Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
25/20.0GAAVV.G1
Relator: ISILDA PINHO
Descritores: CRIME DE CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
LEI N.º 55/2023 DE 08 DE SETEMBRO
DESPENALIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. Face à nova redação do artigo 40.º, introduzida pela Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro, mesmo que a aquisição ou detenção, das substâncias compreendidas nas tabelas i a iv, se reporte a uma quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio do agente, tal atuação constitui uma mera contraordenação, ou seja, não tem relevância criminal.

II. Sendo o ilícito contraordenacional uma infracção de natureza administrativa, distinta do ilícito penal, quer quanto à sua natureza quer quanto aos seus fins, tendo a Lei n.º 55/2023 de 08 de setembro convertido a infracção penal em causa numa infração contraordenacional, ocorreu uma despenalização da conduta do arguido, cuja eficácia retroativa se impõe [artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal] e, consequentemente, igualmente se impõe a sua absolvição.

III. Se na data da prática dos factos tal normativo legal ainda não se encontrava em vigor, com exceção das consequências que daí se impõem extrair quanto à despenalização da conduta do arguido, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, do mesmo não se pode extrair qualquer outro efeito, sob pena de se violar o princípio da legalidade previsto no artigo 2.º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro [ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL], do qual decorre que “só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática”. Não cumpre, portanto, proceder ao encaminhamento da situação em causa para a comissão para a dissuasão da toxicodependência.
Decisão Texto Integral:
Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 25/20.... que corre termos pelo Juízo Local Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, em 12 de outubro de 2023, foi proferida sentença condenatória, no que ora releva, com o seguinte dispositivo [transcrição]:
“(…)
Nos termos e pelos fundamentos expostos, o tribunal julga a acusação pública procedente, por provada, e, em consequência, decide:
(…)
2) Condenar o arguido AA, pela prática, autoria material, e na forma consumada, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 40º nº 2, do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de quatro meses de prisão;
(…)”. [sublinhado e negrito nossos].

I.2 Recurso da decisão

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:

“(…)
1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos em epígrafe que condenou o arguido AA pela prática, como autor material autoria material, e na forma consumada, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 40º nº 2, do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de quatro meses de prisão;
2. Sucede que, e salvo o devido respeito, não podemos deixar de discordar do entendimento do Tribunal expresso na sentença proferida, segundo o qual, o arguido praticou com “autoria material, e na forma consumada, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 40º nº 2, do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro”.
3. Isto porque o D.L. 15/93 de 22 de Janeiro foi alvo de alteração pela Lei n.º 55/2023, de 08 de Setembro, que entrou em vigor em 1 de Outubro de 2023, a qual despenaliza tal crime, referindo que o mesmo constitui, no seu art. 40º nº 2 mera contraordenação;
4. Isto, mesmo que a detenção das substâncias referidas exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio – cfr. actual redacção do art. 40º nº 3 do DL nº 15/93 de 22 de Janeiro;
5. Incorre a sentença recorrida, na perspectiva do Ministério Público, em erro de interpretação e aplicação do direito, designadamente, da norma ínsita nos nsº 1 a 4 da actual redacção do art. 40º do DL nº 15/93 de 22 de Janeiro, alterado pela Lei n.º 55/2023, de 08 de Setembro, pelo que se impugna a decisão em causa nos termos do disposto no artigo 412º, n.º 1 e 2 alíneas a) e b) do Código de Processo Penal;
6. Não obstante a prática dos factos se reportar a 22 de Dezembro de 2020, ao abrigo do disposto no art. 2º nº 2 do Código Penal “O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.”, devendo no presente caso o mesmo ser absolvido.
7. Atenta tal alteração legislativa, não subsistem dúvidas que a intenção do legislador foi no sentido de descriminalizar o crime de consumo e torná-lo numa contraordenação.
8. Devendo por isso ser parcialmente revogada a sentença, determinando-se a absolvição do arguido AA pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 40º nº 2, do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro (na sua anterior redacção), devendo apenas, ao abrigo do disposto no nº 4 da actual redação do seu artigo mencionado ser feito o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência.

Por tudo o exposto, deve ser parcialmente revogada a sentença proferida, determinando-se a absolvição do arguido AA pela prática do crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 40º nº 2, do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro.
Fazendo, assim, VOSSAS EXCELÊNCIAS a acostumada JUSTIÇA!

I.3 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação, não foi apresentada resposta ao referido recurso.

