 dado por provado).
31. Quando tais factos não resultam de nenhum elemento de prova produzido, nem sequer das declarações do ofendido- o Tribunal extrai essa conclusão pelo facto dos coarguidos coabitarem e viverem em união de facto, não passando de meras presunções sem apoio factual.
32. Não sendo descritos quaisquer factos que permitam imputar à arguida “essa conjugação de esforços”, violando o artigo 26º do C.P.
33. Também a coarguida recorrente invocou que a sua conduta em determinados factos (como o acompanhamento do ofendido GG a obter novo cartão de cidadão ou acompanhá-lo pelo menos uma vez a Banco 1... e outros identificados na motivação oferecida) aconteceu devido à coação e ao receio que a recorrente tinha do coarguido AA, sendo vitima de violência domestica.
34. No entanto, o Tribunal, deu como não provado essa circunstância, não tendo atendido às declarações da arguida nesta matéria, que foram perfeitamente corroborados pela testemunha HH, que foi clara, direta e depôs de uma forma isenta e com cabal conhecimento dos factos, associado ao relatório social, bem como às declarações dos ofendidos, sobre o comportamento e personalidade do coarguido AA).
35. Somos de entendimento, que existiu aqui um erro notório na apreciação da prova, designadamente a este facto, que é de extrema relevância, já que determina o elemento subjetivo com que a coarguida alegadamente agiu (ou seja, o dolo), devendo claramente o artigo 70 dos factos provados ser eliminado e passar para não provado.
36. O depoimento desta testemunha demonstrou cabalmente, sendo suportado em outros elementos de prova (declarações dos ofendidos, relatório social, declarações da arguida) um facto relevantíssimo e que o Tribunal não considerou por provado, o que na nossa opinião se cristaliza no vício do artigo 410º 2 do CPP, além da violação dos artigos 127º do CP e dos artigos 14º e 26º do CP.
37. Também não foi devidamente avaliada a prova documental produzida nos autos atinente às moradas/residências dos ofendidos e arguidos, às declarações de rendimento e outros documentos mencionados em sede de motivação, que coadjuvados com as declarações da arguida/recorrente, bem como do próprio coarguido AA e de outras Testemunhas (II) fixariam o inicio da residência dos FF com a recorrente em data posterior à fixada pelo Tribunal, o que teria desde logo reflexos na medida da pena e nos montantes de indemnização civil alegadamente a pagar.
38. Face à prova produzida nos autos, apenas é possível apurar que a 31 de Agosto de 2009, a morada que constava no cartão de cidadão da ofendida BB, correspondia à residência dos Coarguidos AA e EE, em ... aquela data /em ...).
39. Mostrando-se violados pelo Tribunal os artigos 127º e 124 do CP.
40. Também não resultou provado que a arguida/recorrente retivesse os documentos pessoais ou bancários dos ofendidos, o que resulta das suas declarações e das declarações dos ofendidos, inclusive também não resulta provado que se apropriasse dos valores das mesmas (factos dados por provados 14, 36,32,33, 35).
41. Extrai-se essa conclusão das declarações da arguida, das declarações dos ofendidos, bem como das testemunhas que eram funcionários dos Correios ... e da Banco 1..., inquiridas em Audiência de Julgamento.
42. Mais uma vez, ocorreu violação do princípio da livre apreciação da prova (violação do artigo 127º do CPP) e erro notório na sua apreciação (violação do artigo 410. 2, alínea c) do CPP), já que os ofendidos BB e AA foram claros quando disseram que entregavam o dinheiro ao AA, inclusive quando iam ao multibanco levanta-lo com a arguida EE (BB) (mas era tudo entregue ao AA).
43. Também o ponto 76 deveria ter sido considerado por não provado, já que ao contrário do decidido pelo Tribunal, a arguida tinha rendimentos próprios, com os quais provia à sua subsistência (mesmo tendo de os entregar ao coarguido).
44. Para tal, além do seu depoimento e das testemunhas inquiridas, releva a abundante prova documental (designadamente as suas declarações de rendimentos, bem como a relação de bens de que era possuidora).
45. Tal prova não foi valorada pelo I. Tribunal, tendo violado o artigo 124º do CPP.
46. Por não se provarem factos suficientes, não se verificam, quer os pressupostos objetivos, quer os subjetivos (designadamente o elemento volitivo) do tipo de crime de escravidão e de tráfico de pessoas imputados à arguida, devendo a mesma ser absolvida dos ditos crimes, bem como do pedido de indemnização civil.
47. O Tribunal a quo assim não decidiu e por isso, violou os artigos 159ºalinea a), 160º, 1, alínea d) e 14º do CP.
48. Foi a arguida/recorrente condenada, imputando-lhe os factos alegadamente praticados em co- autoria com o arguido AA.
49. No entanto para a mesma ser considerada coautora, teria, de ter domínio funcional sobre os mesmos, estando na sua determinação e vontade a sua prática.
50. Resulta da prova produzida que arguida EE, não tem domínio de qualquer facto, nem sequer o poderia impedir porque quem controlava tudo era o Sr. AA (veja-se as declarações dos ofendidos), bem como das testemunhas, designadamente da HH (que direta e frontalmente descreve a personalidade e comportamento do arguido).
51. Face a toda a prova produzida, dúvidas não há, que a única pessoa com domínio global de todos os factos era mesmo o coarguido, não tendo a arguida EE qualquer autonomia na sua prática ou sequer tinha alguma sobre a decisão de impedir qualquer ato sobre os ofendidos, inclusive os que alegadamente praticou, foi por imposição e temor.
52. Por insuficiência de elementos dos crimes em causa - de escravidão e trafico de pessoas (designadamente o elemento subjetivo) não se mostra possível imputar à arguida EE a autoria dos mesmos.
53. Não se mostrando provado, designadamente que a recorrente agiu de forma livre e voluntaria.
54. Salvo o devido respeito, o Tribunal “a quo” violou, interpretou ou aplicou incorretamente o disposto nos artigos 14º, 26º, 159º e 160º1, alínea d) do CP e o artigo 32º da CRP.
55. Nos factos imputados à coarguida EE (independentemente da sua alteração) não resulta dos mesmos que ela tenha o domínio funcional sobre os mesmos e muito menos que se ela não participasse que eles se deixassem de produzir.
56. Resulta de todos os factos dados por provados pelo Tribunal que esse domínio não lhe pertence e não resulta que os mesmos derivem da sua atuação e tenham acontecido por via disso.
57. Não são concretizados pelo Tribunal, quaisquer atos que permitam aferir a existência desse alegado acordo prévio entre ambos os arguidos (EE e AA).
58. Como o Tribunal a quo refere, os ofendidos, sobretudo por causa da conduta do arguido AA, temiam seriamente pela sua vida, sendo obrigados a trabalhar”.
59. A responsabilidade criminal é aferida de forma individual e pessoal e face ao exposto, não resulta que a arguida tivesse qualquer domínio ou independência sobre a prática dos factos em causa, havendo uma clara violação pelo Tribunal dos artigos 124º1 do CPP e 26º do C. Penal, levando necessariamente á sua absolvição.
60. Mesmo tendo em conta os factos que foram julgados por provados e que são imputados à recorrente, julgamos que os mesmos consubstanciam a pratica do crime de trafico de pessoas nos termos do artigo 160º1, alínea d) e não o crime de escravidão, p.e p. pelo artigo 159º alínea a) do C.P.
 61. A sua conduta nunca foi de tratar como “objetos” os ofendidos “AA e BB”, mas foi similar à sua conduta perante o ofendido GG (que foi pelo tribunal qualificada como um crime de trafico de pessoas).
62. Nunca foi intenção da arguida tratar como “coisas e objetos” os ofendidos, que são elementos necessários para os factos serem conduzidos ao crime de escravidão.
63. Alegadamente a sua conduta foi de os explorar laboralmente (o que reconduz o seu propósito ao crime de trafico de pessoas face aos elementos objetivos que o compõem).
64. Esse crime apenas foi tipificado a partir de 15 de setembro de 2007. Ao assim não ter decidido, violou o Tribunal os artigos 160º1, alínea d) e o artigo 159º alínea a) do C.P.
65. Com a alteração da qualificação jurídica, as penas aplicadas também deverão ser alteradas em benefício da arguida, face aos limites mínimos e máximos correspondentes ao crime de tráfico de pessoas.
66. A pena a aplicar à/recorrente arguida, face à sua posição de subalternização e dependência na alegada pratica dos factos relatada na douta decisão recorrida, ao período temporal em que os mesmos ocorreram (aproximadamente cinco anos) e a todas as circunstâncias que se irão referir, deverá para cada crime fixar-se próximo do mínimo legal (de três anos e três meses para cada um), caso não seja atenuada.
67. O que acarretara uma diminuição da pena aplicada pela prática do crime de trafico contra o ofendido GG que se deverá situar nos três anos de prisão, pelas mesmas razões.
68. A aplicação da pena à arguida, de cinco anos e quatro meses de prisão por cada crime de escravidão e três anos e dois meses de prisão pelo crime de trafico é manifestamente superior à medida da sua culpa, por isso é injusta e desproporcional.
69. Na decisão recorrida não se levou devidamente em conta, nomeadamente, os fins das penas, havendo um grande desequilíbrio entre os critérios de prevenção geral (ao qual se atribuiu a máxima importância) em detrimento dos critérios de prevenção especial.
70. O art.º 71º., nº 1 do C.P. dispõe que a medida da pena é fixada em função da culpa e das exigências de prevenção.
71. As penas são excessivas e devem ser fixadas dentro do seu limite mínimo, a recorrente nunca esteve detida ao abrigo destes autos, nunca se tendo justificado a sua detenção.
72. A sua conduta posterior foi conforme ao Direito (a sua detenção ocorreu por factos praticados em data anterior aos que aqui se discutem, mas cujo transito em julgado ocorreu da decisão condenatório ocorreu posteriormente e dai a sua detenção - discordando-se da interpretação do Tribunal).
73. Este entendimento normativo que o Tribunal tem do artigo 71, 2, alínea e) do C. Penal, quando considera para qualificar a conduta posterior da arguida para efeitos da determinação da pena, factos praticados em data anterior aos discutidos nos autos, mas cuja decisão condenatória transitou em julgado posteriormente é um entendimento normativo inconstitucional por violação dos artigos 18º2 e 27.2 da CRP, no sentido de que conduz á aplicação de uma pena excessiva e desproporcional.
74. Não podia também o Tribunal ter fundamentado a pena aplicada por violação do princípio da presunção de inocência, vertido no artigo 32º 2 da CRP, quando declara que a arguida tem dificuldade em manter uma conduta licita por não se ter coibido de praticar um crime de trafico na pessoa do GG, após a intervenção das autoridades, com buscas e apreensões.
75. Essas buscas foram efetuadas nos presentes autos e esta decisão ainda não transitou em julgado.
76. A arguida/recorrente, tem 67 anos (atualmente, 69) de idade, encontra-se socialmente inserida e familiarmente apoiada e é conotada como uma pessoa afável e de trabalho, na comunidade a sua alegada conduta criminosa não teve impacto, já que consta no relatório social não atualizado que ela é vista como mulher de trabalho, sem qualquer conotação criminal (este foi elaborado já após a detenção para cumprimento da pena de prisão da recorrente). Sendo que atualmente a arguida se encontra em liberdade após total cumprimento da pena em que foi condenada no primeiro processo já mencionado.
77. A sua pena deveria ter sido agora, especialmente atenuada, conforme foi feito á coarguida DD, aquando do primeiro acórdão, já que situações idênticas, deverão ser tratadas de igual forma, sob pena de violação do artigo 18º 1 da CRP.
78. As circunstâncias dos factos ocorreram de forma muito similar e em circunstâncias idênticas.
79. Existe um juízo de prognose favorável face ao comportamento futuro da aqui arguida que na nossa opinião poderia fundamentar uma atenuação especial da pena.
80. Essa atenuação iria fazer com que as molduras penais para os crimes de escravidão se situassem entre 1 a 10 anos e para o crime de trafico de pessoas entre os 6 meses e os 3,3 meses, nos termos dos artigos 73, 1, alínea a) e b) do CP., podendo ser aplicado à arguida a mesma pena que foi aplicada à coarguida DD, ou seja, três anos por cada crime de escravidão, sendo à recorrente aplicado um ano pelo crime de trafico.
81. No caso da procedência do presente recurso sobre a qualificação jurídica, deverá ser fixada a pena de 2 anos de prisão para cada crime de tráfico praticado nas pessoas de BB e FF e 1 ano na pessoa do ofendido GG, por se mostrar adequada e proporcional aos fins das penas.
82. Ao assim não ter decidido, o Tribunal violou os artigos 40º 2, 71º 1, 72,1, 73,1, alínea a) e b) e 18º1 da CRP., bem como os artigos 159º, alínea a) e 160º1, alínea d) do CP.
83. Se assim não se entender devem as penas parcelares aplicadas à arguida serem fixadas no seu limite mínimo, ou seja, cinco anos de prisão por cada crime de escravidão e três anos de prisão pelo crime de tráfico de pessoas, por se revelar adequado e proporcional aos fins das penas.
84. Em caso de procedência de qualquer dos segmentos de recurso não deve a pena única ultrapassar os cinco anos de prisão, devendo ser suspensa na sua execução, mediante até sujeição a regime de prova ou outros deveres que se reputem adequados.
85. Em qualquer das circunstâncias deverá ser fixada a pena única até cinco anos de prisão, que nos parece adequado e proporcional tendo em consideração as condições pessoais da arguida em conjugação com o fim das penas.
86. Nos termos do artigo 77º, 2, in fine, do CP a pena a aplicar tem como limite mínimo a mais elevada das penas.
87. Reunindo a recorrente, condições legais para que lhe seja reduzida a pena agora aplicada (sem prescindir de todos os ouros segmentos de recurso, designadamente a alteração da qualificação jurídica e atenuação especial), fixando-a em cinco anos por cada crime de escravidão e três anos pelo crime de trafico.
88. Em cúmulo jurídico deveria ser fixada à arguida a pena de cinco anos, por ser o mais ajustado e adequado e ao assim não ter acontecido, o Tribunal a quo violou os artigos 77º 1 e 2 do CP e 40º 1 e 2 do CP.
89. Devendo ainda essa pena ser suspensa na sua execução e ao não acontecer, o Tribunal recorrido violou o artigo 50º do CP.
90. Por se mostrar mais do que adequado, deverá ser fixado à recorrente uma pena de prisão única que se situa no limite mínimo, ou seja, nos 4 anos de prisão nos termos do artigo 71º1 e 2 e 77º 1 e 2 do CP.
91. Ao assim não ter acontecido, o tribunal violou essas disposições legais, bem como o artigo 32º 2 da CRP.
92. Feriu o acórdão os arts. 124º; 359º nºs 1, 2 e 3 a contrário sensu; 374º nº 2 in fine; 379º nºs 1, als. b) e c); 410º nºs 1, 2, als. a) e c) e 3; 412º do CPP; 40º nºs. 1 e 2; 71º nºs 1 e 2; 77º nºs 1 e 2 do C. Penal; 1º nº 1; 20º nº 4 in fine e 5; 32º nºs. 1, 2 e 5; 202º nº 2 e 204º da CRP; 6º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso proceder por provado, e o Acórdão ser revogado e substituído por outro, devendo a arguida/recorrente ser absolvida de todos os crimes pelos quais foi condenada e caso assim não se entenda deverá o presente recurso proceder nos termos supra expostos, fazendo, como sempre, V. Excelências,
JUSTIÇA”

Na primeira instância, o Digno Magistrado do Ministério Público, notificado do despacho de admissão do recurso apresentado pela arguida EE, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que sustentou a manutenção do acórdão recorrido, com a improcedência do recurso (referência ...95).

Formulou as seguintes conclusões:

“I. DO OBJETO DO RECURSO
1.º Inconformada com o douto Acórdão de 22.03.2024, sob a referência ...93, por via do qual foi a arguida EE, aqui recorrente, condenada, pela prática, em coautoria, de dois crimes de escravidão e de um crime de tráfico de pessoas, em cúmulo jurídico, na pena única de 6(seis) anos de prisão, dele recorre a arguida, suscitando, no essencial as seguintes questões:
i. saber se se verifica prescrição do procedimento criminal ou a arguida deve ser absolvida por iniquidade;
ii. saber se o douto Acórdão padece de ilegalidade e inconstitucionalidade por violação do direito de defesa da arguida;
iii. saber se (parte) os factos julgados provados devem ser alterados julgando-se como “não provados” e se outros se devem julgar provados;
iv. saber se se verificam os elementos do tipo objetivo e subjetivo dos crimes pelos quais foi a arguida condenada;
v. saber se as penas parcelares e a pena única de 6(seis) anos de prisão imposta são adequadas, justas, proporcionais e necessárias;

II. DO MÉRITO DO RECURSO

2.º Entende o MINISTÉRIO PÚBLICO, ressalvando sempre o maior dos respeitos por distintas opiniões, que o recurso não deve ter, em qualquer ponto, provimento, devendo ser julgado improcedente in totum.
3.º Assim, a propósito da primeira das suscitadas questões – prescrição e iniquidade – ainda que de forma parca vertida nas conclusões – senão apenas enunciando tal questão – a arguida, ora recorrente pugna pela sua absolvição pela extinção do procedimento criminal por prescrição ou, pelo menos, por iniquidade.
4.º Nos termos do disposto no artigo 119.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, o prazo de prescrição só corre, nos “crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto”. Tendo-se dado o último ato em ../../2012 é a partir de tal data que se deve atentar para efeitos de prescrição do procedimento criminal (vide factos julgados provados sob os pontos 40 e 45).
5.º Deste modo, sendo o prazo prescricional de 15(quinze) anos e considerando as causas de suspensão e de interrupção da prescrição, nos termos do disposto nos artigos 118.º, n.º 1, al. a), 119.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 120.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, 121.º, n.ºs 1, 2, als. a) e b), e 3, todos do Código Penal, verifica-se o prazo prescricional em 11.02.2038 acrescido, ainda, de 4(quatro) anos ao abrigo da causa suspensiva constante do artigo 120.º, n.º 1, al. e) e n.º 4, do Código Penal, o que se verificará em 11.02.2042.
6.º Sem prejuízo, mesmo que se atentasse aos primeiros factos relevantes – em ../../2007 – por referência aos mesmos preceitos legais e aos mesmos prazos, o procedimento criminal extinguir-se-ia por efeitos de prescrição em 15.03.2034.
7.º Em face do que se impõe a improcedência da arguida declaração de prescrição e, assim, do recurso, nesta parte.
8.º Do mesmo modo a propósito da arguida iniquidade porquanto o atraso da decisão da causa não é, de todo, imputável ao Tribunal a quo, senão à própria tramitação do processo que correu com normalidade.
9.º Deve, pois, também aqui ser julgado improcedente o recurso interposto.
*
10.ºA propósito da segunda questão – saber se o douto Acórdão padece de ilegalidade e inconstitucionalidade por violação do direito de defesa da arguida – sempre se diga que igualmente não se verifica, porquanto o Tribunal comunicou aos arguidos a alteração substancial de factos consagrada no artigo 359.º do Código de Processo Penal, conforme o impôs o Tribunal da Relação de Guimarães, não tendo a recorrente requerido qualquer diligência de prova – que, de resto, nem se equaciona qual o fundamento – posto que se limitou a indicar que se opunha à continuação do julgamento quanto a tais (novos) factos.
11.ºAtente-se, pois, ao douto Despacho de 14.02.2024, com a referência ...07, e ao requerimento endereçado pela ora recorrente em 20.02.2024, sob a referência Citius 2411935, dizendo que "não se opõe a que a notificação se considere feita com o despacho; opõe-se à continuação do julgamento, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 359º do CCP" [aqui, leia-se, CPP].
12.ºPelo que, também nesta parte, deve, pois, o recurso interposto improceder.
*
13.ºA respeito da terceira questão – saber se parte dos factos devem ter outra decisão, de não provados ou de provados, nos termos indicados – há que ter em consideração que as declarações dos arguidos são um elemento de prova como qualquer outro, estando todos sujeitos à mesma liberdade de apreciação de prova do julgador. E, aqui, inequivocamente que as declarações da arguida, negando os factos, não foram suficientes para abalar aquele convencimento decorrente dos depoimentos prestados pelos ofendidos e pelos demais elementos de prova carreados nos autos tão escalpelizados pelo Tribunal a quo.
14.ºAdemais, a recorrente não indicou quais eram os concretos meios de prova que impunham uma decisão diversa daquela a que logrou alcançar o Tribunal a quo e não apenas aqueles que permitiam uma conclusão e decisão diversa
15.º O Tribunal a quo decidiu em conformidade com a livre apreciação da prova ínsita ao artigo 127.º do Código de Processo Penal, valorando a prova produzida em conformidade, designadamente os depoimentos dos ofendidos e demais testemunhas e, ainda, as declarações dos arguidos conferindo a maior ou menor credibilidade, senão mesmo a sua falta, consoante a imediação na produção de prova.
16.ºDonde se impõe também nesta parte seja o recurso interposto julgado totalmente improcedente.
*
17.ºQuanto à quarta questão – saber se estão verificados todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo dos ilícitos em apreço – concorda-se, na íntegra, com o vertido no douto Acórdão recorrido, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, não nos merecendo, pois, qualquer censura, tendo, de resto, o Tribunal a quo explanado de forma exaustiva os elementos do tipo, com recurso, de resto, aos entendimentos sufragados pelo Tribunal Penal Internacional, demonstrando que no caso vertente se mostram evidenciados todos os elementos, dando-se, aqui, por integralmente reproduzidos os fundamentos de Direito constantes do douto Acórdão, maxime no segmento supra transcrito nas contra-alegações que antecedem.
*
18.ºPor fim, no que concerne à última questão – saber se as penas parcelares e única impostas são adequadas, justas, proporcionais e necessárias – considerando todo o acervo factual julgado provado, bem como a medida da culpa da arguida ora recorrente, de harmonia com as finalidades das penas e daquilo que dispõem os artigos 40.º e 71.º do Código Penal, afiguram-se justas, adequadas e proporcionais para o tipo de cada um dos crimes em causa, as penas que concreta e parcelarmente foram impostas à arguida.
19.ºE, em sua decorrência, fixando-se a moldura de cúmulo entre 5(cinco) anos e 4(quatro) meses de prisão e o máximo de 13(treze) anos e 10(dez) meses de prisão, afigura-se-nos, por conseguinte, justa, adequada, proporcional, mas também necessária, a pena única de 6(seis) anos de prisão, sopesando, entre tudo o mais, “o tempo já decorrido sobre os factos, que atenuam sobremaneira as exigências de prevenção geral”, conforme bem fez evidenciar o Tribunal a quo
20.ºDonde, também nesta última parte se entende que nenhum reparo ou censura merece o douto Acórdão recorrido, devendo julgar-se improcedente o recurso.
21.ºPorém, V. Exas. decidindo farão, pois, e como sempre, a tão acostumada JUSTIÇA.”

I.2.3 - Inconformado com a decisão condenatória proferida, dela veio o arguido AA interpor recurso, cuja motivação culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...69):
             
“1-O Acórdão ora proferido, surge após a prolação de um antecedente datado de 25 de Maio de 2022, ocorrido que então tinha o primeiro e único julgamento efectuado nos presentes autos.
2-A decisão da Relação de Guimarães de reenvio colocou ao Tribunal “a quo” duas alternativas distintas, comunicar à defesa uma alteração não substancial dos factos (art. 358º. n.ºs 1 e 3 do CPP), ou comunicar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (art. 359º. do CPP).
3-O aqui recorrente opôs-se à continuação do julgamento, tudo, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 359º. do C.P.P., tendo sido notificado de um despacho no sentido da reabertura da audiência e leitura de Acordão, onde, se designou a data de 22 de Março de 2024.
4-O aqui Recorrente sem efetivo novo julgamento e, sem quaisquer possibilidades de defesa, foi sim surpreendido com a leitura do acórdão que ora se recorre.
5-O Tribunal “a quo”, o mesmo que ilegalmente condenou o aqui recorrente no julgamento cujo Acórdão foi reenviado, viu-lhe então negada uma nova acusação e, um novo julgamento, tudo, de forma a poder com efetividade defender-se.
6-O Tribunal “a quo”, porventura por lapso grave, confundiu os procedimentos legais aplicáveis e, proferiu um novo acórdão, ultrapassando os preceitos legais que deveriam possibilitar ao aqui arguido/recorrente, a notificação de uma nova acusação pelo Ministério Público e posteriormente, um novo julgamento constituído por diferentes magistrados do realizado anteriormente.
7-Ao não cumprir o disposto no art. 359º. do CPP, o Tribunal “a quo”, aplicou uma interpretação inconstitucional da alteração substancial dos factos comunicados ao arguido, pois que, com a sua oposição formal à continuação do julgamento pelos novos factos, tem o mesmo regime que o da comunicação da alteração não substancial dos factos, do art. 358º do CPP que fere o direito do arguido a ver asseguradas todas as garantias de defesa, inscritas no art. 32º. da Constituição da República Portuguesa, termos em que, pelos motivos aduzidos, deve ser este o novo Acórdão novamente reenviado e declarado ilegal e inconstitucional.
Outrossim,
8-Através da leitura atenta do Acordão ora recorrido, em sede de motivação da decisão de facto provada, decorre que o Tribunal “a quo” ponderou desde logo, no capítulo da formação da sua convicção, entre outras, a seguinte prova documental: “- Anexos I, II, III, IV e V”.
9-Da análise crítica da prova, de todo se consegue atingir de que forma tais anexos (documentos) contribuem para a produção da mesma, apenas existindo pontuais remissões e isoladas referências aos mesmos, em concreto, das Fls. 113-120 e 273 anexo III e, Fls. 47, 48, 55, 63, 67, 98, 99, 160, 219, 220, 239, 243 e 558 do anexo IV, sendo que, para os demais anexos I, II e V, tão pouco existe quaisquer referências ao conteúdo desses documentos, ou, se explica como dali se extraí algum contributo para a convicção do Tribunal.
10-A finalidade principal do Processo Penal é a descoberta da verdade material, ao lado da qual se busca a finalidade da realização da justiça, da paz jurídica e a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos.
11-Ressalvado sempre o devido respeito por opinião contrária, no Acordão ora recorrido, apenas se mostra feita a indicação dessas provas/anexos (designadamente dos anexos I,II e V), não inexistindo todo e/ou algum exame crítico dessas mencionadas provas que ajudaram a formar a convicção do tribunal, não se mostram as provas, sequer indicadas de forma completa, porque desde logo a indicação da prova documental é “mui” deficiente, com efeito, constando dos autos várias dezenas de documentos e anexos, relativamente aos acima elencados, o tribunal “a quo” apenas faz remeter para todos eles na globalidade.
12-Não se mostra minimamente feito o exame crítico dessa prova documental/anexos que fundou a convicção do tribunal recorrido, e tal exame crítico não pode traduzir-se em simples remissões (como as que existiram relativamente aos anexos I, II e V), como se tudo de uma “profissão de fé” do Tribunal se tratasse.
13-Impunha-se que o Tribunal “a quo” tivesse exposto, ainda que de forma concisa, todo o raciocínio lógico-dedutivo, incluindo a necessária articulação daqueles meios de prova que valorou e porquê, esta exigência de fundamentação dos motivos que suportam a decisão, para além de uma indiscutível auto-exigência de legitimação democrática no exercício da “iuris dictio”, também “joga” com o princípio de cariz constitucional do processo devido, do processo justo.
14-Torna-se pois fundamental que a decisão explicite, ela mesma, as razões e/ou o processo lógico que a suportam, de modo a permitir que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos decorrentes da decisão sob apreço, a reexamine para verificar, nomeadamente, da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o artigo 410°, n° 2 do C.P.P.
15-O exame crítico das provas deverá, em síntese, permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão, do processo lógico que lhe serviu de suporte, de modo a poder o mesmo tribunal de recurso concluir se sim ou não, na decisão posta em causa, se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, se a decisão sobre a matéria de facto não foi arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
16-O Tribunal “a quo” não indicou completamente como aquelas provas/anexos em concreto serviram para formar a sua convicção, nem efectuou o exame crítico das mesmas, inviabilizando uma correcta apreciação de eventual impugnação da matéria de facto a apresentar pelo aqui arguido.
17-A falta do exame crítico das provas, imposto pelo art. 374º, nº 2, do Código de Processo Penal e, a consequente insuficiência da fundamentação determina, nos termos do art. 379º, nº 1, a), do mesmo código, a nulidade do presente Acordão.
18-Esta restritiva interpretação do imposto pelo artº. 374º, nº 2, do Código de Processo Penal por parte do Tribunal “a quo” resulta claramente inconstitucional, por violação do princípio da certeza e da segurança jurídica, enquanto trave mestra do Estado de Direito e das mais elementares garantias de defesa do arguido, nomeadamente, o direito ao recurso (número 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa).
19-Deve ser reconhecida e declarada a nulidade do Acórdão recorrido e, a inconstitucionalidade da interpretação do disposto no artigo 374, nº. 2.º do Código de Processo Penal feita pelo Tribunal “a quo”, com claro prejuízo para a defesa do aqui recorrente, mais se impondo, ordenar o suprimento da nulidade verificada, com a consequente revogação da decisão e, a determinação de prolação de novo Acordão, da qual conste a indicação especificada de toda a prova documental/anexos fundamentadora da convicção e, um verdadeiro exame crítico das referidas provas/anexos.
Não prescindindo,
20-Proclama o Acordão de que se recorre que “in casu”, a matéria de facto provada é suficiente para justificar a condenação do mesmo em 2 crimes de escravidão, p. e p. pelo Artº. 159º. Alínea a) do Código Penal, acontece que, no caso dos autos, e por todo o circunstancialismo que o contextualiza, na dúvida, a existir, como forçosamente existe, não fosse a distância dos factos e a inerente dificuldade da prova inequívoca, estamos sim perante a prática de 2 crimes de tráfico de pessoas.
21-Veja-se pois, quanto a esta querela, o que nos diz as notas e comentários do Código Penal, parte geral e especial, de M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, que referem: “… o artº. 159 aplica-se a quem reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo, passando a exercer sobre ela todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade”. e, no mesmo sentido, o interessante Acordão do Tribunal da Relação do Porto, 1231/09. 3 JAPRT.P1 (4ª. Secção), o qual, tal como o caso dos autos nos reporta a uma situação de potencial escravidão laboral, sendo que, segundo o referido Acordão, existe escravidão laboral:”… nos casos em que a vítima é objecto de uma completa relação de domínio do agente… não tendo poder de decisão sobre o modo e o tempo da prestação do trabalho e não recebendo qualquer parte da sua retribuição.”, tudo o que, como se extraí da própria matéria de facto dada como provada, não resulta em conjunto e/ou em simultâneo, em nenhum dos 2 crimes de escravidão em que o aqui arguido foi condenado no Acordão de que se recorre.
22-Entende o aqui recorrente, que mesmo perante a matéria de facto dada como provada e não provada no Acordão de que se recorre, não se encontram preenchidos os pressupostos/elementos da prática dos 2 crimes de Escravidão p. e p. pelo Artº. 159º. alínea a) do Código Penal, mas, sim, os pressupostos/elementos da prática de 2 crimes de Tráfico de Pessoas, p. e p. pelo Artº. 160º. nº. 1 alíneas c) e/ou d) do Código Penal, com as consequências jurídicas daí decorrentes.
23-Acresce que, tão pouco se encontraram factos que possam ser convincentes de significados como “trabalhos forçados”, “ausência de liberdade na sua essência e desenvolvimento”, como hoje identifica a O.I.T., ou, no sentido actual da identificação de fenómenos de escravidão, no contexto dos Direitos Humanos, significados de “objecto humano”, “mercadoria”, “ausência de autodeterminação”, “cativeiro”, enfim, tudo conceitos que no concreto não constavam da Douta Acusação consubstanciados em factos concretos.
Outrossim,
24-Diga-se antes de tudo o mais, que, com efeito no caso “sub-judice”, o “quantum” das medidas dessas 5 penas são exageradamente penalizantes, tendo desconsiderado o Tribunal “a quo”, o respeito pelos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade subjacentes à aplicação de qualquer sanção penal e, apenas valorizando a indiscutível gravidade dos crimes praticados.
25-Sendo o aqui recorrente primário à data dos factos e, encontrando-se perfeitamente inserido na sua comunidade, conforme postulam os relatórios sociais juntos aos autos, mesmo que à data completamente ultrapassados e/ou desatualizados no tempo (deveriam obviamente terem sido requeridos novos relatórios para o efeito dado o hiato de tempo decorrido e a abertura de audiência), o aqui recorrente em cada um dos 5 crimes em que foi condenado, foi-o, em penas superiores ao mínimo legal judicialmente enquadrável, com destaque/sublinhado para as duas penas de 6 anos, aplicadas pela prática em co-autoria de 2 crimes de escravidão, p. e p. pelo Artº. 159º., alínea a) do Código Penal, cujos factos, atente-se têm o seu inicio em 1992 (faz 32 anos) e, cujo Inquérito foi registado em 19 de Abril de 2012 (faz 12 anos), tudo, relevando-se “mui” incompreensível.
26-Entende pois o aqui recorrente, que o Tribunal “a quo”, excessivamente valorizou a natureza dos crimes praticados, fazendo total tábua rasa, de outras circunstâncias, desde logo o enorme hiato temporal existente entre a prática dos crimes e o Julgamento dos factos, o que, poderia facilmente justificar a colocação das referidas penas no mínimo legal permitido.
27-Atente-se, que ao longo de todo o trajecto vivencial do aqui arguido, desde a prática dos referidos crimes até ../../2018 (data em que entrou em reclusão), não fosse o período da prática dos crimes que ora foi condenado e, outro contemporâneo que se refletiu na pena de 6 anos de prisão (a que se encontra a cumprir desde ../../2018), não existe notícia de qualquer crime da mesma e/ou outra espécie, que aquele tenha praticado neste enorme hiato de tempo, razão porque, sublinhe-se, mal andou o Acordão de que se recorre, quando, em cada um dos 5 crimes em que condenou o aqui recorrente, o tenha feito em penas superiores ao mínimo legal judicialmente enquadrável a cada um deles.
28-Não fosse aliás, questionar-se, e não prescindindo de tal, que decorreram 17 anos desde a “data fronteira” mencionada neste novo acórdão (desde ../../2007) em que o arguido aqui recorrente terá cometido cada um dos 5 crimes de que se encontra condenado, dividindo e separando artificialmente a atividade delituosa continuada, iniciada pelo menos em 1994 (se não 1992), até 2007, em crimes cuja tipologia tem óbvio e inquestionável caráter de atividade continuada no tempo.
29-Motivos aduzidos e pelos quais, a defesa invoca desde já a prescrição do procedimento criminal, dado que, sendo o processo uno, não tendo ocorrido separação do processo e dos factos, nem nova acusação decorrente da comunicação substancial dos factos, o tribunal estava impedido de decidir separar a atuação dos arguidos em dois grandes períodos.
Tudo,
30-Por forma a poder condená-los sem julgamento pelos novos factos comunicados, situação processual inédita, que arrastou como consequência grave prejuízo para o aqui recorrente, o qual, pasme-se, concernente aos 2 crimes de detenção de armas proibidas de que foi condenado, da leitura do Acórdão de que se recorre, tão pouco consegue perceber da data considerada do seu cometimento.
31-Não obstante factualidade provada, a pena única aplicada ao ora recorrente é extrema e demasiadamente penalizante, tendo desde logo em conta a actual idade do arguido aqui recorrente, a menos de 3 meses de completar 70 anos de idade e, a sua perspectiva/esperança de vida.
32-Por factos ocorridos tão absurdamente longínquos no tempo, venha ora a cumprir uma pena única de 8 anos de prisão, com horizonte de saída em liberdade no limiar dos 80 anos de idade???, sem possibilidade de cumular com a pena de prisão efectiva que ainda leva em cumprimento (por factos análogos e contemporâneos aos aqui julgados), pois brevemente a mesma se extinguirá e, na qual, dada a presente pendência processual, apenas será libertado no final da mesma.
33-Para mais, durante todo este hiato temporal mínimo de 10 anos em liberdade, não cometeu todo e/ou qualquer crime, estando inserido na comunidade e com trabalhos regulares (negociante de gado e trabalhos agrícolas).
34-O Acordão “a quo”, não teve também em conta, que dada a profunda degradação funcional ao nível da desejada reinserção em que se encontram os Estabelecimentos Prisionais em Portugal, esta pesada reclusão por certo em nada irá contribuir para na sua desejada ressocialização.
35-Não duvida o ora recorrente, que por certo que será necessário ter em conta que do outro lado da balança estão os interesses fundamentais de uma comunidade, mas com facilidade essa mesma comunidade entenderia, que mesmo sendo prevista a pena de prisão, esta na sua aplicação/medida, poderia, como já atrás se demonstrou, ter sido bem menos pesada, evitando a existência de uma desproporcionalidade entre dois pontos essenciais que o regime penal Português pretende assegurar (protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade), sendo que, mais uma vez sublinhe-se, o Acordão recorrido foi completamente “cego” perante a importância da reintegração do agente na sociedade.
36-O Tribunal “a quo”, terá excessivamente valorizado a natureza dos crimes praticados, tendo também por isso, acentuado, de forma algo exagerada, as exigências de prevenção geral, acabando tais exigências por ser duplamente valoradas no Acórdão recorrido, tudo, porque as mesmas haviam já sido atendidas na fixação da pena parcelares de prisão ali aplicadas, não colhendo, salvo o devido respeito por opinião contrária, os argumentos utilizados no douto Acordão para optar pela pena única aplicada de 8 anos de prisão. Mais se atente,
37-Que resulta inseparável e, tudo também tem a sua gênese, na incompreensível “abordagem” transcrita na fundamentação da decisão relativamente a alguns dos testemunhos que em Julgamento depuseram, designadamente, na inusitada desvalorização de muita da prova testemunhal apresentada em juízo, como a de um ex. Presidente da Câmara Municipal ... (JJ), que abonou a inserção social do aqui recorrente, KK, que entre outras coisas confirmou que o aqui recorrente em Portugal negociava em gado e tinha a agricultura, ou, de LL que descreveu AA como sendo boa pessoa, de MM, NN e, OO (secretário de justiça), que, conforme se pode ler no Acordão de que se recorre, na parte respeitante da fundamentação da decisão, também abonou a personalidade do aqui recorrente AA como respeitador, cumpridor e considerado, que negociava em gado e na agricultura, mas que, não teve melhor sorte do que outros testemunhos aqui identificados, dado o Tribunal nessa fundamentação ter considerado tal testemunho incompatível com a personalidade do arguido???
Noutra consonância,
38-Diga-se que quanto à personalidade do arguido, ao facto deste ter ou não compreendido a gravidade da sua acção, da sua capacidade de autocrítica, etc., etc., o Acórdão pouco ou nada diz e/ou acrescenta, a não ser, aqueles vulgos “lugares comuns” e, como atrás se viu, demasiado afastado do útil apoio do relatório social existente (o qual até está desatualizado com atrás já se explanou), que aliás, o próprio Acordão de que se recorre, frontalmente minimiza a Fls… 90, em sede de fundamentação, onde se pode ler: “Nos relatórios sociais, na parte em que não contende com os factos imputados, e com alguma parcimónia, porque, em muitos aspectos, baseados em meros relatos dos arguidos.”.
39-Tão pouco foi formulado qualquer juízo relativo ao carácter desfavorável da prognose, não se atentou nas condições de vida da ora recorrente, nem se alicerçou / pronunciou quanto à sua conduta anterior e posterior aos factos, condição psicológica, necessidade de acompanhamento neste campo, etc, etc,
40-O que está em causa não é pedir-se que o douto Acórdão analise cada um dos vectores exarados no Código Penal Português, mas, tão só que fizesse uma abrangência capaz de abraçar os requisitos contidos no citado diploma legal, e não apenas como o fez, utilizando expressões algo vazias de todo e/ou qualquer conteúdo, através da ultrassónica abordagem já aqui transcrita, das exigências de prevenção geral e, da sua comum reprovação.
41-Da análise do Acórdão aqui recorrido, crê o ora recorrente, que está mais do que inferida a pretendida nulidade por deficiente fundamentação, pois dele, não constam de forma clara e inequívoca, as principais razões que sustentaram o tribunal “a quo” a enveredar pela medida da pena aplicada.
42-Sempre seria desejável que o Tribunal “a quo”, pelo menos habilitasse os destinatários do acordão, incluindo o Tribunal Superior, a entender qual a razão que levou o Tribunal recorrido a aplicar a pena única de 8 anos de prisão.
43-Dado o “deficit” de fundamentação, entende o recorrente que o Acórdão recorrido violou o disposto no n.º 2 do art.º 374.º do Código de Processo Penal, padecendo, assim, da nulidade (Acórdão do S.T.J, C.J, ano VIII, Tomo I – 2000, pag. 206) prevista no art.º 379º nº.1 alínea a) do referido Código de Processo Penal, nulidade esta, que não é insuprível, podendo ser arguida em recurso (Acórdãos para fixação de jurisprudência do S.T.J. de 1992/05/06, in D.R. de 1992/08/06 e de 1993/12/02, in DR de 1994/02/11).
Pelo que, seguro de que V. Excª.(s), perdoarão a extensão das alegações, ante a delicadeza e complexidade das questões e a necessidade de as mesmas serem devidamente aprofundadas, fica a recorrente absolutamente confiante em que Vª. Excelências lhe farão, como vos compete, JUSTIÇA!”

Na primeira instância, o Digno Magistrado do Ministério Público, notificado do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido AA, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que sustentou a manutenção do acórdão recorrido, com a improcedência do recurso (referência ...96).

Formulou as seguintes conclusões:

I. DO OBJETO DO RECURSO
           
1.º Inconformado com o douto Acórdão de 22.03.2024, sob a referência ...93, por via do qual foi o arguido AA, aqui recorrente, condenado, pela prática, em coautoria, de dois crimes detenção de arma proibida, de dois crimes de escravidão e de um crime de tráfico de pessoas, em cúmulo jurídico, na pena única de 8(oito) anos de prisão, dele recorre o arguido, suscitando, no essencial as seguintes questões:
i. saber se se verifica prescrição do procedimento criminal;
ii. saber se o douto Acórdão padece de ilegalidade e inconstitucionalidade por violação do direito de defesa do arguido;
iii. saber se se verifica a nulidade do Acórdão por falta de exame crítico das provas, prevista no artigo 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal;
iv. saber se se verificam os elementos do tipo objetivo e subjetivo dos crimes de escravidão pelos quais foi o arguido condenado;
v. saber se as penas parcelares e a pena única de 8(oito) anos de prisão imposta são adequadas, justas, proporcionais e necessárias;
***
II. DO MÉRITO DO RECURSO

2.º Entende o MINISTÉRIO PÚBLICO, ressalvando sempre o maior dos respeitos por distintas opiniões, que o recurso não deve ter, em qualquer ponto, provimento, devendo ser julgado improcedente in totum.
3.º Assim, a propósito da primeira das suscitadas questões – prescrição –o arguido, ora recorrente pugna pela sua absolvição pela extinção do procedimento criminal por prescrição.
4.º Nos termos do disposto no artigo 119.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, o prazo de prescrição só corre, nos “crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto”. Tendo-se dado o último ato em ../../2012 é a partir de tal data que se deve atentar para efeitos de prescrição do procedimento criminal (vide factos julgados provados sob os pontos 40 e 45).
5.º Deste modo, sendo o prazo prescricional de 15(quinze) anos e considerando as causas de suspensão e de interrupção da prescrição, nos termos do disposto nos artigos 118.º, n.º 1, al. a), 119.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 120.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, 121.º, n.ºs 1, 2, als. a) e b), e 3, todos do Código Penal, verifica-se o prazo prescricional em 11.02.2038 acrescido, ainda, de 4(quatro) anos ao abrigo da causa suspensiva constante do artigo 120.º, n.º 1, al. e) e n.º 4, do Código Penal, o que se verificará em 11.02.2042.
6.º Sem prejuízo, mesmo que se atentasse aos primeiros factos relevantes – em ../../2007 – por referência aos mesmos preceitos legais e aos mesmos prazos, o procedimento criminal extinguir-se-ia por efeitos de prescrição em 15.03.2034.
7.º Em face do que se impõe a improcedência da arguida declaração de prescrição e, assim, do recurso, nesta parte.
*
8.º A propósito da segunda questão – saber se o douto Acórdão padece de ilegalidade e inconstitucionalidade por violação do direito de defesa da arguida – sempre se diga que igualmente não se verifica, porquanto o Tribunal comunicou aos arguidos a alteração substancial de factos consagrada no artigo 359.º do Código de Processo Penal, conforme o impôs o Tribunal da Relação de Guimarães, não tendo a recorrente requerido qualquer diligência de prova – que, de resto, nem se equaciona qual o fundamento – posto que se limitou a indicar que se opunha à continuação do julgamento quanto a tais (novos) factos.
9.º Atente-se, pois, ao douto Despacho de 14.02.2024, com a referência ...07, e ao requerimento endereçado pelo ora recorrente em 26.02.2024, sob a referência Citius 2416460, dizendo que vinha "Informar/comunicar, que não se opõe a que a notificação se considere realizada por escrito pelo mencionado despacho; Outrossim, E já directamente concernante à comunicação a que alude o Artº. 359º. do Código de Processo Penal, atente-se que, o aqui arguido, ainda nos termos do mencionado Artº. 359º. do Código de Processo Penal, opõe-se à continuação do Julgamento”.
10.ºPelo que, também nesta parte, deve, pois, o recurso interposto improceder.
*
11.ºA respeito da terceira questão – saber se se verifica a nulidade do Acórdão por falta de exame crítico das provas, prevista no artigo 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal – diz o artigo 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, na parte aqui relevante, que “1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º”, continuando, depois, o n.º 2 por dizer que “2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”.
12.ºRelativamente aos requisitos da sentença (aqui, acórdão) como ato decisório de excelência, estatui o artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que “[a]o relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
13.ºA generalidade da doutrina e da jurisprudência vêm assertivamente dizendo que não é toda a falta de fundamentação que importa a consequência da nulidade da sentença ou acórdão, mas antes a falta que seja absoluta, tanto assim que a “fundamentação insuficiente, deficiente ou não convincente não constitui nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso” (vide, REIS, Alberto dos, in Código de Processo Civil, anotado, vol. 5, pág. 140).
14.ºNo mesmo sentido, vide, entre outros e por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.03.2021, relatado pela Exma. Senhora Juiz Conselheira Leonor Cruz Rodrigues no âmbito do processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1 no qual se referiu que “II. Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”.
15.ºE, a propósito do exame crítico da prova, veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.01.2020, relatado pela Exma. Senhora Juiz Desembargadora Cristina Almeida e Sousa, no processo n.º 133/17.4PGSXL.L1-3, em cujo sumário se diz de modo assertivo que “O que importa para satisfazer a exigência legal do exame crítico das provas imposta, sob pena de nulidade, pelas disposições conjugadas dos arts. 379º nº 1 al. a) do CPP é que a fundamentação da decisão de facto expresse, com clareza, quais as regras de experiência comum, os critérios de razoabilidade e de lógica, ou os conhecimentos técnicos e científicos utilizados para conferir credibilidade a determinados meios de prova e não a outros e em que medida    os  meios de   prova produzidos oferecem informação esclarecedora e convincente que permite considerar provados os factos ou, pelo contrário, não oferecem segurança para alicerçar uma conclusão positiva acerca da verificação de determinados factos e, por isso, se justifica a sua inclusão, nos factos não provados”.
16.ºResulta do douto Acórdão recorrido, indubitavelmente, que o Tribunal a quo expôs de forma cabal a fundamentação para a formulação da sua convicção quanto à matéria de facto, bem como quanto ao Direito, tudo independentemente da bondade da argumentação e do convencimento (ou não) para o seu destinatário não se verificando, no entendimento do MINISTÉRIO PÚBLICO, que o Tribunal a quo não tenha efetuado uma apreciação crítica da prova documental, sendo que não se impõe, estamos em crer, que se refira expressamente a cada um dos documentos juntos aos autos.
17.ºOTribunal a quo decidiu em conformidade com a livre apreciação da prova ínsita no artigo127.º do Código de Processo Penal, valorando a prova produzida em conformidade, designadamente os depoimentos dos ofendidos e demais testemunhas e, ainda, as declarações dos arguidos conferindo a maior ou menor credibilidade, senão mesmo a sua falta, consoante a imediação na produção de prova.
18.ºDonde se impõe também nesta parte seja o recurso interposto julgado totalmente improcedente.
*
19.ºQuanto à quarta questão – saber se estão verificados todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo dos crimes de escravidão pelos quais foi o arguido condenado – concorda-se, na íntegra, com o vertido no douto Acórdão recorrido, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, não nos merecendo, pois, qualquer censura, tendo, de resto, o Tribunal a quo explanado de forma exaustiva os elementos do tipo, com recurso, de resto, aos entendimentos sufragados pelo Tribunal Penal Internacional, demonstrando que no caso vertente se mostram evidenciados todos os elementos, dando-se, aqui, por integralmente reproduzidos os fundamentos de Direito constantes do douto Acórdão, maxime no segmento supra transcrito nas contra-alegações que antecedem.
*
20.ºPor fim, no que concerne à última questão – saber se as penas parcelares e única impostas são adequadas, justas, proporcionais e necessárias – considerando todo o acervo factual julgado provado, bem como a medida da culpa do arguido ora recorrente, de harmonia com as finalidades das penas e daquilo que dispõem os artigos 40.º e 71.º do Código Penal, afiguram-se justas, adequadas e proporcionais para o tipo de cada um dos crimes em causa, as penas que concreta e parcelarmente foram impostas ao arguido.
21.ºE, em sua decorrência, fixando-se a moldura de cúmulo entre 6(seis) anos de prisão e o máximo de 16(dezasseis) anos e 9(nove) meses de prisão, afigura-se-nos, por conseguinte, justa, adequada, proporcional, mas também necessária, a pena única de 8(oito) anos de prisão, sopesando, entre tudo o mais, “o tempo já decorrido sobre os factos, que atenuam sobremaneira as exigências de prevenção geral”, conforme bem fez evidenciar o Tribunal a quo
22.ºDonde, também nesta última parte se entende que nenhum reparo ou censura merece o douto Acórdão recorrido, devendo julgar-se improcedente o recurso.
23.ºPorém, V. Exas. decidindo farão, pois, e como sempre, a tão acostumada JUSTIÇA.”