I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exma. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, concluindo nos seguintes termos [transcrição]:
“(…)
Em face do exposto, e dando aqui por reproduzidas as judiciosas considerações tecidas na motivação de recurso, somos de parecer que deverá o mesmo ser declarado totalmente procedente, determinando-se a absolvição do arguido AA pela pratica do crime de consumo de estupefaciente, competindo à 1ª instancia o encaminhamento dos autos para a Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência para apreciar a contraordenação.” [sublinhado e negrito nossos].

I.5. Resposta

Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.

I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:

II- FUNDAMENTAÇÃO

II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].

Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:

® Saber se a conduta pela qual o arguido AA foi acusado e condenado foi, ou não, descriminalizada;
Na afirmativa:
® Saber se deve ser, ou não, determinado o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência.

II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“ (…)
 I. RELATÓRIO
Em processo comum perante tribunal singular, foi proferido despacho de acusação contra os arguidos:

AA (…)

Imputando-lhes a prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, levando ainda em consideração o teor da tabela I-A, I-B e I-C, anexa ao citado Decreto-Lei n.º 15/93.

(…)
II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos Provados
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão:
1. No dia ../../2020, pela 01h00m, no IC 28, km ..., ..., ..., seguiam no veículo automóvel de matrícula XZ-..-.., o arguido BB, que conduzia o veículo, e no lugar do passageiro, o arguido AA;
(…)
3. Na sequência de fiscalização ao referido veículo foi aprendido, junto à porta do passageiro:
- dezassete pacotes de heroína 3,335 gramas, de peso bruto;
- dezoito pacotes de cocaína com 2,007 gramas, de peso líquido;
4. Na revista pessoal realizada ao arguido AA foi apreendido:
- quatro pacotes de heroína, com 0,702 gramas, de peso bruto;
- nove porções de cocaína com 1,310 gramas, de peso líquido;
5. Na revista pessoal efectuada ao arguido BB foi apreendido:
- cinco porções de canábis resina com 3,543 gramas, de peso líquido;
6. As substâncias descritas em 3) e 4) eram destinadas pelo arguido AA ao seu próprio consumo e as descritas em 5) eram destinadas pelo arguido BB ao seu próprio consumo;”.
7. O arguido AA não possuía qualquer permissão legal para levar a cabo a conduta supra descrita, sabendo carecer da mesma, conhecia bem as características dos produtos em causa e que os detinha em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias;
8. Agiu o arguido AA sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei;
(…)
*
D. Enquadramento Jurídico-Penal