I.3 Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que pugna pela procedência do recurso deduzido pelo Ministério Público e improcedência dos recursos interpostos pelos arguidos (referência ...56).

Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP, o arguido/recorrente AA deduziu resposta ao sobredito parecer, reiterando a argumentação já utilizada em se do recurso por si interposto (referência ...16).
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*
II – Âmbito objetivo dos recursos:

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante designado, abreviadamente, CPP)[1].

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir são as seguintes:

A) Recurso deduzido pela arguida EE:
A1) Invocada prescrição do procedimento criminal e iniquidade do mesmo;  
A2) Não cumprimento do disposto no artigo 359º do CPP;
A3) Erro notório na apreciação da prova quanto aos factos provados nos nºs 14, 32, 33, 35, 36 e 70;
A4) Do apontado erro de julgamento quanto à matéria de facto dada por provada nos pontos 3, 7, 14, 16, 21, 25, 26, 28, 29, 32, 33, 35, 36, 40, 41, 42, 44, 49, 51, 54 a 56, 61 a 63, 65 a 67, 70, 72, 76, que deveriam ser tidos, total ou parcialmente, como não provados (desde logo por violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo), e quanto aos factos alegados pela defesa que, não obstante julgados não provados (pontos 28º e 31º a 33º), deveriam ter merecido decisão inversa;
A5) Da inexistência de comparticipação da arguida, na forma de coautoria;
A6) Errada qualificação jurídica dos factos no que concerne aos crimes de escravidão, por aqueles serem apenas suscetíveis de integrarem crimes de tráfico de pessoas;
A7) Excessividade da medida das penas parcelares aplicadas, devendo as mesmas serem especialmente atenuadas, e, em conformidade, da justificada redução da pena única;
A8) Da pugnada suspensão da execução da pena.

B) Recurso deduzido pelo arguido AA:

B1) Invocada prescrição do procedimento criminal;
B2) Falta de cumprimento do disposto no art. 359º do CPP;
B3) Nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação, derivada de inexistência de exame crítico da prova documental que invoca, constante dos anexos I a V;
B4) Nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação da medida da pena única;
B5) Errada qualificação jurídica dos factos no que concerne aos crimes de escravidão, por aqueles serem apenas suscetíveis de integrarem crimes de tráfico de pessoas;
 B6) Excessividade da medida das penas parcelares e única aplicadas.

C) Recurso deduzido pelo Ministério Público:
Da pretendida procedência do pedido de perda alargada, nos termos da legislação especial aplicável ou por via do instituto da perda clássica de vantagens, independente da dedução e procedência dos pedidos de indemnização civil dos lesados.
*
III – Apreciação:    
   
III.1 – Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão das questões suscitadas pelos recursos, importa verter aqui a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e não provada e respetiva motivação para a decisão sobre a matéria de facto.

O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):


Todos os arguidos são de etnia cigana e, pelo menos, desde 1993 até meados do ano de 2003 os arguidos AA e DD (doravante, DD) coabitavam e eram casados entre si, vivendo na Rua ..., Avenida ..., em ..., ou então na Carretera ..., em ..., ..., Espanha, para onde se deslocavam frequentemente.
Estão divorciados desde ../../2003.

A partir daquela data, os e arguidos separaram-se e o arguido AA, em final de 2004, passou a viver em união de facto com a arguida EE em ..., numa habitação sita na Rua ..., Avenida ..., ..., nas imediações da ocupada pela DD e, quando em Espanha, na morada supra referida.

Desde 1993, o arguido AA, em acordo e comunhão de esforços com a arguida DD, até meados de 2003 e, a partir de final de 2004 e até Setembro de 2013, em acordo e comunhão de esforços com a arguida EE, com quem passou a coabitar, decidiram, como forma de obterem dinheiro fácil, angariar em Portugal cidadãos, com manifestas fragilidades e/ou vulnerabilidades, designadamente, porque portadores de deficiência/atraso que lhes diminuía a capacidade de autodeterminação, com um baixo nível de escolaridade e oriundos de grupos sociais desfavorecidos e/ou com problemas económicos, com intenção de explorarem a força de trabalho dos referidos cidadãos e de se apoderarem das remunerações correspondentes ao trabalho prestado pelos mesmos e, assim, obterem lucros mediante a sua utilização.

Para concretizarem os seus propósitos, o arguido AA, seleccionava, e contactava diretamente pessoas em dificuldades económicas, com pouca formação escolar e manifestas fragilidades e/ou vulnerabilidades porque portadores de deficiência/atraso que lhes diminuía a capacidade de autodeterminação, sem retaguarda ou apoio familiar e com problemas relacionados com o consumo excessivo de álcool, e/ou que exerciam atividades laborais indiferenciadas (construção civil, agricultura…), e convencia-as a acompanhá-lo para trabalhar.

As pessoas previamente escolhidas, nos termos referidos, após a abordagem, acediam, por força da sua manifesta fragilidade, em acompanhar o arguido AA, que os transportava, num primeiro momento, para a habitação em ....

Posteriormente, eram transportadas, pelos arguidos AA e DD e EE, nos referidos períodos temporais, para Espanha, utilizando para o efeito os veículos de marca:
- “..., cinzento, com a matrícula “..-..-TR”;
- “...”, de cor ..., com a matrícula espanhola .... BTK;
- “...”, de cor ..., com a matrícula espanhola .... FKW.

Quando os trabalhadores assim recrutados chegavam a ..., o arguido AA, juntamente com as arguidas DD e EE, nos referidos períodos temporais, obrigavam-nos a entregar-lhes toda a documentação de identificação pessoal que possuíssem e que depois os arguidos mantinham retidas na sua posse e à sua guarda num espaço da habitação.

Após, eram alojados no sótão da residência dos arguidos, em ..., ou então num espaço amplo no 1º andar de um edifício conhecido por “...” sito na parte posterior do terreno onde se localizava a habitação dos arguidos, ou ainda, e mais tarde, num armazém contíguo à residência daqueles.

A ... e o armazém não tinham quaisquer condições de habitabilidade ou de salubridade, não dispondo de água quente.
A ... não dispunha de casa de banho, nem de luz eléctrica, sendo que o armazém só mais tarde veio a ser equipado de casa de banho exterior.
Na ..., e no armazém até á feitura da casa de banho, as suas necessidades fisiológicas eram, por isso, feitas no exterior.
10º
Para a realização das campanhas agrícolas em Espanha, designadamente nas províncias de ... – San ..., ..., ... de ..., esses trabalhadores eram transportados pelo arguido AA, juntamente com a arguida DD até meados de 2003 e, posteriormente, a partir de final de 2004, juntamente com a arguida EE, nos veículos descritos em 6º e ficavam alojados quer nas instalações dos patrões espanhóis junto das respetivas propriedades agrícolas (“fincas/bodegas”), quer na casa referida em 1º.
11º
Era-lhes proporcionado transporte diário, de manhã, de casa para o local de trabalho e no regresso a casa, no final do dia, utilizando para tanto, os sobreditos veículos.
12º
§1. Os locais onde era executado o trabalho pelas pessoas assim recrutadas situavam-se em diversas quintas localizadas em Espanha, nomeadamente na província de ..., e bem assim na região do nordeste transmontano, designadamente em ..., ..., ... e ..., e cujo trabalho consistia maioritariamente na atividade agrícola (apanha da fruta, amêndoa, azeitona, cebola, tomate e pimento, vindimas, sementeira de batatas, manutenção de vinhas e terrenos agrícolas, poda, descarda), mas também na atividade da pastorícia e outras como a recolha do lixo e construção civil.
§ 2. Os trabalhadores eram obrigados a trabalhar todos os dias da semana, excepto Domingos e dias de Natal e Páscoa, a não ser nas vindimas, em que eram todos os dias; quando o trabalho era prestado para os patrões espanhóis e portugueses, o horário era de 8 horas por dia.
13º
Ao arguido AA cabia, principalmente, estabelecer contactos com os donos/exploradores de tais quintas/terrenos, justar os preços, controlar os trabalhadores e receber a remuneração que era paga pelos patrões pelo trabalho prestado pelas pessoas angariadas, em montante diário que rondava, em Portugal, os 35 €/trabalhador e em Espanha os 50 €/trabalhador.
O arguido AA não trabalhava, habitualmente.
14º
Por sua vez, a função das arguidas DD (até meados de 2003) e EE (a partir de final de 2004), e, além do mais, era a de confecionar a alimentação que era fornecida aos trabalhadores, de anotarem as horas de trabalho prestadas pelos trabalhadores, sob indicação do arguido AA, e ainda, a de, juntamente com o arguido AA, confiscar e/ou reter a documentação de tais trabalhadores.
15º
A arguida DD, porque tinha a guarda de facto de dois dos filhos menores do casal FF (PP e QQ), passava mais tempo em Portugal do que o arguido AA, pelo que, quanto a ela, o referido em 14º ocorria sobretudo quando os trabalhadores estavam em Portugal.
16º
A retribuição que era paga pelas respetivas entidades patronais era entregue ao arguido AA e era por este, em acordo com as co-arguidas DD e EE, em execução do propósito referido em 3), retida, pois não a entregavam aos aludidos trabalhadores, integrando-a no seu património, apoderando-se da mesma e gastando-a em proveito próprio e do seu agregado familiar.
17º
Os trabalhadores não tinham em Portugal contrato de trabalho, trabalhando numa situação de grande precariedade.
Em Espanha, os trabalhadores desconheciam em absoluto a língua espanhola ou as regras jurídicas aí vigentes.
20º
Para os seus contactos telefónicos, o arguido AA utilizava, entre outros, o número ...95, da rede espanhola e os telemóveis com os nºs “...74” e “...65”, e a arguida EE utilizava os telemóveis com os nºs “...88”, “...13” e “...51”.
21º
O arguido AA, desde pelo menos 1993 até meados de 2003, juntamente com a arguida DD, e desde final de 2004 até ../../2013, juntamente com a arguida EE, em execução do plano acordado e em comunhão de esforços e intentos, sempre com o propósito de se locupletarem com a retribuição auferida pelos trabalhadores por eles angariados e de, assim, obterem rendimentos sem trabalharem para tanto, os arguidos agiram do modo supra descrito, pelo menos, com os seguintes quatro cidadãos portugueses:
- BB (nascida em ../../1968 e titular do cartão de cidadão nº ...; é esposa de FF e mãe de CC), desde pelo menos 1993 até ../../2012;
- FF (nascido em ../../1955 e titular do bilhete de identidade nº ...37; é marido de BB), desde, pelo menos 1993 até ../../2012;
- CC (nascido em ../../1984 e titular do cartão de cidadão nº ...), desde, pelo menos 1993 até 1999; e
- GG (nascido em ../../1968 e titular do bilhete de identidade nº ...22), desde ../../2013 até ../../2013.
22º
Assim,
Em data não concretamente apurada de 1993, o arguido AA, seleccionando-os, por serem pessoas que (para além de terem dificuldades económicas, que exerciam atividades laborais indiferenciadas, mormente na agricultura…)   tinham    pouca     formação    escolar  e, principalmente, uma deficiência/atraso mental que lhes retirava (FF) ou pelo menos limitava (BB) a capacidade de defesa e de autodeterminação, e disso se aproveitando, convenceu o casal RR e FF, a acompanhá-lo para trabalharem.
23º
Assim convencido, o casal FF acompanhou o arguido AA, juntamente com os filhos CC (este, apenas filho da RR), SS (nascido em ../../1990) e PP (nascido em ../../1992), até ....
24º
Aí, foram albergados (o casal e o menor CC) pelos arguidos AA e DD, no sótão da residência, ficando os menores PP e SS a residir no 1º andar.
O sótão da casa não tinha quaisquer condições de habitabilidade, com as paredes por pintar e a placa por rebocar.
Numa fase posterior, o casal foi acomodado, pelos arguidos TT e EE, e entre outros, num espaço amplo no 1º andar de um edifício conhecido por “...” sito na parte posterior do terreno onde se localizava a habitação dos arguidos, e mais tarde, num armazém contíguo à residência daqueles.
A ... e o armazém não tinham quaisquer condições de habitabilidade ou de salubridade, como referido em 9º.
25º
Desde data não concretamente apurada mas seguramente desde 1993 e até ../../2012, o casal RR e FF, e até 1999 também o ofendido CC (à data, ainda menor de idade), executaram por conta dos arguidos AA e DD e depois AA e EE, nos referidos períodos temporais, e sob as ordens directas e por norma do arguido AA, todo o tipo de trabalhos agrícolas, quer em Portugal, designadamente nas regiões de ..., ..., ... e ..., quer em Espanha, na província de ... – San ..., ..., ... de ..., para onde se deslocavam frequentemente para realizar, designadamente, as campanhas das vindimas (entre outubro e novembro), da poda (de janeiro a março), da descarda (em maio) e da apanha da fruta, amêndoa, azeitona, cebola, tomate, batata e pimento (na Primavera e Verão).
26º
Tais ofendidos trabalhavam, quer nas propriedades pertença do casal formado pelos arguidos AA/DD e mais tarde AA/EE, quer para outros patrões portugueses e espanhóis, cedidos pelo arguido AA, sem receberem qualquer remuneração.
Assim:
O ofendido FF, até se aleijar no braço direito, num acidente, o que ocorreu na parte final da coabitação entre os arguidos AA/DD, executava trabalhos de construção civil (muros…), realizava as campanhas agrícolas referidas supra, e desempenhava funções de pastor, apascentando o rebanho pertencente ao arguido AA, mas também rebanhos de terceiros, quer nos terrenos situados nas traseiras da habitação dos arguidos, em ..., quer, numa fase posterior (depois de o arguido AA passar a viver em união de facto com a arguida EE), na localidade de ..., onde a arguida EE possuía uma casa/armazém sem quaisquer condições de habitabilidade e de higiene, onde era guardado o gado e onde, por vezes, esse ofendido pernoitava.
Também CC desempenhavam trabalhos de pastorícia, até 1999, por vezes juntamente com o padrasto FF, apascentando o rebanho de ovelhas pertencente ao arguido AA.
A ofendida BB, para além de, por vezes, acompanhar o marido ou o filho CC na pastorícia, fazia, principalmente, as campanhas agrícolas referidas supra em 22º.
27º
Desde o ano de 1993, por força da total falta de condições económicas, de tempo e habitacionais a que estavam sujeitos os ofendidos AA e BB e, para, assim, terem mais disponibilidade para trabalharem, a arguida DD assumiu a guarda de facto dos filhos (comuns) do casal FF.
Mais tarde, por sentença datada de 19/01/2010 proferida no Proc. nº 108/09...., a mesma arguida passou a ser judicialmente responsável pela guarda e cuidados dos ainda menores PP e QQ, tendo-lhe sido atribuído tais poderes relativos ao exercício do poder paternal dos sobreditos menores.
A arguida DD nunca proibiu os contactos entre aqueles e os filhos, e tratava-os como se filhos dela fossem
28º
Sempre que os ofendidos RR e FF reivindicavam a entrega do dinheiro do trabalho que prestavam ou se recusavam a trabalhar por se encontrarem doentes, o arguido AA ameaçava-os de morte, em tom sério e intimidatório (“mato um e sangro o outro”), chegando a agredi-los fisicamente, assim como ao ofendido CC, desferindo-lhes socos, bofetadas e pontapés por todo o corpo e a arguida EE agredia fisicamente a ofendida BB, batendo-lhe.
O arguido AA, ao bater ao ofendido FF, chegou a usar uma vara.
Os ofendidos, sobretudo por causa da conduta do arguido AA, temiam seriamente pela sua vida, sendo assim obrigados a trabalhar.
29º
Os arguidos AA e EE limitavam os gastos com a saúde do casal FF, sobretudo aquele arguido, que proibiu, a partir de determinada altura, o ofendido FF de utilizar a botija de oxigénio que este mantinha junto da sua cama, não obstante dela necessitar em virtude dos graves problemas respiratórios de que padecia, decorrentes das várias pneumonias que sofreu, agravadas pelas más condições a que vinha sendo sujeito, alegando o arguido AA que “gastava muita luz”.
30º
Por força das más condições de vida a que vinha sendo sujeito, assim como a sua progenitora e o companheiro desta, em data não concretamente apurada do ano de 1999, o ofendido CC, à data com cerca de 15 anos de idade, aproveitando um momento em que se encontrava sozinho a apascentar o rebanho, nas imediações do cemitério de ..., decidiu fugir, sem o conhecimento e contra a vontade dos arguidos, recusando-se aqueles dois ofendidos a acompanhá-lo devido ao imenso temor que sentiam pelo arguido AA.
31º
Quando os arguidos AA e DD se separaram, aquele decidiu que o casal FF ficaria na sua posse.
Porém, e de forma muito esporádica, o casal FF continuou a executar, com a autorização do arguido AA, trabalhos agrícolas em Espanha, por conta da arguida DD, em condições não apuradas.
32º
Efetivamente, o arguido AA, primeiro com a sua mulher DD, depois com a nova companheira a arguida EE, em conjugação de esforços e de vontades, dispôs a seu bel-prazer da força de trabalho do casal FF, seja em benefício próprio, em trabalhos agrícolas, sem qualquer remuneração, seja mediante a colocação do casal ao dispor de terceiros em Espanha, a quem prestavam serviços no ramo agrícola, apropriando-se das remunerações que lhes eram devidas.
33º
Os patrões espanhóis entregavam diretamente ao arguido AA a remuneração que era devida aos trabalhadores, designadamente, aos ofendidos AA e BB, a qual era invariavelmente apropriada por aquele arguido, em seu proveito e das arguidas DD e EE, estas nos períodos temporais referidos, em comunhão de esforços e vontades.
34º
A dada altura, alguns patrões espanhóis passaram a exigir a abertura de contas bancárias tituladas pelos respetivos trabalhadores para procederem ao depósito dessas retribuições, cujo montante diário, por norma, ascendia a quantia não inferior a € 50,00 por cada trabalhador.
Por força dessa exigência, os ofendidos RR e FF foram, durante cerca de um ano, titulares de contas bancárias em território espanhol, onde foram depositadas as retribuições pagas pelos patrões espanhóis e que lhes eram devidas, em contrapartida do trabalho prestado.
35º
Sucede, porém, que esse dinheiro era por eles entregue aos arguidos AA e/ou EE, por exigência destes, que para o efeito, acompanhavam, um ou outro e por vezes os dois conjuntamente, os ofendidos, até às respectivas agências bancárias.
36º
A documentação de identificação pessoal dos ofendidos e bem assim a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas ficavam na posse dos arguidos AA/DD e, depois, AA/EE, sendo também esta uma forma de exercer o seu domínio sobre aqueles.
Parte da documentação foi apreendida em 2005, em casa da arguida DD, aquando da realização de buscas domiciliárias na Rua .../Avenida ..., em ..., no âmbito do inquérito nº 2731/04.....
Concretamente, foram, além do mais apreendidos nesse âmbito: o cartão de contribuinte e a caderneta bancária da “...” (Espanha) em nome de FF; o bilhete de identidade, o cartão da ARS ..., o cartão do Centro de Saúde ... e a cédula pessoal em nome de BB; a cédula pessoal em nome de CC.
37º
A ofendida BB, face aos registos laborais declarados existentes na Segurança Social espanhola, prestou trabalho declarado, neste país, na atividade agrícola (“péon”), por intermédio dos arguidos, pelo menos, durante os seguintes períodos:
- de 25 a 31 de maio de 2007 (7 dias), para a entidade patronal UU (residente em ...);
- de 13 de novembro de 2007 a 12 de dezembro de 2008 (396 dias), para a entidade patronal “EMP02... SL” de VV (em ..., ...);
- de 28 de setembro de 2009 a 07 de outubro de 2009 (10 dias), no regime especial agrário;
- de 04 a 16 de outubro de 2010 (6 dias) e de 23 a 30 de setembro de 2011 (5 dias), para a entidade patronal EMP03... (residente em San ..., ...), auferindo a remuneração líquida de € 349,82 e de € 311,49, respetivamente;
- no dia 26 de outubro de 2010 (1 dia), no regime especial agrário;
- de 11 de maio de 2011 a 30 de setembro de 2011 (143 dias), no regime especial agrário;
- de 22 a 24 de maio de 2012 (2 dias), para a entidade patronal EMP03... (residente em San ..., ...);
- de 28 a 31 de maio de 2012 (3 dias) e no dia 01 de junho de 2012 (1 dia), para a entidade patronal EMP04... (residente em San ..., ...), auferindo a remuneração líquida de € 182,65 e de € 60,88, respetivamente.
38º
Por sua vez, o ofendido FF, face aos registos laborais declarados existentes na Segurança Social espanhola, prestou trabalho declarado, neste país, na atividade agrícola (“péon”), por intermédio dos arguidos, pelo menos, durante os seguintes períodos:
- de 29 de novembro de 2001 a 11 de março de 2002 (103 dias), de 04 de abril de 2002 a 16 de junho de 2002 (77 dias) e de 19 de junho de 2002 a 09 de julho de 2002 (19 dias), para a entidade patronal “EMP05... SA”;
- de 22 de novembro de 2002 a 18 de julho de 2003 (239 dias), no regime especial agrário;
- de 25 a 31 de maio de 2007 (7 dias), para a entidade patronal UU (residente em ...), concomitantemente com a sua esposa RR.
39º
Por força da limitação física no braço direito em virtude do acidente supra referido em 26º, que agravou o estado de saúde de FF, que já se vinha deteriorando, fruto dos problemas ao nível do foro            respiratório/pulmonar (pneumonias sucessivas), de visão, cardíaco, das más condições de vida e de trabalho a que vinha sendo sujeito e falta de cuidados de saúde, este passou a ir menos frequentemente para as campanhas em Espanha, até que, a partir de data não concretamente apurada, mas por volta de meados de 2007, deixou de ir, ficando apenas em Portugal a trabalhar na agricultura e no pastoreio, nos terrenos dos arguidos, em ..., ou de outros patrões portugueses angariados pelo arguido AA.
40º
FF, desde que, pelas razões expostas, ficou impossibilitado de trabalhar em Espanha, por volta de meados de 2007 até ao dia ../../2012, trabalhou todos os dias, de sol-a-sol na pastorícia (rebanhos do arguido AA e por vezes de outros) e em trabalhos indiferenciados na agricultura (retirando as pedras e ervas dos terrenos…), sempre a mando e por conta dos arguidos AA e EE, sem nunca receber qualquer tipo de remuneração.
41º
Desde junho de 2011, o ofendido FF era beneficiário de uma pensão mensal de invalidez da Segurança Social Portuguesa, num valor entre 212,94 € e € 219,07, mas cujo montante nunca recebeu efetivamente, uma vez que os arguidos AA e EE dela se apoderaram todos os meses.
42º
Para o efeito, aqueles arguidos, um ou outro indiscriminadamente, deslocavam-se mensalmente com o referido ofendido à estação dos Correios de ... para que este procedesse ao levantamento de tal quantia e, uma vez no exterior, exigiam-lhe a entrega imediata da totalidade de tal quantia, que retinham na sua posse, dela se apoderando e gastando-a em proveito próprio e no do seu respetivo agregado familiar, nunca tendo entregue qualquer quantia monetária àquele ofendido.
43º
Em datas não concretamente apuradas, mas na altura das campanhas da amêndoa (setembro) e principalmente da azeitona (dezembro), nos anos de 2010 ou 2011, os ofendidos RR e FF trabalharam numa quinta em ..., pertencente a WW, sendo o ofendido FF quem tratava do pastoreio do rebanho deste, enquanto que a esposa RR trabalhava nos campos agrícolas, principalmente, na apanha da azeitona.
44º
Mais uma vez, o arguido AA recebeu a remuneração devida pelo trabalho prestado pelos ofendidos RR e FF paga pelo referido WW, dono das quintas nas quais aqueles laboraram, no valor diário de 35 €/trabalhador, mas não a entregou, apoderando-se de todo o dinheiro que recebeu, gastando-o em seu proveito e da co-arguida EE, em execução do mesmo propósito delineado, bem sabendo que tal dinheiro não lhes pertencia.
45º
Por força do acima descrito e cansados do clima de intimidação e exploração a que vinham sendo sujeitos, no dia ../../2012, pelas 22h30, aproveitando a ausência dos arguidos na festa de ..., em ..., e a ajuda do CC, e sem o conhecimento e contra a vontade dos arguidos, RR e FF fugiram, levando apenas a sua documentação pessoal, que lograram resgatar, e a roupa que na ocasião trajavam.
46º
No dia 29 de agosto de 2012, na sequência de uma busca realizada na residência dos arguidos AA e a EE, na Av. .../Rua ..., ..., em ..., foram encontrados e apreendidos os seguintes objetos:
(i) No quarto dos arguidos:
- um (1) bloco de notas, de argolas, formato A7, com capa de cor ... ostentando a referência “Competidor” e contendo folhas quadriculadas, parte delas manuscritas com diversas referências de trabalho prestado (trabalhadores/valores/horas trabalhadas) e contactos telefónicos, que se encontrava na gaveta superior da cómoda;
- três (3) blocos de notas, formato A6, contendo folhas pautadas, parte delas manuscritas       com diversas          referências      a          trabalho           prestado (trabalhadores/valores/horas trabalhadas) e contactos telefónicos, que se encontravam na gaveta superior do roupeiro;
(ii) Na área comum da cozinha/sala, numa das gavetas do móvel aparador:
- um (1) caderno de argolas, formato A5, com capa de cor ... ostentando a referência “Office 7”, contendo folhas pautadas, algumas delas manuscritas com diversas referências a trabalho prestado (trabalhadores/valores/horas trabalhadas) e contactos telefónicos;
- uma (1) agenda, em material tipo napa, de cor ..., com argolas, contendo dois blocos de apontamentos, com diversas referências manuscritas relativas a prestação laboral (trabalhadores/valores/horas trabalhadas) e contactos telefónicos;
- uma (1) agenda de argolas, com capa plástica transparente e fecho, contendo folhas pautadas, parte delas manuscritas com diversos contactos telefónicos;
- uma (1) pasta, de formato A4, em plástico, de cor ..., transparente e fecho de velcro, contendo nove folhas relativas a tratamentos médicos de FF;
- um (1) envelope, aberto, contendo uma carta dirigida a FF, sendo o remetendo a empresa “EMP06...” (referente ao tratamento com oxigenoterapia do id. ofendido FF); e
- um (1) envelope, aberto, contendo um vale de correio emitido pelo Instituto de Segurança Social a favor da vítima FF, no valor de € 212,94.
47º
Nesse mesmo dia 29 de agosto de 2012, encontravam-se estacionados no logradouro daquela habitação os veículos pertencentes aos arguidos AA e EE e já descritos em 5º e, na sequência de uma busca realizada aos mesmos, foram encontrados e apreendidos os seguintes objetos:
(i) No Veículo ...”, de cor ..., com a matrícula (espanhola) .... HHV (no interior do compartimento (central) do apoio de braço do condutor/passageiro frontal):
- uma (1) caixa contendo cinquenta (50) munições, de calibre 6,35 mm Browning/.25 Auto, da marca ...”, todas com projétil do tipo encamisado (FMJ) e por deflagrar.
(ii) No veículo ...”, de cor ..., com a matrícula (espanhola) .... BTK (no chão do banco posterior):
- uma (1) bengala, tipo moca, em material tipo cana, com cerca de 92 cm de comprimento, revestida na parte superior (“pega”) e até sensivelmente a meio com um material tipo napa (de cor ...) e com a parte inferior (cerca de 10 cm) revestida com tachas de metal.
(iii) No veículo ...”, de cor ..., com a matrícula (espanhola) .... FKW:
- uma (1) vara, tipo moca, em material tipo cana, com cerca de 125 cm de comprimento, apresentando numa das extremidades um “trabalhado” em formato de pequena “bola”.
48º
No dia 19 de setembro de 2012, foi realizada nova busca à residência dos arguidos AA e EE, na Avenida .../Rua ..., ..., em ..., e na sequência da mesma foram encontrados e apreendidos os seguintes objetos:
(i) Na área comum da sala/cozinha:
- um (1) aparelho de telemóvel, de marca “...”, com o IMEI ...27 e com o PIN ...58, contendo inserido o cartão SIM da rede móvel “...” relativo ao nº ...65 (pertencente ao arguido AA) e respetiva bateria;
- um (1) aparelho de telemóvel, de marca “...”, modelo ..., com o IMEI ...53 e com o PIN ...67, contendo inserido o cartão SIM da rede móvel “...” relativo ao nº ...51 (pertencente à arguida EE);
- um (1) aparelho de telemóvel, de marca ...”, com o IMEI ...00 e com o PIN ...84, contendo inserido o cartão SIM da rede móvel “...” relativo ao nº ...88 (pertencente à arguida EE);
(ii) No logradouro:
a) o veículo de marca e modelo ...”, com a matrícula (espanhola) .... HHV pertencente ao arguido AA, no interior do qual foram encontrados e apreendidos os seguintes objetos:
- dois (2) talões de depósito de numerário (de € 250,00, em 24/01/2011; e outro de € 300,00, em 16/05/2011) na conta bancária espanhola nº ...6 (titulada por EE), da ...;
– diversos papéis e cartões de visita, contendo, manuscritas, referências relativas a contactos telefónicos (espanhóis e portugueses) e nomes;
– documento relativo a “denuncia de infracción penal” apresentada em 25/09/2009 pelo arguido AA nas instalações da Guardia Civil de ..., ..., Espanha;
– documento relativo a requerimento datado de 16/05/2011, apresentado pelo arguido AA à “Tesoreria General de la Seguridad Social”;
– documento emitido pela “Tesoreria General de La Seguridad Social – ...” em 09/05/2011e dirigido ao arguido AA; e
– documento emitido pela “EMP01...” (em 10/07/2008), relativo ao contrato de fornecimento de energia à cliente EE e morada Carretera ..., ... ..., ....
b) o veículo de marca e modelo ...”, com a matrícula (espanhola) .... BTK, pertencente á arguida EE, em cujo interior foram encontrados e apreendidos diversos papéis, contendo, manuscritas, referências a contactos telefónicos (espanhóis e portugueses) e nomes;
e c) o veículo de marca e modelo ...”, com a matrícula (espanhola) .... FKW, pertencente ao arguido AA, no interior do qual foi encontrada e apreendida uma (1) bengala/vara, tipo moca, em material tipo cana, com cerca de 105 cm de comprimento, revestida na parte superior (“pega”) e até sensivelmente um terço do objeto com um material tipo napa (de cor ...) e com a parte inferior (cerca de 8 cm) revestida com tachas de metal, que se encontrava junto da consola central, entre os bancos anteriores.
49º
No dia 18 de Junho de 2013, o arguido AA, em conjugação de esforços e na execução do propósito delineado com a arguida EE, e quando GG se encontrava apeado na zona da rotunda ..., em ..., aproveitando-se da circunstância deste ser uma pessoa com uma deficiência/atraso mental que lhe retirava a capacidade de autodeterminação e com problemas de alcoolismo, convenceu-o a acompanhá-lo, a ele e á arguida EE, até ..., para trabalhar na pastorícia.
50º
Assim, o ofendido GG acedeu acompanhá-los, introduzindo-se no veículo de marca ...”, cinzento, de matrícula “..-..-TR” que na ocasião o arguido AA conduzia, em direção à habitação daqueles, em ....
51º
Aí chegado, GG ficou alojado no armazém contíguo à habitação daqueles arguidos, sem quaisquer condições de habitabilidade e salubridade, em blocos, sem qualquer reboco, com o pavimento em cimento e com uma janela alta em relação ao pavimento, sem vidros mas com uma chapa, e passou a realizar trabalhos agrícolas (arrancar pedras, silvas e ervas dos terrenos) e de pastorícia (alimentar e vigiar os animais) nas propriedades daqueles arguidos e de terceiros, de sol-a-sol, não recebendo a respetiva remuneração a que tinha direito, por os arguidos AA e EE dela se apoderarem não lha entregando.
52º
Por força das graves limitações físicas que apresenta no braço e mão direitos, em consequência de um acidente laboral que havia sofrido há mais de dez anos, o ofendido GG recebia mensalmente da Segurança Social Portuguesa uma pensão social de invalidez, no valor de € 513,37, cujo montante era mensalmente depositado na conta bancária nº ...00 da “Banco 1...” de que era titular.
53º
Tal facto chegou ao conhecimento dos arguidos AA e EE, pouco tempo depois de o ofendido GG estar sob o seu domínio, os quais decidiram apropriar-se de tal quantia pertencente àquele ofendido e que lhe havia sido atribuída em razão da sua incapacidade para o trabalho.
54º
Com vista ao levantamento mensal de tal montante e outras quantias que estivessem disponíveis na referida conta bancária, porque o ofendido GG não tinha na sua posse qualquer documento de identificação pessoal e/ou bancária, os arguidos AA e EE, logo em finais de Junho de 2013, diligenciaram para que aquele solicitasse a emissão do seu cartão de cidadão e bem assim uma 2ª via da caderneta bancária relativa à conta de que ele era titular na “Banco 1...”, acompanhando-o para tanto aos serviços competentes, servindo como testemunhas e fornecendo a sua própria morada (Avenida ..., ..., ...) e o contacto telefónico da arguida EE (...13) para efeitos de emissão de tal documentação a favor de GG, a qual ficou desde então na posse dos referidos arguidos.
55º
Na posse de tal documentação, os arguidos AA e EE, nos dias 05 e 29 de julho de 2013 e 28 de agosto de 2013, acompanharam o ofendido GG às agências bancárias de ... e/ou de ... da “Banco 1...” para que este procedesse ao levantamento da quantia que lhe era paga a título de pensão de invalidez e, uma vez no exterior, exigiram-lhe a sua entrega imediata e total, que retiveram na sua posse, dela se apoderando e gastando-a em proveito próprio e do seu agregado familiar.
56º
Por força do acima descrito e da exploração a que vinha sendo sujeito pelos arguidos AA e EE, no dia ../../2013, GG, sem o conhecimento e contra a vontade destes arguidos e aproveitando a sua ausência, depois de conseguir recolher o cartão de cidadão e a caderneta bancária de que era titular, decidiu fugir, caminhando até à agência bancária de ... da “Banco 1...”, onde levantou o respetivo montante mensal referente à sua pensão de invalidez, e depois apanhou um táxi até ... e depois outro até ....
57º
Todos os quatro ofendidos supra aludidos tinham um baixo nível de escolaridade, sendo que FF, BB e GG tinham um atraso cognitivo e o CC era menor.
58º
O ofendido FF era analfabeto, não sabendo ler nem escrever, e apresentava um funcionamento cognitivo muito abaixo do normal, ao nível do atraso mental, não sendo as suas capacidades suficientes para ter um comportamento eficiente e autónomo, nem tendo capacidade para se defender e autodeterminar.
O ofendido FF veio a falecer em 11.1.2021.
59º
Por sua vez, a ofendida BB apresenta um défice cognitivo que lhe limita as suas competências sociais e interpessoais e a sua capacidade de defesa e de autodeterminação.
60º
Também o ofendido GG era uma pessoa analfabeta, solteira, com problemas de alcoolismo, sem aptidões de funcionamento social autónomo, apresentando um atraso mental que lhe retirava a capacidade de defesa e de autodeterminação e o tornavam numa pessoa particularmente vulnerável ao abuso por terceiros.
Apresentava, ainda, uma deficiência física grave no braço e mão direitos - não tem sensibilidade, nem mobilidade.
61º
Os arguidos AA e DD e, depois da separação, os arguidos AA e EE, de comum acordo e em comunhão de esforços e vontades, nos termos supra expostos, faziam da exploração do trabalho dos ofendidos a principal forma de obterem rendimentos, nunca entregaram a nenhum dos sobreditos ofendidos a remuneração que era devida pelo trabalho prestado pelos mesmos, quer nas propriedades próprias quer nas de terceiros, com quem o arguido AA contratava a prestação do trabalho daqueles, retribuição esta que lhes era devida e/ou que era paga pelos donos das quintas nas quais aqueles laboravam, apoderando-se desse dinheiro e integrando-o ilicitamente no seu respetivo património e do seu agregado familiar.
62º
Para tanto, nos termos vistos, o arguido AA, em execução de plano prévio acordado com as arguidas DD e EE, convencia pessoas especialmente frágeis e com aproveitamento da especial vulnerabilidade em que estes se encontravam a trabalharem na agricultura em Portugal e Espanha, com o único objetivo de se apoderar, juntamente com as referidas arguidas, nos períodos temporais referidos,
das retribuições que estes deveriam auferir pelo seu trabalho, sendo depois alojadas nas condições expostas, pelos arguidos AA e DD e, depois da separação, os arguidos AA e EE, nos termos vistos.
63º
Os arguidos AA e EE, mediante acordo prévio e execução conjunta, apoderaram-se das quantias monetárias correspondentes às pensões sociais mensalmente depositadas a favor dos ofendidos FF e GG, cuja entrega lhes era de imediato e na totalidade exigida pelos referidos arguidos, gastando-as estes em seu proveito e no do seu agregado familiar, bem sabendo que nenhum desse dinheiro lhes pertencia e que com tais condutas aqueles ofendidos ficavam sem autonomia financeira para suprirem eles próprios as suas necessidades básicas de sobrevivência, tal como a alimentação.
64º
Para melhor assegurarem os rendimentos à custa do trabalho e prejuízo dos trabalhadores angariados, limitando ainda mais a sua capacidade de determinação, os arguidos AA e DD e, depois, os arguidos AA e EE, de comum acordo e em comunhão de esforços e vontades, retiraram-lhes todos os documentos de identificação, de forma a dificultar os seus movimentos e a dissuadi-los de denunciarem a situação em que se encontravam junto das autoridades, tudo nos termos supra expostos.
65º
Os arguidos AA, DD e EE, em conjugação de esforços e vontades, nos períodos temporais respectivos, supra referidos, decidiram que as pessoas angariadas, uma vez chegadas a ..., ficariam sob o seu domínio e total dependência, sendo por si controladas.
Sobre as pessoas angariadas, era exercida violência psicológica, criando nelas um sentimento de medo e intimidação.
Os arguidos AA e EE, em conjugação de esforços e em acordo prévio, exerceram, ainda, violência física sobre as pessoas angariadas, maltratando-as fisicamente.
66º
Os arguidos AA, DD e BB, integraram no seu património o valor dos vencimentos que deveriam ter pago pela prestação de trabalho aos ofendidos BB e FF, cujo montante ascendeu, e pelo menos, para o arguido AA,      ao        valor    global de 123.803,90€ (ou seja, 63.289,72€ – FF; e 60.514,18€ – BB), para a arguida DD de 51.824,52 € (26.868,96 € – FF; e 24.955,56 € – BB) e para a arguida EE de 63.074,34 € (31.922,11€ – FF; e 31.152,23€ – BB).
Acresce o montante de 2.768,22 € a título das pensões pagas a FF e de que os arguidos AA e EE se apropriaram.
67º
No período compreendido entre Julho de 2007 e Julho de 2012, o montante total dos vencimentos que os arguidos AA e EE deveriam ter pago pela prestação de trabalho aos ofendidos BB e FF ascendeu a montante não inferior a 52.371,18€ (26.540,40€ para FF e 25.830,78€ para BB).
68º
Tinham os arguidos AA e DD pleno conhecimento que o ofendido CC tinha apenas 8 anos de idade, o que não os coibiu de o colocarem a trabalhar, nos termos vistos.
O ofendido CC sempre trabalhou sem contrato, atenta a sua idade.
69º
Os ofendidos, apesar de terem possibilidades de fugir, mantiveram-se durante os períodos temporais supra referidos porque, além do mais, desconheciam o local onde se encontravam, não possuíam dinheiro, nem tinham os seus documentos de identificação, estando assim impossibilitados de se defenderem e por causa do referido em 28º, tudo agravado pelas referidas limitações cognitivas de cada um deles e menoridade do CC, e por medo.
70º
Os arguidos actuaram sempre de forma deliberada, livre e consciente, na execução e adesão a um plano conjunto e com plena consciência que todas as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
71º
As munições e bengalas/mocas/varas, providas de tachas de metal sucessivamente apreendidas pertenciam ao arguido AA bem sabendo aquele que não as podia deter, usar, transportar, aquelas por não possuir licença e estas por serem instrumentos de agressão/intimidação para os ofendidos, actuando de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo ser esta sua conduta proibida e punida por lei penal.
72º
Por força da conduta dos arguidos, os ofendidos AA e BB sofreram durante muito tempo profunda amargura, tristeza, medo pela sua integridade física e, até, vida, dores físicas e psíquicas, face ás condições a que foram sujeitos, agravadas pelas agressões perpetradas pelos arguidos AA e por vezes pela arguida EE.
73º
Tais sentimentos persistiram no tempo, com pânico de serem apanhados pelo arguido AA, o que lhes provocou noites sem dormir.
74º
Os arguidos AA e EE foram constituídos como tal em 19 de setembro de 2012.
75º
Estes arguidos vivem em união de facto, comungando de mesa, cama e habitação, desde, pelo menos, final de 2004.
76º
Os arguidos poucas vezes exerceram outra atividade profissional, pelo que era da atividade retratada supra, que retiravam grande parte dos seus proventos económicos.
77º
O agregado familiar do arguido AA é composto por si e pela sua companheira e coarguida EE.
78º
No período de tempo compreendido entre 2007 e 2014, em sede de IRS, os arguidos AA e EE declararam terem auferido os seguintes rendimentos, constantes do quadro que segue incluindo os provenientes das rendas, do Instituto da Segurança social (ISS), Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), “Confederação Agric” e “Instituto de Gestão”:


anoRendimento

global
Rendimento

disponível parcial
Nota

liquidação
Total                 do

Rendimento disponível
20077.397,55 €7.397,55 €
20089.875,56 €9.875,56 €0,00 €
200947.855,43 €47.855,43 €0,00 €
201010.814,09 €10.814,09 €3.108,71 €
2011 (i)46.075,33 € (i)46.073,33 € (i)
201219.953,31 €19.953,31 €224,43 €
201365.991,76 €63.581,89 €2,42 €
20147.392,47 €5.032,61 €
total215.355,50 €210.585,77 €3.335,56 €207.250,21      €


79º
Os arguidos possuem e/ou possuíram, no período compreendido entre 2007 a 2014 o seguinte património imobiliário:
§ 1. O arguido AA:
a) prédio urbano com o artigo matricial ...66, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial em 2007 de € 16.430,11, o qual foi vendido em 2008;
b) prédio urbano com o artigo matricial ...13, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 20.020,00;
c) ½ do prédio urbano com o artigo matricial ...35, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial € 65.518,13;
d) prédio rústico com o artigo matricial ...2, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial em 2007 de € 210,09;
e) prédio rústico com o artigo matricial ...24, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial em 2007 de € 66,89, o qual foi vendido em 2012;
f) prédio rústico com o artigo matricial ...28, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial em 2007 de € 9,28, o qual foi vendido em 2012;
g) prédio rústico com o artigo matricial ...39, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 41,30;
h) prédio rústico com o artigo matricial ...99, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 25,59;
i) prédio rústico com o artigo matricial ...32, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 250,00;
j) prédio rústico com o artigo matricial ...02, sito no concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 39,06;
k) prédio urbano com o artigo matricial ...14, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 13.050,00, o qual foi adquirido em 2010;
l) prédio rústico com o artigo matricial ...30, sito na união das freguesias ..., ... e ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 39,06.
§ 2. A arguida EE:
a) prédio rústico com o artigo matricial ...52, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 404,77;
b) prédio rústico com o artigo matricial ...8, sito na freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial € 66,74;
c) prédio rústico com o artigo matricial ...34 sito na freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 12,12, o qual foi vendido em 2009;
d) prédio rústico com o artigo matricial ...97, sito na freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 26,04;
e) prédio rústico com o artigo matricial ...39, sito na freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 98,16, o qual foi vendido em 2011;
f) prédio rústico com o artigo matricial ...7, sito na freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 129,14;
g) prédio rústico com o artigo matricial ...0, sito na freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 39,80;
h) prédio rústico com o artigo matricial ...0, sito na freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 4,94;
i) fração ... do prédio urbano com o artigo matricial ...86, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 5.550,00;
j) fração ... do prédio urbano com o artigo matricial ...86, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 10.420,00;
k) fração ... do prédio urbano com o artigo matricial ...86, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 5.850,00;
l) fração ... do prédio urbano com o artigo matricial ...86, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 44.310,00;
m) prédio urbano com o artigo matricial ...97, sito na freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 19.340,00, o qual foi vendido em 2013;
n) prédio urbano com o artigo matricial ...35, sito na freguesia e concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial em 2013 de € 139.984,38;
o) prédio rústico com o artigo matricial ...32, sito na freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 300,63, o qual foi vendido em 2011;
p) ½ do prédio rústico com o artigo matricial ...30, sito na freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 20,20;
q) prédio rústico com o artigo matricial ...40, sito na freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 63,75, o qual foi vendido em 2011;
r) prédio rústico com o artigo matricial ...71, sito na união das freguesias ..., ... e ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 26,04;
s) ½ do prédio rústico com o artigo matricial ...49, sito na união das freguesias ... e ..., concelho ..., distrito ..., com o valor patrimonial de € 20,20.
80º
E, nesse mesmo período, titulavam/contitulavam os seguintes bens móveis:
a) veículo ligeiro de passageiros, de marca ...”, modelo ...”, de matrícula “..-..-DL”;
b) veículo ligeiro de passageiros, de marca ...”, modelo ... ...”, de matrícula “OQ-..-..;
c) veículo ligeiro de mercadorias, de marca ...”, modelo ..., de matrícula “..-..-GR”;
d) tractor agrícola, de marca ...”, modelo ... ...”, de matrícula “..-..-DB”, com registo de propriedade de 31/10/1995, o qual foi vendido em 17/06/2010;
e) veículo de marca ...”, modelo ...”, de matrícula “.... HHV”, com o valor comercial de € 28.000,00;
f) veículo de marca ...”, modelo ...”, de matrícula “.... FKW”, com o valor comercial de € 5.000,00;
g) veículo de marca ...”, modelo ..., de matrícula “.... BTK”, com o valor comercial de € 9.000,00.
81.
O arguido AA, nesse mesmo período, titulava/contitulava as seguintes contas bancárias:


BancoIBANTipoaberta
Banco 1......01IF (i)30.9.2000
Banco 1......01IF31.1.2004
Banco 1......36DO (ii)2.3.1994
Banco 1......82DO6.1.2004
Banco 1......76DO31.3.2010
Banco 2... ...43AB (iii)26.2.2004
Banco 2... ...10DO11.9.2003
Banco 2... ...10DO19.3.2008
Banco 3......04DO2.1.1991
Banco 3......66DO4.12.2012
Banco 3......84DO11.2.2003



(i)Instrumentos financeiros.
(ii) Depósito à ordem.
(iii) Abertura de credito.
82º
A arguida EE, nesse mesmo período, titulava/contitulava as seguintes contas bancárias (fls. 178 do ap. B):


BancoIBANTipoAbertaEncerrada
Banco 1......69DO2.2.1997
Banco 1......95DO11.12.1995
Banco 1......32DO6.11.2009
Banco 1......93DO19.9.1995
Banco 3......97DO2.1.1991
Banco 3......71DO9.2.199820.3.2015
Banco 3......34DO5.6.1995



83º
§ 1. Entre os anos de 2007 e 2014 e relativamente a estas contas bancárias, o arguido AA efetuou movimentos a crédito (depósitos em dinheiro, de valores, e transferências bancárias a crédito provenientes de terceiros), tendo sido expurgados os valores das transferências efetuadas entre contas tituladas pelos arguidos, devoluções e estornos, nos montantes totais a seguir descriminados:


BancoIBANMontante total
Banco 1......828.834,11 €
Banco 1......7634.463,12 €
Banco 2... ...107.037,91 €



§ 2. E, entre os anos de 2007 e 2014 e relativamente a estas contas bancárias, a arguida EE efetuou movimentos a crédito (depósitos em dinheiro, de valores e transferências bancárias a crédito provenientes de terceiros), tendo sido expurgados os valores das transferências efetuadas entre contas tituladas pelos arguidos, devoluções e estornos, nos montantes totais a seguir descriminados:


BancoIBANMontante total
Banco 1......6963.030,48 €
Banco 1......9514.743,25 €
Banco 1......3286.259,54 €


84º
Assim, entre os anos de 2007 e 2014, o total dos fluxos financeiros ocorridos nas contas tituladas/cotituladas pelos arguidos AA e EE, conjuntamente com o património titulado e o alienado pelos mesmos, e a não despesa referente ao não pagamento dos vencimentos aos ofendidos AA e BB, no período de 2007 a 2012, ascendeu á soma de 269.537,67 €.
85º
Pelo que a diferença entre tal quantia e a referida em 78º, ascende a 62.998,52 €.
86º
No ano de 2011, a arguida EE declarou, em sede de IRS, a título de alienação dos imóveis referidos em 79 § 2, e), m), o), q), uma realização (o preço) de 33.000,00 € e despesas de alienação, de 1.050 €.
Porém, tal alienação foi pelo preço, real e declarado na escritura, de 45.000,00 €, pelo que o rendimento disponível, nesse ano, foi superior em 12.000,00 € ao declarado.
Imputando tal quantia á referida em 85º, obtém-se o resultado de 50.998,52 €.
87º
Por decisão de 21-3-2016, e nos termos do art. 10º da Lei 5/2002, para garantia do pagamento da quantia cujo perdimento a favor do Estado é pedido pelo MP, foi decretado o arresto preventivo dos seguintes bens e valores:
(i) 24.943,65 € - conta  ...00;
(ii) 0,02 € - conta  ...00;
(iii) 40,25 € - conta  ...00;
(iv) 1,55 € - conta  ...40;
(v) 8,82 € - conta  ...62;
(vi) 145,39 € - conta  ...17;
(vii) 14,41 € - conta  ...15;
(viii) 3.167,71 € - conta Banco 4... ...08;
(ix) prédio rústico – matriz: art. ...94 – CRP ... 794 – VP: 20,20 €;
(x) prédio rústico – matriz: art. ...71 – CRP ... 95 – VP: 26,04 €;
(xi) prédio urbano – matriz: art. ...14 – CRP ... 1663 – VP: 13.050,00 €;
(xii) prédio urbano – matriz: art. ...13 – CRP ... 1919 – VP: 20.020,00 €;
(xiii) prédio rústico – matriz: art. ...99 – CRP ... 789 – VP: 25,59 €;
(xiv) prédio rústico – matriz: art. 72 – CRP ... 964 – VP: 210,09 €;
(xv) prédio urbano – matriz: art. ...86 – CRP ... 66;
(xvi) prédio rústico – matriz: art. ...30 – CRP ... 833 – VP: 39,06 €.
88º
Por decisão de 11-11-2017, apenso C, e nos termos do art. 10º da Lei 5/2002, para garantia do pagamento da quantia cujo perdimento a favor do Estado é pedido pelo MP, foi arrestado e apreendido com remoção efectiva o veículo ..-..-GR, num valor estimado, em Junho de 2018, de 3.000 €.
89º
A arguida EE trabalhou ocasionalmente e auferiu rendas de imóveis.
90º
A arguida EE divorciou-se de XX em ../../2001.
91º
Os imóveis id. em 79º, § 2, a), b), c), e), k), l), m), o), q) e r) couberam á arguida EE nas partilhas subsequentes ao divórcio.
92º
O arguido AA é o mais velho de 7 filhos de um casal de etnia cigana, em que ambos os progenitores se dedicavam á actividade de jornaleiros indiferenciados.
Cresceu no agregado familiar de origem, cuja dinâmica era solidária e fortemente enraizada com os valores e costumes da sua cultura.
O agregado de origem vivia numa casa com condições mínimas de habitabilidade e vivenciava uma situação de precariedade económica, trabalhando em tarefas agrícolas.
O arguido frequentou o sistema de ensino por uns dias, apenas, tendo logo desistido da escola, por se tratar de actividade pouco valorizada, quer por ele próprio, quer pelos progenitores, pelo que permaneceu analfabeto (apenas aprendeu a assinar o seu nome) e, desde muito novo, passou a ajudar os pais nas lides.
Aos 21 anos de idade, passou a coabitar com a co-arguida DD, com a qual veio a casar, tendo nascido 5 filhos desse casamento, todos já autonomizados.
Permaneceram alguns anos (5 ou 6) em Espanha, onde trabalharam nas vindimas e na desfolha, e regressaram a Portugal, acabando por se fixarem em ....
Nessa altura, começaram os seus confrontos com o Sistema de Justiça Penal.
O casal veio a separar-se em 2003, tendo-se divorciado e depois veio a assumir uma nova relação com a co-arguida EE, ex-mulher do seu compadre XX.
Actualmente, encontra-se em cumprimento de pena.
Os filhos assumem disponibilidade para o ajudar.
O arguido não se mostra socialmente inserido e não denota arrependimento.
93º
A arguida EE nasceu no seio de uma família de condição socioeconómico modesto, mas com padrões de vida tradicionais e dinâmica estruturada.
Os pais eram caseiros numa quinta, tendo a arguida beneficiado de ambiente familiar promotor de vínculos afectivos e de regras de comportamento pró-social.
Ingressou na escola em idade própria, concluindo o 1º ciclo, não tendo contudo, prosseguido os estudos, o que desagradou aos pais.
Começou, então, a trabalhar na agricultura, á jeira, até aos seus 17 anos de idade e veio a casar com XX, tendo nascido 3 filhos desse casamento.
Depois de se divorciar de XX, veio a coabitar com o arguido AA.
A arguida é vista como uma mulher de trabalho e educada.
Beneficia do apoio da filha e da família alargada.
94º
A arguida DD é oriunda de um agregado familiar numeroso de etnia cigana, sendo a quarte de 5 filhos.
O agregado de origem dedicava-se á criação e venda de animais e jeiras agrícolas, vivendo de forma humilde e sem condições básicas de higiene e conforto numa casa sem as infraestruturas básicas essenciais.
Com 7 anos, a arguida iniciou a escolaridade, tendo, por volta dos 8/9 anos, emigrado para ..., juntamente com os pais e onde permaneceu até aos seus 16 anos e onde prosseguiu a frequência escolar, até a 9º ano.
Regressada a Portugal, a arguida casou com o co-arguido AA, do qual se veio a divorciar.
Depois do divórcio, a arguida DD frequentou vários cursos de formação profissional, sendo o último o de técnico comercial que lhe daria equivalência ao 12º ano, com bolsa de formação de 220 € mensais, mas que não chegou a concluir e deu algumas jeiras agrícolas.
Porém, por força de questões de saúde – bronquite asmática e problemas articulares – ficou com grandes limitações para trabalhar.
Mantém uma relação afectiva gratificante com os 2 filhos, netos e, também, com os 3 filhos do casal FF, SS, PP e QQ, sendo frequentes os convívios.
Não é alvo de rejeição social.
95º
O arguido AA já foi condenado, por acórdão transitado em 6.5.2013, pela prática, em 1.8.2011, de um crime de ofensa á integridade física grave, p. e p. pelo art. 144º nº 1, al. a), CP, na pena de 4 anos de prisão, suspensa por igual prazo; e, por acórdão proferido no PCC 2731/04.... (... Vara Criminal do ...), transitado em julgado em 10.5.2018, pela prática, em 1993, de um crime de escravidão, p. e p. pelo art. 159º CP, na pena de 6 anos de prisão.
96º
A arguida EE já foi condenada, por acórdão proferido no PCC 2731/04.... (... Vara Criminal do ...), transitado em julgado 10.5.2018 pela prática de um crime de escravidão, p. e p. pelo art. 159º CP, cometido em 1993, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
97º
A arguida DD não tem antecedentes criminais.”

Foram considerados como não provados os seguintes factos (transcrição):

- A decisão dos arguidos AA e DD, de angariarem cidadãos para explorarem a sua força de trabalho e apoderarem das respectivas remunerações, ocorreu em meados de 1992 e a da arguida EE ocorreu em 2002, data esta correspondente ao início da união de facto com o arguido AA.
- os arguidos aliciavam as pessoas com a promessa de emprego com vencimentos muito superiores aos auferidos pelos mesmos nas suas regiões de origem, alimentação, alojamento e transporte de e para os locais de trabalho.
- os veículos ... e, ainda, os veículos LO....T e ..., estes últimos pertencentes à arguida DD, eram utilizado no transporte das pessoas angariadas.
- o armazém não tinha luz elétrica.
- as campanhas agrícolas em Espanha ocorriam em ... e na província de ... – ..., ....
- todos e cada um dos arguidos transportavam diariamente os trabalhadores para e dos locais de trabalho.
- em Portugal, a remuneração paga pelos patrões era de € 50/dia.
- o arguido AA nunca executava qualquer tarefa.
- os trabalhadores nunca estiveram inscritos na segurança social.
- os ofendidos BB e FF e o menor CC foram angariados e trabalharam para os arguidos AA e DD desde meados de 1992.
- os ofendidos BB e FF foram convencidos, e aceitaram, fruto da sua má situação económica, através das promessas de um trabalho bem remunerado, com boas condições de alojamento e transporte gratuito de e para os locais de trabalho, dizendo-lhes o arguido AA que “iam conseguir amealhar bastante dinheiro”.
- os ofendidos AA e BB pernoitavam muitas vezes no local onde era guardado o gado.
- a arguida DD exigia aos ofendidos AA e BB que trabalhassem continuamente para “pagarem o sustento dos filhos”.
- sempre que os ofendidos RR e FF reivindicavam melhores condições de trabalho e/ou a devolução da sua documentação pessoal, todos e cada um dos arguidos, diziam-lhes, em tom sério e intimidatório, que “nunca mais os deixariam ver os filhos” e que “haviam de rebentar pelos fígados a trabalhar”, chegando mesmo, todos e cada um dos arguidos, a agredi-los fisicamente, assim como ao ofendido CC, desferindo-lhes socos, bofetadas e pontapés e utilizando, todos e cada um dos arguidos, uma mangueira, paus e varas e assim todos e cada um dos arguidos os obrigavam a trabalhar, fazendo-os temer pela sua vida.
- os arguidos limitavam ao máximo as despesas com a saúde do casal FF.
- quando os arguidos AA e DD se separaram, foram ambos que decidiram que o casal FF ficaria na posse daquele.
- os arguidos AA e EE diziam aos ofendidos, quando lhes ficavam com o dinheiro das contas bancárias que “tinham que ganhar dinheiro pelos filhos”.
- o bilhete de identidade de FF foi apreendido em casa da arguida DD.
- o ofendido FF deixou de ir a Espanha depois de 2008 e, daí em diante, era das 06h00 até às 10h00 e das 18h00 até às 22h00 que apascentava o rebanho de ovelhas pertença do arguido AA e era entre as 10h00 e as 18h00 que trabalhava nos campos agrícolas dos arguidos AA e EE.
- para angariar o ofendido GG, o arguido AA prometeu-lhe um trabalho bem remunerado, com boas condições de alojamento, alimentação e transporte gratuito de e para os locais de trabalho, e por isso aquele acedeu em acompanhar os arguidos AA e EE.
- o ofendido GG vivenciou uma situação em tudo idêntica à que havia sido vivenciada pelos ofendidos AA e BB.
- os quatro ofendidos foram convencidos que as propostas de trabalho dos arguidos seriam uma boa oportunidade para melhorarem a sua situação económica e as suas condições de vida.
- o arguido AA sabia que as vítimas que recrutou só o acompanhariam se as aliciasse com a possibilidade de as mesmas auferirem quantias elevadas, pelo que não se coibiu de as enganar ao dizer-lhes que iriam ganhar um bom salário, como era do conhecimento das coarguidas DD e EE, com cuja atuação concordaram e ajudaram a levar à prática.
- todos os ofendidos sempre laboraram sem contrato, mesmo em Espanha.
- o valor total dos vencimentos não pagos aos ofendidos AA e BB ascendeu a um total de 135.980,77 €.
- o montante a título das pensões pagas a FF e de que os arguidos AA e EE se apropriaram foi de 2.856,10 €.
- as munições e bengalas/mocas/varas sucessivamente apreendidas pertenciam, também, á co-arguida EE, que actuou com perfeita consciência que não podia nem devia possuir as aludidas munições, por não ter licença de uso e porte de arma, assim como os demais instrumentos de agressão (bengalas/varas/mocas) e que o fez de forma deliberada, livre e consciente bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
- o casal FF foi morar para casa dos arguidos AA e EE apenas em 26.8.2010, não tendo antes daquela data qualquer relação com os mesmos.
- o arguido AA é pessoa de condição económica modesta e bem conceituada;
-  os arguidos TT e EE só se relacionaram entre si a partir de 2005.
- a arguida EE sempre tratou o casal FF e o GG de forma respeitadora, sem lhes dar ordens nem os constranger e nunca lhes ficou com o dinheiro/produto do seu trabalho.
- a arguida EE levou o FF ao médico, mesmo contra a vontade daquele.
- a arguida EE não retirou documentos pessoais/bancários aos ofendidos.
- os ofendidos sempre tiveram liberdade de vontade.
- todos os fluxos bancários são produto dos rendimentos do trabalho e prediais e das vendas dos imóveis da arguida EE.
- a arguida EE vendeu os veículos de matrículas ..-..-DL e ..-..-HM por 300 € e 6.500€ respectivamente e comprou os de matrícula ..-..-GR e .... HHV por 2.500€ e 10.000€ respectivamente.”

E motivou a decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:

“O Tribunal formou a sua convicção com base na análise e ponderação da prova produzida e/ou examinada em audiência, conjugada com as regras da experiência comum, como estabelece o art. 127º CP, que consagra o princípio da livre apreciação da prova.
Este princípio reconduz-se ao poder-dever de decidir segundo o bom senso e a experiência de vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e de ponderação (cf., por muito desenvolvido, o Ac. do STJ de 2/9/2012 – P. 233/08.1PBGDM.P3.S1, dgsi).
Na valoração da prova, devem ser tidos em conta os pressupostos valorativos e critérios, objectivos ou objectiváveis, decorrentes das máximas da experiência e inferências lógicas que lhe estão tipicamente ligadas e que por isso mesmo não passariam despercebidas ao homem comum suposto pela ordem jurídica (o “bom pai de família” a que alude o art. 487º/2 CC – que consagra um princípio geral de direito).
Dito isto o Tribunal baseou-se na prova pericial, na prova declaratória (por declarações dos arguidos AA e EE (a DD não as prestou) e por depoimentos (dos ofendidos AA e BB, CC e YY – embora em condições diversas, como veremos), na prova documental (designadamente, os autos de notícias, de denúncia, de desaparecimento e de reaparecimento, de diligências, de buscas, de apreensões – e o que foi apreendido – de exames – telemóveis, bengalas/mocas apreendidas, munições – fotos dos locais, cadernetas bancárias e outros elementos e extractos bancários, vale de correio, registos e seguros automóveis, boletins de vencimento, comprovativos de idas ao hospital, escritura de venda, comprovativos de pedidos de emissão/renovação de cartões de cidadão…), tudo concatenado com as regras da experiência.
Assim, mais precisamente, o Tribunal ponderou:
§ 1. A prova pericial, com o seu reforçado valor probatório (art. 163º nº 1 CPP), quanto ás incapacidades/limitações dos ofendidos FF e BB (fl. 1058 e ss.) e GG (fl. 1330 e ss.), e da qual resultou que:
O ofendido FF era analfabeto, não sabendo ler nem escrever, e apresentava um funcionamento cognitivo muito abaixo do normal, ao nível do atraso mental, não sendo as suas capacidades suficientes para ter um comportamento eficiente e autónomo, nem tinha capacidade para se defender e autodeterminar.
A ofendida BB apresenta um défice cognitivo que lhe limita as suas competências sociais e interpessoais e a sua capacidade de defesa e de auto-determinação.
O ofendido GG era uma pessoa analfabeta, solteira, com problemas de alcoolismo, sem aptidões de funcionamento social autónomo, apresentando um atraso mental que lhe retirava a capacidade de defesa e de autodeterminação e o tornavam numa pessoa particularmente vulnerável ao abuso por terceiros.
Apresentava, ainda, uma deficiência física grave no braço e mão direitos - não tinha sensibilidade, nem mobilidade.
§ 2. A prova por declarações dos arguidos, havendo que distinguir, pois a arguida EE foi mais assertiva do que o AA.
§ 2.1. Na verdade, AA negou quase todos os factos e apresentou uma versão alternativa, desprovida de qualquer razoabilidade, pelo que não mereceu, no essencial, qualquer credibilidade, além de desmentida, de forma contundente, e além do mais, pelos depoimentos dos ofendidos e até, em parte, pelas declarações da co-arguida EE, e de várias testemunhas, como se verá, donde se retirou a ausência de arrependimento.
Que diz este arguido?
Quanto ao casal FF e ao menor CC:
Que acolheu, juntamente com a arguida DD, por volta de 1994, o casal FF e os filhos – estes, todos menores – a pedido dos FF, e com pena deles, vindos do XX (que lhes batia), passando o casal a habitar na ... (que descreveu como bem equipada e com todas as condições), contribuindo nas despesas com a alimentação, luz… (mas sem pagarem renda) e dando-lhes até uma horta a meias; que o casal FF dava umas jeiras em Portugal, mas nada de significativo, além de fazerem contratos em Espanha, sendo muitas vezes transportados pelo arguido (comparticipando nas despesas de combustível).
O arguido fez questão de referir que os ofendidos nunca trabalharam para ele, nem sob o seu controle, negando ter, alguma vez, retido as remunerações dos ofendidos ou ter-se apropriado das suas pensões.
Dividiu a sua actuação em duas partes distintas – de 1994 a 2003, com a DD – e de 2010 em diante com a EE, pois referiu que no período temporal 2004-2010, o casal FF teria permanecido com a DD; em 2010, BB pediu-lhe para a ir buscar, o que fez, tendo-se-lhe juntado, mais tarde, FF, tendo o casal passado a viver no armazém contíguo e que descreveu como «todo rebocadinho e com cimento bem afagado».
Importa, no entanto, realçar três pontos, com relevo:
Primeira, do depoimento do arguido transpareceu um indisfarçado desprezo em relação aos ofendidos (e, naturalmente, em directo confronto com a propalada benevolência do próprio arguido, pressuposta no seu relato) que apelidou de «bêbedos» - mais uma vez, denota falta de arrependimento.
Segunda, o arguido referiu que a co-arguida EE acompanhou sempre o FF, aos Correios ..., a levantar a pensão – quando os Correios ... ficavam perto.
Terceira, o arguido admitiu que FF lhe guardava o seu rebanho de gado, pelo menos duas vezes/semana – sem que, no contexto relatado pelo arguido, tal seja compreensível.
No tocante ao ofendido GG:
O arguido relatou que aquele, que não conhecia, lhe pediu, espontaneamente e sem intervenção sua, «boleia» na rotunda referida na acusação, tendo o arguido anuído, e tendo o ofendido ficado com eles (AA e EE) durante cerca de 2 meses, negando, portanto, e destarte, qualquer aliciamento/aproveitamento, no que não mereceu qualquer crédito, por inverosímil em si mesmo, e por frontalmente infirmado pela restante prova, como se verá.
Admitiu ter intervindo, como testemunha (mais outra pessoa, mas não a co-arguida EE), na emissão do cartão de cidadão ao GG, mas refere que foi «a pedido» daquele «porque tinha uma pensão por receber», negando ter-se apropriado das remunerações e das pensões do ofendido, no que não mereceu qualquer crédito, desde logo porque desmentido pelo ofendido.
§ 2.2. A co-arguida EE produziu declarações mais pormenorizadas, mas sempre na tentativa de alijar responsabilidades próprias.
Assim, relatou que:
Conheceu os ofendidos AA e BB e o menor CC por volta de 1993, que trabalhavam, á data, para o seu marido XX, como pastores, e que os arguidos AA e DD «foram lá buscá-los» (desmentindo, pois, o co-arguido), só os voltando a encontrar em 2004, ano em que a declarante se juntou com o arguido AA que «quis que os FF ficassem com ele» (mais uma vez o arguido foi desmentido).
A arguida referiu, porém, que após algum tempo os ofendidos voltaram para a arguida DD, para a qual trabalharam, em Espanha e que a ofendida BB se queixava, ao telefone, ao arguido AA, que a arguida DD «lhes batia», e que só em Agosto de 2010 é que a ofendida BB regressou para junto deles, mas nesta parte, não mereceu crédito, face á restante prova produzida, mormente por banda dos ofendidos, como se verá.
No tocante á forma como eram tratados os ofendidos FF, que, disse, ocupavam o armazém contíguo, referiu que o AA, por estar «aleijado» num dos braços, dedicava-se á pastorícia enquanto a BB trabalhava na agricultura e quem «justava» e quem «recebia» o dinheiro era o AA «com certeza» (ou seja, evidentemente) e que este arguido nada lhes pagava/entregava e «batia no casal», ás vezes («conforme») usando as mocas/bengalas que vieram a serem apreendidas (e que pertenciam ao AA) precisamente porque nenhum dinheiro lhes dava («se lhes pagasse, não precisaria [o arguido] de ser violento»), pelo que o casal FF tinha muito medo do arguido AA e por isso nem tentavam fugir («Fugir? Podiam, mas tinham medo»), estando absolutamente subjugados (veja-se a expressão da arguida «viviam como pessoas, mas…»).
Adjectivou, o que é deveras significativo, o ofendido FF de «coitado», e que «não seria muito esperto, como se viu pela forma como depôs».
Confirmou que FF tinha problemas respiratórios, necessitando de uma botija de oxigénio e que o arguido AA «proibiu de a usar, por gastar muita luz».
No que toca ao GG, confirmou que, em Junho de 2013, e quando «regressavam» de um julgamento no ..., o arguido AA «meteu conversa» com o ofendido, que se encontrava na dita rotunda, explicando o concreto circunstancialismo (o AA pediu-lhe que lhe ensinasse onde estava uma determinada oficina, ao que o ofendido anuiu, e depois, perguntou-lhe se queria ir com eles, ao que também anuiu), e levou-o com eles para ..., e que era um «coitado» (no sentido depreciativo).
Confirmou ter acompanhado o ofendido GG á Banco 1... para este levantar a sua pensão, mas só, diz para lhe «ensinar onde era» (no que não mereceu crédito, porque contrariada pela restante prova) e ter servido, juntamente com o arguido AA, de testemunha para a sua identificação.
Como se vê, a arguida, no que toca á actuação que lhe é imputada, nega-a; no fundo, como de resto afirmou em audiência, «a acusação é verdadeira, menos na parte que lhe toca», descrevendo-se como uma vítima.
Sucede que tal negação – que é em bloco, pois, repita-se, no fundo, nada admite, no que á sua responsabilidade respeita – não resiste nem ás regras da experiencia nem aos relatos dos ofendidos, como veremos.
§ 3. A prova por declarações dos ofendidos.
Devem estabelecer-se algumas considerações prévias.
A primeira tem que ver com as limitações cognitivas, em maior grau nos casos de FF e de GG (porque excludentes da capacidade de autodeterminação) e em menor grau no caso de BB (mas em todo o caso com limitações importantes), tais quais resultam demonstradas pela prova pericial supra referida, e que, naturalmente, se repercutem nos seus depoimentos (nem sempre inteiramente escorreitos e que devem ser analisados á luz dessas limitações).
Já o ofendido CC, que não padece de qualquer dessas limitações, produziu um depoimento mais escorreito e muito impressivo – embora abrangendo um período temporal bem mais curto, uma vez que «fugiu» (expressão do ofendido) em 1999.
A segunda é que os ofendidos AA e BB haviam já produzido declarações para memória futura, as quais, todavia, não puderam ser consideradas por o respectivo suporte áudio não ser audível, pelo que foram inquiridos em audiência, com os consequentes efeitos quanto á menor frescura da memória dos mesmos.
Terceiro, por força do óbito do malogrado GG, ainda antes do julgamento, as suas declarações foram lidas em audiência, nos termos da lei.
§ 3.1. CC produziu um relato muito esclarecedor e convincente, quanto ás condições de vida, “lato sensu”, a que os arguidos sujeitavam os ofendidos, dando uma imagem global dos factos, e que corresponde a grande parte da factualidade provada, até 1999.
Assim, relatou que ele, a mãe, BB e padrastro FF e os irmãos SS e PP vierem do XX para o AA.
Começou a pastorear as ovelhas (mais de 100 cabeças) «ainda garoto», ainda durante a escola primária (pois «á escola ia poucas vezes; fez 4ª classe e mal»), a mando e por conta do arguido AA, que era «quem mandava», sem nunca ter recebido qualquer remuneração.
A mãe e o padrasto (BB e FF) trabalhavam (na agricultura sobretudo, e por vezes, na pastorícia) também por conta e a mando do arguido AA, que era quem contactava com os patrões, inclusive espanhóis (a mãe e padrasto «não contactavam com os patrões espanhóis»), quem os transportavam, quem «recebia os pagamentos» e quem «ficava a tomar conta», enquanto a arguida «DD ficava em casa a fazer o comer».
Quanto ao horário de trabalho, explicou que, enquanto em Espanha, era o normal (porque quem fixava ao horários era os espanhóis), já em Portugal trabalhava-se de «sol a sol».
Esclareceu que nem ele nem a mãe e padrasto recebiam qualquer quantia a título de remuneração (os pagamentos eram recebidos pelo AA, que retinha o dinheiro) e que «não podiam dizer nada se não levavam no corpo» e por isso que já «nem tentavam»; pormenorizou ter sido agredido várias vezes pelo arguido AA e que, por duas dessas vezes «quase desmaiava», e as ameaças reiteradas do arguido (que «lhes cortava a cabeça»).
Caracterizou o arguido AA como «muito mau», em contraste com a arguida DD que via como «boa», devendo, neste particular, realçar-se que, não obstante essa «bondade», advinda dum tratamento não agressivo (a «DD ás vezes tinha pena de tanta porrada que levavam»), o ofendido referir que esta última lhes retinha os documentos de identificação.
Caracterizou, de forma impressiva, esses tempos passados como «terríveis».
§ 3.2. BB produziu um relato bastante pormenorizado e assertivo, tendo em conta o supra expendido em § 3, e, também por isso mesmo, convincente, e do qual resultou grande parte da factualidade provada.
Assim, relatou que estavam, ela e marido, no ... – ... e que por volta do ano de 1994 (sem grande precisão, o que é absolutamente compreensível, face ao tempo decorrido), os arguidos, AA e DD, foram buscá-los (tendo sido muito vaga, porém, quanto ás condições oferecidas, embora se perceba ter havido aproveitamento – pois referiu que «nunca pensei que fosse isso») para trabalharem para eles, em Espanha (..., ...…), onde iam fazer as campanhas na agricultura (apanhas do tomate, cebola, batata, vindimas, mas, também, na poda, no desmame…) e na zona de ... (apanha da azeitona, das amêndoas, limpar pedras dos terrenos, quer do arguido AA, quer de terceiros mas sob as ordens daquele e muitas vezes como forma de pagamento de serviços do referido AA).
As campanhas em Espanha, via de regra, começavam em Outubro e acabavam em Maio, trabalhando na agricultura, todos dias, menos Domingos, Natal e Páscoa, 8 h/dia.
Os filhos menores, excepto o CC, que também trabalhava, ficavam a maior parte do tempo com a arguida DD (os arguidos AA e DD iam e vinham mas a DD menos vezes, pois passava períodos maiores em ...), que os tratava bem.
Nunca lhes foram entregues/pagas, pelos arguidos, as remunerações correspondentes ao trabalho prestado, explicando que o arguido AA, que «mandava neles», recebia directamente dos patrões, nada lhes entregando.
Mesmo quando alguns patrões espanhóis – foi o caso, designadamente, da empresa de recolha do lixo para a qual trabalhou – começaram a pagar por transferência bancária, o que levou a ofendida a abrir uma conta bancária (com a arguida EE a acompanhá-la), o dinheiro era apropriado pelos arguidos AA e EE que «levantavam tudo», pormenorizando que tinham o cartão multibanco e que antes eram levantamentos ao balcão e era acompanhada pela arguida EE.
Mas, a apropriação não se ficava por aqui, rematou, pois o marido, FF, que tinha um «braço aleijado» (em consequência de queda sofrida), e que, por via disso, passou a receber uma «pensão» por via dos Correios ..., era desapossado da mesma pelos arguidos AA e EE, que, para o efeito, acompanhavam-no, sobretudo o primeiro, aos Correios ....
Explicou que, tal era o medo (assim também o referiu o CC) do arguido AA (e, também, mas em menor grau á arguida EE) que nem «perguntavam» pelo dinheiro, acrescentando que tal medo advinha das ameaças e agressões de que eram vítimas e que concretizou: «muitas vezes o AA bateu no marido» com «lambadas e murros/cachaçadas» e até com um «pau na cabeça» (vejam-se as declarações da arguida EE, a propósito) e que também a arguida EE lhe bateu a ela, com «umas lambadas»; quanto ás ameaças, por banda do arguido AA, também as concretizou («de morte», que «se metia no carro para ir atrás deles», que iria «sangrá-los»).
Diga-se, de resto, que o medo era de tal forma presente que mesmo quando o filho, CC, fugiu, eles não conseguiram acompanhá-lo, por «medo», o qual está bem espelhado e, ainda, no facto de mesmo após a sua fuga, terem mudado de residência, para um local onde «havia mais gente».
Também lhes eram retidos, pelos arguidos, os documentos de identificação, para lhes dificultar, ainda mais, uma eventual fuga.
Referiu que a arguida DD os levou, a ela e ao marido, ao médico, e que a arguida EE também, mas menos vezes e «tinha que ser uma coisa grave e de resto, mesmo com dores costas, com hérnias, ela era obrigada a trabalhar e ele mesmo com braço aleijado tinha que trabalhar».
Confirmou que não obstante os problemas respiratórios do marido, que exigiam o uso de botija de oxigénio, o arguido AA, muitas vezes, proibiu o seu uso, porque «gastava muita luz» (o que a co-arguida EE confirmou, aliás, como visto).
Esclareceu que a arguida DD tratava bem dos filhos, pelo que não se importou que ficassem com ela, mesmo após o divórcio com o arguido AA, pois, diz, «ficaram sempre com a DD» (donde se depreende que não vivia, a depoente, com a DD, pois só assim se percebe «não se importar que ficassem com ela»; isso mesmo referiu FF, como de seguida se verá: «foram viver com o AA e a EE»).
Quanto ás condições de habitação, referiu-se sobretudo á «segunda casa», muito degradada, em tijolos aparentes e com janelas partidas, onde estiveram a maior parte do tempo e, depois, ao armazém.
§ 3.3. O ofendido FF produziu um depoimento que incidiu, apenas, sobre alguns aspectos/episódios (não deu, propriamente, uma imagem global da sua vivência) e por vezes confuso, fruto do que se disse supra (foram particularmente evidentes as limitações cognitivas de que padecia o malogrado FF – que veio, lamentavelmente, a falecer na pendência do julgamento), mas que nem por isso foi menos verdadeiro, no essencial, e do qual resultou parte da factualidade provada, mormente, a atinente á forma como eram coagidos a trabalhar (maus-tratos), com crueldade (mesmo doentes) e explorados (não eram pagos).
Assim:
Relatou que trabalhava para XX, no ... (concelho ... ...), quando o arguido AA foi chamá-lo e á mulher e filhos para irem trabalhar para a agricultura em Espanha e como pastor; no que toca às condições propostas, o ofendido foi muito vago e algo incongruente, sendo aqui mais evidentes as suas limitações, supra referidas.
Quanto aos alojamentos, referiu-se ao sótão, á ... (que tinha as janelas partidas, sem casa de banho), ao armazém, mas sem grande capacidade descritiva desses locais.
Foi absolutamente peremptório quanto ao facto de nunca terem recebido dos arguidos qualquer remuneração do seu trabalho, pois o arguido AA «nunca lhe deu um tostão» e quanto ao facto de, depois da separação dos arguidos DD e AA, «a BB e ele ficaram com o AA», lembrando-se terem ido para o «armazém junto á casa» e, ainda, quanto ao facto de a arguida DD tratar bem dos filhos menores de casal.
O seu depoimento foi mais desenvolvido em relação a duas vertentes: as agressões de que foi vítima; o seu estado de saúde.
No tocante á primeira, referiu que o arguido AA lhe batia («estalos» e até, pelo menos por duas vezes, «umas arrochadas» com um pau/vara), para o obrigar a trabalhar («adormeceu, em vez de ir trabalhar»; realce-se que a ofendida BB também referiu que o marido chegada a adormecer porque passava mal a noite, precisamente porque o arguido AA não permitia que usasse a botija de oxigénio), e os ameaçava para que não fugissem (a ele e mulher «se fugirem, a um mato-o e outro sangro-o»), exclamando «como é que poderiam ir embora, se ele [o arguido AA] os mataria quando os encontrasse!». No entanto, na parte em que relatou que «á mulher e filho não batia», não mereceu crédito, porque desmentido pelos ofendidos CC e BB, como se viu e, até, pela arguida EE – não podemos olvidar o que se disse supra quanto ás limitações cognitivas do ofendido.
Confirmou que a arguida DD nunca lhes bateu («algumas vezes até se interpunha»; apenas algumas vezes, porém).
No que concerne ao seu estado de saúde, referiu ter ganho problemas respiratórios (pneumonias…) em ..., quando estava a trabalhar para os arguidos, e que, «mesmo assim, porque a luz era cara, impediu-o de usar as botijas de oxigénio», além de não o levar ao médico (ao hospital quem o levou foi um trabalhador) – embora, nesta parte, há que conjugar o depoimento com o da ofendida BB e com o da arguida EE, a propósito, e ainda, com as comprovadas (documentadas) idas ao hospital.
§ 3.4. O ofendido GG produziu declarações perante Magistrado do MP em inquérito (fls. 1205-1207), lidas em audiência, nos termos da lei como da acta consta.
Considerando que as declarações estão transcritas, limitar-nos-emos a realçar os aspectos mais importantes, atinentes:
(i) Á abordagem e ida para ...: as suas declarações foram, neste ponto, pouco pormenorizadas, mas não referem qualquer ardil, assim confirmando, neste ponto, as dos arguidos AA e EE.
Não há dúvidas que o ofendido foi apanhado desprevenido (não se conheciam, ele e arguidos, como resulta das próprias declarações destes).
Ora, sendo assim, como é, aceitando, sem mais, acompanhar desconhecidos para tão-longe, quando «não contava que ia embora», tal decisão do ofendido só se pode perceber á luz das graves limitações cognitivas de que o ofendido era portador e que lhe retiravam, precisamente, a capacidade de defesa e de autodeterminação, tornando-o numa pessoa particularmente vulnerável ao abuso por terceiros, e, portanto, com aproveitamento de tais limitações, notórias (afinal, não foi a própria arguida EE quem o descreveu, pejorativamente, como um «coitado») agravadas pelo alcoolismo (e o ofendido «já estava bem bebido»).
(ii) Ao trabalho na pastorícia, predominantemente: «pastorear e alimentar os animais, tirar pedras, silvas e ervas dos terrenos», entre as 7 h 00 e até ficar escuro»; porém, em «alguns dias, chegou a trabalhar de noite, procedendo á mudança dos sistemas de rega e á vigilância dos animais».
(iii) Ás condições de alojamento: ficou alojado no «armazém, pegado á casa [dos arguidos EE e AA] e era em blocos, sem qualquer reboco», com «pavimento em cimento», sendo que o compartimento onde dormia tinha uma janela alta», «sem vidros apenas uma chapa sem aberturas» e com «uma casa de banho ao lado do armazém, quem vai para a ...».
(iv) Ao ambiente de medo e fuga: para além de referir que «não pensou em fugir antes, porque não tinha documentos, nem dinheiro», o ofendido não deixou de relatar que o arguido AA andava sempre com umas «bengalas com mocas na ponta» e «que tinha medo da reacção do AA», pois, além do mais, «gritava bastante consigo, levantando-lhe a bengala ao ar», sendo particularmente de relevar, porque extremamente impressiva no que toca ao receio do ofendido, a reacção deste, quando «fugiu» (e o termo é em si mesmo revelador) e «reparou que o AA vinha em sua direcção»: «de imediato, o depoente entrou em pânico e fugiu em grande correria».
(v) Ao não pagamento de qualquer remuneração, que confirmou, e á apropriação da sua pensão de reforma pelos arguidos: o «AA perguntou-lhe, logo uns dias depois de chegar, se o depoente recebia alguma reforma, tendo respondido afirmativamente, sendo esse o motivo porque o mandou tirar os documentos [cartão de cidadão] e, depois, a segunda via da caderneta da sua conta da Banco 1...»; e, «quando ia à Banco 1... levantar dinheiro da sua conta, a EE entrava consigo, sendo que o depoente se limitava a por o dedo num documento», apropriando-se a arguida EE do dinheiro «dá-mo cá» (contrariando, pois, as declarações da arguida EE) e esperando o AA na carrinha.
Ao não recebimento das remunerações pelo seu trabalho, foram pouco desenvolvidas, mas concludentes: «não pensou em fugir antes, porque não tinha documentos, nem dinheiro».
§ 4. A prova por depoimentos das testemunhas inquiridas, valorando-se e, designadamente, os depoimentos das seguintes testemunhas, nos seguintes termos:
§ 4.1. ZZ, inspector da PJ, que coordenou a investigação, com grande experiência neste tipo de criminalidade.
Foi valorado na parte em que tinha razão de ciência directa, ou seja, em que o seu relato provinha da sua directa percepção e da sua experiência.
Assim e que, para além de confirmar o teor dos autos, mormente, os de apreensões ocorridas nos autos em 29-8-2012 e 19-9-2012 (casa e veículos, salientando as referências, nos cadernos e agendas de manuscritas relativas a prestação laboral dos trabalhadores/valores/horas trabalhadas e contactos telefónicos, típico deste tipo criminalidade, referiu, e as bengalas-mocas) e nos autos 2731/04.... (nestes, em 2005, ainda encontraram documentos de identificação e outros, do casal FF).
Salientou que a selecção de pessoas que apresentavam manifestas fragilidades/vulnerabilidades, portadores de uma capacidade de autodeterminação diminuída, designadamente com deficiência do foro psíquico ou físico, sem qualquer retaguarda ou apoio familiar, com baixos índices de escolaridade e pouca qualificação profissional, com problemas relacionados com o consumo excessivo de álcool, é um padrão nesse tipo de criminalidade e tem total correspondência com o caso dos autos, como comprovado desde logo pelas perícias (capacidade de autodeterminação diminuída e até excluída, nos termos vistos e sendo os ofendidos FF e GG analfabetos).
Descreveu o edifício conhecido por “...” sito na parte posterior do terreno onde se localizava a habitação dos arguidos e o armazém contíguo à residência (a ... e o armazém não tinham quaisquer condições de habitabilidade ou de salubridade, não dispondo de água quente para se lavarem, nem, a ..., de casa de banho, sendo que o armazém só mais tarde veio a ser equipado de casa de banho exterior; além disso, a ... não tinha luz elétrica).
Salientou o «imenso temor» e até «terror», constatado pelo depoente logo que tomou contacto com os ofendidos e era por demais evidente, que os ofendidos AA e BB sentiam essencialmente pelo arguido AA (o que, escusado será dizê-lo, confirma os relatos dos ofendidos), pelo que durante muitos anos não fugiram nem o tentaram sequer – o que é típico e condiz com o perfil dos ofendidos, sendo «normal nem se considerarem vitimas».
Como salientou que os ofendidos davam como moradas e telefones os dos arguidos, o que é, evidentemente, sintomático (até os vales do correio da pensão do FF; deu como exemplos fls. 1093, 1152., 1138, 1160).
Salientou, ainda, a «gratidão dos filhos do casal FF em relação á [arguida] DD.
§ 4.2. AAA, funcionária da conservatória do registo civil ..., que, com razão de ciência, relatou que um «senhor muito doente, tirou o cartão de cidadão e teve como testemunhas, a atestarem a identidade, os arguidos EE e AA» e que «aquele deu a morada destes» (em 28.6.2013; era, evidentemente, o GG – cf. fls. 1093); acrescentou, o que é significativo, que os arguidos, sobretudo a arguida EE, «muitas vezes atestava a identidade de cidadãos e dava a residência dela».
§ 4.3. BBB, funcionário da Banco 1..., na parte em que se lembrava ter atendido uma pessoa (o GG) em 2013, para levantar dinheiro, mas sem documento de identificação, pelo que não o conseguiu, e voltou dias depois, já com o cartão de cidadão, e fez o levantamento e que a arguida EE o acompanhava (corroborando o depoimento do ofendido e contrariando as declarações da arguida EE que referiu que só acompanhou o ofendido GG á Banco 1... para lhe «ensinar onde era» - portanto, por essa lógica, só seria uma vez).
§ 4.4. CCC, amigo do ofendido GG, e em casa de quem este último morava – cf. as suas declarações lidas em audiência – e que participou á GNR ... o seu desaparecimento – cf. auto de desaparecimento infra – e relatou que aquele desapareceu (portanto, de forma inopinada), cerca de 4 meses, sem os documentos pessoais e verificou três levantamentos, após o desaparecimento, da conta da Banco 1... titulada pelo GG e onde este recebia a sua pensão (cerca de 530 €/mês).
Confirmou que o GG «bebia bem» e que tinha o braço direito «aleijado».
Quando regressou, o GG contou-lhe que conseguiu fugir com o dinheiro que tinha conseguido levantar e que o tinham (pessoas de etnia cigana, pensa) obrigado a trabalhar (guardar rebanho) e a viver num barraco», após o «terem metido num carro, perguntando-lhe por uma sucata», e que «mal saía da agência da Banco 1... eles o obrigavam a entregar-lhes o dinheiro que levantara» – o que, evidentemente, só credibiliza a versão do GG.
Esta parte, pese embora resulte do que lhe foi contado pelo ofendido, foi valorada, pois não estamos perante qualquer depoimento indirecto (em princípio, de valoração proibida pelo nº 1 do art. 129º nº 1 CPP); com efeito, aquilo que uma testemunha ouve de um arguido, assistente, demandante ou outra testemunha, de factos que tenha efectuado, presenciado ou ouvido, não poderá deixar de se considerar depoimento directo (cf., Ac. TRP de 4.11.2009, P. 91/04.5GBPRD.P1: “O critério operativo da distinção entre depoimento directo e indirecto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade o seu depoimento é directo; se não, é indirecto” – ora, essa realidade é justamente o que ouviu, cheirou, tacteou ou sentiu directamente de um arguido, assistente, partes civis ou testemunhas. Cf., ainda, Acs. TRP de 9.2.2011, P. 195/07.2GACNF.P1; de 9.11.2011, P. 11263/08.3TDPRT.P1; TRC de 20.12.2011, P. 160/10.2JACBR.C1; todos na dgsi).
De todo o modo, aqui, sempre seria de valorar, atenta a morte de GG ocorrida antes do julgamento (art. 129º nº 1 CPP “salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte”).
§ 4.5. DDD, inspectora da PJ, que exerce funções junto do GRA, e procedeu á liquidação do activo incongruente, no período temporal que vai desde a data da cessação da actuação criminosa e até 5 anos antes da constituição como arguidos de AA e EE, e explicitou o método seguido para apuramento do património incongruente (correspondente grosso modo á diferença entre o valor declarado ao Fisco pelos arguidos e o património dos mesmos – e é correcto porque, por um lado, parte de um valor objectivo, o dos rendimentos lato sensu declarados ao Fisco e, por outro, permite aos arguidos ilidirem a presunção de incongruência, através da prova de outros rendimentos lícitos, apesar de não declarados, o que, diga-se desde já, no caso concreto, assumirá especial relevo, ou de um valor de património inferior).
Esta problemática será retomada mais adiante, em sede de análise da liquidação operada.
Importa notar que, além disso, a testemunha explicitou a forma de apuramento dos rendimentos a que teriam direito os ofendidos AA e BB, no período temporal dos 5 anos anteriores á constituição nessa qualidade, dos arguidos, referido em (i) e de que se apoderaram os arguidos AA e EE – apuramento sempre por defeito, uma vez que partiu do salário mínimo mensal/remuneração mínima garantida para o trabalho rural/agrícola (apenas se diferenciando o trabalho com gado) e cujos valores constam dos quadros de fl. 221 e 222 do apenso B), em Portugal, e não em Espanha (onde o salário mínimo era mais elevado, como é público e notório), tendo-se considerado apenas o salário mínimo e não o efectivamente pago (e bem mais elevado: cerca de 35 €/dia cá e cerca de 50 €/dia em Espanha) e nem se entrou em conta com o ofendido GG,
O mesmo critério foi, de resto, empregue no PIC pelos demandantes AA e BB – mas, aqui, abrangendo o período que vai desde 1993 até Julho de 2012 (desconsiderou-se o mês de Agosto), quanto ao arguido AA, de 1993 até meados de 2003, quanto á arguida DD, e desde final de 2004 até Julho de 2012 para a arguida EE.
Por isso, não obstante ser manifesto que pecam por defeito, tal método foi também seguido pelo Tribunal.
§ 4.6. EEE, que, de forma convincente, relatou que conhece o casal FF, pois são da sua terra, e que «ao fim de muitos anos», regressaram muito «assustados» (recorde-se o depoimento do sr. inspector da PJ) tanto que a testemunha, que é presidente da junta de freguesia, até lhes arranjou outra casa porque eles tinham medo de «ser perseguidos» e queixaram-se-lhe que «estiveram em cativeiro, lhes batiam, não lhes pagavam…» - cf. o referido supra quanto a não ser depoimento indirecto, sendo pois favorável.
§ 4.7. FFF, que num depoimento hesitante e receoso, não deixou de referir que o casal FF lhe relatou que «tinham muito medo que os fossem buscar» - cf. o referido supra quanto a não ser depoimento indirecto.
§ 4.8. GGG, funcionário do posto dos Correios ... de ..., que, com razão de ciência e por isso de forma convincente, relatou que FF ia aos Correios ... levantar as suas pensões (e, efectivamente, eram pagas em vales de correio – aliás, foi apreendido um), «sempre» acompanhado pelos arguidos EE ou AA (confirma o depoimento da BB).
§ 4.9. WW, que, não obstante um depoimento em que transpareceu a preocupação, mais ao início, em não prejudicar o arguido AA, acabou por produzir um relato bem revelador do domínio dos arguidos sobre o referido casal.
Assim, admitiu que o casal FF trabalhou para ele (pastoreio do seu rabanho, apanha da azeitona…), inclusive em ..., alguns dias, por várias vezes, e que «contratou-o aos arguidos», sendo que «quem estabelecia os preços era o [arguido] AA e ele é quem tinha de receber o dinheiro» concretizando que «35 €/dia para cada um (AA e BB) era quanto pagava ao AA», sendo que a companheira do AA, a arguida EE, esteve presente algumas vezes nos pagamentos; só que, como disse a testemunha, o normal era pagar a quem prestava o trabalho ou, na sua expressão, «a jeira paga-se a quem trabalha» e, de resto, «havia mais pessoas a trabalhar, mas a esses pagava directamente», o que é, evidentemente, significativo.
Realçou, ainda, que não obstante o «trato» não incluir o almoço, «ás vezes o casal FF nem farnel trazia, pelo que era até ele quem lhes dava de comer», ao contrário dos restantes trabalhadores que «traziam sempre comida», o que é bem revelador da forma como os ofendidos eram encarados pelos arguidos.
Referiu, por fim, mais dois aspectos.
Por um lado, que soubesse, os arguidos AA e EE não trabalhavam – o que, em todo o caso, mostra que, habitualmente, não trabalhavam.
Por outro (e ao contrário do sustentado pelo arguido AA) que este lhe disse que o casal «trabalhava para ele».
§ 4.10. HH, que conhece os arguidos e ofendidos FF (e filhos), quer como médica (sendo a arguida DD mais preocupada com a saúde do casal – para além de cuidar dos filhos deste) quer como presidente da Câmara ..., e que abonou a inserção social dos arguidos (sobretudo DD e EE).
Haverá que destacar, os seguintes pontos:
Primeiro, não obstante a maior preocupação da arguida DD com o casal FF, nem por isso estes deixaram de se apresentar «muito sujos», sobretudo ao início, «depressivos» e a RR «mesmo na parte final, ainda apática, pouco faladora e fria» - o que é significativo quanto ao seu sofrimento psicológico.
Segundo, referiu que o arguido AA (e naturalmente, a mulher e depois a companheira) «tinha gado e terras e ia para Espanha nas contratas [nas campanhas] e levava pessoas a trabalhar», o que, no contexto dos autos é significativo.
Terceiro, descreveu o arguido como uma pessoa violenta, impulsiva e dominadora – o que é congruente com a descrição feita pelos ofendidos (veja-se, p. ex., o relato do CC: «era mau») e o medo que lhes inspirava – mas, simultaneamente, com «bom coração», e nesta precisa parte não mereceu crédito, por contraditória.
Quarto, que tal violência era também dirigida contra as arguidas DD e EE.
Sucede que tal pretensa violência alegadamente exercida sobre as arguidas não convenceu, já porque desmentida pelo depoimento do ofendido CC («o AA era normal com DD»), já porque os restantes ofendidos não se referiram a nenhum episódio de violência do arguido sobre as arguidas, já porque os relatórios sociais nenhum eco nos dão desses pretensos maus-tratos.
Não deixa de ser significativa, porém, que a depoente encontre justificação suficiente quanto ao facto das arguidas não terem apresentado queixa contra o arguido AA (para além da «cultura cigana») no «medo» que este lhes inspirava – o que dizer, então, dos ofendidos!
§ 4.11. XX, ex-marido da arguida EE, produziu um depoimento algo titubeante, e por isso, e além do mais, só em parte convincente.
Assim:
Relatou que a arguida EE ainda esteve cerca de um ano sozinha, depois do divórcio, antes de se juntar ao arguido AA.
O casal FF ainda esteve com eles (XX e EE), alguns meses, a trabalhar na pastorícia, até que o arguido AA «foi lá buscá-los e botou [começou] a ajorná-los [a pô-los à jeira]», deixando escapar, espontaneamente, que «não pagava aos empregados» (indo ao encontro da versão dos ofendidos); depois disse não saber se seria assim, mas só depois – no que, nesta “marcha atrás” do seu depoimento, não mereceu crédito – até porque também referiu que «quem mandava era o AA e era ele quem recebia dinheiro».
Foi mais assertivo quando relatou que o CC, ainda menor (teria uns 9 anos), trabalhava para AA na pastorícia, além de alguns trabalhos na agricultura e quando caracterizou o casal FF como sendo «pessoas humildes».
Relatou que partilhou com a arguida EE o património comum do casal, sendo aqui particularmente relevantes (e só esses, porque, na economia da presente decisão, no que á perda ampliada respeita, tal é suficiente, como veremos) estes pontos: a EE passou a auferir rendas de prédios que lhe couberam nas partilhas; a Quinta ... coube á EE na partilha; vendeu-a por 45.000 €.
Não mereceu crédito quando referiu que o casal FF «ficou com a DD», pois, como se viu, foi desmentido desde logo pelo ofendido FF.
§ 4.12. JJ, antigo presidente da Câmara Municipal ..., que abonou a inserção social dos arguidos EE e AA.
§ 4.13. HHH, funcionária da Câmara Municipal ..., que foi casada com um filho da arguida EE, e confirmou de forma convincente, que esta, até á sua separação do XX, tinha um muito bom nível de vida, que baixou depois ao juntar-se (não foi logo: «depois da separação, a arguida EE viveu um pouco sozinha») ao AA (depreendendo-se que este era menos endinheirado) e que confirmou o depoimento de XX no tocante á feitura das partilhas e bens que couberam á EE.
§ 4.14. III, empresário agrícola, produziu um depoimento inócuo/irrelevante.
§ 4.15. KK, que relatou, com relevo, ter realizado, em 2007 ou 2008, «biscates», em Espanha, aos fins de semana, para patrões espanhóis, que o arguido AA (não estava lá, nessa altura, a EE – só o arguido, as filhas e «mais ou três pessoas») lhe arranjava, e que «quem lhe pagava eram os patrões» e não conhecer o casal FF, no que foi assertivo.
Acrescentou que, em Portugal, o arguido AA negociava gado e tinha a agricultura.
Caracterizou o AA como «bom marido», mas sem razão de ciência.
§ 4.16. LL, produziu um depoimento que, embora contivesse partes em que convenceu, aparentou parcialidade, em vários pontos fulcrais do seu depoimento, pelo que, naturalmente, não mereceu crédito quanto a eles.
Assim, relatou ter, em 2008, feito a campanha das vindimas em Espanha, durante cerca 13 dias, «chamado» pelo arguido AA, ter, juntamente com outros (13 ou 14 trabalhadores), ficado em casa dele e da EE, em Espanha (... – ...), trabalhando (8 h/dia, todos os dias, visto serem vindimas) e recebendo directamente do patrão espanhol e depois contribuindo («faziam as contas»), para as despesas de alojamento e compras dos arguidos.
Acrescentou que era o arguido AA quem os transportava para e do local de trabalho, e que o almoço lhes era trazido pela EE.
E, ainda, que o arguido AA contentava-se em transportá-los, não trabalhava.
Ora, causa evidente perplexidade, principalmente quando, pelos vistos, o arguido AA nem trabalhava, que apenas fossem cobradas aos trabalhadores, as despesas causadas, pois, se assim fosse, os arguidos não obteriam qualquer lucro, quando até angariavam e transportavam de Portugal para Espanha os trabalhadores (e nem as despesas, a «diária», eram significativas, pois ascendiam a menos de 1/4 – o depoente diz que auferiu 60 €/dia, em 13 dias, o que dá 780 €, e que trouxe, limpos, 600 €), o que está em evidente desconformidade com as regras da experiência.
Acresce que, questionado, acabou por referir que «uma vez, o patrão entregou dinheiro ao AA e que este depois entregou o dinheiro a cada um dos trabalhadores», sem lograr explicar essa mudança no seu depoimento nem, de resto, na forma de pagamento.
Descreveu o arguido AA como «sendo boa pessoas» - ao arrepio, não só dos depoimentos dos ofendidos, da própria arguida EE como de várias testemunhas, conforme já referido, denotando manifesta parcialidade.
Que se manifestou, de resto, de forma bem impressiva quando caracterizou o anexo (o armazém) á casa dos arguidos em ..., como «tendo camas e estava muito limpo», e que sabe disso porque até lá entrou, há uns 8/9 anos, o que nos remete para 2010/2011; ora, para além de tal descrição ter sido contrariada, além do mais, pelo ofendido GG (o «armazém, pegado á casa [dos arguidos EE e AA] e era em blocos, sem qualquer reboco», com «pavimento em cimento», sendo que o compartimento onde dormia tinha uma janela alta», «sem vidros apenas uma chapa sem aberturas» e com «uma casa de banho ao lado do armazém, quem vai para a ...») e pela testemunha ZZ (da PJ; «sem quaisquer condições de habitabilidade/salubridade»), e pelas fotos juntas aos autos, como se verá, não deixa de ser surpreendente que o depoente ache normal, pelos vistos, que haja camas – utilizadas, bem entendido – num armazém.
O depoente referiu, ainda, que, na referida campanha, se comentou que ouviu falar, entre os trabalhadores, do «casal FF» que estaria com a DD. Ora, para além de depoimento ser a mera reprodução de “rumores” (porque reportados a um grupo de pessoas, não determinadas concretamente) e, portanto, não valorável – cf. o art. 130º nº 1 CPP), não deixa de surpreender: a que propósito é que se falaria do casal FF? E, a esta pergunta, o depoente não soube dar resposta minimamente satisfatória.
Acresce que, após ter referido não ter visto o casal FF (de que, pelos vistos, tanto se falava) nessas vindimas, perguntado sobre se aí estaria a BB, sozinha (já quem em 2008, o FF já não ia para Espanha), respondeu que «não conhecia todas mulheres que trabalhavam nas [referidas] vindimas» (a significar, portanto, não poder garantir que lá não estivesse), mas, depois, já, referiu conhecer a BB com a qual, quando acompanhada pelo FF, já havia falado, umas vezes, á porta da casa da arguida DD, e que descreveu o casal como «pessoas normais, com quem se falava muito bem» (!) – quando foi a própria arguida EE quem referiu que o FF era um «coitado», o que era tão ostensivo que «bastava ver a forma como havia deposto em audiência», o que o Tribunal, de resto, constatou e a que supra se aludiu.
De todo o modo, da circunstância de não ter visto a ofendida BB, em Espanha, nas vindimas de 2008, nada se pode retirar, pois tanto poderia estar noutro local como poderia estar ocasionalmente com a arguida DD.
§ 4.17. MM, arrendatário da arguida EE, que lhe pagava renda, e referiu que aquela «dava-se bem com o arguido AA».
§ 4.18. QQ, de 24 anos, filho biológico do casal FF, mas para quem os seus pais são, de facto, os arguidos DD e AA, e que, ainda hoje, vive com a arguida DD, mantendo com esta forte relação afectiva, pois foi quem o criou, e foi taxativo ao esclarecer que, após o divórcio do casal AA e DD, quem ficou com esta foram ele e os seus irmãos, e não os seus pais biológicos, o casal FF, pois estes foram viver com o AA, lembrando-se que durante algum tempo, pouco, viveram numa casa, ali próxima e que depois «não se lembra mais deles» (o que mostra bem que o casal FF não vivia com a DD).
Mereceu crédito, pela forma sentida (o que foi particularmente evidente quando referiu que «nunca se preocupou com pais biológicos porque também estes não se preocuparam com ele») como depôs.
§ 4.19. NN, que se referiu á arguida como «uma segunda mãe», que «ainda hoje o ajuda».
Talvez por isso, produziu um depoimento que aparentou falta de isenção, relatando ter ido para Espanha com os arguidos AA e DD e ter sempre recebido directamente dos patrões espanhóis e, inclusive, ter também visto o casal FF a receber, o que foi rotundamente contrariado pela restante prova, conforme já vimos.
§ 4.20. JJJ, relatou, de forma convincente, ter conhecido a arguida DD há anos, «muitos», quando foi, juntamente com a irmã, fazer uma campanha das vindimas para a DD e filha desta, e que, no final, a DD «pagou o que lhes devia».
Lembra-se que, nessa ocasião, chegou a ver, em casa da DD, o casal FF, pais biológicos de três «garotos» que aquela estava a criar, não sabendo a que título ali estava o casal, não se referindo, note-se bem, a qualquer ida desse casal ou de um deles, ás vindimas, pelo que nada de muito relevante se retira deste depoimento.
§ 4.21. KKK, que foi professora de uma das filhas da arguida DD, e depôs de forma convincente, a caracterizou como sendo «uma encarregada de educação presente e preocupada e educada».
§ 4.22. OO, secretário de justiça, que abonou as personalidades dos arguidos EE (integrada, educada, disponível que «em tempos teve bastantes posses») e AA («respeitado, cumpridor e considerado», que «negociava em gado e na agricultura»), e que foi não foi totalmente credível, mormente em relação ao arguido AA, por incompatível com a personalidade do arguido, como se viu.
§ 4.23. LLL, produziu um depoimento inócuo e, como tal, não foi valorado.
§ 4.24. MMM, que produziu um depoimento apenas em parte convincente.
Assim, relatou, de forma assertiva, conhecer a arguida EE há anos, ainda quando casada com o XX, e que «era bem-sucedida economicamente» e ter conhecido o casal FF em ..., na Quinta ..., onde o FF «pastoreava» o gado, encontrando-se a casa da Quinta em obras («andavam a compor), para os ofendidos lá morarem.
Já na parte em que relatou que a BB lhe teria referido que «a EE lhe dava muitas coisas», que «era muito boa para ela», não convenceu: não se percebe a que propósito lhe teria referido isso; não soube concretizar que «muitas coisas»; foi ostensivamente contrariada pela ofendida BB.
§ 4.25. II, nascida a ../../2003 e que esteve á guarda dos arguidos EE e AA, que conheceu o casal FF «quando foram em 2010 para ..., vindos de ...» (mas, daqui não se pode retirar que, até 2010, os seus «pais» não conhecessem o casal FF, por residirem em ... – versão esta veiculada pelos arguidos AA e EE – desde logo porque, em 2009, os arguidos moravam em Espanha: cf. apreensão da “denuncia de infracción penal” de 25/09/2009 feita pelo arguido AA nas instalações da Guardia Civil de ..., ..., Espanha e do contrato de fornecimento de energia pela “EMP01...”, de 10/07/2008, relativo ao contrato de fornecimento de energia à cliente EE na morada em ...; de resto, a morada exclusiva dos arguidos, em ..., quando em Portugal, surge infirmada pelo teor de fl. 48-49 (nas renovações das cartas de condução, o arguido AA, em 2008, dá como residência ...) e de fl. 54-55 (em 2009, a BB indica como contacto telefónico, ao requerer o cartão de cidadão, um nº de telemóvel titulado pela arguida EE) e que, depois de relatar, espontaneamente (o que é significativo: porquê tal referência) que o casal FF era «tratado como pessoas normais, e não como criados», acabou por admitir que o casal «raramente saia de casa» e quando saíam, iam sempre acompanhados pelos arguidos AA e EE «todos juntos» o que, neste contexto, é, evidentemente significativo, e mais significado assumiu o relato do «medo» dos ofendidos FF (que, de resto, lhe confidenciaram estarem «fartos»), sobretudo em relação ao arguido AA («medo» este recorrentemente afirmado, como se viu).
§ 5. A prova por documentos.
Como já se disse, a prova documental é abundante, integrando os autos principais, os apensos (mormente a carreada pelo GRA, para liquidação do activo) e os anexos I, II, III, IV, V (estes constituídos exclusivamente por documentos, espelhadas em cerca de 1.450 pág.), avultando, e designadamente (não sendo viável para a economia da presente decisão a análise específica de cada um e todos eles, sem prejuízo de terem sido todos vistos), os seguintes (sendo de realçar que não é necessário, para serem valorados, que se proceda á leitura dos documentos, naturalmente, que não contenham declarações/depoimentos, em audiência, como decorre do art. 355º nº 2 CPP; cf. acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 23/2/05, CJSTJ, 1, 210.), juntos:
§ 5.1. Aos presentes autos principais a fl.:
- 21-23 (fotos da Quinta ... e aspecto geral);
- 24-33 (cópias dos P. 48/93 e 108/09.... do então TJ de ..., a fl. 24-33; facto provado 27);
- 43-45 (em 17-11-2003, o arguido AA renova o seu BI, após o divórcio com a DD e indica como residência ...), 48-49 (nas renovações das cartas de condução, o arguido AA, em 2008, dá como residência ... e a arguida EE dá como residência, em 2002 e em 2011, ...);
- 51-53 (veículos OQ e QO registados em nome da arguida EE);
- 54-55 (em 2009, a BB pede o cartão de cidadão e indica uma morada, em ... é certo, mas menciona e um nº de telemóvel que é da arguida EE – um dos mencionados no facto provado 20);
- 159-171 (auto de apreensão de 29-8-2012, na residência dos arguidos AA e EE, composta de casa principal, armazém contíguo, casa posterior, nos veículos no logradouro – ..., ..., ... – e o que foi apreendido, salientando-se a carta dirigida a FF, sendo o remetendo a empresa “EMP06...” – referente ao tratamento com oxigenoterapia do ofendido FF – e o envelope, aberto, contendo um vale de correio emitido pelo Instituto de Segurança Social a favor da vítima FF, no valor de € 212,94, referente á sua pensão – estava na casa onde moravam os arguidos e não no armazém onde estavam os ofendidos, o que é significativo; é visível que os arguidos não o puderam levantar, porque os ofendidos fugiram antes: foi emitido a ../../2012, remetido pelo correio e o casal FF fugiu em 11-8-2012 – e as agendas com menção a horas de trabalho prestado, sobretudo, pela BB o que é evidentemente significativo – vejam-se, p. ex., fl.  ...51 – e também com indicação dos contactos telefónicos dos referidos arguidos, p. ex., a fl. 280/290/306: nº da rede espanhola do AA: ...95 e o seu nº telemóvel em Portugal ...65; os nºs ...88 e ...51 são da EE; veja-se o apreendido nos veículos – ... e ... – o que é significativo quanto ao seu uso – lembrem-se as «arrochadas» a que se referiu o FF – as bengalas/mocas – e no ... as munições; factos provados 20, 28, 46, 47);
- 1152 e 1160 (o arguido AA tem, ainda, como nº de telemóvel, o ...74 e arguida, ainda, ...13; facto provado 20)
- 546-563 e 715-727 (2ª apreensão, em 19-9-2012, o que foi apreendido, com realce para os 3 telemóveis com os cartões SIM supra referidos; os 3 veículos ..., ..., ... e, dentro do ..., uma outra bengala/moca, com a parte inferior revestida de tachas de metal, que se encontrava junto da consola central, entre os bancos anteriores; veja-se que o arguido AA, menos de 1 mês depois da primeira apreensão, voltou a arranjar outra moca, o que diz muito sobre a sua personalidade agressiva – e por isso não é de admirar que o ofendido GG, depois desta última apreensão, dissesse que o arguido AA andava sempre com umas «bengalas com mocas na ponta» e «que tinha medo da reacção do AA», pois, além do mais, «gritava bastante consigo, levantando-lhe a bengala ao ar»; facto provado 48);
- 129-137 (fotos da casa da arguida DD, com ênfase para a diferença de condições entre o ... e 1º andar da casa, e o sótão; facto provado 24);
- 390-419 (auto de diligência externa á residência dos arguidos AA e EE, com especial ênfase para o armazém contíguo, em blocos e não rebocado no interior, com pavimento em cimento, ao contrário do referido pelo arguido AA mas que corroboram as declarações de GG, e para a primeira foto de fl. 398, onde se vê uma botija de oxigénio, o que é bem a prova de que ali pernoitaram os ofendidos FF; merecem, outrossim, destaque, pela crueza das fotos, que desmentem a versão do arguido AA, as que retratam a ..., mormente as de fl. 405 a 409, e são eloquentes quanto ás suas condições infra-humanas; factos provados 24, 29, 51);
- 421-426 e 570-572 (autos de exame directo ás bengalas/varas/mocas, e aos telemóveis apreendidos);
- 884-887 e 1053 (veículo TR em nome de WW mas o seguro de responsabilidade civil está em nome do arguido AA);
- 888-896 (avaliação dos veículos ... e ... apreendidos; facto provado 5);
- 167, 170-171, 1071, 1073, 1074, 1075, 1076, 1077 (episódios de urgência e um internamento, hospitalares, de FF, em 4 e 5-1-2009, 21-11-2009, 26-12-2010, 25 e 26-1-2011, 30-4-2011, 4-11-2011; mostra que eram facultados cuidados de saúde);
- 1093, 1094 e 1094 v. (pedido de cartão de cidadão pelo GG, sendo de realçar que ocorreu escassos dois dias após a ida com os arguidos, que deu a morada dos arguidos, o telemóvel da arguida EE e que ambos os arguidos serviram de testemunhas – com o evidente reforço, do crédito a atribuir ao GG);
- 1139-1142 e 1301-1302 (cópia da caderneta, com menção a «2ª via» da conta do GG na Banco 1..., com discriminação dos depósitos da pensão e dos levantamentos, a 5-7-2013, 29-7-2013 e 28-8-2013 e surge confirmado pela Banco 1...: factos provados 52, 54 e 55; levantamento a 30-9-2013, o que corrobora o depoimento do GG);
- 1305, 1315-1319 (onde foram feitos os levantamentos e como – a rogo – salientando-se que o levantamento do dia 30-9-2013 foi feito em ..., o que corrobora a versão do ofendido, pois do seu relato de fl. 1205-1206, resulta que já trazia o dinheiro de ...);
- 1285-1286 (auto de desaparecimento de GG, denúncia de CCC, dando conta do desaparecimento daquele em 18-6-2013: facto provado 49; e fl. 1122-1124: auto de notícia do seu aparecimento, em 30-9-2013: facto provado 56);
- 1354-1355 (pagamento da pensão a FF: facto provado 41);
- 2157-2200 (com destaque para a partilha dos bens, o que foi adjudicado á arguida EE, data e, com fulcral importância para a decisão da liquidação do activo, a escritura de compra e venda de fl. 2174-2178).
§ 5.2. Ao apenso (B), com destaque para a informação de fls. 10-14 e 23-26, para as declarações de IRS de fl. 30-70, quadro geral de fl. 178, quanto ás contas bancárias, movimentos/fluxos, e totais anuais desde 2007 correspondentes ao produto da diferença entre, por um lado, a soma dos depósitos e transferências credoras e, por outro, a soma dos levantamentos, das transferências a débito e as despesas bancárias totais, estando tais movimentos discriminados, por ano e por conta bancária, nos quadros parcelares de fl. 179-180-181.
A fl. 219, consta o valor global dos rendimentos de 2007 (5 anos anteriores á constituição como arguidos: art. 7º nº 2 da Lei 5/2002) a 2014, correspondente ao somatório dos valores declarados fiscalmente (rendas, produto das vendas de imóveis, subsídios – transferências IFAP…) e que ascendeu a 207.250,21€.
A fl. 220, consta um quadro com o valor do património total, no mesmo período, constituído pelo somatório dos produtos constantes de fl. 178 (diferença entre, por um lado, a soma dos depósitos e transferências credoras e, por outro, a soma dos levantamentos, das transferências a débito e as despesas bancárias totais) e dos vencimentos não pagos, pelos arguidos NNN e EE, as ofendidos/Casal FF, na base do salário mensal garantido, como supra referido e explicado pela inspectora DDD, constando os valores mensais de fl. 221 e segs.
No quadro de fl. 220, não foram tidos em conta os rendimentos já contabilizados nas contas bancárias – assim, os produtos das vendas dos imóveis (39.494,10 €, declarados pelo arguido AA em sede de IRS em 2009 – fl. 30 v. e 31.950€ declarados pela arguida EE em sede de IRS – fl. 59 v., correspondente, esta última venda, á Quinta ...) não foram contabilizados, uma vez que da análise aos movimentos bancários, de fl. 179-180-181, resulta que tais quantias se integrarão nos mesmos.
Note-se que não obstante a forma taxativa como é justificada tal desconsideração, a fls. 220 (“os valores a vermelho correspondentes aos imóveis alienados não foram considerados no património, pois foram detectados nas contas bancárias analisadas e contabilizados na mesmas”), o certo é que o Tribunal não encontrou qualquer documento de suporte (extractos bancários donde constassem tais exactos valores) nem tais valores constam dos quadros de fl. 179-180-181.
Cremos que o critério seguido terá sido o do total dos movimentos bancários superar, no ano respeitante, o produto das vendas – caso em que não haverá que «contá-lo» duas vezes.
E, por isso que não é o caso da quantia de 5.000€, produto da venda de dois imóveis e 2012, declarada por AA no IRS a fls. 33 v, e que não se mostra integrada nos movimentos bancários (pois a verba que poderia justificá-la, em 2009, provém do IFAP) pelo que que foi considerada no quadro de fl. 220, aumentando o total do património.
Sucede que, como resulta da escritura de venda da Quinta ..., o preço foi de 45 mil euros (e não o declarado de 33 mil euros, a que foram deduzidas as despesas no montante declarado de 1.050 € - cf. IRS de fl. 59 v.), pelo que a verba de 43.950 € (45.000 - 1.050) deve ser somado no quadro de fl. 219, a título de alienação de imóveis no ano de 2011, em vez de 31.950 €, pelo que o montante global total passa para 227.355,50€ o do RDP (rendimento disponível parcial ) passa para 222.585,77€, em vez de 210.585,77€, e o RD (rendimento disponível) passa para 219.252,21€.
Como, em 2011, o produto da venda da Quinta ..., ainda que rectificado, é inferior ao dos movimentos a crédito, e seguindo o critério supra apontado, á míngua de mais elementos, não é de considerar no quadro de fl. 220.
E, assim, o valor incongruente passa de 62.287,46€ para 50.287,46 €.
No quadro em referencia, foram contabilizadas as quantias atinentes aos vencimentos não pagos ao casal FF (51.998,52€), considerando o seu «não pagamento» como uma vantagem, as quais foram outrossim peticionadas no PIC – veremos a forma de compatibilizar a consideração a ambos os títulos dessas quantias.
§ 5.3. Aos anexos I, II, III, IV, V, a fl.:
- 113-120 (hospital) e 273 (conta bancária titulada pelo casal FF) do Anexo III;
- 47, 48, 63, 67, 160, 558 (registos da actividade laboral de BB em Espanha), 55, 98, 99 (boletins de vencimento da ofendida em Espanha: montantes, datas e vê-se que o pagamento não foi feito por transferência), 219, 220, 239, 243 (agendas com menção ás horas trabalhadas e á BB), do anexo IV.
§ 5.4. Nos relatórios sociais, na parte em que não contende com os factos imputados, e com alguma parcimónia, porque, em muitos aspectos, baseados em meros relatos dos arguidos.
§ 5.5. Nos CRC´s.”

III.2 – Quanto à análise das sobreditas questões concretas suscitadas pelos arguidos e Ministério Público nos respetivos recursos, conhecidas por precedência lógica:

III 2.1 – Recurso da arguida EE:

III.2.1.1 - Da invocada falta de cumprimento do disposto no art. 359º do CPP - questão comum ao recurso do arguido AA: 

No acórdão proferido nos autos por este Tribunal da Relação de Guimarães, em 10/07/2023, devidamente transitado em jugado, foi decidido:
«IV.1 – Julgar parcialmente procedente o douto recurso interposto pela arguida EE e, em conformidade, declarar a nulidade do douto acórdão recorrido, cominada no art. 379º, nº1, al. b), do Código de Processo Penal, por condenar os arguidos recorrentes por factos diversos (materialidade mais ampla) dos descritos na acusação que, face à qualificação jurídica ali operada, podia sustentar as suas condenações, sem que tivesse dado cumprimento ao disposto no art. 359º do CPP (e não do art. 358º, nºs 1 e 3, como fez o juiz presidente do tribunal coletivo). A ora declarada nulidade do acórdão recorrido, torna-o inválido, bem assim os ulteriores atos processuais que com aquele contendem – cf. art. 122º, nº1, do CPP.
IV.2 – A decretada nulidade deve ser suprida pelo Tribunal recorrido, a quem compete proferir novo acórdão, expurgado da sobredita invalidade, e retirar as consequências jurídicas do ora decidido (ainda que, na sua incólume liberdade de decisão, decida comunicar previamente à defesa do arguido “nova” alteração nos termos do art. 358º ou 359º do CPP).
 IV.3 - Em conformidade com o supra decidido, julgar prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelos recursos da arguida EE, do arguido AA e do Ministério Público.»
Na fundamentação do predito arresto, expendeu-se, entre o mais:
«(…) da factualidade descrita na acusação apenas seria suscetível de integrar o tipo legal de crime de tráfico de pessoas, previsto e punível nos termos do art. 160º do CP, a posterior ao dia ../../2007, data de entrada em vigor da Lei nº 59/2007, de 04.09, diploma que primeiramente conformou autonomamente aquele tipo de crime no ordenamento jurídico-penal português. Até então o art. 160º do CP previa o crime de rapto, cuja tipicidade objetiva e subjetiva não coincidia minimamente com os ora imputados crimes de tráfico de pessoas. Por outro lado, havia previsão legal do crime de tráfico de pessoas, por força da disposição legal do art. 169º do CP, mas somente o nominem legis se equiparava, porquanto aquele preceito legal não comportava os comportamentos passíveis de integrarem os ora imputados crimes de tráficos de pessoas, na medida em que ali se restringia as condutas típicas ao agora denominado lenocínio, ou seja, associadas à prática pela pessoa ofendida, e em país estrangeiro, de prostituição ou de atos sexuais de relevo.
Destarte, a proceder a imputação acusatória, nos termos em que foi realizada e com a qual os arguidos podiam legitimamente contar, encontrava-se temporalmente restrita ao nível da materialidade subjacente, sustentadora dos ilícitos criminais de tráfico de pessoas a cada um deles imputados.
Ora, ao proferir o despacho em questão, o Mmo. Juiz apenas aparentemente se limitou a alterar a qualificação jurídica dos factos imputados aos arguidos na acusação, modificando a imputação do cometimento de crimes de tráfico de pessoas para crimes de escravidão, pois que ao fazê-lo, implícita e simultaneamente, alargou a base factual suscetível de preencher a tipicidade objetiva deste “novo” tipo de crime, ainda que tal constatação se restrinja às situações de facto envolvendo os ofendidos BB, FF e CC (que, alegadamente, decorreram entre data não apurada do ano de 1993 e 11.08.2021, quanto aos dois primeiros, e até data não concretamente apurada do ano de 1999, no caso do Menor CC).
Por conseguinte, a operada alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, que, reitera-se, não pode ser dissociada do concomitante alargamento/adicionamento da matéria de facto que pretensamente preenche a tipicidade dos crimes de escravidão desde o início da sua prática, em 1993, gera como consequências jurídicas a imputação aos arguidos de crime diversos e mais severamente puníveis, pelo que a alteração efetuada se situa já no âmbito de uma verdadeira alteração substancial de factos, a que devia ter sido conferido o tratamento jurídico previsto no art. 359º do CPP.
Nenhum problema decorreria do então decidido e comunicado à defesa dos arguidos caso aquela modificação da qualificação jurídica não tivesse tido vencimento em sede da decisão final tomada pelo tribunal coletivo, ou, tendo, o Tribunal se limitasse a utilizar para o preenchimento dos crimes de escravidão por que veio a condenar também os arguidos a factualidade posterior ao referido dia ../../2007; contudo, não foi isso que sucedeu, verificando-se dos termos do douto acórdão prolatado que o Tribunal a quo, para preenchimento dos mencionados crimes de escravidão (p. e p. pelo art. 159º, al. a) do CP) considerou toda a matéria de facto invocada no libelo acusatório, incluindo, pois, a verificada desde 1993. [negrito nosso]

Dispõe o artigo 359º do Código de Processo Penal:
“1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.”

Posto isto, urge concluir que o Tribunal a quo deu cabal cumprimento ao deliberado no predito acórdão deste Tribunal superior, mediante a comunicação aos sujeitos processuais, nos termos e para efeitos do disposto no art. 359º do CPP, de nova factualidade, ocorrida antes de 15/09/2007, suscetível de também integrar os eventuais crimes de escravidão alegadamente perpetrados nas pessoas dos ofendidos BB, OOO e CC (por comutação dos originariamente imputados crimes de tráfico de pessoas).
Fê-lo por via do despacho proferido 14/02/2024 (referência ...07), com o seguinte teor: 
«Vi o douto acórdão de 10-07-2023 do Tribunal da Relação de Guimarães.
*
Em acatamento do decidido pelo tribunal superior, deve proceder-se à comunicação a que alude o art. 359º Código Processo Penal, nos precisos termos e para os precisos efeitos do referido acórdão.
Como o acórdão é do conhecimento de todos os sujeitos processuais e para evitar uma deslocação inútil (à semelhança, de resto, com a comunicação a que já se procedeu nos autos, para os efeitos do art. 358º nºs 1 e 3 do Código Processo Penal), ouçam-se as Defesas dos arguidos (todos eles, uma vez que o recurso aproveita a todos), o Mandatário da assistente e o Ministério Público, para, em 5 dias, dizerem se têm algo a opor a que (i) tal comunicação seja feita por escrito e que se (ii) considere feita com o presente despacho.»   
Na sequência da efetivação das ordenadas notificações, os arguidos AA e EE declararam a sua oposição à continuação do julgamento pelos novos factos (cfr. requerimentos com as referências ...35 e ...60).
Nada mencionaram relativamente à concomitante comunicação de alteração da subsunção jurídica dos factos descritos na acusação, que, nessa parte, se manteve conforme a anteriormente realizada nos autos, ou seja, entendendo o Tribunal a quo que aquela factualidade é suscetível de integrar a prática pelos arguidos de dois crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º, al. a), do Código Penal, cometidos sobre as pessoas dos ofendidos AA e BB, e não a imputada prática de dois crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º, nºs 1, als. a), b), c) e d), e 7, do mesmo diploma legal. Tal silêncio, livremente facultado por lei, em nada coarta os direitos de defesa dos arguidos por duas ordens de razões: primeiro, porque a comunicação em causa não determina desde logo que vingue na decisão final a nova qualificação jurídica dos factos, nada impedindo que o Tribunal comunicante repondere a sua avaliação; em segundo lugar, está assegurado aos arguidos o direito de recorrerem do acórdão, também nessa vertente da subsunção jurídica dos factos, como aliás sucede no caso presente.              
Em seguida, o Tribunal recorrido determinou a reabertura da audiência para leitura do acórdão, o que veio a suceder, sendo que, desta vez, nesta nova decisão judicial, a condenação dos arguidos pela prática de crimes de escravidão (por força da alteração da qualificação jurídica dos factos já antes comunicada às defesas dos arguidos) não se estribou em factualidade ocorrida antes do dia ../../2007, mas somente em matéria factual verificada em momento posterior, porquanto, segundo o regime legal da «alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia» estatuído no art. 359º do CPP, a possibilidade de consideração daqueles vetustos factos – ainda que «novos» sob o prisma do fixado objeto processual – estava vedada no processo em curso por força da não aquiescência de todos os sujeitos processuais à abrangência dos mesmos no julgamento.
Note-se que relativamente à modificação da qualificação jurídica de parte dos factos operada pelo Tribunal a quo, os arguidos já tinham oportunamente exercido o seu direito de defesa, o direito ao contraditório, na sequência da comunicação que, nesse conspecto, validamente, lhes foi efetuada, nos termos e para efeitos do disposto no art. 358º, nºs 1 e 3, do CPP.    

Por conseguinte, não se verifica a apontada ilegalidade ou “inconstitucionalidade” do acórdão recorrido por inadimplemento do disposto no artigo 359º do CPP (com violação dos direitos de defesa dos arguidos) e, dessarte, soçobram nesta parte os recursos dos arguidos.   

III.2.1.2 – Erro notório na apreciação da prova (quanto aos factos provados nºs 14, 32, 33, 35, 36 e 70):

Alega a arguida/recorrente EE que existiu um erro notório na apreciação da prova quanto ao facto dado como provado de ela reter os documentos pessoais ou bancários dos ofendidos (factos nºs 14 e 36), quanto ao facto dado como provado de ela se apropriou de valores monetários pertencentes àqueles e quanto ao facto dado como provado sob o nº 70, os quais devem ser considerados não provados, por ter sido produzida prova que demonstra o contrário.
O Tribunal recorrido deu como provada nos pontos em questão a seguinte matéria de facto [negrito nosso]:
“14º - Por sua vez, a função das arguidas DD (até meados de 2003) e EE (a partir de final de 2004), e, além do mais, era a de confecionar a alimentação que era fornecida aos trabalhadores, de anotarem as horas de trabalho prestadas pelos trabalhadores, sob indicação do arguido AA, e ainda, a de, juntamente com o arguido AA, confiscar e/ou reter a documentação de tais trabalhadores.
[…]
32º - Efetivamente, o arguido AA, primeiro com a sua mulher DD, depois com a nova companheira a arguida EE, em conjugação de esforços e de vontades, dispôs a seu bel-prazer da força de trabalho do casal FF, seja em benefício próprio, em trabalhos agrícolas, sem qualquer remuneração, seja mediante a colocação do casal ao dispor de terceiros em Espanha, a quem prestavam serviços no ramo agrícola, apropriando-se das remunerações que lhes eram devidas.
33º - Os patrões espanhóis entregavam diretamente ao arguido AA a remuneração que era devida aos trabalhadores, designadamente, aos ofendidos AA e BB, a qual era invariavelmente apropriada por aquele arguido, em seu proveito e das arguidas DD e EE, estas nos períodos temporais referidos, em comunhão de esforços e vontades.
[…]
35º - Sucede, porém, que esse dinheiro era por eles entregue aos arguidos AA e/ou EE, por exigência destes, que para o efeito, acompanhavam, um ou outro e por vezes os dois conjuntamente, os ofendidos, até às respectivas agências bancárias.
36º - A documentação de identificação pessoal dos ofendidos e bem assim a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas ficavam na posse dos arguidos AA/DD e, depois, AA/EE, sendo também esta uma forma de exercer o seu domínio sobre aqueles.
[…]
70º - Os arguidos actuaram sempre de forma deliberada, livre e consciente, na execução e adesão a um plano conjunto e com plena consciência que todas as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”

Preceitua o art. 410º do Código de Processo Penal [na parte aqui pertinente]:
“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
[…]
c) Erro notório na apreciação da prova.”

O vício em questão há de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, isto é, sem apelo a outros elementos externos à decisão, designadamente prova gravada ou documentada.
O erro notório na apreciação da prova «é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da análise do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência»[2].
Como é jurisprudência pacífica[3], só há erro notório na apreciação da prova quando for de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores e resulta do próprio texto da decisão (não sendo admissível a sua demonstração através de elementos alheios à decisão, ainda que constem do processo).
O vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado ou não provado um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Perante a simples leitura do texto da decisão, o “homem médio” conclui, legitimamente, que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Como referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2015, Processo nº 72/11.2GDSRT.G1, disponível in www.dgsi.pt, «Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.»
Assim entendido, julgamos que no caso sub judice não se verifica o invocado vício, pois não se deteta no acórdão recorrido, perante a sua literalidade, ao nível da apreciação da prova, erro notório ou manifesto, designadamente no que tange à matéria de facto constante dos pontos 14, 32, 33, 35, 36 e 70 dos factos provados, referente à retenção de documentação pessoal e bancária dos ofendidos e apropriação de rendimentos a estes pertencentes por parte da arguida EE e à sua atuação culposa na execução dos factos, em comparticipação com o coarguido AA e com consciência da respetiva ilicitude.
Quem lê no acórdão recorrido a decisão da matéria de facto e a respetiva motivação, não descortina um grosseiro, manifesto lapso na apreciação da prova produzida nos autos tal como interpretada e valorada na sentença, pois que o raciocínio do Tribunal a quo - concorde-se ou não com a decisão – não se revela meramente arbitrário ou mesmo absurdo face às regras da experiência comum e da lógica.
A pugnada errada apreciação da prova produzida quanto à atuação da arguida vertida nos identificados pontos dos factos provados não se evidencia no texto da decisão, uma vez que o tribunal a quo na motivação explicou o raciocínio lógico seguido, a razão para dar como provada a factualidade em causa, de modo que tal deliberação, apreciada à luz das regras da experiência comum, do normal suceder, e na perspectiva do cidadão comum medianamente formado, não surge como meramente discricionária, notoriamente incongruente face aos fundamentos aduzidos, isto é, como retratando a afirmação de uma realidade que imperiosamente não podia ter acontecido, pelo menos nos termos descritos na acusação.
Tanto assim é que para defender o seu ponto de vista a recorrente sentiu necessidade de convocar prova gravada (declarações por si prestadas, declarações dos ofendidos RR, FF e GG e depoimento das testemunhas GGG e HH) e documentada (relatório social da recorrente), quando para o cumprimento do requisito legal de alegação do vício em causa, nos termos do art. 410º, nº2, al. c), do CPP, teria de se ater ao texto da decisão recorrida.
Consequentemente, não se verifica o alegado vício do erro notório na apreciação da prova.

III.2.1.3 - Impugnação ampla da decisão sobre a matéria de factoerro de julgamento quanto aos factos provados nos nºs 3, 7, 14, 16, 21, 25, 26, 28, 29, 32, 33, 35, 36, 40, 41, 42, 44, 49, 51, 54 a 56, 61 a 63, 65 a 67, 70, 72, 76 e quanto a factos alegados pela defesa que foram dados como não provados nos pontos 28º e 31º a 33º: 

Por via do recurso interposto, a arguida/recorrente EE impugna a decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para efeitos do disposto no art. 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, alegando terem sido incorretamente julgados os pontos da matéria de facto identificados em epígrafe, que, no seu entendimento, por falta ou insuficiência da prova produzida em audiência de julgamento, deviam ter sido julgados de modo inverso.

Preceitua o art. 412º do CPP, na parte que ora releva:

“1 – A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
[…]
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
[…]
6 – No caso previsto no nº4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”  
Como tem entendido, sem discrepância, o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP -, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer.
Nessa tarefa de reapreciação da prova pelo tribunal de recurso intrometem-se necessariamente fatores como a ausência de imediação e da oralidade – sendo que, como é sobejamente sabido, a imediação e a oralidade constituem princípios estruturantes do direito processual penal português. 

Em conformidade, a ausência de imediação e oralidade - dado que o “contacto” com as provas se circunscreve ao que consta das gravações - determina que o tribunal de segunda instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º][4].

Com efeito, quando está em causa a questão da apreciação da prova cumpre dar a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo. Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.
Como loquazmente se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/07/2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, acessível em www.dgsi.pt:
«São os Juízes de 1.ª instância quem de forma direta e «imediata» podem observar as intransferíveis sensações que derivam das declarações e que se obtêm a partir do que os arguidos e das testemunhas disseram, do que calaram, dos seus gestos, da palidez ou do suor do seu rosto, das suas hesitações. É uma verdade empírica que frente a um mesmo facto diversos testemunhos presenciais, de boa-fé, incorrem em observações distintas.
A congruência dos testemunhos entre si, o grau de coerência com outras provas que existam e com outros factos objetivamente comprováveis, quer dizer, a apreciação conjunta das provas, são elementos fundamentais para dar maior credibilidade a um testemunho que a outro.
Para tal, a convicção do Tribunal tem de ser formada na ponderação de toda a prova produzida, não podendo censurar-se aquele por nesse juízo ter optado por uma versão em detrimento de outra. Não existindo prova legal ou tarifada que se impusesse ao Tribunal, o Tribunal julga a prova segundo as regras de experiência comum e a livre convicção que sobre ela forma (art. 127.º do Código de Processo Penal).»
Ou seja, é comumente aceite que a (re)apreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso não implica a realização de um “segundo julgamento”, agora baseado na prova gravada, em que o tribunal ad quem aprecia toda a prova produzida e documentada em primeira instância, como se o julgamento ali realizado não existisse. Como se refere, de modo impressivo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/05/2015, processo 441/10.5TABJA.E2, acessível em www.dgsi.pt, «O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância. Os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.»
Relevantes ainda as seguintes palavras de Paulo Saragoça da Matta[5]:
«Ao Tribunal de recurso não cabe repetir a produção de prova havida, nem a prova anteriormente produzida na instância recorrida perde seja o que for de vivacidade. Pelo contrário, o Tribunal de recurso limitar-se-á a aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância.»  
Concluindo: o artigo 412º, nº3, al. b) do CPP, ao exigir que o recorrente que impugne a decisão proferida sobre matéria de facto especifique as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, implica que o tribunal de recurso só pode (e deve) alterar aquela decisão se da análise que faz das provas documentadas indicadas pelo recorrente, em concatenação com as regras da experiência comum e da lógica, concluir que o juízo probatório levado a cabo pelo tribunal a quo é, à luz daqueles elementos, insustentável, indefensável (porque decidiu claramente sem prova ou em indiscutível contradição com as preditas regras), revelando-se por isso “obrigatório” decidir de forma distinta.
Diferentemente, «se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está» - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1, acessível em www.dgsi.pt.
Retornando ao caso sub judice.
O Tribunal procedeu à audição integral das gravações atinentes às declarações dos arguidos AA e RR, dos demandantes FF e BB, aos depoimentos das testemunhas WW, PPP, HH e GGG. Mais se procedeu à leitura das declarações prestadas pelo ofendido GG em inquérito (fls. 1205-1207), perante magistrado do Ministério Público, lidas em audiência de julgamento, nos termos legais, do relatório social atinente à arguida RR e de outra documentação junta aos autos invocada por esta no seu douto recurso - cf. art. 412º, nº6, do CPP.

A arguida/recorrente EE incumpriu, em larga medida, o dever de especificação legalmente imposto, porquanto olvidou, quer nas alegações quer nas conclusões da motivação, a indicação das concretas provas que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, ónus que só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da contestada.
Em grande parte da motivação o recorrente não fundamentou a sua divergência face à decisão da matéria de facto tomada pelo Tribunal a quo em concretas passagens de declarações de sujeitos processuais ou de testemunhas prestados em audiência de julgamento (contextualizando-as por referência ao tempo consignado na ata), dos quais se pudesse inferir, indubitavelmente, que obrigavam a decisão fática diversa.
Ao invés, no que concerne às declarações e depoimentos convocados, a recorrente enveredou por invocar nas alegações de recurso e respetivas conclusões, de modo genérico e conclusivo, várias asserções da sua própria lavra do que supostamente seria o conteúdo e sentido daqueles meios probatórios, sem que especifique, como se impunha, em discurso direto, as concretas passagens, isto é, o que concretamente foi afirmado pelos declarantes e, muito menos, as enquadre por referência ao tempo consignado na respetiva ata.
Como se expressa no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.04.2010, Processo nº 426/03.8GCAVR.C2, acessível em www.dgsi.pt, «1.Impugnando um determinado ponto de facto, o recorrente terá que indicar as provas que fundamentam a impugnação, identificando os depoentes ou declarantes cujas afirmações corroboram a posição sustentadas, indicando, por referência ao consignado na acta (…), as passagens concretas que fundamentam a discordância relativamente ao aspecto em análise. 2.Não se pretende uma indicação genérica, uma indicação explicativa ou a indicação do sentido do depoimento – que ficariam reféns da subjetiva posição sustentada pelo recorrente e logo, do seu interesse num determinado desfecho processual – mas a indicação precisa. Só assim se atinge a concretização exigida pela lei, que não resulta de mero capricho do legislador, antes serve uma finalidade prática: o tribunal de recurso, confrontado com a impugnação da matéria de facto, tem que conhecer exatamente o sentido e o alcance da impugnação.»
As apontadas omissões são absolutas e intransponíveis, inviabilizando a formulação de convite ao aperfeiçoamento, pois que este não se destina a suprir oblívios de exposição de pressupostos legalmente exigidos.[6]

Por outro lado, na parte em que a motivação cumpre o ónus legal de especificação, constata-se que as parcas e frequentemente descontextualizadas provas evocadas não assumem valência suficiente para ditar diferente decisão de facto quanto aos pontos fácticos sobre os quais é alegado erro de julgamento.
Assim, para tentar comprovar que “nunca houve qualquer plano prévio entre a co-arguida EE e o coarguido AA”, transcreve a arguida recorrente uma passagem do relatório social junto aos autos referente às suas condições pessoais e sociais, onde se expressa que «Durante a presente reclusão, a arguida cessou relacionamento com o companheiro AA, tendo solicitado por escrito á EP, a não autorização de contacto telefónico e visitas». Ora, tal alegação é notoriamente inidónea para infirmar o juízo valorativo do Tribunal sobre tal matéria de facto visto que a alegada situação de reclusão prisional, com ausência de contactos entre os coarguidos, é ulterior à prática dos factos, mormente ao momento inicial dos mesmos e ao firmamento do plano criminoso comum entre eles, ab initio ou por adesão posterior da arguida.
 Não colhe também a objeção dirigida pela recorrente EE à prova da factualidade concernente à angariação de “vítimas” também por parte daquela (alegadamente constante dos factos provados nos pontos 3 e 25), com base na própria motivação do Tribunal a quo e num breve trecho das declarações da ofendida RR. Primeiramente, olvida a recorrente que a angariação do ofendido YY ocorreu em ../../2013, isto é, em momento em que há muito habitava com o coarguido AA. Acresce que não obsta à prova da factualidade em questão relativamente aos ofendidos RR e FF a comprovada circunstância de estes terem sido aliciados pelo arguido AA, com quem viviam e a cuja vontade estavam submetidos ainda antes de surgir em cena a arguida EE, uma vez que o que se provou, nesse conspecto, é que esta arguida aderiu ao plano que antes havia sido gizado pelo arguido (juntamente com a arguida DD), aceitando desse modo a angariação que originariamente foi realizada pelo seu companheiro (cfr. factos nºs 3, 21, 22 e 31).        
No que tange à impugnação da decisão quanto à matéria de facto vertida nos pontos 7 e 14 dos factos provados:
Discordando da decisão do Tribunal recorrido de dar como provados o confisco e retenção dos documentos dos ofendidos por parte dos arguidos AA e EE, invoca a arguida/recorrente, na parte devidamente concretizada, a circunstância de terem sido apreendidos, no ano de 2005 e na residência da arguida DD, documentos de identificação do casal FF, bem como a declaração isolada da recorrente em audiência de que “os documentos tinham nos com eles”.     
Porém, é perfeitamente viável que a atuação em conjunto e em conjugação de esforços dos coarguidos AA e EE englobasse o acesso e domínio sobre os documentos de identificação pessoal dos ofendidos AA e RR, ainda que aqueles tivessem permanecido guardados na casa em que o primeiro viveu conjuntamente com a arguida DD antes de começar a coabitar com a arguida EE, noutra residência.
A negação do facto pela arguida também é causa manifestamente escassa para contrariar o juízo sobre a prova desta matéria de facto emitido pelo Tribunal a quo.      
Relativamente à impugnação da decisão quanto à matéria de facto vertida nos pontos 32 a 36 e 44 dos factos provados:
Para sustentar a sua reclamação recursória de ser dada como não provada a factualidade constante dos preditos pontos, transcreve a recorrente uma breve passagem das declarações prestadas em audiência de julgamento pela ofendida RR em que, questionada sobre quem ficava com o dinheiro, respondeu: “dava-o ao sr. AA, porque ela era o senhor do dinheiro, não era mais ninguém”.
Alega ainda que a testemunha WW respondeu “não” quando lhe foi perguntado em audiência de julgamento se alguma vez falou com a arguida EE para contratar os ofendidos.
Invoca excertos das declarações prestadas pelo ofendido GG em Inquérito, perante magistrado do Ministério Público [fls. 1205 dos autos]: “O ofendido GG no seu depoimento referiu que havia dito que tinha perdido os documentos e “o AA perguntou-lhe também, logo uns dias depois de chegar, se o depoente recebia alguma reforma, tendo respondido afirmativamente, sendo esse o motivo por que o mandou tirar os documentos e depois a segunda via da caderneta da sua conta na Banco 1...”. Este ofendido referiu que relativamente ao dinheiro, a arguida EE acompanhava-o às instalações da Banco 1..., mas o AA ia sempre com eles e “ficava na carrinha à espera que se despachassem” e acrescentou: “(…) quando ia pegar no dinheiro e na caderneta, de cima do balcão, a D. EE pegava ela no dinheiro e na caderneta dizendo “dá-mo cá, que eu guardo-te aqui na carteira”.
Quanto a concretas declarações da testemunha PPP, funcionário da Banco 1..., limita-se a transcrever a seguinte extrato: “D. EE nem estava junto dele, estava a 2 metros e ele saiu com o dinheiro”.
Retorna às declarações da arguida EE quando esta disse que: “Todo o dinheiro que ele tinha, ele fazia-o levantar e dar-lho para as mãos” e, relativamente à ida com o ofendido GG à Banco 1...: “Fui obrigada porque tinha de fazer o que ele mandava”; “também fui obrigada a fazer o BI do GG”.
Sucede que, salvo o devido respeito, as sobreditas esparsas declarações em nada contendem com a conclusão probatória extraída pelo Tribunal recorrido de toda a prova produzida nos autos, avaliada em concatenação e de acordo com as regras da experiência, do normal suceder, de que a arguida EE agiu em conjugação de esforços e divisão de tarefas com o arguido AA para, de acordo com o plano entre eles traçado, se apoderarem de valores monetários que eram devidos e pertenciam aos ofendidos, quer enquanto remunerações pelo trabalho que desenvolviam quer como prestações a título de pensões, utilizando-os em seu proveito, nomeadamente para fazer face às despesas domésticas do seu agregado familiar.
Quanto à impugnação da decisão dirigida à matéria de facto constante dos pontos 66, 67, 70 e 72 dos factos provados:

Neste segmento, pretendendo comprovar que as suas atuações foram realizadas por temor à reação do arguido AA caso desobedecesse às suas orientações, dada a violência que exercia sobre si, a recorrente alega declarações por si prestadas em audiência com o seguinte teor: “Eu não era senhora de um tostão, não tinha dinheiro para pagar umas cuecas, um soutien”. Invoca também passagens do depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha HH (médica da arguida e ex-presidente da Câmara ...): “Exercia violência sobre as mulheres que tinha com ele, ela queixava-se a mim”; “é uma pessoa dominadora, impulsiva, não tem nada a ver com a D. DD e com a D. EE e controladora”; “não tinha liberdade, que tinha de fazer o que ele queria e que tinha medo dele”; “as pessoas comentavam que primeiro a tratava bem, mas depois começou a controlar e a ter de fazer o que ele mandava”; “se não obedecesse, certamente teria consequências”; “lhe parecia que a D. EE tinha medo de falar”; “inclusive tiveram um julgamento e ele que lhe disse que não falam”.        
Esta prova, por si só, é ostensivamente inidónea para fazer contraprova ou sequer criar dúvida séria e intransponível sobre a circunstância fáctica dada por provada de que a arguida EE agiu sempre estribada em uma vontade própria, livremente formada por si, e em execução de planos criminosos nesse sentido formados, por si conjuntamente com o coarguido AA (no caso do ofendido GG) ou congeminado por este e a que aquela ulteriormente aderiu (no caso dos ofendidos membros do casal FF).
Aliás, salvo o devido respeito, contrariamente ao que sustenta a recorrente, o depoimento da testemunha HH consubstancia um depoimento indireto, de “ouvir dizer” e canalizador de vozes públicas ou rumores, na parte em que reproduz o teor do que lhe foi dito pela arguida EE e o que era comentado por pessoas não identificadas da comunidade.
Vejamos.
Prescreve o art. 129º do CPP, sob a epígrafe «depoimento indireto»:
“1 – Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se não o fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.”

Por seu turno, estatui o art. 130º do CPP, com a epígrafe «vozes públicas e convicções pessoais»
“1 - Não é admissível como depoimento a reprodução de vozes ou rumores públicos.
2 - A manifestação de meras convicções pessoais sobre factos ou a sua interpretação só é admissível nos casos seguintes e na estrita medida neles indicada:
a) Quando for impossível cindi-la do depoimento sobre factos concretos;
b) Quando tiver lugar em função de qualquer ciência, técnica ou arte;
c) Quando ocorrer no estádio de determinação da sanção.”

Assumindo o nosso direito processual penal estrutura acusatória, onde emergem como pilares estruturantes os princípios do contraditório e da imediação, o depoimento indireto é, em princípio, irrelevante, imponderável, uma vez que contraria a essência da prova testemunhal, firmada na circunstância de integrar declarações produzidas por uma pessoa sobre o percecionou pessoal e diretamente.
Como menciona o Exmo. juiz Conselheiro Santos Cabral in “Código de Processo Penal Comentado”, obra coletiva, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, cometário 1 ao art. 129º, p. 443, «A prova testemunhal caracteriza-se pela sua imediação com o acontecimento que se presenciou visual ou auditivamente.»    
Observa ainda o insigne magistrado [ibidem], o depoimento indireto não incide sobre os factos que constituem objeto de prova, mas sim sobre algo de diferente, ou seja, sobre um depoimento que se ouviu; isto é, o depoimento indireto contende com um meio de prova e não com os factos objeto de prova, pois o que está em causa não é o que a testemunha (depoente) percecionou, por si, diretamente, mas antes o que lhe foi transmitido por quem percecionou os factos.
 Em conformidade, o sobredito preceito legal impõe, excecionalmente, para a eficácia deste meio de prova, a necessidade de uma confirmação do depoimento indireto, com a consequente audição da(s) pessoa(s) a quem se ouviu dizer (salvo as situações excecionais acauteladas na parte final do nº1).
Bem se compreende que assim seja, porquanto, como avançam Simas Santos/Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, I Volume, 2ª Edição, 2004, p. 713, «pontificando no processo penal o princípio da verdade material, e assumindo o mesmo processo – por força da própria Constituição, art. 32º, nº5 – uma estrutura acusatória onde relevam a imediação e a contraditoriedade na produção da prova, designadamente no debate instrutório e na audiência de julgamento (cfr. art. 301º), é óbvio que a validade do depoimento “por ouvir dizer” só em certos circunstancialismos poderia surtir efeitos jurídicos, desde logo se excluindo eficácia a esse depoimento nos casos em que a testemunha se recuse ou não esteja em condições de referenciar a fonte da sua ciência.»      
Quanto à destrinça entre depoimento direto e indireto refere proficientemente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.02.2019, Processo nº 5/2016.0GABJA.S1, relator Conselheiro Nuno Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt:
«I - Quando a testemunha reproduz em audiência os acontecimentos que pessoalmente colheu através dos próprios sentidos, o seu depoimento é de conhecimento directo.
II - Depoimento indirecto é o relato que uma testemunha traz ao processo da narração, descrição ou das afirmações que outrem lhe transmitiu sobre os factos que constituem o objecto da causa. Ou, numa definição simplista e redutora, é o testemunho do "diz que disse determinada pessoa".»
Igual entendimento se descortina no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.02.2008, CJ, TI, pág. 296, assim sumariado:
«I. Quando a testemunha relata em tribunal aquilo que ouviu da boca de outra pessoa, o depoimento é directo porque a testemunha dele teve conhecimento por o ter captado por intermédio dos seus ouvidos.
II. Estando em causa a autoria de uma agressão, se o relato da testemunha é o que ouviu ao ofendido, nesse particular o seu depoimento é indirecto, na medida em que, relativamente a essa autoria, a testemunha não possui conhecimento directo.
III. Se no julgamento foram ouvidos a testemunha e o ofendido que lhe relatou a agressão, não obsta a que o tribunal valore esse depoimento indirecto.»
No mesmo sentido se posiciona o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.10.2024, Processo nº 1142/22.7JACBR.C1, relatora Desembargadora Alcina da Costa Ribeiro, disponível em www.dgsi.pt:
«I - Ocorre depoimento indirecto quando a testemunha não invoca o seu conhecimento directo do facto objecto de prova, mas reproduz factos que ouviu dizer a determinadas pessoas.
II - A validade do depoimento indirecto depende da identificação da pessoa a quem se ouviu dizer e da chamada desta a depor, excepto nos casos em que a inquirição do chamado não é possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrado.
III - Ocorre proibição de prova quando o depoimento indirecto não obedece aos pressupostos enunciados no artigo 129.º, n.º 1, do C.P.P.
IV - A livre convicção é o principio máximo, a base transversal de toda a valoração probatória, só assim não sendo quando a lei dispuser de maneira diferente, tem de delinear-se sob a égide dos princípios da imediação, oralidade e contraditório e com observância das regras de procedimento, devendo, primeiro, alicerçar-se em raciocínios objectivos, lógicos, consonantes com as regras da experiência comum e, depois, revelados na decisão de facto, por observância do dever de fundamentação, e o seu corolário consta do artigo 355.º do C.P.P.
V - O legislador não previu para a valoração do depoimento indirecto regime diverso da regra geral, isto é, não vinculou a sua valoração por referência ao conteúdo das declarações prestadas pela testemunha fonte, pois se assim fosse tê-lo-ia consagrado expressamente, exigindo a confirmação pela testemunha-fonte do conteúdo do depoimento indirecto.
VI - Prestado que seja o depoimento da testemunha-fonte, cumpre-se a condição de validade do depoimento indirecto, ficando a sua valoração sujeita aos princípios gerais da valoração da prova, mormente o principio da livre apreciação, imediação e oralidade.»

Dito isto e olvidando por despicienda no caso a querela sobre se o regime consagrado no art. 129º do CP somente incide sobre a prova testemunhal ou também vale para o depoimento indireto de uma testemunha sobre o que ouviu dizer a sujeitos processuais, cumpre concluir que o depoimento prestado pela testemunha HH consubstancia um depoimento direto no segmento em que mencionou a circunstância de a ora arguida EE lhe ter relatado episódios da sua vivência com o arguido AA, descrevendo-o como uma pessoa dominadora, impulsiva, controladora e que exercia violência sobre as mulheres “que tinha com ele”, incluindo sobre a arguida, dado que esta realidade, atinente aos “desabafos” tidos pela arguida consigo, foi diretamente vivenciada pela depoente.
Nada impedia que o Tribunal a quo se socorresse deste meio de prova para eventualmente credibilizar declarações da arguida EE no sentido de ser vítima de violência exercida pelo coarguido, tudo dependendo do circunstancialismo temporal em que ocorreram as conversas com a testemunha (antes ou depois da prática dos ajuizados factos ou contemporâneas destes).
Distintamente, trata-se de um depoimento indireto quanto ao efetivo exercício pelo arguido AA de violência física e/ou psíquica sobre a sua companheira EE, porquanto a testemunha não presenciou qualquer dos factos que lhe foram narrados pela arguida.
É certo que a arguida prestou declarações em audiência de julgamento e, dessarte, para quem assim entenda (atendendo à posição que se adote sobre o âmbito de aplicação da norma), o depoimento podia ser valorado, nos termos da segunda parte do nº1 do art. 129.
Sucede que, nessas declarações, a arguida não se autoatribuiu o estado de vítima de violência praticada pelo arguido AA, referindo apenas que este dirigia a violência (física e psíquica) contra os ofendidos nos autos. Nem sequer consta do relatório social junto aos autos que a arguida tenha comunicado ter sido vítima de maus-tratos, nem tal circunstância se pode inferir – como pretende a recorrente – de ali constar que a mesma cessou os contactos com o ora coarguido após terem iniciado o cumprimento de penas de prisão à ordem de outro processo, pois que, obviamente, hipotéticas desavenças entre o casal podem ter variadas origens.
Acresce que, as perceções e opiniões manifestadas pela testemunha HH face às conversações mantidas com a arguida EE de que “lhe parecia que a D. EE tinha medo de falar” e que “se não obedecesse, certamente teria consequências”, são insuscetíveis de valoração nos termos do art. 130º, nº2, do CP, por não se verificar qualquer das circunstâncias de admissibilidade previstas nas alíneas desse normativo legal.
Igualmente inadmissível no âmbito do depoimento, nos termos do nº1 do art. 130º do CP, é a reprodução feita pela depoente da vox populi de que “as pessoas comentavam que primeira a tratava bem, mas depois começou a controlar e a ter de fazer o que ele mandava”.         
Donde, a prova produzida neste conspecto revela-se manifestamente insuficiente e desadequada para atestar uma pretensa atuação da arguida EE compulsoriamente determinada pelo comportamento violento do coarguido AA a ela dirigida e correlativa obediência às ordens daquele por medo de represálias.              

Relativamente ao apontado erro de julgamento dos pontos 41 e 42 dos factos provados:

Neste particular, para tentar convencer que não devia ter sido julgado como provado que ela se deslocava com o ofendido FF ao local onde recebia a sua pensão de invalidez e se apoderava posteriormente, juntamente com o coarguido, dos montantes pagos àquele beneficiário, a arguida/recorrente convoca passagens das seguintes declarações prestadas em audiência de julgamento:
- Pela testemunha GGG, funcionário dos Correios ... de ..., que, reportando-se às idas ao seu local de trabalho pelo ofendido FF, referiu: “não sei se iria com a D. EE ou com o Sr. AA; ele ia com alguém, agora concretamente não sei com quem” e “já não estou certo quem era a pessoa que o acompanhava”;
- Pela ofendida BB: “o QQQ dizia anda comigo e chegavam aos correios, iam os dois, o AA levantava-o e o QQQ pedia-lho logo”;
- Pelo ofendido FF: “ia com ele e dava-lho a ele, porque mo pedia; se não lhe desse, batia-me”.    
O teor dos mencionados pontos da factualidade apurada é o seguinte:
“41º
Desde junho de 2011, o ofendido FF era beneficiário de uma pensão mensal de invalidez da Segurança Social Portuguesa, num valor entre 212,94 € e € 219,07, mas cujo montante nunca recebeu efetivamente, uma vez que os arguidos AA e EE dela se apoderaram todos os meses.
42º
Para o efeito, aqueles arguidos, um ou outro indiscriminadamente, deslocavam-se mensalmente com o referido ofendido à estação dos Correios de ... para que este procedesse ao levantamento de tal quantia e, uma vez no exterior, exigiam-lhe a entrega imediata da totalidade de tal quantia, que retinham na sua posse, dela se apoderando e gastando-a em proveito próprio e no do seu respetivo agregado familiar, nunca tendo entregue qualquer quantia monetária àquele ofendido.”
Ouvidas as gravações das declarações e depoimentos invocados pela recorrente [disponíveis no sistema informático citiusmedia studio], que confirmam no essencial dos termos o transcrito no recurso, julgamos que assiste razão à arguida ao pugnar pela inexistência de prova sobre a sua alegada deslocação aos Correios de ... juntamente com o ofendido FF, para aquele proceder ao levantamento das quantias tituladas por cheques postais atinentes à sua pensão mensal de invalidez, e, uma vez no exterior, exigindo-lhe a entrega integral daqueles montantes monetários (factualidade constante do ponto 42).  
Desde logo, o próprio ofendido FF asseverou que era o arguido AA quem, nessas ocasiões, o acompanhava e, uma vez na posse do dinheiro levantado, lhe pedia que o entregasse, ao que ofendido acedia com medo de ser fisicamente agredido por aquele.
Tal versão encontra algum suporte nas declarações prestadas pela sua mulher, a ofendida BB, que, apesar de não se deslocar aos Correios com o seu marido e o arguido, via este a ordenar àquele que fosse consigo à “Vila”, entrando os dois na carrinha do QQQ e voltando juntos. Depois o seu marido contava-lhe o que tinha sucedido nessas situações, nos termos que igualmente descreveu nas declarações por eles prestadas em audiência de julgamento.
Por outro lado, o depoimento prestado pela testemunha GGG mostra-se incapaz de assegurar a ida da arguida EE à Estação de Correios de ... ou sequer a sua presença no exterior, nas imediações do local, atenta a incerteza demonstrada pelo depoente no que respeita à identidade da pessoa que acompanhava o FF, sendo certo, porém, que não descarta a possibilidade de ser o arguido AA, como adiantado pelo ofendido e admitido pelo próprio arguido.          
Temos presente que o arguido AA declarou em audiência de julgamento que a EE às vezes o acompanhava a si e ao FF aos Correios de ... para este proceder ao levantamento dos valores da sua pensão de invalidez (embora os ofendidos é que ficassem com o dinheiro) – cf. gravação disponível no sistema informático citius - media studio das declarações prestadas na sessão de 19/10/2020, correspondente ao ficheiro 20201019164300_1934310_3993051, minutos 10.55 a 12:06 e 14:17 a 14:55. 
 Contudo, não pode ser decisivamente valorada a afirmação operada pelo arguido de que, por vezes, a coarguida EE acompanhou o FF aos Correios ..., a levantar a pensão, porquanto, tratando-se de declarações de coarguido, não são corroboradas neste conspecto por qualquer outro meio probatório. 

Destarte, nos termos conjugados dos arts. 412º, nº3 e 431º, al. b), ambos do CPP, impõe-se determinar a modificação da redação do ponto 42 dos factos provados, de modo a retirar o imputado acompanhamento do ofendido FF pela arguida EE nas deslocações aos Correios ... e a exigência pela mesma de entrega imediata da totalidade da quantia por aquele recebida a título de pensão de invalidez, factualidade que passa a constar do elenco dos factos não provados.  
Assim, o ponto 42 dos factos provados assumirá o seguinte teor:
“Para o efeito, o arguido AA deslocava-se mensalmente com o referido ofendido à estação dos Correios de ... para que este procedesse ao levantamento de tal quantia e, uma vez no exterior, exigia-lhe a entrega imediata da totalidade de tal quantia, que, conjuntamente com a coarguida EE, retinham na sua posse, dela se apoderando e gastando-a em proveito próprio e no do seu respetivo agregado familiar, nunca tendo entregue qualquer quantia monetária àquele ofendido.”

Quanto à restante matéria de facto dada como provada nos pontos 41 e 42 é de manter a decisão recorrida, uma vez que não são invocadas provas concretas que forcem diversa decisão.
 Saliente-se que o facto de a recorrente não acompanhar o ofendido FF nas circunstâncias e com o fito supre descritos não significa que ela não comparticipasse, juntamente com o companheiro AA, na retenção dos montantes monetários em causa, que se viam privados da disponibilização desses fundos, e lhes tenha dado o destino que lhes aprouve, despendendo-os em proveito próprio, quer na satisfação de gastos pessoais quer em despesas por conta do seu agregado familiar.  

Impugnação da decisão por alegado erro de julgamento quanto a matéria de facto dada provada nos pontos 28 e 29 e a factualidade considerada como não provada nos itens 31º e 32º:

O Tribunal a quo considerou provado nos pontos 28º e 29º:
“28º
Sempre que os ofendidos RR e FF reivindicavam a entrega do dinheiro do trabalho que prestavam ou se recusavam a trabalhar por se encontrarem doentes, o arguido AA ameaçava-os de morte, em tom sério e intimidatório (“mato um e sangro o outro”), chegando a agredi-los fisicamente, assim como ao ofendido CC, desferindo-lhes socos, bofetadas e pontapés por todo o corpo e a arguida EE agredia fisicamente a ofendida BB, batendo-lhe.
O arguido AA, ao bater ao ofendido FF, chegou a usar uma vara.
Os ofendidos, sobretudo por causa da conduta do arguido AA, temiam seriamente pela sua vida, sendo assim obrigados a trabalhar.
29º
Os arguidos AA e EE limitavam os gastos com a saúde do casal FF, sobretudo aquele arguido, que proibiu, a partir de determinada altura, o ofendido FF de utilizar a botija de oxigénio que este mantinha junto da sua cama, não obstante dela necessitar em virtude dos graves problemas respiratórios de que padecia, decorrentes das várias pneumonias que sofreu, agravadas pelas más condições a que vinha sendo sujeito, alegando o arguido AA que “gastava muita luz”.
Deu como não provada nos itens 31º e 32º a seguinte matéria de facto:
- a arguida EE sempre tratou o casal FF e o GG de forma respeitadora, sem lhes dar ordens nem os constranger e nunca lhes ficou com o dinheiro/produto do seu trabalho.
- a arguida EE levou o FF ao médico, mesmo contra a vontade daquele.

A arguida/recorrente EE convoca as seguintes provas que, no seu critério, determinavam diferente decisão do Tribunal recorrido quanto aos identificados pontos da matéria de facto:
- Depoimento do ofendido GG (auto de inquirição constante de fls. 1205 e 1206 dos autos, cujas declarações foram lidas em audiência de julgamento, por força do ocorrido óbito da testemunha): “diariamente o AA destinava-me as tarefas a executar”;
- Declarações da ofendida RR: “Não me dava mal com ela” (com a ora recorrente) e, questionada se a arguida EE a tratava por “RR”, respondeu: “Às vezes, outras vezes pelo meu nome”; “Íamos ao médico”; “Quando estava com o AA e com a DD, era a DD, quando estávamos com o AA e a EE, era a EE que nos levava lá” (ao médico).
Com base nas aludidas provas, conclui a recorrente que ninguém trata alguém por “RR” e a maltrata em simultâneo, afirmação que, todavia, não encontra qualquer arrimo nas regras da experiência comum e da lógica, pois que, além do dito tratamento ter sido esporádico, não constante, obviamente não exclui a possibilidade de a arguida maltratar a ofendida, ofendendo-a física e/ou verbalmente e concedendo-lhe um tratamento degradante, quer perpetrando as respetivas condutas pessoalmente quer compactuando com o coarguido na sua prática.         
Face à míngua ou ausência de prova corroborante, também não é de acolher a conclusão recursória de que deviam ter sido dados como provados os factos (tidos por não provados) de que “a arguida sempre tratou os ofendidos de forma respeitadora, sem lhes dar ordens nem os constranger e nunca lhes ficou com o dinheiro/produto do seu trabalho”.  
Por outro lado, no que respeita à alegada negação da limitação de gastos com a saúde dos ofendidos AA e BB e à pretendida corroboração da alegação constante da contestação de que a recorrente “levou o FF ao médico, mesmo contra a vontade dele”, verifica-se que a própria matéria de facto provada imputa sobretudo ao arguido AA esses comportamentos, mormente dirigidos ao ofendido FF, que, em virtude dos sérios problemas de saúde de que padecia, era o mais necessitado de cuidados e assistência médica.
Aliás, a própria arguida EE, nas declarações que prestou em audiência, confirmou que FF tinha problemas respiratórios, necessitando de uma botija de oxigénio e que o arguido AA «o proibiu de a usar, por gastar muita luz».
Como sustentado pelo Tribunal recorrido, a circunstância de os sobreditos comportamentos terem sido exteriorizados pelo arguido AA não afasta a coresponsabilização da recorrente, atenta a situação de coautoria que foi dada como verificada nos autos, pois que a mesma aquiesceu a tais práticas aviltantes como fazendo parte da execução do plano criminoso formado primeiramente pelo coarguido e a que ela aderiu.
Além disso, convém notar que a acusação, nesta parte dada como provada, não alega que os arguidos não levassem os ofendidos BB e FF ao médico, mas tão só que não o fizeram sempre que isso se demonstrou ser necessário face ao estado de saúde daqueles, principalmente do AA, sendo que os forçavam a trabalhar, sob ameaça de morte ou concretização de ofensas corporais, mesmo quando aqueles se encontravam doentes (cfr. ponto 28º dos factos provados).
Conforme expresso na motivação da decisão sobre a matéria de facto, a ofendida BB declarou que «a arguida DD os levou, a ela e ao marido, ao médico, e que a arguida EE também, mas menos vezes e «tinha que ser uma coisa grave e de resto, mesmo com dores costas, com hérnias, ela era obrigada a trabalhar e ele mesmo com braço aleijado tinha que trabalhar».
De todo o modo, por não se nos afigurar absolutamente despicienda a asserção constante da contestação de que a arguida EE chegou a levar (levou) o FF ao médico, cumpre, nessa parte, modificar a decisão recorrida, considerando como provada a respetiva factualidade que havia sido dada como não provada, assim constando da primeira parte do ponto 32º (cfr, conjugadamente arts. 412º, nº3 e 431º, al. b), ambos do CPP.  
No mais, não resulta das declarações da ofendida RR, bem como de qualquer prova produzida nos autos, que alguma vez a arguida EE tivesse transportado o FF ao médico mesmo contra a vontade deste.   
Quanto ao ponto 28 dos factos provados, na parte referente às agressões físicas sofridas pela ofendida BB e à respetiva atuação da arguida EE:
Neste conspecto, transcreve a recorrente trechos das declarações da ofendida BB em que refere que só foi agredida uma vez por aquela, com duas lambadas na cara, por motivos relacionados com a realização de um trabalho que ela lhe tinha ordenado fazer – tais transcrições respeitam o declarado pela ofendida - cf. gravação disponível no sistema informático citius - media studio das declarações prestadas na sessão de 30/09/2020, correspondente ao ficheiro 20200930105653_1934310_3993051, minutos 38.59 a 39:05 e 42:19 a 43:15.
Mais invoca a recorrente, com base em transcrições do por si declarado em audiência de julgamento, a sua negação de tais factos.
Assim, menciona, constituindo a única prova sobre tal agressão as declarações da ofendida contraditadas pela negação da arguida, e não resultando do relatório social que esta seja uma pessoa agressiva, violenta, “existem dúvidas inultrapassáveis quanto à autoria dos factos pela arguida”, devendo funcionar o princípio in dubio pro reo e, como tal, ser considerado como não provada a factualidade constante do ponto 28 dos factos provados relativamente à recorrente.
Não sufragamos inteiramente o entendimento da arguida/recorrente.
O facto de serem adiantadas pelos sujeitos processuais em apreço versões distintas não gera, por si só, uma dúvida razoável, muito menos insanável, sobre a respetiva factualidade, na medida em que o julgamento do Tribunal rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), interferindo nessa operação critérios como o da credibilidade das declarações ou do testemunho, sendo que o Tribunal recorrido concedeu integral crédito, verosimilhança às declarações da ofendida BB em detrimento da negação dos factos adotada pela arguida EE. Também nós, atento o caráter pormenorizado e assertivo do relato produzido pela ofendida, não vislumbramos motivo para colocar em questão a veracidade do declarado.
Contudo, pelos preditos motivos, aderimos ao expendido pela recorrente no que respeita à circunstância de se ter provado que apenas em uma ocasião a arguida EE agrediu fisicamente a RR, o que não é consentâneo com a genérica afirmação constante do ponto 28, primeiro parágrafo, in fine, de que «a arguida EE agredia fisicamente a ofendida BB, batendo-lhe», que transmite a errada ideia de se tratar de uma prática habitual, recorrente.     
Deve, pois, manter-se inalterada a decisão recorrida no que concerne à deliberação de considerar provada, relativamente à arguida EE, a matéria do ponto 28 dos factos provados, mas alterando-se, nos termos conjugados dos arts. 413º, nº3 e 431º, al. b), ambos do CPP, a asserção constante da parte final do primeiro parágrafo de que «a arguida EE agredia fisicamente a ofendida BB, batendo-lhe», considerando-se como provado apenas que a arguida EE, por uma vez, agrediu fisicamente a ofendida BB, desferindo-lhe duas estaladas na cara

Conexionada com a alegação anteriormente apreciada, a recorrente coloca também em causa a decisão quanto aos pontos 65 e 72 dos factos provados, por considerar que não existem elementos de prova para a sua prova, uma vez que só houve, quando muito, uma agressão e não há mais atos agressivos ou injuriosos praticados por ela.
Consta dos mencionados pontos da matéria de facto provada:
“65º
Os arguidos AA, DD e EE, em conjugação de esforços e vontades, nos períodos temporais respectivos, supra referidos, decidiram que as pessoas angariadas, uma vez chegadas a ..., ficariam sob o seu domínio e total dependência, sendo por si controladas.
Sobre as pessoas angariadas, era exercida violência psicológica, criando nelas um sentimento de medo e intimidação.
Os arguidos AA e EE, em conjugação de esforços e em acordo prévio, exerceram, ainda, violência física sobre as pessoas angariadas, maltratando-as fisicamente.
(…)
72º
Por força da conduta dos arguidos, os ofendidos AA e BB sofreram durante muito tempo profunda amargura, tristeza, medo pela sua integridade física e, até, vida, dores físicas e psíquicas, face ás condições a que foram sujeitos, agravadas pelas agressões perpetradas pelos arguidos AA e por vezes pela arguida EE.”
Chamando aqui à colação o já acima expendido quanto à possibilidade de responsabilização da arguida, a título de comparticipação (coautoria), pelos atos pessoalmente cometidos sobre os ofendidos pelo coarguido AA, mas abrangidos pelo desígnio criminoso por ambos comungado na sequência do pacto entre eles estabelecido e consubstanciadores da divisão de tarefas então acordada, cremos que a pretensão recursória da recorrente procede somente quanto à assiduidade ou frequência das agressões perpetradas pela arguida EE sobre a ofendida BB, soçobrando quanto ao restante.    
Em conformidade, nos termos conjugados dos arts. 413º, nº3 e 431º, al. b), ambos do CPP, determina-se a alteração da matéria de facto do ponto 72 dos factos provados, in fine, no que diz respeito à atuação da arguida EE ali descrita, substituindo-se a expressão «por vezes» pela expressão “por uma vez”

Impugnação que incide sobre a decisão da matéria de facto constante dos pontos 21 e 25 relativamente aos afirmados factos de que os ofendidos AA e BB começaram a residir com a arguida EE em finais de 2004 e em ...:  
Entende a arguida/recorrente que a prova documental que identifica, bem assim o depoimento prestado pela testemunha II, gera pelo menos dúvida séria e intransponível sobre a concreta data em que os ofendidos passaram a residir conjuntamente com aquela e local em que tal sucedeu, devendo, por isso, ser dada como provada a sua versão de que tal coabitação só sucedeu no ano de 2010 (ou, pelo menos, em 2009).
Sucede que, salvo o devido respeito, as provas que convoca não são suficientes para compelir uma modificação da decisão proferida pelo Tribunal a quo.      
Na verdade, o teor dos invocados documentos não atesta de modo minimamente seguro qual a efetiva morada de residência comum dos arguidos AA e EE entre finais de 2004 e 2009/2010, designadamente que não fosse a que foi dada como provada nos autos (cf. facto provado nº2).
Trata-se, no geral, de documentação apresentada junto de autoridades públicas que reflete apenas o que dela consta como sendo as moradas dos arguidos/ofendidos ali declaradas (supostamente) pelos mesmos, não resultando de uma observação empírica que assegure que as residências ali indicadas eram as reais, correspondentes aos locais onde habitavam os declarantes.
Acresce que o teor da busca domiciliária realizada na casa da arguida DD, no ano de 2005, não tem, como já acima se disse, o valor que a recorrente pretende lhe seja conferido de provar que naquela ocasião o casal FF ainda se encontrava a viver naquela residência ou, pelo menos, noutra habitação, sob o domínio (apenas) do arguido AA.     
Também o extrato do depoimento prestado pela testemunha (menor) II na audiência de julgamento, transcrito como “comecei o 2º ano em ... e depois é que fomos para Alfândega”, pela sua imprecisão, vaguidade e pela circunstância de ter sido infirmado pelas credíveis declarações dos ofendidos BB e FF, mostra-se insuficiente para fazer sobrepor a versão factual aduzida pela arguida EE face à que foi acolhida pelo Tribunal recorrido.
Ademais, o Tribunal recorrido abordou na fundamentação o depoimento prestado pela dita testemunha expondo – de modo correto – o que dele se pode retirar ao nível probatório, nomeadamente a sua incapacidade para comprovar que os arguidos AA e EE viveram (exclusivamente) em ... até 2010:
“§ 4.25. II, nascida a ../../2003 e que esteve á guarda dos arguidos EE e AA, que conheceu o casal FF «quando foram em 2010 para ..., vindos de ...» (mas, daqui não se pode retirar que, até 2010, os seus «pais» não conhecessem o casal FF, por residirem em ... – versão esta veiculada pelos arguidos AA e EE – desde logo porque, em 2009, os arguidos moravam em Espanha: cf. apreensão da “denuncia de infracción penal” de 25/09/2009 feita pelo arguido AA nas instalações da Guardia Civil de ..., ..., Espanha e do contrato de fornecimento de energia pela “EMP01...”, de 10/07/2008, relativo ao contrato de fornecimento de energia à cliente EE na morada em ...; de resto, a morada exclusiva dos arguidos, em ..., quando em Portugal, surge infirmada pelo teor de fl. 48-49 (nas renovações das cartas de condução, o arguido AA, em 2008, dá como residência ...) e de fl. 54-55 (em 2009, a BB indica como contacto telefónico, ao requerer o cartão de cidadão, um nº de telemóvel titulado pela arguida EE) e que, depois de relatar, espontaneamente (o que é significativo: porquê tal referência) que o casal FF era «tratado como pessoas normais, e não como criados», acabou por admitir que o casal «raramente saia de casa» e quando saíam, iam sempre acompanhados pelos arguidos AA e EE «todos juntos» o que, neste contexto, é, evidentemente significativo, e mais significado assumiu o relato do «medo» dos ofendidos FF (que, de resto, lhe confidenciaram estarem «fartos»), sobretudo em relação ao arguido AA («medo» este recorrentemente afirmado, como se viu).”
Por último, alega a arguida/recorrente [conclusões 43 a 45] que também o ponto 76 deveria ter sido considerado por não provado, já que ao contrário do decidido pelo Tribunal, a arguida tinha rendimentos próprios, com os quais provia à sua subsistência (mesmo tendo de os entregar ao coarguido).
Refere que a sua versão é sustentada pelas suas próprias declarações, depoimentos das testemunhas inquiridas e pela abundante prova documental (designadamente as suas declarações de rendimentos, bem como a relação de bens de que era possuidora), prova que, segundo ela, não foi valorada pelo Tribunal, tendo violado o artigo 124º do CPP.
 A impugnação está, nesta parte, condenada ao insucesso porquanto a alegação realizada encontra-se desacompanhada, quer no corpo motivador quer nas conclusões, da identificação de qualquer prova concreta que impusesse decisão diversa da assumida pelo Tribunal a quo quanto a este específico ponto da matéria de facto.

Aqui chegados, urge concluir que, com exceção dos concretos pontos da matéria de facto cuja necessidade de modificação da decisão acima se apontou, compulsado o teor dos sobreditos meios probatórios, bem como dos demais produzidos nos autos e convocados pelo Tribunal a quo na motivação sobre a decisão da matéria de facto aduzida no acórdão recorrido, não merece censura tal decisão.
Salvo melhor opinião, a arguida/recorrente EE pretende impor a apreciação que ela própria faz da prova produzida, rectius, de parte exígua e desconectada dessa prova, formulando um juízo, compreensível e necessariamente, parcial, de que dela decorre uma impossibilidade ou, pelo menos, dúvida, quanto à real ocorrência dos factos contestados, pelo menos do modo como vieram a ser dados como provados, ou que tendo sido dados como não provados, forçosamente deveriam ter sido considerados provados.
Todavia, para o efeito, como vimos, o recorrente estriba-se em provas que, pelo seu conteúdo e alcance, apreendidos por si só e/ou valorados à luz das regras de experiência comum, são insuscetíveis de determinar distinta decisão da matéria de facto, oposta até à que foi tomada pelo coletivo de Juízes, i.e., que tornassem insustentável, face às regras da experiência comum e da lógica, a avaliação operada pelo Tribunal a quo.
O princípio da livre apreciação da prova, constituindo um princípio estruturante do direito processual penal português, encontra-se vertido no art. 127º do Código Processo Penal, que preceitua: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção da entidade competente.”
Tal princípio está intimamente conexionado com o princípio da descoberta da verdade material e contrapõe-se ao sistema probatório fundado nas provas tabelares ou tarifárias que estabelece um valor racionalizado a cada prova, porquanto por via da livre apreciação da prova concede-se ao julgador um âmbito de discricionariedade, ainda que limitada, na valoração de cada uma das provas atendíveis que estribam a decisão de facto.
Tal discricionariedade não é absoluta, antes balizada pelas regras da ciência, da lógica e da argumentação que devem nortear o decisor na apreciação da prova produzida. Por conseguinte, o juiz, na fundamentação da decisão de facto, deve justificar, fundamentando convenientemente, as suas próprias escolhas, ou seja, porque valorou cada prova de determinado modo (por exemplo, porque concedeu credibilidade ao depoimento de uma testemunha e negou credibilidade ao depoimento de outra testemunha). Compreende-se que assim seja, sob pena de a convicção do tribunal se tornar não sindicável, caindo no mero livre arbítrio, o que não se coaduna com um sistema de justiça próprio de um estado de direito democrático.    
É por isso que José Mouraz Lopes, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, p. 78, entende que a «livre apreciação da prova» é, de alguma forma, um sofisma, na medida em que se deve falar é de uma livre apreciação racional e fundamentada da prova.
Nas palavras de José Tomé de Carvalho, in “Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão final penal no ordenamento jurídico português”, Revista Julgar, nº21, 2013, p. 84, «o livre convencimento não equivale assim a valoração livre, estando o processo deliberativo condicionado pelas regras de lógica, experiência, técnica e ciência, apesar de na reconstrução de determinado facto o juiz ser livre de crer (ou não) numa determinada fonte probatória, agora que o tempo das provas legais e tabelares se finou».
Assim também tem sido entendido, reiteradamente, pelo Tribunal Constitucional, num juízo de conformidade do disposto no art. 127º do CPP com a Constituição.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 1165/96, de 19.11.1996, in DR, Série II, de 06.02.1997 (reiterado pelo acórdão do mesmo Tribunal nº 464/97, de 01.07.1997, in DR, Série II, de 12.01.1998): «A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efetiva motivação da decisão». 
Ainda o acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/02, proferido no âmbito do processo nº 528/02, onde se lê «[…] de acordo com o entendimento que tem vindo a ser professado por este tribunal, a valoração da prova segundo a livre convicção do julgador não significa uma apreciação contra a prova ou uma valoração que se desprendeu da legalidade dos meios de prova ou das regras gerais de produção da prova, ou seja, não é admissível uma valoração arbitrária da prova, sendo a convicção do julgador «objetivável e motivável», conjugando-se com dever de fundamentar os actos decisórios e de promover a sua aceitabilidade».
In casu, consideramos que o tribunal a quo interpretou corretamente e em conformidade com os ditames constitucionais o disposto no art. 127º do Código de Processo Penal (excetuando, frisa-se, na parca parte em que procedeu a impugnação).
Na verdade, o Tribunal recorrido explanou na fundamentação da decisão de facto do douto acórdão as fontes probatórias que acolheu para a tomada de decisão, o respetivo conteúdo e alcance, e, outrossim, por que motivo credibilizou umas e descredibilizou outras, observando sempre os limites legais da livre convicção, respeitando as regras da experiência e da lógica.
O juízo valorativo do Tribunal a quo é perfeitamente defensável face às regras da experiência e da lógica.
A recorrente discorda do sentido que o tribunal recorrido conferiu à prova produzida; porém, essa (legítima) discordância não basta para que este Tribunal de recurso altere aquela decisão, já que para tal era forçoso concluir que o juízo probatório assumido pelo tribunal a quo afrontava de modo crasso, evidente, inequívoco, as regras da experiência e da lógica ou os conhecimentos técnicos/científicos predominantemente vigentes, impondo-se por isso a sua revogação, o que, reitera-se, não sucede. Pelo contrário, o juízo probatório efetuado pelo Tribunal recorrido é o que se apresenta como mais clarividente e conforme ao sentido da globalidade da prova produzida nos autos, apreciada em concatenação.
Pelo exposto, procede parcialmente, nos preditos termos, a deduzida impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

III.2.1.4 – Alegada violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo:
A Constituição da República Portuguesa, no seu art. 32º, nº1, estabelece que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa”. Nestas garantias inclui-se e emerge de modo assaz relevante o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32º, nº2 do Texto Fundamental, nos seguintes moldes: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
No caso sob apreciação, a decisão da matéria de facto operada pelo tribunal recorrido não encerra qualquer violação da presunção de inocência da arguida EE. Antes é suportada em prova produzida nos autos, suficiente e idónea para o efeito, que foi valorada pelo tribunal em conformidade com os ditames legais. Não é uma decisão arbitrária, meramente discricionária, persecutória, eivada de pré-juízos contrários à posição da arguida.  
Por seu turno, o princípio in dubio pro reo é complementar do princípio da presunção da inocência e o seu campo de aplicação encontra-se após a conclusão da tarefa judicial da valoração da prova produzida e quando o resultado desta não é conclusivo; neste caso, por via desta regra atinente à decisão, a dúvida insanável, inultrapassável sobre os factos deve favorecer o arguido. 
O princípio in dubio pro reo encerra uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
À semelhança do que sucede com os vícios consagrados no n.º 2 do artigo 410.º, em sede de recurso a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento, antes sendo um remédio jurídico - cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2008, processo 08P3456, do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.01.2015, processo 72/11.2GDSTR.C1, de 03.06.2015, processo 12/14.7GBSTR.C1, e de 12.09.2018, processo 28/16.9PTCTB.C1, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.07.2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No caso sub judice, não exsuda do texto da decisão recorrida, designadamente da motivação da decisão de facto, que o tribunal tenha sido assolado por uma dúvida razoável, muito menos insanável, que forçasse os julgadores a recorrerem ao princípio in dubio pro reo para dar por não provada a matéria de facto atinente aos pontos dos factos provados de cujo julgamento a recorrente discorda.
Ao invés, o tribunal recorrido não se posicionou numa situação de dúvida quanto ao sentido da prova produzida sobre os factos em questão, sendo que o respetivo entendimento lavrado na decisão recorrida, atenta a prova produzida, é defensável face às regras da experiência comum e da lógica, que o não contrariam impreterivelmente.
Destarte, conclui-se pela inexistência de violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.

III.2.1.5 – (Não) verificação dos pressupostos da coautoria:

Nesta parte do recurso alega a arguida/recorrente EE, resumidamente [conclusões 48ª a 59ª]:
- Para a arguida ser considerada coautora teria de ter domínio funcional sobre os mesmos, estando na sua determinação e vontade a sua prática.
- Resulta da prova produzida que arguida EE, não tem domínio de qualquer facto, nem sequer o poderia impedir porque quem controlava tudo era o Sr. AA (veja-se as declarações dos ofendidos), bem como das testemunhas, designadamente da HH (que direta e frontalmente descreve a personalidade e comportamento do arguido).
- Face a toda a prova produzida, dúvidas não há, que a única pessoa com domínio global de todos os factos era mesmo o coarguido, não tendo a arguida EE qualquer autonomia na sua prática ou sequer tinha alguma sobre a decisão de impedir qualquer ato sobre os ofendidos, inclusive os que alegadamente praticou, foi por imposição e temor, pelo que não agiu de forma livre e voluntaria.
- Nos factos imputados à coarguida EE (independentemente da sua alteração) não resulta dos mesmos que ela tenha o domínio funcional sobre os mesmos e muito menos que se ela não participasse que eles se deixassem de produzir.
- Resulta de todos os factos dados por provados pelo Tribunal que esse domínio não lhe pertence e não resulta que os mesmos derivem da sua atuação e tenham acontecido por via disso.
- Não são concretizados pelo Tribunal, quaisquer atos que permitam aferir a existência desse alegado acordo prévio entre ambos os arguidos (EE e AA).
- Como o Tribunal a quo refere, os ofendidos, sobretudo por causa da conduta do arguido AA, temiam seriamente pela sua vida, sendo obrigados a trabalhar”.
Conhecendo.
Consideramos que o respeitável entendimento da recorrente não pode prevalecer, pois que a matéria de facto dada como provada – mesmo considerando as necessárias alterações supra identificadas no item III.2.1.2 – permite preencher os requisitos legais da figura da «coautoria» enquanto forma de comparticipação criminosa prevista no art. 26º do CP.
Estatui o art. 26º do Código Penal (CP): “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.”
Como refere Maria da Conceição Valdágua (A Autoria Mediata no Âmbito da Criminalidade Organizada), referindo-se ao artigo 26º do Código Penal e citada por Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette[7], «esta disposição legal descreve sucessivamente quatro formas de comparticipação criminosa, em cada uma das quais o agente é, invariavelmente, “punível como autor”, consistindo a primeira e a terceira na prestação de contributos de natureza material e as duas restantes na prestação de contributos de natureza moral ou psíquica. Trata-se, concretamente, das formas de comparticipação criminosa que, na literatura juspenalista portuguesa, são designadas por autoria imediata, autoria mediata, co-autoria e instigação, as quais, nos termos da lei, consistem, respetivamente, em: 1) executar o facto por si mesmo; 2) executá-lo por intermédio de outrem; 3) tomar parte direta na execução do facto, por acordo ou conjuntamente com outro ou outros; 4) determinar dolosamente outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução»          
A coautoria implica a execução conjunta do facto pelos agentes, com base num acordo firmado entre eles (expresso ou tácito, prévio ou concomitante à execução) sobre a repartição de tarefas, com o fito comum de realização do facto. Exige-se, por via da existência do acordo, a consciência bilateral de colaboração entre os participantes.
Nas palavras de Maria Paula Ribeiro de Faria, in “Formas Especiais do Crime”, 2017, UCE Porto, p. 312, «Estamos aqui perante a realização conjunta de um crime que supõe a existência de um plano ou de um acordo que é tido por Eduardo Correia como o “elemento mais importante” da coautoria, e o contributo objetivo de cada um dos autores na execução do facto. Nenhum dos coautores possui na íntegra o domínio do facto no sentido normalmente usado para definir a autoria, de tal forma que em lugar de domínio do facto, Figueiredo Dias usa antes o conceito de “condomínio do facto”, para designar o que considera ser uma partilha desse domínio, ou o exercício conjunto desse domínio.»
No que tange ao «plano conjunto», a autora entende que «a componente subjetiva desta forma de autoria consiste na decisão conjunta de cometer o crime que revela o dolo dos vários autores relativamente aos factos praticados e que constitui o fator agregador das componentes objetivas que nele assentam» [idem, p. 313].
Adianta ainda que o nosso direito penal não prescinde da contribuição objetiva do agente na fase de execução, pelo que não é suficiente a sua vinculação a um plano conjunto. Assim, aduz que «o coautor tem de estar “envolvido” quer na fase de planificação, quer na fase da execução do crime, e a concretização do plano criminoso tem de depender dele» [ibidem]. Não é coautor aquele que somente comunga do plano conjunto, não chega a intervir de forma ativa na sua concretização, exigindo-se uma atuação relevante de cada um dos coautores no contexto de uma acordada repartição de tarefas.
Como se expressa no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/2014, processo nº 168/11.0GCCUB.S1, disponível em www.dgsi.pt: «Quando vários arguidos realizam, em comum, um facto ilícito, todos são autores (a própria lei denomina neste caso os intervenientes como «co-autores»). A co-autoria também se baseia no domínio do facto. Porém, a partir do momento em que na sua execução intervêm vários autores o domínio do facto tem de ser comum, cada co-autor domina o processo total em união com outra ou outras pessoa, consistindo assim numa «divisão de trabalho», que torna possível o facto ou que facilita o risco e requer, no aspecto subjectivo, que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma una resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial mas essencial que o apresenta como co-titular da execução de todo o processo.»
No mesmo sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.12.2017, processo nº 470/16.5JACBR.S1, disponível em www.dgsi.pt:
«A co-autoria, como tal referida na tipologia das formas de autoria (3.ª alternativa), configura uma forma de participação em que o domínio do facto (na esteira de Roxin) é exercido com outro ou outros, tratando-se de um domínio, agora, “colectivo”, ou de um condomínio de facto, na expressão de Figueiredo Dias (“Direito Penal, Parte Geral”, I, 2.ª ed., reimp., Coimbra Editora, pág. 791).
Segundo este autor, o que há de característico nesta figura é uma decisão conjunta e uma determinada medida de significado funcional da contribuição do co-autor para a realização típica traduzida na tomada de parte directa na execução conjunta do facto.
A actuação de cada autor é essencial na execução do plano comum, ela sendo a tarefa com vista à realização desse plano.
O acordo ou a decisão conjunta representa a componente subjectiva da co-autoria e é esse elemento que permite justificar que o agente que levou a cabo apenas uma parte da execução típica responda, afinal, pela totalidade do crime.
O acordo pode ser expresso ou tácito (implícito), a aferir razoavelmente dos factos materiais comprovados e ao qual se pode aderir antes do início da execução do facto (como é a regra), ou durante a realização do facto e até à consumação (co-autoria sucessiva) e, desde que se não comparticipe na totalidade dos actos, o contributo de cada um para o facto tem de ser essencial à produção do resultado.
O co-autor, ao aderir ao plano inicial, torna-se senhor do facto, que domina globalmente tanto pela positiva, quando assume um poder de direcção preponderante na execução conjunta do facto, como pela negativa, quando está nas suas mãos poder impedir o facto (Acs. STJ de 05.06.2012, Proc. 148/10.3SCLSB.L1.S1 e 04.07.2013, Proc. 1243/10.4PAALM.L1.S1).
Quanto à execução conjunta, o domínio do facto assenta numa repartição de tarefas, sendo indispensável que do contributo objectivo dependa o se e o como da realização típica e não apenas que o agente se limite a oferecer ou pôr à disposição os meios de realização (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 795).
Sintetizando, a co-autoria apresenta como elementos integrantes: um acordo, expresso ou tácito para a realização conjunta de uma acção criminosa (a)); intervenção directa na fase executiva do crime (b)); repartição de tarefas ou papéis entre cada comparticipante (c)); domínio funcional do facto, traduzido na possibilidade de exercer o domínio positivo do facto típico e de impedir ou abortar esse resultado (d)).»

A propósito da imputada atuação dos arguidos AA e EE em coautoria, expendeu o Tribunal a quo na fundamentação de Direito:
«Os arguidos AA e EE actuaram em co-autoria, porque mediante decisão prévia e em actuação conjunta, não sendo necessário que todos os comparticipantes desenvolvem toda a actuação típica (cf. Ac. STJ de 5.6.2012, Processo 148/10.3SCLSB.L1.S1) – dir-se-á até que a prática de todos os actos que integram o iter criminis raramente ocorrerá, sendo precisamente a repartição de tarefas a mais-valia que a comparticipação representa para os consortes.
O coautor está sempre comprometido, em maior ou menor grau, com a realização típica – por isso que o facto é dele, precisamente porque realiza “um facto que preenche um tipo de crime” (art. 14º CP) – e é punível como autor quem executar o facto (é assim que se inicia o art. 26).
Portanto, e sem prejuízo de uma evidente preponderância do arguido AA, a arguida EE actuou em coautoria com aquele.»
Não obstante a concisão da argumentação adiantada, entendemos corroborar a conclusão jurídica do Tribunal de primeira instância.
Com efeito, encontra-se comprovado que existiu um plano criminoso forjado pelo arguido AA a que aderiu a arguida EE, assim se formando um acordo entre eles consubstanciador de uma decisão conjunta de praticar os ajuizados factos. Tal plano consistiu, em linhas gerais, em: “(…) como forma de obterem dinheiro fácil, angariar em Portugal cidadãos, com manifestas fragilidades e/ou vulnerabilidades, designadamente, porque portadores de deficiência/atraso que lhes diminuía a capacidade de autodeterminação, com um baixo nível de escolaridade e oriundos de grupos sociais desfavorecidos e/ou com problemas económicos, com intenção de explorarem a força de trabalho dos referidos cidadãos e de se apoderarem das remunerações correspondentes ao trabalho prestado pelos mesmos e, assim, obterem lucros mediante a sua utilização.” – cf. facto provado nº3.
Por outro lado, está provado que, tendo em vista ao êxito do sobredito plano, foi acordado entre ambos dividirem tarefas na execução dos factos, cabendo, em geral, à arguida EE «além do mais (…) confecionar a alimentação que era fornecida aos trabalhadores, de anotarem as horas de trabalho prestadas pelos trabalhadores, sob indicação do arguido AA, e ainda, a de, juntamente com o arguido AA, confiscar e/ou reter a documentação de tais trabalhadores.» - cf. ponto 14 dos factos provados. Além disso, ressuma da factualidade provada constante dos pontos 4 a 14, 16, 17, 21 a 26, 28, 29, 32 a 36, 40 a 44 e 49 a 55, que a arguida em execução do plano entre eles delineado, sempre em conjugação de esforços e divisão de tarefas com o arguido AA: a) participou no confisco e guarda de documentação pessoal e bancária dos ofendidos; b) concedeu guarida aos ofendidos no sótão da habitação que possuía juntamente com o coarguido ou determinou a vivência daqueles num outro local, denominado por “...”, ambos os espaços sem condições mínimas de habitabilidade; c) interveio no transporte dos ofendidos para Espanha a fim de participarem nas campanhas agrícolas descritas nos autos; d) apoderou-se das retribuições pagas pelas entidades patronais pelo trabalho desenvolvido pelos ofendidos, em condições de acentuada precariedade, gastando-as em proveito próprio e do seu agregado familiar; e) ao agredir corporalmente a ofendida BB por esta não se disponibilizar a executar um trabalho que lhe foi ordenado pela arguida, contribuiu, ainda que em muito menor medida (comparativamente com os comportamentos do coarguido), para a criação de um clima de temor dos ofendidos; f) participou na atividade de angariação do ofendido GG; g) com o fito de possibilitar ao ofendido GG voltar a receber a sua pensão de invalidez, para ulteriormente os arguidos se apoderarem dos respetivos valores, a arguida diligenciou para que o ofendido obtivesse segundas vias da sua documentação pessoal e bancária, acompanhando-o nas necessárias démarches, servindo como testemunha da sua identidade e residência, fornecendo para o efeito a morada da sua casa e o seu contacto telefónico, assim logrando a emissão da pretendida documentação, que ficou na posse dos arguidos; h) acompanhou o ofendido GG à agência bancária para que ele procedesse ao levantamento da quantia que lhe era paga a título de pensão de invalidez e, no exterior, exigiu-lhe a sua entrega e fez daquele património coisa sua, despendendo-o conjuntamente com o arguido.                    
Por tudo isto, dúvidas não sobejam de que os comportamentos da arguida contribuíram de modo relevante, essencial para a execução dos factos, no âmbito da acordada repartição de tarefas.
Neste aspecto, não colhe a objeção da recorrente de que não dispunha do domínio do facto.
O exercício do domínio do facto coube, em conjunto, a ambos os arguidos, AA e EE, pois a atuação de cada um deles, integrando a globalidade dos factos cometidos, foi imprescindível para a concretização do plano criminoso.
A arguida perpetrou actos que demonstraram, não uma mera subalternidade à figura do arguido AA, seu companheiro, mas o exercício de um poder individual na execução conjunta do facto; além disso, as relevantes funções que desempenhou em execução do acordo previamente firmado com o coarguido revelam-se indispensáveis para o sucesso do plano criminoso, na medida em que o mesmo não vingaria caso ela não se responsabilizasse pela confeção das refeições dos trabalhadores, pois que sem alimentação disponibilizada não disporiam os ofendidos de condições físicas para desenvolverem o árduo trabalho que lhe era exigido, não fossem por ela contabilizadas e anotadas  as horas de trabalho prestadas pelos trabalhadores (ainda que mediante indicação do arguido AA, que não sabia ler e escrever) e ela cedesse também instalações da sua casa para albergar os ofendidos e, juntamente com o arguido AA, confiscar e/ou reter a documentação de tais pessoas.
Finalmente, a matéria de facto provada espelha inequivocamente os elementos da componente subjetiva da coautoria, ou seja, a decisão conjunta de cometimento dos factos que demonstra o dolo dos coautores – cf. pontos 61 a 65 dos factos provados.
Conclui-se que, nos termos do art. 26º do CP, a arguida EE cometeu os ajuizados factos em coautoria com o arguido AA.       
Improcede, nesta parte, o recurso deduzido pela arguida EE.       

III.2.1.6 – Qualificação jurídica dos factos provadosquestão comum ao recurso do arguido AA:   
 
Ambos os arguidos/recorrentes, EE e AA, se insurgem contra a subsunção jurídica dos factos provados realizada, considerando tal factualidade, quanto aos ofendidos FF e BB, é suscetível, quando muito, de integrar a prática dos crimes de tráfico de pessoas imputados na acusação, mas não os crimes de escravidão por que enveredou o Tribunal a quo.   

Alega a recorrente EE, em síntese [conclusões 60 a 64]:
- Mesmo tendo em conta os factos que foram julgados por provados e que são imputados à recorrente, julgamos que os mesmos consubstanciam a pratica do crime de trafico de pessoas nos termos do artigo 160º1, alínea d), tipificado a partir de 15/09/2007, e não o crime de escravidão, p.e p. pelo artigo 159º alínea a) do C.P.
- A sua conduta nunca foi de tratar como “objetos” os ofendidos “AA e BB”, mas foi similar à sua conduta perante o ofendido GG (que foi pelo tribunal qualificada como um crime de trafico de pessoas).
- Nunca foi intenção da arguida tratar como “coisas e objetos” os ofendidos, que são elementos necessários para os factos serem conduzidos ao crime de escravidão.
- Alegadamente a sua conduta foi de os explorar laboralmente (o que reconduz o seu propósito ao crime de trafico de pessoas face aos elementos objetivos que o compõem).
Alega o recorrente AA, em resumo [conclusões 20 a 23]:
- Mesmo perante a matéria de facto dada como provada e não provada no Acórdão de que se recorre, não se encontram preenchidos os pressupostos/elementos da prática dos 2 crimes de Escravidão p. e p. pelo Artº. 159º. alínea a) do Código Penal, mas, sim, os pressupostos/elementos da prática de 2 crimes de Tráfico de Pessoas, p. e p. pelo Artº. 160º. nº. 1 alíneas c) e/ou d) do Código Penal, com as consequências jurídicas daí decorrentes.
- Acresce que, tão pouco se encontraram factos que possam ser convincentes de significados como “trabalhos forçados”, “ausência de liberdade na sua essência e desenvolvimento”, como hoje identifica a O.I.T., ou, no sentido actual da identificação de fenómenos de escravidão, no contexto dos Direitos Humanos, significados de “objecto humano”, “mercadoria”, “ausência de autodeterminação”, “cativeiro”, enfim, tudo conceitos que no concreto não constavam da Douta Acusação consubstanciados em factos concretos.
Apreciando.
Estatui o art. 159º do Código Penal [redação introduzida pelo DL nº 48/95, de 15/03]:
“Quem:
a) Reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo; ou

b) Alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar com a intenção de a manter na situação prevista na alínea anterior;
é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.”

O citado preceito legal, prevendo o crime de escravidão, visou consagrar o que tal respeito se dispõe na Convenção de Genebra sobre a escravatura, assinada em 25/09/1926, pelo que o tipo legal deve ser interpretado e aplicado à luz dos conceitos e princípios constantes desse texto de Direito Internacional, conforme ditame constitucional expresso nos arts. 8º e 29º, nº2, da Constituição da República Portuguesa.
A definição de «escravatura» encontra-se vertida no art. 1º, §1, da mencionada Convenção nos seguintes termos: «o estado ou condição de um individuo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade».
A proibição da escravatura mostra-se consagrada em outros textos de Direito Internacional.
Assim, preceitua o art. 4º da Declaração Universal dos Direitos do Homem: «Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos».
A predita proibição é igualmente determinada no art. 4º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: «1 – Ninguém pode ser mantido em escravatura ou servidão. 2 – Ninguém pode ser constrangido a realizar um trabalho forçado ou obrigatório», bem como no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, cujo art. 8º dispõe: «1 – Ninguém será submetido à escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, sob todas as suas formas, são interditos. 2 – Ninguém será mantido em servidão. 3 a) – Ninguém será constrangido a realizar trabalho forçado ou obrigatório».
Segundo a Convenção Suplementar de Genebra relativa à Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, de 1956, são condições análogas à escravidão todas as situações em que uma pessoa é reduzida à «categoria de mero objeto, coisa ou mercadoria». São elas a servidão por dívidas, a servidão da gleba, a alienação ou aquisição a qualquer título, do direito de disposição total sobre mulher ou menor.
Tais estados e condutas subsumem-se na descrição da alínea b) do art. 159º.    
O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, I Volume, Academia das Ciências de Lisboa, 2001, Verbo, pág. 1504, atribui à palavra “escravo” os seguintes significados: «1. Pessoa que não é de condição livre, que está sob a dependência absoluta de um senhor, de quem é propriedade, por nascimento, venda captura na guerra, condenação… 2. Pessoa privada de liberdade ou de direitos; pessoa submetida a um poder tirânico, a um governo despótico, ao domínio de uma nação estrangeira 3. Pessoa que se submete às vontades ou submete às ordens de outrem, que vive na sua inteira dependência, por razões económicas, sociais, afetivas… 4. Pessoa que está completamente dependente de alguma coisa ou cuja conduta é continuamente pautada pela consideração dominante de alguma coisa. 5. Pessoa que trabalha em demasia.»; Ainda: «1. Que está sob a dependência absoluta de um senhor, que não goza de liberdade, não tem direitos cívicos. 2. Que é relativo pessoa que não é de condição livre, que é propriedade de um senhor. 3. Que está privado de liberdade ou de direitos; que está submetido a um poder tirânico, a um governo despótico. 4. Que é árduo, penoso. 5. Que vive totalmente dominado por alguém, que lhe obedece ou se lhe dedica inteiramente. 6. Que se encontra totalmente dominado por alguma coisa, dependente dela; cuja vida é guiada incessantemente pela consideração dominante de alguma coisa.”.
Como sagazmente se observa no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30/01/2013, Processo nº 1231/09.3JAPRT.P1, relator Desembargador José Piedade, acessível em www.dgsi.pt:
«Como é evidente, a integração contemporânea do conceito pouco ou nada tem a ver com o conceito de escravatura, quando foi decretada, em Portugal, a proibição do tráfico de escravos, em 1836.
O conceito tem de ser densificado perante as circunstâncias sociais, históricas e políticas contemporâneas, e de acordo com as concepções ético-filosóficas dominantes.
Assim, na previsão se pretende integrar, entre outras formas de “escravidão”, a laboral, em que a vítima seja sujeita a uma situação de servidão, sendo objecto de uma completa relação de domínio por parte do agente, vivenciando um permanente “regime de medo”, não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho e não recebendo qualquer parte da sua retribuição.
O trabalho efectuado em tal situação de servidão ter-se-á de considerar trabalho realizado em condições análogas às de escravo, em que a vítima, colocada sob o domínio do agente, é destituída de toda a dignidade inerente ao ser humano; tal como conclui o MºPº em 1ª Instância, estabelece-se “uma relação tal que o primeiro se apodera totalmente da liberdade pessoal do segundo, ficando este reduzido a um estado de passividade idêntica àqueles que viviam em cativeiro”.»
Também no aresto do Tribunal da Relação do Porto de 09.12.2015, Processo nº 9238/13.0TDPRT.P1, relator Desembargador Borges Martins, acessível em www.dgsi.pt, se chama a atenção para a circunstância de a incriminação em apreço se reportar à exploração do ser humano feita por outro, sem que se resuma à escravidão em sentido estrito (como perpetrada em outros momentos da História, particularmente em vetustos tempos), abarcando todas as formas de servidão.
Assim, como ali se articula, «Haverá sempre que densificar o conceito com as circunstâncias económicas, sociais e culturais de cada época; e dentro de cada conjunto destas não é unívoco», sendo certo que «Não releva a comparação com aquelas formas mais extremas de esclavagismo para excluir o presente tipo legal. A pág. 640 desta obra [Enciclopédia del Diritto, volume XLI, Giuffrè Editore, Milão, pág. 625, entrada “Schiavitù”] pode ainda ler-se: Com esta incriminação, o ordenamento jurídico quer reprimir a constituição ou manutenção de relações de senhorio/sujeição que, considerando a pessoa análoga a um animal ou a uma coisa, não a tratam de acordo com a sua natureza humana. Objecto da tutela é o interesse da sociedade no reconhecimento e salvaguarda da personalidade individual. Mais que a liberdade, objecto de tutela é a pessoa humana.
Já no Trattato di Diritto Penale Italiano, vol. VIII, pág. 633, Manzinni engloba no conceito de escravidão «também as condições individuais que correspondem aos antigos institutos da semiliberdade e da servidão da gleba».
A condição análoga à escravidão em sentido estrito vem a ser a condição de um indivíduo que – por meio da actividade aplicada por outrem sobre a sua pessoa – se venha a encontrar (embora conservando nominalmente o status de sujeito do ordenamento jurídico) reduzido à exclusiva senhoria do agente, o qual materialmente o utiliza, apropria-se do seu rendimento, de modo similar aquele que – segundo o conhecimento histórico, reunido no actual património sócio-cultural dos membros da colectividade – o «senhor», em tempos, exercia o seu poder sobre o escravo – Paolo Pisa, Giurisprudenza Commentata di Diritto Penale, vol. I, Cedam, Padova, 1999, pág. 252.»
Observa-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.11.2013, Processo nº 322/04.1TAMLG.P1, relator Desembargador Augusto Lourenço, acessível em www.dgsi.pt: «[e]mbora julgando-se erradicado durante muito tempo, das chamadas sociedades “modernas e civilizadas”, assentes no Estado Social de garantia de plenos direitos a todos os cidadãos sem excepção, a verdade é que a realidade tem vindo a demonstrar um crescente aumento de uma nova modalidade de escravatura e de tráfico de pessoas com chocantes violações dos mais elementares direitos humanos../../../daniela.c.matos_st/Desktop/Proc  n ┬║ 355-15 - recurso penal-VW.doc - _ftn5, situada sobretudo a dois níveis», um deles, que releva para o caso sub judice, «a exploração laboral de mão-de-obra agrícola e industrial, em que as vítimas trabalham sem salários, sem liberdade e em regime de detenção ou carcere privado, muitas vezes passando fome e outras privações».
No pugnado sentido de que o conceito de escravidão contido no art. 159º, al. a), do CP contempla também os casos de servidão para a exploração do trabalho, veja-se ainda o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.11.2014, Processo nº 978/07.3PAESP.P1, relator Desembargador Artur Oliveira, disponível em www.dgsi.pt, onde se explicita que «A servidão constitui uma forma particularmente grave de negação da liberdade e uma realidade mais ampla que a invocada pelo sentido comum do termo “escravidão”», entendendo a Comissão Europeia dos Direitos do Homem a servidão como “a obrigação de viver e trabalhar na propriedade dos outros e de prestação de determinados serviços, remunerados ou não, bem como a impossibilidade de mudar a condição”.
Relativamente ao tipo objetivo do crime, considera Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 2008, UCE, anot. 4 ao art. 159º, págs. 428/9, que consiste «na redução de uma pessoa ao estado ou condição de escravo, isto é, de coisa sobre a qual se exercem os direitos de propriedade. A redução pode ser operada por qualquer meio. Ela não implica necessariamente um cativeiro da vítima, mas o cativeiro da vítima é um forte indício da existência de uma situação de escravidão. Trata-se de um crime de execução livre. Como concluiu o Conselho da Europa, na exposição de motivos da convenção sobre a acção contra o tráfico de seres humanos, a escravidão sexual, a escravidão laboral e a extração de órgãos são os meios de reduzir uma pessoa a escravo mais frequentes nas sociedades modernas.»
No que tange à «escravidão laboral», o insigne autor entende que para a sua verificação são exigidas cumulativamente duas condições: «por um lado, a vítima não tem qualquer poder de decisão sobre o número de horas de trabalho que tem de prestar e, por outro, a vítima não dispõe de qualquer parte da retribuição pelos serviços prestados.» [idem, nota 6, pág. 429].
O acórdão do Supremo Tribunal de 06.11.2014, proferido no Processo n.º 161/05.2JAGRD.C2.S1 – 5.ª Secção, relator Conselheiro Manuel Augusto de Matos, acessível em www.dgsi.pt, subscrevendo considerações tecidas no já citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-11-2013, sublinha que «constituem traços característicos da escravidão: o trabalho forçado ou obrigatório, mediante a prática ou ameaça de qualquer tipo de castigo, ainda que ab initio o trabalho resulte de burla relativa a promessa de trabalho e emprego; o exercício de um direito de propriedade sobre a pessoa escravizada por parte de outrem, recorrendo a castigos ou a ameaças da sua prática; a desumanização; e a limitação da liberdade de movimentos.»
Como pertinentemente elucida Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, p. 423, «Elemento essencial e suficiente da caracterização de uma conduta como escravidão é que uma pessoa seja em si mesmo tratada como uma coisa de que o agente dispõe como sua propriedade. Não basta, portanto, que uma pessoa seja instrumentalizada como meio para a realização de determinados objetivos (…)»     
O elemento subjetivo do tipo é consubstanciado pelo dolo em qualquer das suas modalidades previstas no art. 14º do CP, sendo que no que respeita à conduta prevista na alínea b) não basta o dolo eventual, exigindo-se ainda um elemento subjetivo do ilícito ou dolo específico materializado na particular intenção de, pelo menos, ao apossar-se de alguém o fazer para a manter com o status de escravo.
A abominável prática da escravatura afeta sobremaneira e, frequentemente, de modo irreversível, a própria dignidade da pessoa humana, pelo que o bem jurídico protegido pela incriminação é a «dignidade ou personalidade humana individual» (cf. Taipa de Carvalho, idem, e Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, in “Código Penal Anotado e Comentado”, 2ª Edição, anot. 3 ao art. 159º, p. 465; na jurisprudência, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2017, Processo nº 355/15.2T9VFR.P1.S1, relator Conselheiro Manuel Augusto de Matos e o já citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.12.2015).  
Retornando ao caso sob apreciação.
Atendendo à globalidade da factualidade dada por provada, conclui-se que, quanto às atuações perpetradas pelos arguidos AA e EE sobre os ofendidos FF e BB, aquela matéria de facto – ainda que só considerados os factos cometidos a partir de 15/09/2007 – permite o preenchimento integral dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal dos crimes de escravidão, previstos e punidos pelo art. 159º, alínea a), do Código Penal, pelos quais os recorrentes, em coautoria, foram condenados em primeira instância.
No que tange à fundamentação, nesta parte, da subsunção jurídica dos factos, expendeu-se no acórdão recorrido [item II.D)]:
«§ 2. Nos termos da al. a) do art. 159º CP, que não sofreu qualquer alteração desde 1982, é punida a conduta de “quem reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo”.
O artigo 159º CP não define o que deva entender-se por escravidão, pelo que se trata de uma norma penal em branco.      
Para o seu preenchimento, lança-se mão de instrumentos jurídicos internacionais, designadamente da Convenção sobre a Escravatura de 25/9/1926 (Decreto com força de lei n.º 14046 de 21/6/27 e Carta do PR de 26/8/27) e da Convenção Suplementar relativa à Abolição da Escravatura e Condições Análogas de 1956.
Aquela primeira dá uma definição da escravatura (“clássica”) como um estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos e quaisquer atributos do direito de propriedade (art. 1º/1 da Convenção).
Aquela segunda refere-se ás instituições e práticas análogas á escravidão “onde quer que subsistam, quer lhes seja ou não aplicável a definição de escravatura contida no artigo 1.º da Convenção relativa à escravatura, assinada em Genebra a 25 de Setembro de 1926” e que são, essencialmente, conquanto não exclusivamente, situações reconduzíveis ao estado o condição de servo, definindo a servidão como “a condição de qualquer vítima que seja obrigada tanto pela lei, pelo costume ou por acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e obrigada a fornecer a essa mesma pessoa, contra qualquer tipo de remuneração, determinados serviços sem poder mudar a sua condição servil” (artigo 1º, n.º2, da Convenção) – podendo tratar-se de servidão por dívidas ou de servidão da gleba entre outras.
Assim, decorridos cerca de 30 anos sobre a Convenção de 1926, fez-se sentir a necessidade de alargar o âmbito da proibição, passando a considerar-se como materialmente análogas á escravidão instituições jurídicas e práticas não previstas inicialmente e que vêm complementar a noção de escravidão ocorrendo legal equiparação – sendo indiferente, o que assume evidente relevo, que tais instituições ou práticas caiam no âmbito da definição da escravidão do art. 1º da Convenção de 1926.
Tal Convenção Suplementar nasceu da constatação, como do respectivo Preâmbulo consta que “a escravatura, o tráfico de escravos e as instituições e práticas análogas à escravatura ainda não foram eliminados em todas as partes do Mundo” e sido “decidido, em consequência, que a Convenção de 1926, ainda em vigor deve agora ser completada por uma convenção suplementar destinada a intensificar as medidas que, tanto na ordem interna como na internacional, levem à abolição da escravatura, do tráfico de escravos e das instituições e práticas análogas à escravatura”.
Pois bem.
Decorridos mais de 60 anos sobre a Convenção Suplementar e face á evolução das sociedades modernas assiste-se a um aumento preocupante dos novos meios, mais subtis, de escravidão (a moderna).
Na verdade, segundo um estudo realizado pela consultora Verisk Maplecroft que avaliou 198 países, com base na força das suas leis, a eficácia das suas aplicações e a gravidade das violações, os riscos da escravidão moderna aumentaram quase em três quartos, nos Estados-Membros da UE.
E, de acordo com a segunda edição do Índice de Escravidão Moderna (MSI), os cinco países da UE em que este risco mais se verificou são a Roménia, a Grécia, a Itália, Bulgária e Chipre – que constituem pontos de entrada para os emigrantes. Segundo o estudo, Portugal é um dos países onde o risco do aumento de escravidão moderna é uma realidade, assim como na Alemanha, Finlândia, Suécia e Polónia.
Tal surgimento, preocupante, de novas formas de escravidão, não passou despercebida á jurisprudência nacional.
Assim, no Ac. do TRP de 27/11/2013, proc. nº 322/04.1TAMLG.P1, assinala-se que “a escravatura assume hoje contornos bem diferentes daqueles que deram origem ao movimento abolicionista, mas nem por isso deixam de ser igualmente gravosos e condenáveis, se tivermos em conta que milhões de pessoas (homens, mulheres e crianças) vivem de forma explícita ou dissimulada sujeitos a um ambiente de escravatura, depois de terem sido vendidas como meros objetos, sem direito a qualquer ou a uma reduzida contrapartida pelo trabalho que desenvolvem, ficando nas mãos de indivíduos sem quaisquer escrúpulos, muitas vezes inseridos na teia do crime organizado”.
Mas, é sobretudo na jurisprudência internacional que a questão tem sido objecto de maior tratamento.
Sobre o conceito de escravidão e sua evolução para formas modernas, teve ocasião de se debruçar quer o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPI), e, ainda, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH).
Assim, no primeiro processo relativo á qualificação de crime contra a humanidade da redução ao estado de escravidão para fins de exploração sexual (Ac. de 16-6-2002 – Procurador contra Dragoljub Kunarac, Radomir Kovac e Zoran Vukovic – disponível no sítio da internet do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia; estando o acórdão disponível apenas em línguas inglesa e francesa, a citação que segue constitui tradução nossa da língua francesa), o TPI observou que:
“O conceito tradicional de escravidão, tal qual definido na Convenção de 1926 relativa á escravidão, e segundo o qual as pessoas são muitas vezes consideradas como bens móveis, evoluiu para abranger diversas formas contemporâneas de escravidão que se baseiam, elas também, no exercício de um qualquer, ou do conjunto, dos atributos do direito de propriedade. Nas diversas formas contemporâneas de escravidão, a vítima não está submetida ao exercício do direito de propriedade sob a sua forma mais extrema, como ocorre quando o escravo é considerado como uma coisa móvel; mas, em qualquer caso, o exercício de um qualquer ou do conjunto dos atributos do direito de propriedade leva, em certa medida, á destruição da personalidade jurídica. Tal destruição é mais grave no caso do escravo considerado como coisa móvel, mas tal não é mais do que uma diferença de grau…”.
E concluiu que:
“A questão de saber se uma dada situação constitui uma forma de redução em escravidão dependerá da existência de factores ou elementos que compreendam «o controlo dos movimentos de um indivíduo, o controlo do ambiente físico, o controlo psicológico, as medidas tomadas para impedir ou desencorajar qualquer tentativa de fuga, as ameaças de recurso ao uso da força ou a coacção, a reivindicação de direitos exclusivos, os tratamentos cruéis e as sevícias, o controlo da sexualidade e o trabalho forçado. Por conseguinte, não é fácil a enumeração exaustiva de todas as formas contemporâneas de escravidão abrangidas na noção alargada do termo”.
Por isso que, e a título meramente exemplificativo, o art. 8º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, refere que a escravidão existe “sob várias formas”.
Importa reter, pois, que será da análise de vários factores que se poderá concluir pela existência de escravidão, sendo de realçar ser sempre de exigir a existência de trabalho forçado sem qualquer contrapartida ou, então, com uma contrapartida irrisória, por um lado, e que nenhum dos restantes factores é, por si só, essencial ou constitutivo do crime de escravidão, por outro – e daí a dificuldade da sua enumeração exaustiva – sendo certo, claro está, que quanto maior o nº de factores em presença, mais notória se tornará a situação de escravidão – sem prejuízo de um só desses factores, se veemente, poder ser suficiente para caracterizar o crime de escravidão.
Assim, e designadamente:
O elemento/factor da duração temporal, não sendo embora reconhecido como “elemento constitutivo do crime”, pelo TPI, no aresto em análise, é um factor a ter em consideração, sendo que o tempo de duração necessário e suficiente para a caracterização da escravidão deverá ser aferido caso-a-caso – como parece evidente, quanto maior o período temporal de manutenção, maior será a sua contribuição para caracterizar a escravidão.
Tão-pouco as sevícias, o tratamento degradante, os maus-tratos, são, cada um de per si, elementos essenciais á escravidão (sem prejuízo da sua ponderação, evidentemente), pois, na expressão do célebre aresto Pohl “mesmo bem nutrido, bem vestido e confortavelmente alojado, um escravo permanece um escravo (…). Poder-se-ia eliminar qualquer prova de maus-tratos, esquecer a fome, as pancadas e outros actos de crueldade, o facto estabelecido da escravidão – o trabalho obrigatório sem contrapartida – permaneceria” (Processo Estados Unidos contra Oswald Pohl e consortes, Aresto de 3 de Novembro de 1947, in Trials of Major War Criminals Before the Nuremberg Military Tribunals under Control Council Law, n.º 10, Vol 5, (1997), p. 958 à 970).
Por isso que o TPI, no referido aresto de 16.6.2002, conclui que “a questão que nos devemos colocar é a da natureza do laço entre acusado e vítima”.
O entendimento do TPI foi seguido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TDHE) no seu aresto Trantsev contra Chipre e Rússia (de 7-1-2010, transitado em julgado em 10-5-2010, Processo n.º 25965/04), que identificou os seguintes factores que, conjugados com a prestação de trabalho forçado e não remunerado, contribuem para caracterizar o crime de escravidão: a retenção dos documentos do trabalhador; o confinamento a espaços; o desconhecimento da língua; a sujeição a maus tratos, mormente físicos; a ameaça.
Face ao referido aumento de novas formas de escravidão, o tipo legal de crime, não só não tem nada de obsoleto, como se afigura “imperiosa a manutenção do tipo [crime de escravidão] e imprescindível que o mesmo funcione” (Pereira e Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado. Legislação Complementar e Conexa, 2ª Edição, Quid Juris Sociedade Editora, 2014, p. 465), até pela “necessidade de proteção de emigrantes portugueses” – Código Penal, Actas e Projectos da Comissão de Revisão, 1993, p. 241, Ministério da Justiça.
Por isso que o art. 159º-a) CP é construído como um tipo de crime de execução livre e não vinculada.
E, nas nossas sociedades modernas o meio mais frequente de redução de uma pessoa a escravo é a escravidão laboral, desde logo porque, por pressupor uma subordinação jurídica, constitui um meio particularmente insidioso de escravidão, mormente através do trabalho forçado ou obrigatório.
Por trabalho forçado entende-se todo o trabalho ou serviço exigido a uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual o dito indivíduo não se tenha oferecido espontaneamente (art. 2º da Convenção da OIT nº 29 sobre o Trabalho Forçado de 1930).
Deve notar-se que se fala em “espontaneamente” e não em “voluntariamente” porque pode existir trabalho forçado por um trabalhador que se ofereceu inicialmente para o trabalho de forma voluntária, mas com a vontade extorquida por coacção ou constrangimento ou que não vem a dispor posteriormente da possibilidade de abandonar por sua livre vontade.
Significa que, no caso de aceitação voluntária do trabalho, sendo o consentimento o resultado do aproveitamento da incapacidade psíquica do trabalhador, da indução em erro ou da extorsão por coacção, ainda assim, se pode falar em trabalho forçado porquanto a aceitação não foi espontânea.
Na doutrina nacional, Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, p. 429, 2008) sustenta que para se poder falar em escravidão laboral é necessário e suficiente o preenchimento de dois requisitos cumulativos: primeiro, a vítima não ter poder de decisão quanto ao nº de horas de trabalho ou tipo de trabalho que pretende prestar; e segundo, não dispor da retribuição pelos serviços/trabalhos prestados.
A ausência desse poder de decisão pressupõe, em regra, uma relação de domínio e de controlo por parte do agente através de um ambiente de medo.
Todavia, cremos que a existência de trabalho forçado, necessária á caracterização da escravidão, não é suficiente, devendo, como vimos, ser acompanhada de outros elementos que permitam concluir pela mercantilização da vítima, de forma que se possa dizer que ela é vista como mera ferramenta de obtenção de lucros, por parte dos agentes.
E, conforme referido supra quanto, designadamente, á jurisprudência do TPI e do TEDH (cf., ainda, a nível nacional, o Ac. TRP, de 08.07.2015, processo nº 1480/07.9PCSNT.G1.P1), há que ponderar, designadamente:
- o período temporal durante o qual a actividade se prolongou (um trabalho forçado que se prolongue durante períodos consideráveis, cria uma dependência e um estado de sujeição, pois, pela natureza das coisas, o ofensor tenderá cada vez mais a ver o ofendido como um instrumento ou um objeto de direitos patrimoniais e outros, enquanto o ofendido se resignará e cada vez mais á sua condição até a encarar como a normalidade);
- a retenção dos documentos do trabalhador, forma particularmente eficaz de limitação da liberdade – por isso, até veio a ser incriminada, autonomamente, pelo art. 160º nº 6 e, após 2013, nº 7) – por vezes aliada ao desconhecimento da língua;
- a sujeição a maus tratos, ameaças e/ou agressões físicas (que geram um ambiente opressivo, coagindo á prestação de trabalho e dificultando a fuga, e, simultaneamente, desumanizam a pessoa);
- a sujeição a condições de alojamento degradantes (desumanizam a pessoas).
§ 3.
O bem jurídico protegido no tipo de crime de escravidão é complexo, pois abarca não só a liberdade pessoal, não só corporal, como e sobretudo todas as manifestações de liberdade que integram o direito de personalidade, que fazem do homem um ser-livre em todas as suas dimensões e são refração da eminente dignidade da pessoa – a dignidade da pessoa humana não é em si mesma um bem jurídico, pelo que o que se tutela são todas as projecções da personalidade jurídica.
Tratando-se de bens jurídicos eminentemente pessoais, há tantos crimes quantos os ofendidos.
Ainda que de forma menos intensa e ampla, também no crime de tráfico estão em causa bens jurídicos eminentemente pessoais, tais como a liberdade “pessoal, liberdade de acção e saúde e integridade corporal da vítima” – Miguez Garcia e Castela Rio, CP Geral e Especial com Notas e Comentários, p. 665.
[…]
§ 5.1. Quanto aos arguidos AA e EE, e no que toca aos ofendidos AA e BB:
Vistos os factos provados, temos que tais ofendidos prestaram trabalho forçado e não remunerado, durante quase 5 anos (de 15-9-2007 a 11-8-2012), realizado em condições análogas às de escravos, pois ficaram sob a total dependência económica, alimentar, habitacional dos arguidos, e, mercê do ambiente opressivo criado (ameaças, coacção, agressões – «arrochadas», na significativa expressão do ofendido FF) ficaram com receio de fugir, e, assim, absolutamente condicionados na sua liberdade de movimentos, o que era agravado pelo confisco dos documentos de identificação pessoal, vendo-se, assim, reduzidos a um estado de passividade idêntica àqueles que vivem em cativeiros.
Verdadeiramente, surpreende-se a presença de todos os factores supra enunciados quando se analisou a jurisprudência do TPI e do TEDH (e, a nível nacional, da TRP.
Algumas notas importa acrescentar.
A primeira prende-se com a especial vulnerabilidade dos ofendidos, advinda, no caso dos ofendidos AA e BB, das suas limitações cognitivas e de autodeterminação, o que, evidentemente, acentua ainda mais a dependência, em todas as suas refracções, dos ofendidos e lhes dificultava, ainda mais também, a possibilidade de fuga, de per si já muito reduzida.
A segunda prende-se com as condições, degradantes, de vários dos locais onde eram alojados os ofendidos, o tipo de trabalhos, muitas vezes de sol-a-sol – o que degrada a personalidade destes.
A terceira prende-se com a apropriação da pensão de reforma de FF, vincando mais, ainda, a dependência económica dos ofendidos.
Em suma, as vítimas, além de abusadas na sua incapacidade psíquica, no início, viram-se depois privada de toda a dignidade humana, sem autonomia nem poder sobre as suas próprias pessoas, pelo que, relativamente aos ofendidos AA e BB, a situação em apreço é subsumível à previsão do artº 159º al. a) CP, uma vez que todos os elementos objectivos e subjectivos (dolo genérico, na modalidade de directo) do tipo se mostram verificados.
Os arguidos AA e EE actuaram em co-autoria, porque mediante decisão prévia e em actuação conjunta, não sendo necessário que todos os comparticipantes desenvolvem toda a actuação típica (cf. Ac. STJ de 5.6.2012, Processo 148/10.3SCLSB.L1.S1) – dir-se-á até que a prática de todos os actos que integram o iter criminis raramente ocorrerá, sendo precisamente a repartição de tarefas a mais-valia que a comparticipação representa para os consortes.
O coautor está sempre comprometido, em maior ou menor grau, com a realização típica – por isso que o facto é dele, precisamente porque realiza “um facto que preenche um tipo de crime” (art. 14º CP) – e é punível como autor quem executar o facto (é assim que se inicia o art. 26).
Portanto, e sem prejuízo de uma evidente preponderância do arguido AA, a arguida EE actuou em coautoria com aquele.»
Aderimos integralmente aos considerandos fáticos e jurídicos aventados pelo Tribunal a quo na sobredita motivação da decisão de Direito.  
Em reforço da correta subsunção dos factos perpetrados sobre os ofendidos AA e BB ao crime de escravidão, acrescentamos a circunstância de os arguidos terem negado aos ofendidos, mormente ao FF, os imprescindíveis cuidados de saúde, o que intensifica o tratamento degradante que lhes dispensaram, pouco consentâneo com a sua condição de pessoas humanas.
Na verdade, os arguidos coagiam os ofendidos, mediante agressões físicas e/ou ameaças de ofensas à integridade física ou mesmo de morte, a prestarem trabalho (árduo, sublinhe-se) mesmo quando se encontravam doentes, acrescendo que o ofendido FF, até foi, de modo despótico, proibido de utilizar a botija de oxigénio que mantinha junto da sua cama, não obstante dela necessitar em virtude dos graves problemas respiratórios de que padecia, decorrentes das várias pneumonias que sofreu, agravadas pelas más condições a que vinha sendo sujeito, alegando o arguido AA, que “gastava muita luz”, o que bem demonstra a sua desumanidade.
Por outro lado, significativo do temor sentido pelos ofendidos relativamente aos arguidos, principalmente por medo de represálias do arguido AA, facto que os mantinha numa situação de “semidetenção”, é a circunstância de aqueles não terem acompanhado na fuga o seu próprio filho/enteado, CC, à data, menor de idade, quando o normal seria que a família se mantivesse junta e em liberdade. Aliás, essa situação equiparada a cárcere ou cativeiro é revelada ainda pela circunstância de só muitos anos depois terem abandonado a residência que lhe era imposta pelos arguidos, por se encontrarem irreversivelmente desgastados com o clima de intimidação e exploração a que eram sujeitos e terem contado com o auxílio do dito CC para encetarem a fuga; ainda assim, só lograram transportar consigo a sua documentação pessoal, que lograram resgatar da posse dos arguidos, e o vestuário que tinham no corpo.
Pelo exposto, entendemos que o acórdão recorrido não merece censura relativamente à qualificação jurídica que efetuou dos factos provados perpetrados pelos arguidos/recorrentes sobre os ofendidos AA e BB, improcedendo, por isso, ambos os recursos, quanto a este comum fundamento.

III.2.1.7 – Prescrição do procedimento criminal questão comum ao recurso do coarguido AA:

No recurso por deduzido [conclusões I a III], a arguida EE, invoca a prescrição do procedimento quanto aos factos vertidos na acusação/pronúncia.
Por outro lado, alega que o Tribunal a quo errou ao não conhecer e pronunciar-se sobre o longo tempo percorrido desde a data dos factos que deram origem a este processo, deixando que a morosidade se instalasse, sem responsabilidade da arguida, para agora de novo a condenar, perante a pena anterior já extinta e assim a tratando objetivamente de modo injusto e em evidente iniquidade.

O arguido/recorrente AA alega também a prescrição do procedimento criminal, alegando, em resumo [conclusões 28 a 30]:
- Decorreram 17 anos desde a “data fronteira” mencionada neste novo acórdão (desde ../../2007) em que o arguido aqui recorrente terá cometido cada um dos 5 crimes de que se encontra condenado, dividindo e separando artificialmente a atividade delituosa continuada, iniciada pelo menos em 1994 (se não 1992), até 2007, em crimes cuja tipologia tem óbvio e inquestionável caráter de atividade continuada no tempo.
- Motivos pelos quais a defesa invoca desde já a prescrição do procedimento criminal, dado que, sendo o processo uno, não tendo ocorrido separação do processo e dos factos, nem nova acusação decorrente da comunicação substancial dos factos, o tribunal estava impedido de decidir separar a atuação dos arguidos em dois grandes períodos, tudo por forma a poder condená-los sem julgamento pelos novos factos comunicados, situação processual inédita que arrastou como consequência grave prejuízo para o aqui recorrente, o qual, concernente aos 2 crimes de detenção de armas proibidas de que foi condenado, da leitura do Acórdão de que se recorre, tão pouco consegue perceber da data considerada do seu cometimento.

Vejamos.
Conquanto se pactue com a observação realizada pelo Ministério Público de que as alegações recursórias dos recorrentes, neste conspecto, são lacónicas, de conteúdo pouco percetível e omissas no que concerne às normas jurídicas que sustentam as conclusões expendidas, dessarte desatendendo às exigências legais vertidas no art. 412º, nºs 1 e 2, alínea a), do CPP, o que, prima facie, conduziria à rejeição das respetivas pretensões por manifesta improcedência (cf. art. 420º, nº1, alínea a), do CPP), não deixaremos de nos pronunciar sobre a questão da alegada prescrição do procedimento criminal considerando, desde logo, a oficiosidade do conhecimento sobre este pressuposto negativo da punição.     
Adiante.
Cada um dos crimes de escravidão (dois) pelos quais os arguidos/recorrentes foram condenados, em coautoria, é abstratamente punível com pena de 5 a 15 anos de prisão (art. 159º, alínea a), do CP).
O crime de tráfico de pessoas pelo qual os arguidos/recorrentes foram condenados, em coautoria, é abstratamente punível com pena de 3 a 10 anos de prisão (art. 160º, nº1, alínea d), do CP).
Cada um dos crimes de detenção de arma proibida (dois) pelos quais foi condenado o arguido AA, como autor material, é abstratamente punível, com pena de prisão até 4 anos [ou com pena de multa até 480 dias] (art. 86º, nº1, alínea d), da Lei nº 5/2006, de 23.02).

Estatui o art. 118º do CP, na parte ora aplicável:
“1. O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorridos os seguintes prazos:
a) 15 anos, quando se tratar de:
i) Crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for superior a 10 anos;
[…]  
b) 10 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 5 anos, mas que não exceda 10 anos; 
c) 5 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 1 ano, mas inferior a 5 anos;
[…]
4. Quando a lei estabelecer para qualquer crime, em alternativa, pena de prisão ou de multa, só a primeira é considerada para efeito do disposto neste artigo.”

Preceitua o art. 119º do mesmo Código, na parte que ora releva:
“1. O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.”
2. “O prazo de prescrição só corre:
a) Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação;
b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último ato.
[…]
4. Quando for relevante a verificação de resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar.”

No crime de escravidão, sendo um ilícito criminal «complexo», isto é, «constituído por factos que, sem a aglutinação legal, seriam subsumíveis em dois ou mais preceitos incriminadores», o prazo prescricional inicia-se com a prática do último ato de execução – assim, Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, ibidem, anot. 4 ao art. 119º, p. 346.     
O marco de começo da contagem do prazo de prescrição quanto ao cometido crime de tráfico de pessoas, que consubstancia um denominado «crime de ato cortado», corresponde, por força do preceituado no nº4 do citado normativo, ao momento em que o resultado, que não integra a previsão do tipo legal, ocorrer.
Com efeito, considerando a situação dos autos, não obstante a consumação do crime não dependa da efetiva exploração (do trabalho) da vítima, tal fim é relevante para efeitos da estrutura do tipo, porquanto este exige, ao nível do elemento subjetivo especial ou dolo específico, que o agente atue com a intenção de sujeitar a vítima a exploração, optando o legislador por antecipar a tutela penal deste tipo de condutas tendo em vista os gravosos danos delas habitualmente decorrentes.
Os crimes de detenção de arma proibida praticados pelo arguido AA consumaram-se com a detenção dessas armas, ocorrendo a cessação da sua prática com a retirada destas da posse do agente, o que sucedeu com a respetiva apreensão à ordem dos autos.

Por conseguinte, quanto aos crimes de escravidão em que são ofendidos FF e BB, temos que a contagem do prazo de prescrição de 15 anos começou em ../../2012, data em cessou a sua situação de “cativeiro” [cfr. facto 45] – independentemente de se considerar que o início da execução destes crimes aconteceu a partir de ../../2007 (como corretamente foi ponderado pelo Tribunal a quo) ou anteriormente, dado o caráter duradouro e ininterrupto das concretizadas condutas tipificadas.
O prazo prescricional de 10 anos aplicável ao crime de tráfico de pessoas cuja vítima é GG, iniciou-se em ../../2013, momento correspondente ao termo da exploração laboral da vítima [cfr. facto 56].  
Por seu turno, o início do prazo de prescrição de 5 anos atinente aos crimes de detenção de arma proibida, verificou-se nos dias 29/08/2012 e 19/09/2012 [cfr. factos 47 e 48].
 
Ressuma do exposto que, no momento atual, ainda não decorreu o prazo de prescrição de 15 anos aplicável aos ajuizados crimes de escravidão.

Vejamos quanto aos demais ilícitos criminais.
A prescrição do procedimento criminal suspendeu-se, pelo período de 3 anos, a partir da notificação aos arguidos do despacho de acusação, bem assim, pelo prazo máximo de 5 anos, desde a data da notificação aos arguidos do acórdão condenatório até ao seu trânsito em julgado – cf. art. 120º, nº1, als. b) e e), nº2 e nº4, do CP.
A prescrição volta a correr desde o dia em que cessar a causa da suspensão – nº6 do aludido normativo legal.

Prescreve o art. 121º do Código Penal:
  “1 - A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação (…);
[…]
2 - Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3 – Sem prejuízo do disposto no nº5 do artigo 118º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade. (…)”

No caso concreto, temos que, além das mencionadas causas de suspensão, ocorreram as preditas causas de interrupção da prescrição, designadamente a constituição como arguidos dos ora recorrentes e a notificação da acusação contra eles deduzidas nos autos.
Assim sendo, é notório que, à data, não se mostra prescrito o procedimento criminal pelo crime de tráfico de pessoas.
             
Aqui chegados, cumpre ter presente relativamente aos crimes de detenção de arma proibida, que a causa de suspensão da prescrição inovadoramente consagrada na alínea e) do nº1 do art. 120º do Código Penal, relativa à pendência da decisão condenatória desde a sua notificação ao arguido até seu trânsito em julgado, introduzida pela Lei nº 19/2013, cuja vigência se iniciou em 24.03.2103, é retroativamente inaplicável.
O mesmo se diga, mutatis mutandis, quanto à concreta inaplicabilidade das novas causas de suspensão da prescrição consagradas na Legislação que estabeleceu um regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrente das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, aprovada a partir de 19.03.2020, por intermédio da Lei nº1-A/2020. 
As normas sobre prescrição do procedimento criminal assumem natureza mista, substantiva e processual, constituindo-se assim como normas processuais-materiais, o que tem implicações ao nível da problemática da aplicação das leis penais no tempo.  
Para tanto, urge ter presente o fundamento ou fundamentos do instituto da prescrição.

Nas doutas palavras de Figueiredo Dias [in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, pp. 699 e 700], «A prescrição justifica-se, desde logo, por razões de natureza jurídico-penal substantiva (…). Por um lado, a censura comunitária (…) esbate-se, se não chega mesmo a desaparecer» pelo «mero decurso do tempo». Por outro lado, as exigências de prevenção especial (…) tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objectivos (…). Finalmente, e sobretudo, o instituto da prescrição justifica-se do ponto de vista da prevenção geral positiva: o decurso de um largo período sobre a prática de um crime ou sobre o decretamento de uma sanção não executada faz com que não possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitária, já apaziguadas ou definitivamente frustradas». Acrescenta: «Também do ponto de vista processual (…), o instituto geral da prescrição encontra pleno fundamento. Sobretudo (…) na medida em que o decurso do tempo torna mais difícil e de resultados mais duvidosos a investigação (e a consequente prova) do facto e, em particular, da culpa do agente, elevando a cotas insuportáveis o perigo de erros judiciários».
No mesmo sentido, Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette [ibidem, p. 353]: «Não seria justo constranger o condenado, em função de facto que vai ficando esquecido, por força da erosão que o tempo vai impondo, ao cumprimento duma pena remota. Tal contrariaria, aliás, a essência dos fins das penas e consagraria retribuição de matriz eminentemente repressiva. Nos antípodas da prevenção que hoje, sobretudo, anima aqueles. E porquanto se trataria, então, de execução socialmente já carecida de interesse ou razão de ser, inclusive por o decurso do tempo haver eliminado, à força do seu efeito diluente e dissipador, qualquer resquício duma efetiva necessidade de defesa social. E já que não persiste, a propósito, necessidade ou carência da pena.»

Estatui o art. 29º, nº4 da Constituição da República Portuguesa que «Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.»
O legislador ordinário refletiu no art. 2º, nº4, do CP, aquele ditame constitucional: «Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente (...)»
Destarte, ocorrendo sucessão de leis no tempo atinentes ao instituto da prescrição do procedimento criminal, cumpre, de acordo com os citados normativos, aquilatar, no cotejo dos diferentes regimes legais que temporalmente vigorem entre a data da prática dos factos puníveis e o momento atual, qual o regime (considerado em bloco) concretamente mais favorável ao arguido, sendo esse o aplicável.

No caso vertente, urge concluir pela inaplicabilidade dos ulteriores regimes penais vigentes, atento o incontornável e legalmente proibido agravamento da situação processual do arguido que adviria da retroatividade das leis novas, na medida em que no âmbito das disposições legais em vigor à data da prática dos factos, que não previam tais causas de suspensão, a prescrição do procedimento criminal sucede num menor lapso temporal.
Em conformidade, conclui-se que o prazo máximo de prescrição do procedimento pelos crimes de detenção de arma proibida cometidos pelo arguido AA, correspondendo a 10 anos e 6 meses (5anos de período normal+3anos a título de período de suspensão+2 anos e 6 meses de acréscimo de metade) contados desde a data da respetiva prática, ocorreu em 29/02/2023 e 18/03/2023.

Como vimos, conexionado com a questão do longo tempo decorrido desde da data da prática dos factos, a arguida EE alegou ainda a “iniquidade” do procedimento criminal, reclamando a sua absolvição.

Invoca, de modo mais elaborado nas alegações do corpo motivador do recurso, que:
- A situação processual verificada, atento o longo decurso de tempo decorrido desde a prática dos factos, arrastou como consequência grave prejuízo para a arguida, a qual, por via da morosidade processual inexplicável, percorreu toda a condenação noutro processo (5 anos e 6 meses) na prisão, tendo sido libertada meses atrás, sendo que não beneficiou durante esses anos de uma única medida de flexibilização da pena, justamente pelo conhecimento que o TEP do Porto teve deste processo, pese embora o comportamento penitenciário da arguida tenha sido declarado imaculado.
- Por via da escolha do Tribunal a quo em proferir novo acórdão sem julgamento, nem tão pouco a atualização do relatório social, ficou a arguida agora de novo condenada pelos mesmos factos e com a mesma fundamentação, sem se poder defender.
- Encontrando-se essa pena agoraextinta, caso esta nova condenação se mantenha, poderá a arguida ver reiniciado um ainda mais longo percurso prisional sem que, aparentemente, seja possível o cúmulo jurídico, o que se traduziria em injustiça objetiva e tratamento iníquo, ao arrepio dos mais elementares princípios e direitos de qualquer cidadão.
- O tribunal foi o único (ou principal) responsável pela morosidade da justiça, tratando a arguida de forma iníqua e ferindo objetivamente o direito ao processo célere e equitativo.
- Motivos aduzidos e pelos quais, a arguida deve ser liminarmente absolvida por ter sido objeto de processo extraordinária e injustificadamente moroso e assim tratada em iniquidade.

Revemo-nos nas palavras reveladas na resposta ao recurso deduzida pelo Ministério Público em primeira instância, quando ali se afirma:
«E de igual forma [improcede] a arguida iniquidade, porquanto o atraso do decurso normal da decisão da causa não é, de todo, imputável ao Tribunal a quo, senão que à própria tramitação do processo que teve as suas vicissitudes, de onde se destaca, desde logo, a subida dos autos ao Tribunal da Relação por duas vezes, com a declaração de nulidade dos precedentes acórdãos a que acresceu, depois, por infortúnio de saúde, a impossibilidade de composição do Tribunal Coletivo devido à ausência ao serviço do Mmo. Juiz presidente, a qual, uma vez cessada, logo diligenciou pela célere prolação do douto Acórdão recorrido, tal era a preocupação do Tribunal a quo.»

Acrescenta-se apenas que a demora do procedimento criminal não interfere com a realização de cúmulo jurídico das penas aplicadas em ambos os processos em que arguida foi condenada, na medida que tal ocorrência processual depende somente da verificação ou não dos requisitos legais previstos para o efeito, designadamente da existência de um concurso de crimes, nos termos consagrados nos arts. 77º, nº1 e 78º, nºs 1 e 2, do Código Penal.   

Conclui-se, assim, quanto aos apreciados fundamentos recursórios, improcede, in totum, o recurso da arguida EE e procede parcialmente o recurso do arguido AA, impondo-se declarar a extinção, por prescrição, do procedimento criminal contra ele instaurado pela prática dos imputados crimes (dois) de detenção de arma proibida.
 
III.2.1.8 - Sobre a requerida atenuação especial das penas:

Alega a arguida/recorrente, EE [conclusões 77 a 80], que A sua pena deveria ter sido especialmente atenuada, conforme foi feito à coarguida DD aquando do primeiro acórdão, já que situações idênticas, deverão ser tratadas de igual forma, sob pena de violação do artigo 18º 1 da CRP.
Isto porque as circunstâncias dos factos ocorreram de forma muito similar e em circunstâncias idênticas e existe um juízo de prognose favorável quanto comportamento futuro da aqui arguida.
Essa atenuação iria fazer com que as molduras penais para os crimes de escravidão se situassem entre 1 a 10 anos e para o crime de trafico de pessoas entre os 6 meses e os 3,3 meses, nos termos dos artigos 73, 1, alínea a) e b) do CP., podendo ser aplicado à arguida a mesma pena que foi aplicada à coarguida DD, ou seja, três anos por cada crime de escravidão, sendo à recorrente aplicado um ano pelo crime de trafico.
Apreciando.

Dispõe o art. 72º do Código Penal:
“1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
3 – Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.”
A atenuação especial da pena deve ter lugar somente em casos extraordinários ou excecionais, assim reconhecidos pelo julgador ou expressamente contemplados na lei, constituindo a acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade de pena o pressuposto material da atenuação.         
Pressuposto material de aplicação do regime da atenuação especial da pena do artigo 72.º do CP, erigido como válvula de segurança do sistema, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção, na análise de uma visão integral do facto, considerando a globalidade das circunstâncias que encorparam os factos.
A «diminuição acentuada» verificar-se-á «quando a imagem global do facto, resultante da atuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo.»[8]    

Como paradigmaticamente se vaza no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-03-2022, Processo nº 134/21.8JELSB.L1.S1, relator Conselheiro Orlando Gonçalves:
«I - Quando o legislador dispõe sobre a moldura penal para um certo tipo de crime, prevê as diversas modalidades e graus de realização do facto, desde os da menor até aos da maior gravidade pensáveis, de modo que, em todos os casos, a aplicação da pena concretamente determinada possa corresponder ao limite da culpa e às exigências de prevenção. Quando, em hipóteses especiais, existem circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição, relativamente ao complexo “normal” dos factos visados pela moldura penal, o legislador procedeu à substituição dessa moldura penal por outra menos severa. Para além de outros casos, expressamente previstos na lei de atenuação especial da pena, o legislador, consagrou, na parte geral do Código Penal, uma cláusula geral de atenuação especial da pena, nos seus arts. 72.º e 73.º.
II - A jurisprudência tem sido exigente na aplicação do art. 72.º do CP, limitando a atenuação especial da pena a casos extraordinários ou excecionais de acentuada diminuição da ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
III - Uma vez que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar, pois para a generalidade dos casos, para os «casos normais», lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios (…)»

No presente caso, a motivação adiantada pela recorrente não cumpre sequer os requisitos legais, reconduzindo-se, na prática, a uma ausência de fundamentação. 

Preceitua o art. 412º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal:
“1 – A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 – Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.”
Como refere o Exmo. Juiz Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças, in “Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº10, 2010, p. 23, «(…) só o recorrente sabe do que discorda e por que razão discorda. Ora, se assim é e é, de forma clara e completa, está onerado a dizer a discordância, e das suas razões, de facto e de direito. Na verdade, se o recurso pretende remediar o mal feito, desde logo, o recorrente está onerado a identificar devidamente o mal da decisão e as razões por que é mal. Sejamos claros: o Tribunal de recurso só pode apreciar a razão do recorrente se este for claro nas razões da sua razão.» 
No caso vertente, pelo seu carácter vago, genérico e conclusivo, a motivação do recurso não respeita os requisitos vertidos nos nºs 1 e 2, al. b) do art. 412º do CPP. 
A arguida/recorrente omite em absoluto na motivação, quer nas alegações quer nas conclusões, as concretas razões de facto do pedido.
Antes se limita erroneamente a remeter para uma suposta identidade de razões que conduziram, no acórdão primeiramente proferido em primeira instância, à aplicação da atenuação especial das penas aplicadas à arguida DD, agora absolvida, esquecendo que lhe cabia concretizar os fundamentos de facto que presidiam à sua pretensão recursória, os quais, necessariamente, atento o caráter estritamente pessoal do instituto da «atenuação especial», só a si deviam respeitar.
Salvo melhor opinião, não satisfaz o ónus de especificação legalmente exigido a vaga remissão para factualidade, não concretizada, concernente à atuação de outra arguida e para o decidido em decisão inválida, que veio, entretanto, a ser anulada em sede de recurso.  
A recorrente pretende, ilegitimamente, substituir-se ao Tribunal no julgamento da causa no que concerne à pena a aplicar-lhe, sem que, contudo, decorra percetível do arrazoado o concreto motivo pelo qual deve prevalecer o seu entendimento.
Ora, o recurso não implica um segundo julgamento a efetuar pelo Tribunal ad quem, antes consubstancia um mero «remédio jurídico» tendente a corrigir eventuais erros do Tribunal a quo, lapsos esses que devem ser concretamente identificados pelo recorrente (ou oficiosamente reparados pelo Tribunal superior, quando a lei permite o conhecimento oficioso dos respetivos vícios, e que in casu, compulsada a douta decisão recorrida não se lobrigam).
O pedido é, sob este prisma, manifestamente improcedente.    
Aliás, sempre seria de negar acolhimento à pretendida atenuação especial das penas aplicadas à arguida EE, porquanto não se vislumbram acentuadas circunstâncias atenuantes da sua responsabilidade ao nível da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena que levem ao abaixamento da pena abstrata prevista nos crimes que se consideraram por ela cometidos.
Nomeadamente, não se provou que a arguida tivesse agido sob influência de ameaça grave ou sob ascendência, por dependência ou dever de obediência, do coarguido AA. Ao invés, provou-se que as condutas objetivas mantidas pela recorrente, representativas de um elevado grau de ilicitude, foram por ela assumidas de forma livre, voluntária e dolosa, com consciência da respetiva ilicitude.
Acresce que a arguida não adotou qualquer ato demonstrativo de arrependimento sincero; pelo contrário, negou a sua responsabilidade nos factos, assim revelando falta de capacidade de autocrítica e autorresponsabilização e, nesta medida, de arrependimento. Nada fez para ressarcir minimamente os ofendidos dos prejuízos sofridos, designadamente das quantias monetárias que lhes pertenciam e de que ela, conjuntamente com o coarguido AA, se apropriou.     
Apesar de ter decorrido bastante tempo desde a prática dos crimes sob apreciação nos autos, não se pode considerar, sem mais, para efeitos de atenuação especial das penas, que a arguida manteve boa conduta, pois que nesse ínterim esteve privada da liberdade, em regime de reclusão prisional, em cumprimento de uma outra significativa pena de prisão, pela prática de crime da mesma natureza (crime de escravidão).
Por conseguinte, conclui-se pela inexistência dos requisitos legais da atenuação especial da pena.
Assim sendo, improcede o douto recurso neste aspecto.   

III.2.1.9 – Medida das penas parcelares:
           
Invoca a arguida/recorrente EE a excessividade das penas parcelares que lhe foram aplicadas, clamando pela sua redução, pelos fundamentos que, em resumo, expõe [conclusões 65 a 76, 82 e 83]: 

- As penas a aplicar à arguida/recorrente, face à sua posição de subalternização e dependência na alegada prática dos factos, ao período temporal em que os mesmos ocorreram (aproximadamente cinco anos), deverão ser fixadas pelo mínimo: 5 anos para cada crime de escravidão e 3 anos para o crime de tráfico de pessoas.
- A aplicação da pena à arguida, de cinco anos e quatro meses de prisão por cada crime de escravidão e três anos e dois meses de prisão pelo crime de trafico é manifestamente superior à medida da sua culpa, por isso é injusta e desproporcional.
- Na decisão recorrida não se levou devidamente em conta, nomeadamente, os fins das penas, havendo um grande desequilíbrio entre os critérios de prevenção geral (ao qual se atribuiu a máxima importância) em detrimento dos critérios de prevenção especial.
- A sua conduta posterior foi conforme ao Direito (a sua detenção ocorreu por factos praticados em data anterior aos que aqui se discutem, mas cujo transito em julgado da decisão condenatória ocorreu posteriormente e daí a sua detenção - discordando-se da interpretação do Tribunal).
- Este entendimento normativo que o Tribunal tem do artigo 71º, 2, alínea e), do C. Penal, quando considera para qualificar a conduta posterior da arguida para efeitos da determinação da pena, factos praticados em data anterior aos discutidos nos autos, mas cuja decisão condenatória transitou em julgado posteriormente é um entendimento normativo inconstitucional por violação dos artigos 18º2 e 27º2 da CRP, no sentido de que conduz á aplicação de uma pena excessiva e desproporcional.
- Não podia também o Tribunal ter fundamentado a pena aplicada por violação do princípio da presunção de inocência, vertido no artigo 32º 2 da CRP, quando declara que a arguida tem dificuldade em manter uma conduta licita por não se ter coibido de praticar um crime de trafico na pessoa do GG, após a intervenção das autoridades, com buscas e apreensões. Essas buscas foram efetuadas nos presentes autos e esta decisão ainda não transitou em julgado.
- A arguida/recorrente, tinha 67 anos (atualmente, 69) de idade, encontra-se socialmente inserida e familiarmente apoiada e é conotada como uma pessoa afável e de trabalho, na comunidade a sua alegada conduta criminosa não teve impacto, já que consta no relatório social não atualizado que ela é vista como mulher de trabalho, sem qualquer conotação criminal (este foi elaborado já após a detenção para cumprimento da pena de prisão da recorrente). Sendo que atualmente a arguida se encontra em liberdade após total cumprimento da pena em que foi condenada no primeiro processo já mencionado.
- Ao assim não ter decidido, o Tribunal violou os artigos 40º/2, 71º/1, 72º/1, 73º/1, alíneas a) e b) e 18º/1 da CRP., bem como os artigos 159º, alínea a) e 160º/1, alínea d) do CP.
Analisando.
A arguida EE foi condenada pela prática, em coautoria e em concurso efetivo, de dois crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º, al. a), do CP, em que são ofendidos AA e BB, na pena de 5 anos e 4 meses de prisão por cada um deles, e de um crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º, nº1, al. d), do CP, em que é ofendido GG, na pena de três anos e dois meses de prisão.
Conforme decorre do art. 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº2 do art. 40º do C.P.).

Segundo Figueiredo Dias[9], quanto aos fins das penas, predomina «a ideia de que só as finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. Num contexto em que a prevenção geral assume o primeiro lugar, como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação, do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, em suma, na expressão de Jackobs, como estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida».   

O mesmo insigne autor, após expor a teoria penal por si defendida no que tange ao problema dos fins das penas, conclui do seguinte modo[10]:
«(1) Toda a pena serve as finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; (4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais».      
Idêntico ensinamento é fornecido por Maria João Antunes, in “Penas e Medidas de Segurança”, Almedina, 2020 (reimpressão), p. 45, nos seguintes termos:
«A medida da pena tem de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, em face do caso concreto, num sentido prospetivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida. Um critério de necessidade da pena que não fornece, contudo, um quantum exato de pena. Fornece somente a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias e o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função de tutela do ordenamento jurídico. Ponto que não tem de coincidir com o limite mínimo da moldura legal, podendo situar-se acima dele. Neste sentido, é a prevenção geral positiva (e não a culpa) que fornece uma moldura dentro da qual vão atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que, em última instância, vão determinar a medida da pena. Constituindo a culpa o limite inultrapassável de quaisquer considerações preventivas – em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, nº2, do CP) -, a culpa fornece somente o limite máximo da pena.»
Assim, na proteção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afetem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objetivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.[11]
Em cada caso, a finalidade de tutela e proteção de bens jurídicos há de constituir o motivo fundamento da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afetados.
Por seu turno, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há de ser casuisticamente prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização deverá ser encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, como vimos, nos termos do art. 40º, nº 2, do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena.

A operação de fixação da pena, dentro dos sobreditos limites, faz-se, segundo o art. 71º, nº 1, do Código Penal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Atendendo-se, conforme prescreve o nº 2 do mesmo preceito legal, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, nomeadamente:
- Ao grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente – al. a); 
- À intensidade do dolo ou da negligência – al. b);
- Aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram- al. c);
- Às condições pessoais do agente e a sua situação económica – al. d);
- À conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime – al. e); e
- À falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – al. f).
           
No caso vertente, no que tange à determinação da medida das penas parcelares aplicadas à arguida EE o Tribunal a quo fundamentou a decisão nos seguintes termos [transcrição] – na parte aqui relevante:
«Ao crime de escravidão cabe prisão de 5 a 15 anos – pena intocada.
Ao crime de trafico de pessoas cabe prisão de 3 a 10 anos – pena intocada.
[…]
Dentro dos quadros da comparticipação, assumiu uma subalternização – executou apenas parte dos actos do iter criminis – relativamente ao arguido AA – embora não deixando de revelar uma intervenção material significativa – patente na agressão física á ofendida BB e inerente ambiente opressivo, na apropriação das pensões dos ofendidos, entre outros.
O grau de ilicitude foi elevado, quanto á escravidão, e mais acentuado quanto ao crime de tráfico de pessoas (pois a exploração do GG foi ao ponto de abranger as suas pensões de reforma) mas num limiar abaixo do referente ao comparticipante.
O seu grau de culpa situa-se num patamar abaixo do arguido AA.
A sua conduta não deixa de documentar, porém, uma personalidade desvaliosa e agressiva (bateu na ofendida BB) e com dificuldade em manter uma conduta lícita, e tanto assim que mesmo após a intervenção das autoridades, com buscas e apreensões, não se coibiu de praticar um crime de tráfico na pessoa do GG.
A sua conduta posterior é muito negativa – esteve presa, pois também ela já foi condenada por crime de escravidão.
A favor da arguida EE, e para além do que supra se referiu, a sua inserção social (é socialmente vista como uma mulher de trabalho e educada), e, com peso significativo, o tempo já decorrido sobre os factos, que se repercute, atenuando-as fortemente, sobre as exigências de prevenção geral, e, também, e ainda, o apoio da filha e da família alargada.
Tudo ponderado, são ajustadas as seguintes penas parcelares: 5 anos e 4 meses de prisão para os dois crimes de escravidão e 3 anos e 2 meses para o crime de tráfico de pessoas.»
Aderimos, pelo seu acerto, às sobreditas considerações tecidas no acórdão recorrido a propósito dos critérios e factores de determinação das penas ponderados, exceto relativamente à incorreta valoração como agravante de alegada negativa conduta da arguida posterior aos factos, para efeitos do disposto no art. 71º, nº2, al. e), do CP, por ter estado presa, cumprindo pena de 5 anos e 6 meses de prisão pelo cometimento de um crime de escravidão.
Nesse conspecto, assiste razão à recorrente, tratando-se de um errado enquadramento jurídico da verificada circunstância, a qual não podia ter sido ponderada, como foi, para efeitos de apreciação da conduta posterior da condenada, uma vez que a condenação em pena de prisão por aquela sofrida reportou-se a factos cometidos em 1993, ou seja, antes da prática dos que estão em discussão nos presentes autos.
Contudo, diferentemente do que pressupõe a recorrente, a mencionada circunstância não pode, sem mais, ser desvalorizada, olvidada, devendo antes, nos termos da alínea e) do nº 2 do art. 71º do CP, ser ponderada como circunstância agravante com fundamento na conduta da arguida anterior aos factos do presente processo.
Além disso, inexiste a apontada violação do princípio da presunção de inocência, vertido no artigo 32º, nº2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), por o Tribunal recorrido ter declarado que a arguida tem dificuldade em manter uma conduta licita por não se ter coibido de praticar um crime de trafico na pessoa do GG, após a intervenção das autoridades, com buscas e apreensões. Tal entendimento da recorrente assenta na circunstância de as referidas buscas terem sido efetuadas nos presentes autos e aquela decisão ainda não ter transitado em julgado.
Salvo o devido respeito, tal argumento é notoriamente inconsistente, pois que, como é de elementar lógica, o Tribunal recorrido pode e deve socorrer-se das circunstâncias que entenda pertinentes, independentemente de a respetiva decisão se manter ou não em sede de recurso. No caso, revela-se adequada a consideração daquela circunstância como agravante geral.
A valer o entendimento da recorrente, o julgador, na prática, não podia cumprir a lei e ponderar os fatores previstos no art. 71º, nº2, do CP, pois que, sendo a decisão suscetível de recurso, nunca poderia dar como segura a verificação de qualquer circunstância. Não pode ser nem é assim.          
Por outro lado, o Tribunal recorrido não deixou de considerar como circunstâncias atenuantes gerais as de a arguida se encontrar socialmente inserida e beneficiar de apoio familiar.
A idade da arguida, à data da decisão com 68 anos e atualmente com 69 anos, mereceria ponderação autónoma caso fosse consideravelmente superior e, mormente, se apresentasse um currículo criminal limpo, sem antecedentes criminais, o que não sucede, tendo ela já cometido outro crime de gravidade considerável.   
Em conformidade, considerando o concreto circunstancialismo fático verificado e a amplitude das molduras penais abstratas, julgamos que a medida das penas parcelares cominadas à arguida EE, situando-se extramente próximas dos mínimos legais, mostram-se adequadas, suficientes e proporcionais a acautelar os fins de jaez preventivo que subjazem à aplicação da sanção criminal e dentro do limite imposto pela culpa manifestada pela arguida, pecando, quando muito, por excessiva benevolência.
Sopesados todos os enunciados factos e considerações, em especial as atinentes à ilicitude dos factos, à intensidade da culpa e à necessidade da pena, ressuma que as penas aplicadas pelo tribunal de primeira instância adequam-se e revelam-se idóneas à satisfação das necessidades de afirmação dos bens jurídicos violados, bem como à finalidade de procurar que a arguida não volte a delinquir.
Ou seja, as penas concretamente aplicadas respeitam o exigido pela tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, pelo que a redução das mesmas, nos termos preconizados pela arguida recorrente, não é sustentável, sob pena de se colocar em causa a crença da comunidade na validade das normas jurídicas violadas e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico penais, bem como a finalidade de reintegração social da condenada.
Aliás, como ensina o Professor Figueiredo Dias [“Direito Penal Português II, As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, p. 197] a propósito da controlabilidade da pena em sede de recurso, na determinação do seu quantum, a sindicância recursória deverá reservar-se para as hipóteses em que tiveram sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada, o que não sucede.
A determinação da medida das penas operada pelo Tribunal a quo não violou qualquer norma legal e/ou constitucional, nomeadamente as invocadas pela recorrente.
Improcede a pretensão recursiva de abaixamento da medida das penas parcelares.

III.2.1.10 - Dosimetria da pena conjunta:

Nos termos constantes das conclusões 84ª a 92ª, refere a recorrente EE que, procedendo o recurso relativamente à impugnação das penas parcelares aplicadas, a pena única deverá ser fixada em quatro anos de prisão, ou, se assim não se entender, sem exceder cinco anos de prisão, que é uma pena adequada e proporcional tendo em consideração as suas condições pessoais em conjugação com o fim das penas, devendo ainda essa pena ser suspensa na sua execução ao abrigo do disposto no art. 50º do CP.
Tais petitórios estão irremediavelmente votados ao fracasso, atenta a inadmissibilidade legal derivada da ausência dos respetivos pressupostos.
Prescreve o art. 77º do Código Penal, na parte que ora releva:
“1 – Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 – A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”

Logo, correspondendo o mínimo legal da moldura penal do concurso de crimes a cinco anos e quatro meses, a pena parcelar mais elevada, é insuscetível de acolhimento a pretensão recursória de aplicação de pena inferior àquela medida e, consequentemente, de suspensão da respetiva execução, dado tal pena de substituição se encontrar reservada para penas de prisão cuja duração não exceda cinco anos (cf. art. 50º, nº1, do CP).   
  
III.2.2 – Recurso do arguido AA:
[excetuando as questões comuns ao recurso da coarguida, já acima apreciadas nos itens III.2.1.1, III.2.1.6 e III.2.1.7]

III.2.2.1 – Da arguida nulidade do acórdão por falta de fundamentação (quanto ao exame crítico da prova documental de que se socorreu o Tribunal e quanto à medida da pena única):

Neste segmento recursório, alega resumidamente o arguido/recorrente AA [conclusões 8ª a 19ª]:
- Através da leitura atenta do Acórdão ora recorrido, em sede de motivação da decisão de facto provada, decorre que o Tribunal “a quo” ponderou desde logo, no capítulo da formação da sua convicção, entre outras, a seguinte prova documental: “- Anexos I, II, III, IV e V”.
- Da análise crítica da prova, de todo se consegue atingir de que forma tais anexos (documentos) contribuem para a produção da mesma, apenas existindo pontuais remissões e isoladas referências aos mesmos, em concreto, das Fls. 113-120 e 273 anexo III e, Fls. 47, 48, 55, 63, 67, 98, 99, 160, 219, 220, 239, 243 e 558 do anexo IV, sendo que, para os demais anexos I, II e V, tão pouco existe quaisquer referências ao conteúdo desses documentos, ou, se explica como dali se extraí algum contributo para a convicção do Tribunal.
- No Acórdão ora recorrido, apenas se mostra feita a indicação dessas provas/anexos (designadamente dos anexos I,II e V), não inexistindo todo e/ou algum exame crítico dessas mencionadas provas que ajudaram a formar a convicção do tribunal, não se mostram as provas, sequer indicadas de forma completa, porque desde logo a indicação da prova documental é “mui” deficiente, com efeito, constando dos autos várias dezenas de documentos e anexos, relativamente aos acima elencados, o tribunal “a quo” apenas faz remeter para todos eles na globalidade.
- O Tribunal “a quo” não indicou completamente como aquelas provas/anexos em concreto serviram para formar a sua convicção, nem efectuou o exame crítico das mesmas, inviabilizando uma correcta apreciação de eventual impugnação da matéria de facto a apresentar pelo aqui arguido.
- A falta do exame crítico das provas, imposto pelo art. 374º, nº 2, do Código de Processo Penal e, a consequente insuficiência da fundamentação determina, nos termos do art. 379º, nº 1, a), do mesmo código, a nulidade do presente Acórdão.
- Esta restritiva interpretação do imposto pelo artº. 374º, nº 2, do Código de Processo Penal por parte do Tribunal “a quo” resulta claramente inconstitucional, por violação do princípio da certeza e da segurança jurídica, enquanto trave mestra do Estado de Direito e das mais elementares garantias de defesa do arguido, nomeadamente, o direito ao recurso (número 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa).
Por outro lado, alega ainda o recorrente, em síntese [conclusões 38ª a 43ª]:
- Quanto à personalidade do arguido, ao facto de este ter ou não compreendido a gravidade da sua acção, da sua capacidade de autocrítica, o Acórdão pouco ou nada diz e/ou acrescenta, a não ser, aqueles vulgos “lugares comuns” e, como atrás se viu, demasiado afastado do útil apoio do relatório social existente.
- Tão pouco foi formulado qualquer juízo relativo ao carácter desfavorável da prognose, não se atentou nas condições de vida da ora recorrente, nem se alicerçou / pronunciou quanto à sua conduta anterior e posterior aos factos, condição psicológica, necessidade de acompanhamento neste campo.
- Do Acórdão recorrido não constam as principais razões que sustentaram o tribunal “a quo” a enveredar pela medida da pena única aplicada.
- Dado o “deficit” de fundamentação, o Acórdão recorrido violou o disposto no n.º 2 do art.º 374.º do Código de Processo Penal, padecendo, assim, da nulidade prevista no art.º 379º nº.1 alínea a) do referido Código.

Conhecendo.
No que concerne aos requisitos da sentença, preceitua o art. 374º, nº2, do CPP, que “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Por seu turno, prescreve o art. 379º, nº1, al. a), do CPP [na parte que ora releva]:
“1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374º […]”.
A Lei ordinária portuguesa, como corolário do disposto no art. 205º, nº1, do Texto Fundamental (Constituição da República Portuguesa), consagra expressamente o dever de fundamentação das decisões finais, sentenças e acórdãos – art. 374º, nº2 do CPP –, bem como aponta a fundamentação como requisito essencial na apreciação da prova produzida em audiência – art. 365º, nº2 -, e na escolha e determinação da sanção a aplicar ao arguido – art. 375º, nº1.
Dispõe o artigo 375º, nº1, do CPP, que “A sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada, indicando, nomeadamente, se for caso disso, o início e o regime do seu cumprimento, outros deveres que ao condenado sejam impostos e a sua duração, bem como o plano individual de readaptação social.”
O Supremo Tribunal de Justiça, em diversas decisões, tem consubstanciado o dever de fundamentação da sentença do seguinte modo: para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, a sentença deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência[12].
Paulo Saragoça da Matta[13] entende que a fundamentação das sentenças consistirá:
«(a) num elenco das provas carreadas para o processo;
(b) numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras;
(c) numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados); e,
(d) numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente»  
Pertinente também, e por nós acolhido, o entendimento que sobre a fundamentação tem José Mouraz Lopes[14], nos seguintes termos:
«No processo de elaboração da fundamentação da decisão o procedimento tem de fundar-se na fundamentação lógica e racional do raciocínio do juiz, em função da prova que foi produzida e do modo como se chegou à decisão tomada. Na fundamentação assume especial importância a demostração da prova que sustenta os factos.
Deverá sempre explicar-se o porquê de determinada valoração, e porque não outra. O que levou o tribunal a decidir-se por esta ou aquela opção de prova através de um exame crítico das provas produzidas».
Por outro lado, a motivação não tem de ser extensa, exaustiva e pormenorizada. Basta que seja razoável, aceitável, do ponto de vista do normal e da suficiência, o que sucederá sempre que do seu conteúdo se consiga extrair as razões subjacentes à decisão tomada pelo julgador.
Volvendo ao caso vertente:
Julgamos que o acórdão recorrido não padece da alegada omissão de indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, no que tange à prova documental consubstanciada nos Anexos I a V.
Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a propósito da prova documental considerada pelo Tribunal, mencionou-se, entre o mais:
“O Tribunal formou a sua convicção com base na análise e ponderação da prova produzida e/ou examinada em audiência, conjugada com as regras da experiência comum, como estabelece o art. 127º CP, que consagra o princípio da livre apreciação da prova.
[…]
Dito isto o Tribunal baseou-se na prova pericial, na prova declaratória (por declarações dos arguidos AA e EE (a DD não as prestou) e por depoimentos (dos ofendidos AA e BB, CC e YY – embora em condições diversas, como veremos), na prova documental (designadamente, os autos de notícias, de denúncia, de desaparecimento e de reaparecimento, de diligências, de buscas, de apreensões – e o que foi apreendido – de exames – telemóveis, bengalas/mocas apreendidas, munições – fotos dos locais, cadernetas bancárias e outros elementos e extractos bancários, vale de correio, registos e seguros automóveis, boletins de vencimento, comprovativos de idas ao hospital, escritura de venda, comprovativos de pedidos de emissão/renovação de cartões de cidadão…), tudo concatenado com as regras da experiência.
Assim, mais precisamente, o Tribunal ponderou:
[…]
§ 5. A prova por documentos.
Como já se disse, a prova documental é abundante, integrando os autos principais, os apensos (mormente a carreada pelo GRA, para liquidação do activo) e os anexos I, II, III, IV, V (estes constituídos exclusivamente por documentos, espelhadas em cerca de 1.450 pág.), avultando, e designadamente (não sendo viável para a economia da presente decisão a análise específica de cada um e todos eles, sem prejuízo de terem sido todos vistos), os seguintes (sendo de realçar que não é necessário, para serem valorados, que se proceda á leitura dos documentos, naturalmente, que não contenham declarações/depoimentos, em audiência, como decorre do art. 355º nº 2 CPP; cf. acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 23/2/05, CJSTJ, 1, 210.), juntos:
§ 5.1. Aos presentes autos principais a fl.:
[…]
§ 5.3. Aos anexos I, II, III, IV, V, a fl.:
- 113-120 (hospital) e 273 (conta bancária titulada pelo casal FF) do Anexo III;
- 47, 48, 63, 67, 160, 558 (registos da actividade laboral de BB em Espanha), 55, 98, 99 (boletins de vencimento da ofendida em Espanha: montantes, datas e vê-se que o pagamento não foi feito por transferência), 219, 220, 239, 243 (agendas com menção ás horas trabalhadas e á BB), do anexo IV.”
Coligida a motivação da decisão de facto adiantada, verifica-se que a par da indicação genérica da documentação constante dos Anexos I a V o Tribunal a quo especificou os documentos dos Anexos III e IV que, em concatenação com outras provas ali identificadas, serviram para formar a sua convicção, designadamente quanto a episódios hospitalares, movimentos bancários ocorridos na conta bancária co-titulada pelos ofendidos RR e FF, atividade laboral desenvolvida pela ofendida em Espanha, respetivas remunerações e modo de pagamento, compreendendo-se perfeitamente qual o seu alcance probatório atenta a factualidade em discussão que constitui o objeto processual definido no libelo acusatório.
A menção vaga aos demais Anexos serve unicamente para localizar a documentação atendida, uma vez que esta integra uma vasta panóplia de extensos extratos e outros documentos bancários, bem como mais documentação do jaez da individualizada.
Ou seja, admitindo-se que a motivação, neste particular, não é exemplar, é, contudo, suficiente para permitir aos destinatários diretos e mediatos da decisão apreenderem quais os concretos documentos cujo teor foi valorado pelo Tribunal e o que se extraiu deles ao nível probatório, nomeadamente como meio corroborador de outros meios de prova produzidos nos autos, sempre tendo em vista a perceção das razões subjacentes à decisão sobre a matéria de facto tomada pelos julgadores.
Inexiste, destarte, a arguida nulidade do acórdão recorrido por falta fundamentação (exame crítico da prova) no que respeita à prova documental que integra os Anexos I a V.

Entendemos também que se encontra devidamente fundamentada a operação de determinação da pena unitária cominada nos autos ao arguido/recorrente AA. 
Nesse conspecto, o Tribunal expendeu na decisão recorrida:
“Para efeitos de cúmulo jurídico e face ao disposto no art. 77º nº 1, 2ª parte, CP (mantendo-se intocada a norma, como se disse), devem considerar-se, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, dentro da moldura prevista no nº 2 do art. 77º CP (“A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”) – também intocada.
Assim, a moldura varia entre um mínimo de 6 anos e um máximo de 16 anos e 9 meses de prisão.
Os crimes cometidos são, na sua globalidade, evidentemente conexos e muito graves, a sua personalidade (que se caracteriza de violenta, como já dissemos) mostra-se adequada àqueles factos (até face á sua idade), revelando, pelo menos, uma tendência para a prática desse tipo de crimes (de resto, bem revelada pela condenação ulteriormente sofrida); deve ponderar-se, porém, o tempo já decorrido sobre os factos, que atenuam sobremaneira as exigências de prevenção geral.
Tudo ponderado, cremos adequado fixar a pena única em 8 anos de prisão.”

Atendendo à predita exposição, dúvidas não sobejam de que, concorde-se ou não com a mesma, a decisão contém a fundamentação necessária para sustentar a determinação da medida concreta da pena única de prisão aplicada ao arguido (oito anos), uma vez que os Mmos. Juízes ali elencaram a moldura abstrata aplicável ao concurso de crimes, os fatores legais que norteiam a fixação da pena unitária e, quanto a estes, quais os que foram ponderados relativamente aos factos cometidos pelo arguido e à personalidade deste.
Assim, a discordância manifestada pelo recorrente AA quanto à dosimetria da pena única aplicada pela forma errada como, no seu entendimento, foram valorados os critérios de determinação da pena ali convocados, desconsiderados outros e ponderadas as finalidades punitivas, com excessivo peso das exigências de prevenção geral e desprezo pelas necessidades de reintegração social do agente, contende já com a questão diversa da excessividade da pena única cominada, a qual será infra apreciada.      
Concluímos, pois, que o acórdão recorrido não enferma de nulidade por falta de fundamentação relativamente à determinação da medida da pena única.  
Por conseguinte, nesta parte, improcede o recurso do arguido AA.

III.2.2.2 – Medida das penas parcelares:
           
O arguido/recorrente AA alega a excessividade das penas parcelares que lhe foram aplicadas, clamando pela sua redução, pelos fundamentos que, em resumo, expõe [conclusões 24ª a 27ª]: 
- O “quantum” das medidas das 5 penas são exageradamente penalizantes, tendo desconsiderado o Tribunal “a quo”, o respeito pelos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade subjacentes à aplicação de qualquer sanção penal e, apenas valorizando a indiscutível gravidade dos crimes praticados.
- É primário à data dos factos e encontra-se perfeitamente inserido na sua comunidade.
- A prática, em co-autoria, dos 2 crimes de escravidão teve o seu inicio em 1992 (faz 32 anos) e o respetivo Inquérito foi registado em 19 de abril de 2012 (faz 12 anos), tudo, relevando-se “mui” incompreensível.
- O Tribunal “a quo” valorizou excessivamente a natureza dos crimes praticados, fazendo total tábua rasa de outras circunstâncias, desde logo o enorme hiato temporal existente entre a prática dos crimes e o Julgamento dos factos, o que, poderia facilmente justificar a colocação das referidas penas no mínimo legal permitido.
- Ao longo do trajeto vivencial do arguido, desde a prática dos referidos crimes até ../../2018 (data em que entrou em reclusão), não fosse o período da prática dos crimes que ora foi condenado e outro, contemporâneo, que se refletiu na pena de 6 anos de prisão (que se encontra a cumprir desde ../../2018), não existe notícia de qualquer crime da mesma ou outra espécie, que aquele tenha praticado neste enorme hiato de tempo, razão porque mal andou o Acórdão de que se recorre, quando, em cada um dos 5 crimes em que condenou o aqui recorrente, o tenha feito em penas superiores ao mínimo legal judicialmente enquadrável a cada um deles.
Analisando.
Desconsideram-se para o efeito as penas cominadas pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de detenção de arma proibida, uma vez que se declara a prescrição do procedimento criminal no que tange a tais ilícitos criminais.
Posto isto, verifica-se que o arguido AA foi condenado nas seguintes penas parcelares:
- Pela prática, em coautoria, de dois crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º al. a) CP, na pena de 6 (seis) anos de prisão, para cada um.
- Pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo art. 160º nº 1, al. d) CP, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
Conforme decorre do art. 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº2 do art. 40º do C.P.).

Segundo Figueiredo Dias[15], quanto aos fins das penas, predomina «a ideia de que só as finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. Num contexto em que a prevenção geral assume o primeiro lugar, como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação, do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, em suma, na expressão de Jackobs, como estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida».   

O mesmo insigne autor, após expor a teoria penal por si defendida no que tange ao problema dos fins das penas, conclui do seguinte modo[16]:
«(1) Toda a pena serve as finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; (4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais».      
Idêntico ensinamento é fornecido por Maria João Antunes, in “Penas e Medidas de Segurança”, Almedina, 2020 (reimpressão), p. 45, nos seguintes termos:
«A medida da pena tem de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, em face do caso concreto, num sentido prospetivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida. Um critério de necessidade da pena que não fornece, contudo, um quantum exato de pena. Fornece somente a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias e o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função de tutela do ordenamento jurídico. Ponto que não tem de coincidir com o limite mínimo da moldura legal, podendo situar-se acima dele. Neste sentido, é a prevenção geral positiva (e não a culpa) que fornece uma moldura dentro da qual vão atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que, em última instância, vão determinar a medida da pena. Constituindo a culpa o limite inultrapassável de quaisquer considerações preventivas – em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, nº2, do CP) -, a culpa fornece somente o limite máximo da pena.»
Assim, na proteção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afetem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objetivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.[17]
Em cada caso, a finalidade de tutela e proteção de bens jurídicos há de constituir o motivo fundamento da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afetados.

Por seu turno, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há de ser casuisticamente prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização deverá ser encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, como vimos, nos termos do art. 40º, nº 2, do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena.
A operação de fixação da pena, dentro dos sobreditos limites, faz-se, segundo o art. 71º, nº 1, do Código Penal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Atendendo-se, conforme prescreve o nº 2 do mesmo preceito legal, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, nomeadamente:
- Ao grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente – al. a); 
- À intensidade do dolo ou da negligência – al. b);
- Aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram- al. c);
- Às condições pessoais do agente e a sua situação económica – al. d);
- À conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime – al. e); e
- À falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – al. f).
           
No caso vertente, no que tange à determinação da medida das penas parcelares aplicadas ao arguido AA o Tribunal a quo fundamentou a decisão nos seguintes termos [transcrição] – na parte aqui relevante:
«Ao crime de escravidão cabe prisão de 5 a 15 anos – pena intocada.
Ao crime de trafico de pessoas cabe prisão de 3 a 10 anos – pena intocada.
 […]
É o arguido que, nos quadros da comparticipação, teve preponderância e quem levou a cabo grande parte dos actos de agressão física e de opressão.
Portanto, o grau de ilicitude é elevado, quanto á escravidão.
O grau de culpa, neste contexto, é muito elevado e, evidentemente, persistente.
O autêntico terror que infundia nos ofendidos manifesta e documenta uma personalidade especialmente desvaliosa.
A ausência de arrependimento ainda mais exacerba esse lado da sua personalidade, e demonstra a falta de preparação para manter uma conduta lícita, e tanto assim que mesmo após a intervenção das autoridades, com buscas e apreensões, não se coibiu de praticar um crime de tráfico na pessoa do GG.
O grau de ilicitude é acima do pressuposto quanto ao tráfico de pessoas – pois a exploração do GG foi ao ponto de abranger as suas pensões de reforma (…).
A conduta posterior é muito negativa – está preso, e conta com uma condenação por escravidão.
Tudo isso o desfavorece.
A seu favor, o tempo já decorrido sobre os factos, que não deixa de se repercutir, atenuando-as em forte medida, sobre as exigências de prevenção geral.
Tudo ponderado, são ajustadas as seguintes penas parcelares: 6 anos de prisão para os crimes de escravidão, 4 anos de prisão para o crime de tráfico de pessoas (…)»
Concordamos com as considerações tecidas no acórdão recorrido a propósito dos critérios e factores de determinação das penas ponderados, exceto relativamente à incorreta valoração como agravante de alegada negativa conduta do arguido posterior aos factos, para efeitos do disposto no art. 71º, nº2, al. e), do CP, por ter sido preso, em 17/07/2018, para cumprimento de pena de 6 anos de prisão pelo cometimento de um crime de escravidão.
Trata-se de um errado enquadramento jurídico da verificada circunstância, a qual não podia ter sido ponderada, como foi, para efeitos de apreciação da conduta posterior do condenado, uma vez que a condenação em pena de prisão por aquele sofrida reportou-se a factos cometidos em 1993, ou seja, antes da prática dos que estão em discussão nos presentes autos.
Contudo, nos termos da alínea e) do nº 2 do art. 71º do CP, a mencionada circunstância deve ser ponderada como circunstância agravante com fundamento na conduta do arguido anterior aos factos do presente processo.
Acresce que, o Tribunal recorrido não deixou de considerar como circunstância fortemente atenuante, o considerável hiato temporal decorrido desde a prática dos factos.
Por outro lado, contrariamente ao que invoca o recorrente, encontra-se provado – sem que tenha sido deduzida impugnação dessa decisão – que o arguido «não se encontra socialmente inserido» [facto provado nº 92].
Em conformidade, considerando o concreto circunstancialismo fático verificado e a amplitude das molduras penais abstratas, julgamos que a medida das penas parcelares cominadas ao arguido AA, situando-se próximas dos mínimos legais, mostram-se adequadas, suficientes e proporcionais a acautelar os fins de jaez preventivo que subjazem à aplicação da sanção criminal e dentro do limite imposto pela culpa manifestada pelo arguido, pecando, quando muito, por excessiva benevolência.
Sopesados todos os enunciados factos e considerações, em especial as atinentes à ilicitude dos factos, à intensidade da culpa e à necessidade da pena, ressuma que as penas aplicadas pelo tribunal de primeira instância adequam-se e revelam-se idóneas à satisfação das necessidades de afirmação dos bens jurídicos violados, bem como à finalidade de procurar que o arguido não volte a delinquir.
Ou seja, as penas concretamente aplicadas respeitam o exigido pela tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, pelo que a redução das mesmas, nos termos preconizados pelo arguido recorrente, não é sustentável, sob pena de se colocar em causa a crença da comunidade na validade das normas jurídicas violadas e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico penais, bem como a finalidade de reintegração social do condenado.
Aliás, como ensina o Professor Figueiredo Dias [“Direito Penal Português II, As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, p. 197] a propósito da controlabilidade da pena em sede de recurso, na determinação do seu quantum, a sindicância recursória deverá reservar-se para as hipóteses em que tiveram sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada, o que não sucede.
A determinação da medida das penas operada pelo Tribunal a quo não violou qualquer norma legal e/ou constitucional, nomeadamente as invocadas pelo recorrente.
Improcede a pretensão recursiva de abaixamento da medida das penas parcelares.

III.2.2.3 - Dosimetria da pena conjunta:

Nos termos constantes das conclusões 31ª a 39ª, insurge-se o recorrente AA contra a medida da pena unitária aplicada, de 8 anos de prisão, considerando-a mal fundamentada e excessiva.
Para o efeito, alega, em síntese:
- A pena única aplicada ao ora recorrente é extrema e demasiadamente penalizante, tendo desde logo em conta a actual idade do arguido aqui recorrente, a menos de 3 meses de completar 70 anos de idade e, a sua perspectiva/esperança de vida.
- Os factos ocorreram em momentos absurdamente longínquos no tempo.
- Durante o hiato temporal mínimo de 10 anos em liberdade, não cometeu qualquer crime, estando inserido na comunidade e com trabalhos regulares (negociante de gado e trabalhos agrícolas).
- O Acórdão não teve também em conta que, dada a profunda degradação funcional ao nível da desejada reinserção em que se encontram os Estabelecimentos Prisionais em Portugal, esta pesada reclusão por certo em nada irá contribuir para na sua desejada ressocialização.
- O Tribunal “a quo” terá valorizado excessivamente a natureza dos crimes praticados, tendo também por isso, acentuado, de forma algo exagerada, as exigências de prevenção geral, acabando tais exigências por ser duplamente valoradas no Acórdão recorrido, tudo, porque as mesmas haviam já sido atendidas na fixação da pena parcelares de prisão ali aplicadas.
- Quanto à personalidade do arguido, ao facto de este ter ou não compreendido a gravidade da sua acção e da sua capacidade de autocrítica, o Acórdão pouco ou nada diz e/ou acrescenta.
- Tão pouco foi formulado qualquer juízo relativo ao carácter desfavorável da prognose, não se atentou nas condições de vida da ora recorrente, nem se alicerçou / pronunciou quanto à sua conduta anterior e posterior aos factos, condição psicológica e necessidade de acompanhamento neste campo.
Apreciando.
Prescreve o art. 77º do Código Penal, na parte que ora releva:
“1 – Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 – A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”

Como menciona João Pedro Baptista, “O conhecimento Superveniente do Concurso de Crimes e o Cúmulo Jurídico de Penas”, in Revista Julgar, nº33, setembro-dezembro 2017, pp. 203-204, «[…] o legislador português consagrou um regime de pena única conjunta, obtida através de cúmulo jurídico. E fê-lo não só porque o mesmo obsta ao efeito multiplicador da culpa do agente que os sistemas de acumulação proporcionam, como também porque assegura, de forma mais equilibrada, a satisfação das necessidades de prevenção criminal, designadamente na vertente de prevenção especial (que poderia ser comprometida com regimes de absorção, que tornam impunes os crimes em concurso de menor gravidade) e, primordialmente, porque assenta na consideração da personalidade do agente, a qual, pela sua própria natureza, tem um caráter unitário, embora projetando-se no conjunto dos factos.»
            Nesta ótica, tem-se entendido que a fixação da pena única conjunta «pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituosos do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unilateralmente), os factos e a personalidade do agente» [citando o acórdão do STJ de 21-11-2008, proc. 86/08.0GBOVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt].»

Dito de outra forma, agora nas palavras de Artur Rodrigues da Costa, “O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência e na Jurisprudência do STJ”, in Revista Julgar, nº 21, setembro-dezembro 2013, pp. 174-175, «À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.
Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detetar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da atuação do arguido como unidade de sentido, que há de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere Cristina Líbano Monteiro em anotação ao acórdão do STJ de 12/07/05. Ou, como diz Figueiredo Dias: «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique»
Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) [citando Figueiredo Dias]»     
Pela sua pertinência e enquanto exemplo da regular e estabilizada jurisprudência que quanto a esta matéria tem sido prolatada pelo Supremo Tribunal de Justiça, cita-se ainda aqui o acórdão desse tribunal de 18/01/2012, processo nº 34/05.9PAVNG.S1, disponível em www.dgsi.pt:
«Perante concurso de crimes e de penas, há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, encarado na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado e atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projeção nos crimes praticados; enfim, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os concretos factos ajuizados, a uma análise da função e da interdependência entre os dois elementos do binómio, não sendo despicienda a consideração da natureza dos crimes em causa, da verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, até porque o modelo acolhido é o de prevenção, de proteção de bens jurídicos.
Todo este trabalho de análise global se justifica tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados pelo(a) condenado(a) é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a feridente repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de factores meramente ocasionais.
No que concerne à determinação da pena única, deve ter-se em consideração a existência de um critério especial na determinação concreta da pena do concurso, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso.
Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.»
Retornando ao caso sub judice.
Quanto à determinação da pena conjunta, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:
«Para efeitos de cúmulo jurídico e face ao disposto no art. 77º nº 1, 2ª parte, CP (mantendo-se intocada a norma, como se disse), devem considerar-se, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, dentro da moldura prevista no nº 2 do art. 77º CP (“A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”) – também intocada.
Assim, a moldura varia entre um mínimo de 6 anos e um máximo de 16 anos e 9 meses de prisão.
Os crimes cometidos são, na sua globalidade, evidentemente conexos e muito graves, a sua personalidade (que se caracteriza de violenta, como já dissemos) mostra-se adequada àqueles factos (até face á sua idade), revelando, pelo menos, uma tendência para a prática desse tipo de crimes (de resto, bem revelada pela condenação ulteriormente sofrida); deve ponderar-se, porém, o tempo já decorrido sobre os factos, que atenuam sobremaneira as exigências de prevenção geral.
Tudo ponderado, cremos adequado fixar a pena única em 8 anos de prisão.»
Perante uma moldura abstrata aplicável ao cúmulo jurídico de 6 anos de prisão a 16 anos e 9 meses de prisão, o Tribunal a quo aplicou ao arguido a pena conjunta de 8 anos de prisão.
O Tribunal recorrido valorou, na apreciação da imagem global do facto, a reiteração de factos criminosos, a sua ilicitude considerável, a natureza destes, em parte violadores dos mesmos relevantíssimos bens jurídicos, o seu cometimento interligado num significativo lapso temporal e num óbvio contexto de habitualidade e, outrossim, a personalidade do arguido demonstrada no cometimento dos factos, violenta e com acentuado menosprezo pela dignidade humana de outras pessoas, e que se patenteia, face à recorrente prática de factos ofensivos dos bens jurídicos protegidos com as incriminações (considerando ainda a anterior condenação judicial sofrida pela prática de outro crime de escravidão), como característica, tendencial, e não meramente pluriocasional.

Desde logo, considerando a supra conhecida prescrição do procedimento criminal instaurado contra o arguido AA pela prática, como autor material e em concurso efetivo, de dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº1, al. d), da Lei nº 5/2006 (na versão da Lei 12/2011, de 27.04), importa desconsiderar as respetivas penas parcelares, de 4 meses e de 5 meses de prisão.
Consequentemente, a moldura abstrata do concurso passa a ser de 6 anos a 16 anos de prisão.      
Dito isto, entendemos que os critérios aduzidos pelo Tribunal a quo na determinação da pena única não merecem reparo, assim como - à data da decisão, perante os crimes integrantes do concurso e a moldura penal aplicável -, a concreta pena fixada, pois que não se pode afirmar que a mesma viole grosseiramente as regras da experiência e se apresente como claramente desproporcional, desadequada ou desnecessária face aos factos cometidos pelo arguido e à sua personalidade.
De outro modo, se se quisesse dirigir alguma crítica à sindicada decisão, seria pela sua extrema benevolência, e não por pretensa excessividade da pena única conjunta aplicada, que se situa ainda abaixo de 1/5 do intervalo da moldura do concurso de crimes.  
Frisa-se que não se encontra provado que o arguido se encontre social e profissionalmente inserido, sendo certo ainda que não medram as considerações que faz sobre a suposta injustificada desvalorização operada pelo Tribunal relativamente a prova testemunhal e documental produzida nos autos sobre as suas condições sociais e pessoais e personalidade habitual, uma vez que para colocar em crise esse juízo valorativo devia o recorrente lançado mão de formas legais de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o que não aconteceu.      
Note-se ainda que a idade do arguido, à data da decisão com 69 anos e atualmente com 70 anos, mereceria especial ponderação caso fosse consideravelmente superior e, mormente, se apresentasse um currículo criminal limpo, sem antecedentes criminais, o que não sucede, tendo ele já cometido outros crimes de gravidade considerável.  
Em conformidade, tudo visto e ponderado, decide-se agora, perante a nova moldura penal do concurso de crimes, condenar o arguido AA na pena única conjunta de 7 anos e 9 meses.
Assim sendo, ainda que por fundamento distinto do invocado no douto recurso, este procede parcialmente, nos termos preditos.

III.2.3 – Recurso deduzido pelo Ministério Público:

O Ministério Público, ao abrigo do disposto nos artºs 1º, nº 1, al. n), 7º e 8º da Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro, conjuntamente com a acusação, requereu a perda ampliada de bens a favor do Estado, que liquidou em 62.287,46 €, contra os arguidos AA e EE [referência ...70].
Mais pediu o arresto dos bens móveis descritos no art. 9º, B.2, do respectivo requerimento.
O acórdão recorrido, não obstante tenha condenado os arguidos/Requeridos na parte criminal, absolveu-os do pedido de perdimento de bens a favor do Estado (perda alargada do património incongruente ou confisco).
O recorrente Ministério Público discorda dessa concreta decisão, alegando, em síntese [conclusões 4ª a 7ª], que:
- O montante cujo perdimento se requereu – perda alargada de bens fundada no património incongruente – deveria ter sido julgado provado e, assim, se declarar o seu perdimento, com a subsequente condenação dos arguidos, por se verificarem todos os pressupostos a que alude o artigo 1.º, n.º s 1, al. n), 7.º e 8.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, a saber: i. a condenação pela prática de um crime do catálogo, no caso, de tráfico de pessoas (artigo 1.º, n.º 1, al. n) do referido Diploma); ii. património do condenado; iii. incongruência desse património com o seu rendimento lícito.
- Não obstante a quantia peticionada, de 62.287,46Eur (sessenta e dois mil, duzentos e oitenta e sete euros e quarenta e seis cêntimos) – ou, no limite, o valor de 50.287,46Eur (cinquenta mil, duzentos e oitenta e sete euros e quarenta e seis cêntimos) conforme o entendeu o Tribunal a quo –, dever ser declarada perdida a favor do Estado em sede de perda alargada de bens e não de perda clássica de bens (esta prevista no artigo 11.º, n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal), sempre se dirá que, considerando o Tribunal que no valor do património total foram contabilizadas as quantias atinentes aos vencimentos não pagos ao casal FF e BB – considerando o seu não pagamento como uma vantagem, sendo esse também o produto da atividade criminosa (perda clássica) – impunha-se ao Tribunal que tivesse declarado perdido a favor do Estado tal quantia, pelo menos, a título de perda de vantagens (perda clássica), independentemente da dedução e procedência do pedido de indemnização civil (como veio a ser deduzido e, assim, a proceder).
- Mantendo-se o entendimento de que tais montantes integram o conceito de vantagem dos fatos ilícitos típicos, nos termos e para os efeitos do artigo 110.º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal, – o que igualmente se verifica, é certo –, impunha-se, pelo menos, que o Tribunal a quo tivesse conhecido tal perda, declarando-a, porquanto devida e imperativa, em face das distintas finalidades e natureza desse instituto quando confrontado com o fundamento e natureza do pedido de indemnização civil deduzido, donde deve, assim, o Tribunal ad quem revogar, nesta parte, o douto Acórdão recorrido e substitui-lo por outro que declare tal perda de vantagens (perda clássica).

A decisão absolutória dos arguidos do pedido de perda ampliada de bens a favor do Estado, foi fundamentada pelo Tribunal recorrido nos seguintes termos:
«§ 9. Quanto á liquidação do activo e consequente perdimento a favor do Estado da quantia de 62.287,46€, correspondente ao lucro incongruente:
Sob a epígrafe “perda alargada”, dispõe o art. 7º da Lei 5/2002, de 6-2, que:
“1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
2 - Para efeitos desta lei, entende-se por «património do arguido» o conjunto dos bens:
a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;
b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;
c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.
3 - Consideram-se sempre como vantagens de atividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal”.
A perda de bens determinada pela norma em referência não incide propriamente sobre bens determinados, mas sobre o valor correspondente á diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
A base de partida é o património lato sensu, abrangendo não só os bens de que o arguido seja formalmente titular (do direito de propriedade ou de outro direito real), mas também aqueles de que ele tenha o domínio de facto e de que seja beneficiário (é dizer, os bens sobre os quais exerça os poderes próprios do proprietário), á data da constituição como arguido ou posteriormente.
Para este efeito, incluem-se, no património do arguido, os bens transferidos para terceiros de forma gratuita ou através de uma contraprestação simbólica nos cinco anos anteriores á constituição de arguido e os por ele recebidos no mesmo período.
Apurado o valor do património, devem-lhe ser imputados os rendimentos de proveniência lícita, auferidos pelo arguido naquele período e será o produto dessa imputação, se o houver, que corresponderá ao valor presuntivamente “incongruente”, a ser “perdido a favor do Estado”, nos termos do art. 8º nº 1 da citada Lei.
O arguido pode ilidir a presunção de incongruência, mediante prova em contrário, mostrando a existência de outros rendimentos lícitos.
Este sistema de perda ampliada tem sido julgado conforme á Constituição (Acs. TC 101/2015, DR, II Série de 26-03-2015 e 392/2015, DR, II Série, 23-09-2015).
§ 9.1.
No caso concreto:
Na liquidação apresentada pelo MP, consta, como valor global dos rendimentos lícitos, de 2007 a 2014, correspondente ao somatório dos valores declarados fiscalmente (rendas, produto das vendas de imóveis, subsídios – transferências IFAP…) a quantia de 207.250,21€.
E consta, como valor do património total, no mesmo período, constituído pela soma dos totais anuais dos saldos bancários (resultantes da diferença entre as transferências a crédito e depósitos, de um lado, e as transferências a débito, levantamentos e despesas, do outro) e dos vencimentos não pagos, pelos arguidos NNN e EE, aos ofendidos/Casal FF, o que tudo totaliza 269.537,67€.
Sucede que, como resulta da escritura de venda, em 2011, pela arguida EE, da Quinta ..., e que lhe havia sido adjudicada em partilhas subsequentes a divórcio, o preço da alienação foi de 45 mil euros (e não o declarado de 33 mil euros, a que foram deduzidas as despesas no montante declarado de 1.050 €), pelo que a verba de 43.950 € (45.000€ - 1.050€ de despesas declaradas a titulo da aquisição) deve ser somada aos rendimentos lícitos, a título de alienação de imóveis no ano de 2011, em vez da verba de 31.950 €, pelo que o montante global total dos rendimentos, passa para 227.355,50€, o do RDP (rendimento disponível parcial) passa para 222.585,77€, em vez de 210.585,77€, e o RD (rendimento disponível) passa para 219.252,21€.
E, assim, o valor incongruente passa de 62.287,46€ para 50.287,46 € (269.537,67€ - 219.252,21€).
Porém, no património total, foram, como se disse, contabilizadas as quantias atinentes aos vencimentos não pagos ao casal FF – considerando o seu «não pagamento» como uma vantagem.
O problema é que também é o produto da actividade criminosa, isto é, que tem a sua causa, directa e adequada, na prática do crime – perda clássica.
Dispunha o art. 111º nºs 2 e 4 CP – versão á data dos factos – que [Perda de vantagens]:
“São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido directamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.
4 - Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor”.
Com a Lei n.º 30/2017, de 30/05, a matéria passou para o art. 110º [Perda de produtos e vantagens] nºs 1, al. b), 2, 4 e 6 CP, que reza assim:
“1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido”.
Em ambas as redacções, pois, a lei ressalva os direitos dos ofendidos.
Tem-se entendido (cf. Ac. TRP, de 7-7-2021, P. 5183/16.5T9PRT.P1, Rel. Eduarda Lobo) que “na concorrência entre o pedido de indemnização por danos patrimoniais fundado na prática de um crime e a pretensão do Estado na declaração de perda a seu favor das vantagens do mesmo, este último não deverá merecer deferimento, ao menos até à parte em que coincidem a perda do lesado e a vantagem do agente do crime”. Com efeito, são “as situações em que não existe um elo de ligação facilmente apreensível entre as vantagens patrimoniais do crime e as correspondentes desvantagens, v. g., quando estão em causa victimless crimes ou crimes em que está em causa um número indeterminado de lesados, que representam o domínio indisputado do instituto da perda de bens a favor do Estado, não apenas aliás, da perda clássica, como, sobretudo, da perda ampliada de bens”. É, pois, de concluir que “a interpretação mais adequada ao pensamento legislativo quanto ao instituto da perda de bens ou vantagens a favor do Estado é que este perdimento deve comprimir-se quando em presença do instituto concorrente do pedido de indemnização pelo lesado e deve expandir-se quando este se desinteressa do seu património, perdido para o agente do crime. Há que compatibilizar desta forma os dois institutos, de forma a que se não traduzam numa dupla penalização para o agente”.
No caso, os ofendidos deduziram PIC, peticionando o valor correspondente ao total dos vencimentos retidos, de montante muito superior ao constante da liquidação (pois esta abrange um período temporal muito mais reduzido) – sendo certo que, em todo o caso, no período referido, os valores liquidados e peticionados são idênticos (ascendem a 51.998,52€) e são, até, inferiores ao que se provou (provou-se um montante de 52.371,18€).
Ora, imputando-se (ou seja, retirando-os) os valores liquidados/pedidos, deixa de haver qualquer montante incongruente (50.287,46€ - 51.998,52€), pelo que a liquidação do activo improcede.

Vejamos.
Preceitua o art. 7º da Lei nº 5/2002, de 11.01, sob a epígrafe «perda de bens»:
“1. Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1º e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
2. Para efeitos desta lei, entende-se por património do arguido o conjunto dos bens:
a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;
b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contra-prestação irrisória, nos cincos anos anteriores à constituição como arguido;
c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.
3. Consideram-se sempre como vantagens de actividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111º do Código Penal.”   
Nos termos da al. n) do art. 1º da mencionada Lei, um dos crimes do catálogo definidor da sua aplicação é o de tráfico de pessoas.
Como refere João Conde Correia, em anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/10/2014, Revista Julgar on line, 2014, p. 19, «no caso de perda alargada, o Ministério Público não tem que demonstrar a relação entre o património incongruente e um qualquer crime (“presume-se”), devendo apenas provar um crime do catálogo (mesmo que dele não tenha resultado qualquer vantagem), a existência de um património e a sua incongruência com os rendimentos lícitos».
A lei consagra, assim, o regime de inversão do ónus da prova em matéria de perda de bens a favor do Estado.
De acordo com o preceituado na Lei n.º 5/2002, a declaração de perda ampliada não incide propriamente sobre bens determinados, mas sobre um valor, que, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, daquele diploma legal, é o correspondente à “diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito”.
Em caso de condenação, a decisão final declara perdido a favor do Estado o valor do património incongruente (até ao montante máximo liquidado) – cf. art. 12º, nº1 da Lei nº 5/2002, de 11.01.
Destarte, o objeto do processo não se circunscreve simplesmente às vantagens diretamente resultantes para o arguido da prática criminosa que lhe é imputada na acusação/pronúncia, estando em causa muito mais do que isso, porquanto existem indícios que, a manterem-se em julgamento, determinarão a perda das vantagens apontadas no libelo acusatório como lucro retirado da atividade criminosa e, outrossim, também a perda do restante património incongruente, até ao valor máximo liquidado.
É que como observa João Conde Correia [ob. cit., p. 18], pode haver perda alargada ainda que nenhuma vantagem emergente da prática do crime do catálogo tenha sido identificada.
O que aqui verdadeiramente está em causa já não são apenas as vantagens diretamente resultantes da prática do crime, mas a existência de um património incongruente com os rendimentos lícitos e que o arguido não consegue, de qualquer forma lícita, justificar.
Urge, pois, distinguir claramente os regimes da perda das vantagens do facto ilícito típico, regulada no art. 111º do CP (bem como nos restantes regimes específicos, nomeadamente no âmbito do DL 15/93, de 22.01) – atualmente, art. 110º -, da perda alargada prevista na Lei 5/2002, de 11.01, apesar de o nº3 do art. 7º desta Lei remeter para o art. 111º do CP no que concerne aos juros, lucros e outros benefícios obtidos com os bens aí previstos.
Desde logo, no art. 111º do CP (atualmente no art. 110º) exige-se a demonstração de que determinados bens constituem vantagem da atividade criminosa, nos termos ali definidos, inexistindo qualquer presunção que justifique estabelecer o nexo de causalidade entre a mesma e a prática do facto ilícito culposo.
Em conformidade, ainda que no processo tenha sido realizada a liquidação de bens a que alude o art. 8º da Lei nº 5/2002 (ou caso esta não cumpra as exigências legais), o Tribunal deve declarar a perda dos bens que comprovadamente constituem vantagem da atividade criminosa nos termos do art. 111º do CP (atual art. 110º), por se ter demonstrado inequivocamente que resultaram da prática do crime ajuizado – neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.11.2008, disponível em www.dgsi.pt.
Como refere o mencionado Autor, in “Da Proibição do Confisco à Perda Alargada”, INCM, 2102, p. 109, os bens ou vantagens, direta ou indiretamente provenientes do crime do catálogo que está na origem do confisco, não devem ser incluídos nesse montante global (da liquidação do património incongruente). Eles resultam daquele crime concreto, ficando sujeitos ao regime geral da perda dos instrumentos, produtos ou vantagens do crime (artigos 109º e segs. do CP), não sendo necessário presumir a sua proveniência de uma qualquer atividade criminosa
Diga-se, ainda, que uma vez sustentados factualmente os pressupostos que geram a inversão do ónus da prova, o ónus probatório a cargo do arguido resume-se à prova da origem lícita de determinados bens, incumbência que terá de concretizar através da demonstração de um dos factos constantes do art. 9º, nº3, da Lei nº 5/2002, podendo para o efeito socorrer-se de qualquer meio de prova válido em processo penal (cf. nº2 do mesmo normativo legal).
Quanto a este aspeto chamam-se à colação as palavras de Hélio Rigor Rodrigues e Carlos A. Reis Rodrigues, in “Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-Financeira”, SMMP, p. 231:
«(…) na eventualidade de o arguido não contrariar o resultado da presunção, provando que o seu património incongruente tem, afinal, origem lícita, a ocorrência de um eventual non liquet, quanto a esta, será resolvido em seu desfavor, sem necessidade de qualquer actividade probatória por parte do Ministério Público. Em bom rigor, julgamos que, salvo melhor opinião, quer porque o arguido já foi condenado (pelo que não se presume inocente) quer porque o instituto da perda de bens não assume natureza penal, não poderemos neste caso ponderar sequer a aplicação do princípio “in dubio pro reo”. 
Acresce que, a ilicitude do património incongruente liquidado pelo Ministério Público encontra-se demonstrada pela presunção. Desta forma, na ausência de qualquer actividade probatória do arguido, não poderá o Tribunal considerar que existem dúvidas quanto à origem ilícita do seu património, nem, consequentemente, quanto ao seu nexo com a actividade criminosa, pelo que, consequentemente, nunca se verificará a ocorrência de um “non liquet” que possa favorecer o arguido.
É possível obter idêntico juízo, naqueles casos em que a prova produzida pelo arguido não possua intensidade suficiente para afirmar a certeza da origem lícita do seu património. Para ilidir a presunção o arguido terá que a combater fazendo “prova do contrário”. Não bastará, assim, ao arguido criar no tribunal a dúvida sobre a origem lícita do seu património, uma vez que esta, além de não ser relevada pelo artigo 9º nº3 da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, que exige que o arguido prove qualquer uma das alíneas delas constantes através de uma prova concludente e incontroversa (diz o artigo 9º que a presunção é ilidida se se provar […]), sempre essa dúvida faleceria perante o juízo de certeza indiciário que resulta da presunção».
Volvendo ao caso vertente.
Salvo o devido respeito, olvida o recorrente – como olvidou o tribunal de primeira instância – que o requerimento de perda alargada de bens fundada no património incongruente dos arguidos que formulou nos autos ao abrigo do disposto nos arts. 7º e 8º da Lei nº 5/2002, de 11.01, teria forçosamente de improceder a partir do momento em que o Tribunal a quo (com a concordância do ora recorrente) alterou a qualificação jurídica dos factos concernentes à atuação perpetrada sobre os ofendidos AA e BB, entre ../../2007 e ../../2012, integrando-os nos crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º, al. a), do CP, em detrimento dos originariamente considerados (na douta acusação pública) crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º, nº1, al. d), do mesmo Código.      
Isto porque o crime de escravidão – contrariamente ao que sucede com o crime de «tráfico de pessoas» - não integra o elenco dos denominados “crimes de catálogo” previstos no art. 1º da Lei nº 5/2002 e cuja verificação é imprescindível para a aplicação do regime especial de perda de bens a favor do Estado consagrado nessa legislação.
Posto isto, deveria a pretensão do Ministério Público ter vingado à luz do regime geral de perda de vantagens previsto no Código Penal, como subsidiariamente se preconiza no recurso?
Respondendo.

Prescrevia o artigo 111º do Código Penal, na versão vigente à data dos factos [redação da Lei nº 32/2010, de 02.09], sob a epígrafe «Perda de vantagens»:
“[…]
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.
[…]
4 - Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.”
Atualmente, após a entrada em vigor da Lei nº 30/2017, de 30.05, estatui o artigo 110º do Código Penal, sob a epígrafe «Perda de produtos e vantagens»:
1- São declarados perdidos a favor do Estado:
[..]
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
[…]
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
[…]
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.” 


Com tem sido maioritariamente entendido pela jurisprudência, o instituto da perda de vantagem patrimonial constitui uma providência sancionatória de natureza jurídica análoga à das medidas de segurança, não tendo a natureza de pena acessória nem de efeito da condenação, estando ligada à prevenção da prática de futuros ilícitos criminais.[18]
Conquanto, por se tratar de medida de carácter sancionatório, a perda de vantagens, deva constar da acusação, trata-se de providência com caracter irrenunciável (sem prejuízo do disposto no artº 112º CP), através da qual o Estado exerce o seu ius imperium, anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito típico.
Como sapientemente salienta a Exma. Procuradora Geral-Adjunta no douto parecer que emitiu nos autos, «A perda de vantagens assenta, primacialmente, num desiderato ditado não só por razões de prevenção geral da criminalidade ou da conveniência de uma acrescida censura ao desvalor das condutas desenvolvidas, mas sobretudo pela necessidade de se estabelecer uma efetiva objetividade à ideia tradicional (porém, sempre atual) de que o crime não compensa.
Subjaz-lhe a noção da intolerância, por parte do Estado, de situações patrimoniais antijurídicas, apontando para a premência de se operar a restauração da ordenação dos bens em correspondência e consonância com o direito.
O confisco visa sempre evitar que o agente retire quaisquer dividendos da sua ação criminosa, mesmo quando estes vão além do real e efetivo prejuízo da vítima, precavendo-se, também assim, as finalidades de prevenção geral e especial, não podendo existir, em circunstância alguma, uma “vantagem patrimonial” para o agente infrator.
O confisco assume-se, assim, como um poderoso instrumento de incentivo à abstenção de prática de crimes, ressoando um forte efeito preventivo geral, tão ou mais poderoso do que aquele sinalizado pelas penas, ainda que o seu modo de funcionamento assente na recondução do condenado ao seu estatuto patrimonial anterior à prática do crime.»
Os pressupostos legais da declaração de perda de vantagens são apenas o facto antijurídico e a existência de proveitos, ou seja, a ocorrência de uma atuação típica ilícita por parte do agente e que desse facto decorra, causalmente, uma vantagem patrimonial para si ou para terceiro.
No presente caso, o Ministério Público referiu-se expressamente no art. 12º da liquidação do montante que deve ser perdido a favor do Estado, a considerar como parte integrante do património dos arguidos AA e EE, ao «valor dos vencimentos que estes deveriam ter pago pela prestação de trabalho aos ofendidos RR e FF, uma vez que a supressão desta despesa mensal é, efetivamente, um benefício (pela não despesa) para os arguidos.» e, nos artigos 13º e 14º, concretizou os montantes pecuniários em questão.
Logo, encontrando-se provado nos autos que os arguidos AA e EE obtiveram vantagens patrimoniais, ganho monetário, na modalidade de poupança de despesas, provenientes do não pagamento das remunerações salariais devidas aos ofendidos FF e BB pelo trabalho por estes desenvolvido no período em questão, montantes esses que se acham devidamente concretizados no ponto 66º dos factos provados, deveria o Tribunal a quo ter condenado aqueles arguidos ao pagamento ao Estado do respetivo valor, nos termos do disposto no art. 111º, nºs 2 e 4 do CP, na versão em vigor à data dos factos, e, atualmente, do disposto no art. 110º, nºs 1, al. b), e 4, do CP.
Tal condenação impunha-se independentemente de os ofendidos terem deduzido contra os arguidos lesantes pedidos de indemnização civil, que incluíam, ao nível dos danos patrimoniais, as retribuições do seu trabalho que deixaram de auferir, por os demandados se terem apropriado ilicitamente das mesmas, e que vieram, nessa parte, a obter procedência.
A perda de vantagens, reitera-se, tem natureza punitiva análoga à de uma medida de segurança, norteando-se a sua aplicação por finalidades de prevenção geral e especial, na vertente “negativa”, de obstaculizar o cometimento de futuros crimes, pelo agente e restantes membros societários, não podendo assim o Estado prescindir do seu exercício, independentemente do direito dos lesados ao ressarcimento dos danos sofridos como consequência do crime.    
 Como lapidarmente se mencionou no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12.09.2023, Processo nº 55/20.1GAFZZ.E1, relatora Beatriz Marques Borges, acessível em www.dgsi.pt:
«I. A perda de vantagens é um instituto autónomo em relação à indemnização civil, atenta a sua natureza e finalidade preventivas, e o seu carácter sancionatório análogo à da medida de segurança.
II. É obrigatório que na sentença penal o Tribunal decrete a perda de vantagens obtidas com a prática do crime, caso contrário ocorrerá violação do artigo 110.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CP.»
Igual entendimento já havia sido doutamente vertido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.06.2022, Processo nº 638/17.7IDPRT.P2, acessível em www.dgsi.pt:

«Reconhecendo-se a autonomia do instituto da perda de vantagens, a sua natureza e finalidade marcadamente preventivas, o seu carácter sancionatório análogo à da medida de segurança e, para além disso, obrigatório, subtraído a qualquer critério de oportunidade ou utilidade, o juiz não pode deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime, na sentença penal. E isto independentemente de o lesado ter deduzido ou não pedido de indemnização civil (e do seu desfecho), ou de ter optado por outros meios alternativos de cobrança do crédito que possa coexistir com a obrigação e necessidade de reconstituição da situação patrimonial prévia à prática do crime, própria do instituto da perda de vantagens.
Só em situações comprovadas e concretas de inutilidade – pois, como se acentua no acórdão deste TRP, de 11/4/2019, o Estado não pode receber duas vezes a mesma quantia - se poderá verificar uma específica e excecional subsidiariedade entre os dois institutos.
[…]
No modelo, que é o nosso, de mera restauração de uma ordem patrimonial conforme ao direito, o confisco não é uma pena. Está em causa, apenas, corrigir uma situação patrimonial ilícita, que não goza de tutela jurídica. O mecanismo dirige-se contra os próprios bens, sem qualquer juízo de censura da ação ou omissão individual que lhes está subjacente.
Portanto, o confisco não tem caráter sancionatório – ou não o tem primordialmente -, assumindo-se, antes, quer como um simples mecanismo preventivo análogo à medida de segurança (perda de instrumentos e de produtos), quer como um mero mecanismo civil enxertado no processo penal (confisco das vantagens, das recompensas e do património incongruente) de tutela de uma ordem patrimonial conforme ao direito.

“O crime nunca é título legítimo de aquisição”, dizia Sidónio Rito, sendo, pois, natural e legítimo que o Estado procure restabelecer a situação anterior, reduzindo essas vantagens a zero. O crime não pode compensar.»
Acolhendo a sobredita tese por nós sufragada, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 5/2024, de 9 de maio, publicado no DR, Série I, de 09-05-2024: «Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.»
Apesar de o AUJ nº 5/2024 se reportar à versão do Código Penal anterior às alterações introduzidas pela Lei nº 30/2017 de 30/05, verifica-se que a anterior redação do art. 111º, nºs 2 e 4 CP, equivale, no essencial, à actual redação do art. 110º nºs 1 al. b) e 4, pelo que os fundamentos da jurisprudência fixada mantêm pertinência e atualidade – assim se entendeu também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.06.2024, Processo nº 180/20.9T9MNC.P1.S1, relator Conselheiro Antero Luís, acessível em www.dgsi.pt.
Por último, cumpre notar que foi concedida aos arguidos a possibilidade de exercerem o contraditório sobre a requerida perda de vantagens, quer por via da possibilidade de defesa face à liquidação operada (cf. arts. 8º, nº4 e 9 da Lei nº 5/2002) quer por via dedução de resposta ao recurso, de que decidiram prescindir.      
Procede, pois, parcialmente, o douto recurso formulado pelo Ministério Público, de modo que urge revogar o douto acórdão recorrido relativamente à absolvição dos arguidos/recorridos do pedido de perda de vantagens, que é aqui julgado procedente, ainda que ao abrigo do disposto no artigo 111º, nºs 2 e 4 do Código Penal, na versão vigente à data dos factos e, atualmente, no artigo 110º nºs 1 alínea b) e 4, do mesmo diploma legal, relativamente aos montantes apurados de € 26.384,16, quanto ao ofendido FF, e de € 25.614,36, quanto à ofendida RR.       
*
IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em:

IV.1 – Julgar parcialmente procedente o douto recurso interposto pela arguida EE e, em conformidade:

IV.1.1 – Ao abrigo do disposto no art. 431º, alínea b) do Código de Processo Penal, modificar a decisão de primeira instância relativamente à matéria de facto nos seguintes termos, já plasmados no Item III.2.1.3 (ainda que sem relevância para alterar a decisão condenatória):
- Modificar a redação do ponto 42 dos factos provados, de modo a retirar o imputado acompanhamento do ofendido FF pela arguida EE nas deslocações aos Correios ... e a exigência pela mesma de entrega imediata da totalidade da quantia por aquele recebida a título de pensão de invalidez, factualidade que passa a constar do elenco dos factos não provados.  
Assim, o ponto 42 dos factos provados assumirá o seguinte teor: “Para o efeito, o arguido AA deslocava-se mensalmente com o referido ofendido à estação dos Correios de ... para que este procedesse ao levantamento de tal quantia e, uma vez no exterior, exigia-lhe a entrega imediata da totalidade de tal quantia, que, conjuntamente com a coarguida EE, retinham na sua posse, dela se apoderando e gastando-a em proveito próprio e no do seu respetivo agregado familiar, nunca tendo entregue qualquer quantia monetária àquele ofendido.”
- Considerar como provada a factualidade que havia sido dada como não provada na primeira parte do ponto 32º (“A arguida levou o FF ao médico”).
- Alterar a asserção constante da parte final do primeiro parágrafo de que «a arguida EE agredia fisicamente a ofendida BB, batendo-lhe», considerando-se como provado apenas que a arguida EE, por uma vez, agrediu fisicamente a ofendida BB, desferindo-lhe duas estaladas na cara. 
- Alterar a matéria de facto do ponto 72 dos factos provados, in fine, no que diz respeito à atuação da arguida EE ali descrita, substituindo-se a expressão «por vezes» pela expressão “por uma vez”. 
  
IV.1.2 – No mais, julgar totalmente improcedente o recurso da arguida.

IV.2 - Julgar parcialmente procedente o douto recurso interposto pelo arguido AA e, em conformidade:

IV.2.1 – Declarar extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra o arguido AA pela prática, como autor material e em concurso efetivo, de dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº1, alínea d), da Lei nº 5/2006, na redação conferida pela Lei nº 12/2011, de 27.04.

IV.2.2 – Consequentemente, em reformulação do cúmulo jurídico de penas operado, dele se excluindo as penas parcelares que haviam sido cominadas pelos crimes de detenção de arma proibida, condenar agora o arguido AA na pena única conjunta de 7 (sete) anos e 9 (nove) meses de prisão.

IV.2.3 – Na mais, julgar improcedente o recurso do arguido.

IV.3 - Julgar parcialmente procedente o douto recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade:

 IV.3.1 - Revogar o douto acórdão recorrido relativamente à absolvição dos arguidos AA e EE do pedido de perda de vantagens, que ora julgamos procedente, ainda que ao abrigo do disposto no artigo 111º, nºs 2 e 4 do Código Penal, na versão vigente à data dos factos e, atualmente, no artigo 110º nºs 1 alínea b) e 4, do mesmo diploma legal, condenando-os solidariamente a pagar ao Estado os montantes apurados de € 26.384,16 quanto ao ofendido FF e de € 25.614,36 quanto à ofendida RR, no valor global de € 51.998,52.      

Sem tributação.
*
Comunique desde já a decisão à primeira instância.
Notifique (art. 425º, nº 6, do CPP).
*
Guimarães, 11 de fevereiro de 2025,

Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura eletrónica]
Pedro Freitas Pinto (1º Adjunto)
[assinatura eletrónica]
Carlos da Cunha Coutinho (2º Adjunto)
[assinatura eletrónica]
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)


[1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que mantém atualidade.
[2] Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças, in “Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº 10, 2010, p. 29.
[3] Entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2011, processo 308/08.7ECLSB.S1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 09703/2018, processo 628/16.7T8LMG.C1, de 03/06/2015, processo 12/14.7GBSTR.C1, de 14/01/2015, processo 72/11.2GDSTR.C1, e de 17/12/2014, processo 872/09.3PAMGR.C1; e do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/05/2015, processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, a título exemplificativo, vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2011, processo 288/09.1GBMTJ.L1-5, de 18/07/2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, de 21/05/2015, processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, e de 08/10/2015, processo 220/15.3PBAMD.L1-9; e do Tribunal da Relação de Évora de 19.05.2015, processo 441/10.5TABJA.E2, todos disponíveis em www.dgsi.pt
[5]  “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, pp. 253-254.
[6] Cfr., por todos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/11/2004, processo nº 04P3195, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/03/2015, processo nº 594/11.5T3AVR.C1, e de 24/04/2012, processo nº 14/10.2SJGRD.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[7] In “Código Penal Anotado e Comentado”, 2ª Edição, Quid Juris, p. 141.
[8] Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português II – As Consequências Jurídicas do Crimes”, 1993, p. 306.
[9] “Direito Penal Português, Tomo II - As Consequência Jurídicas do Crime”, 1993, pp. 72-73.
[10] “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pp.78-85.
[11] Conforme menciona Manuel Augusto Barros Lopes, in “Sobre Um Caminho Para a Pena”, 2022, p.110, a finalidade da pena «(…) no modo de prevenção geral positiva ou integração, aposta no reforço da confiança ou consciência comunitária na validade da ordem jurídica. Existindo pertinência do bem jurídico a pena exerce uma função pedagógica dirigida à interiorização dos bens jurídico-penais pela consciência jurídica comunitária, uma função de pacificação social. (…) Por seu turno, a prevenção especial assume natureza acautelar a prática de futuros crimes, quer pelo mesmo agente no polo em que fulmina enquanto negativa, quer por possíveis agentes diversos no polo em que atrai como positiva. (…) no modo de especial positiva adota a regeneração, reeducação, ressocialização ou reinserção social como desígnio.»  
[12] Neste sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 13/10/1992, in CJ, Ano XVII, 1992, tomo I, p.36, de 21/03/2007, processo nº 07P024, disponível em www.dgsi.pt, de 23/04/2008, in CJSTJ, tomo II, p. 205, e de 08/01/2014, processo nº 7/10.0TELSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[13] “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, p. 265.
[14] “Gestão Processual: Tópicos Para Um Incremento da Qualidade da Decisão Judicial”, in Revista Julgar, nº10, 2010, págs. 142 e 143. 
[15] “Direito Penal Português, Tomo II - As Consequência Jurídicas do Crime”, 1993, pp. 72-73.
[16] “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pp.78-85.
[17] Conforme menciona Manuel Augusto Barros Lopes, in “Sobre Um Caminho Para a Pena”, 2022, p.110, a finalidade da pena «(…) no modo de prevenção geral positiva ou integração, aposta no reforço da confiança ou consciência comunitária na validade da ordem jurídica. Existindo pertinência do bem jurídico a pena exerce uma função pedagógica dirigida à interiorização dos bens jurídico-penais pela consciência jurídica comunitária, uma função de pacificação social. (…) Por seu turno, a prevenção especial assume natureza acautelar a prática de futuros crimes, quer pelo mesmo agente no polo em que fulmina enquanto negativa, quer por possíveis agentes diversos no polo em que atrai como positiva. (…) no modo de especial positiva adota a regeneração, reeducação, ressocialização ou reinserção social como desígnio.»  
[18] Neste sentido se pronunciaram os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 31.05.2017, Processo nº 259/15.9IDPRT.P1, relatora Lígia Figueiredo, e de 12.07.2017, Processo nº 12.07.2017, Processo nº 149/16.8IDPRT.P1, relator Jorge Langweg, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.