Uma vez fixados os factos provados, cumpre, agora, subsumi-los ao nosso ordenamento jurídico-penal.
Vêm os arguidos acusados da prática de um crime de consumo de estupefacientes, cada um, p. e p. pelo art. 40º, nºs 1 e 2 do D.L. nº 15/93 de 22/01.
Dispõe o citado art. 40º “1 - Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.. (…)”.
Publicada a Lei nº 30/2000 de 29/11, veio definir-se o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica. Nos termos do nº 1 do art. 2 da citada Lei nº 30/2000: “O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao DL nº 15/93 de 22/1, constituem contra-ordenação.” E, pelo nº 2 do mesmo art. 2: “Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”
Por seu turno, consignou-se no art. 28º (Normas revogadas) da mesma Lei nº 30/2000: “São revogados o artigo 40º, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41º do Decreto- Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime”.
A expressa revogação das normas indicadas no art. 28º da cit. Lei nº 30/2000 (entre elas, a do crime p. e p. no art. 40º do DL nº 15/93, excepto quanto ao cultivo) entrou em vigor em 1/7/2001 (art. 29º da citada Lei nº 30/2000 de 29/11), sendo certo que sob o nº 2 do mencionado preceito legal foi fixada jurisprudência (Ac. STJ nº 8/2008, de 05.08.2008) nos termos da qual: “Não obstante a derrogação operada pelo art. 28º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, o art. 40º, nº 2 do D.L. nº 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor, não só quanto ao cultivo, como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
Nestes termos, cumpre apreciar a que norma podemos subsumir a conduta dos arguidos. E, previamente, analisar se se pode recorrer ao mapa anexo à portaria 94/96 de 26/03, para determinar se o produto detido excede a quantidade necessária ao consumo diário individual 10 dias (cf. nº 2 do art. 2 da Lei nº 30/2000, norma que pune o consumo como contra-ordenação).
Ora, a jurisprudência tem entendido que o recurso aos valores indicativos da “dose média individual diária” constantes do mapa anexo à Portaria nº 94/96, para integrar o conceito de “consumo médio individual” durante determinados dias (usados nos arts. 26º, nº 3 e 40º, nº 2 - este último no que respeita ao cultivo - ambos do DL nº 15/93) poderão também aqui ser aplicados, tendo em vista o disposto no art. 2º, nº 2 da Lei nº 30/2000 (neste sentido vide o Ac. do Tribunal Constitucional nº 534/98 e o Acórdão da Relação do Porto de 03.03.2010, disponíveis in www.dgsi.pt). Este último aresto, sobre esta temática, dispõe o seguinte: “Propendemos para responder afirmativamente, sob pena de se poder considerado violado o princípio da legalidade, consagrado no nº 1, do art. 29, da CRP, também aplicável ao direito de mera ordenação social (art. 3º, do Regime do ilícito de mera ordenação social: cf. DL nº 433/82 de 27/10 e respectivas alterações). Assim sendo, os ditos valores indicativos (estatísticos) contidos no mapa anexo à Portaria nº 94/96, têm um valor meramente de meio de prova, a apreciar, nos termos da prova pericial, não são de aplicação automática, podendo ser impugnados e afastados pelo tribunal”.
*
Posto isto, vejamos o caso concreto.
Da audiência de discussão e julgamento resultou provado que no dia ../../2020, pela 01h00m, no IC 28, km ..., ..., ..., seguiam no veículo automóvel de matrícula XZ-..-.., o arguido BB, que conduzia o referido veículo e, no lugar do passageiro, o arguido AA. Seguiam, ainda, no banco traseiro do referido veículo CC e DD.
Na sequência de fiscalização ao referido veículo foi aprendido, junto à porta do passageiro: dezassete pacotes de heroína 3,335 gramas, de peso bruto; dezoito pacotes de cocaína com 2,007 gramas, de peso líquido; na revista pessoal realizada ao arguido AA foi apreendido: quatro pacotes de heroína, com 0,702 gramas, de peso bruto e nove porções de cocaína com 1,310 gramas, de peso líquido. E na revista pessoal efectuada ao arguido BB foram apreendidas cinco porções de canábis resina com 3,543 gramas, de peso líquido.
As substâncias descritas em 3) e 4) dos factos provados eram destinadas pelo arguido AA ao seu próprio consumo e as descritas em 5) eram destinadas pelo arguido BB ao seu próprio consumo.
O arguido AA não possuía qualquer permissão legal para levar a cabo a conduta supra descrita, sabendo carecer da mesma, conhecia bem as características dos produtos em causa e que os detinha em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Agiu o arguido AA sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.
Face à matéria provada nos autos, afigura-se ao tribunal que a situação em apreço efectivamente se enquadra na previsão do art. 40º, nºs 1 e 2 do citado diploma legal, atenta a quantidade do produto estupefaciente e as condições do arguido AA à data dos factos, impondo-se assim a sua condenação pela prática do crime de consumo de estupefacientes, uma vez que resultam preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em análise.
(…)”.

II.2- Apreciação do recurso

Vem o Ministério Público/recorrente impugnar a sentença recorrida, nos termos do disposto no artigo 412º, n.º 1 e 2 alíneas a) e b) do Código de Processo Penal, invocando a existência de erro de interpretação e aplicação do direito, concretamente, da norma ínsita nos n.sº 1 a 4 da atual redação do artigo 40.º do DL nº 15/93 de 22 de janeiro, alterado pela Lei n.º 55/2023, de 08 de setembro, em vigor desde 01 de outubro de 2023.
Argumenta, para o efeito, que, com a entrada em vigor da Lei n.º 55/2023 de 08 de setembro, a conduta que levou à condenação do arguido AA encontra-se descriminalizada, e, como tal, em obediência ao disposto no artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, cumpre revogar parcialmente a sentença recorrida, determinando-se a absolvição daquele arguido, devendo apenas, ao abrigo do disposto no nº 4 da atual redação do apontado artigo 40.º ser feito o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência.
Vejamos se lhe assiste razão:
Mediante a sentença recorrida, o tribunal a quo condenou o arguido AA, na pena de quatro meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 40º nº 2, do D.L. 15/93 de 22 de janeiro.

E sustentou tal condenação na seguinte factualidade [transcrição]:

1. No dia ../../2020, pela 01h00m, no IC 28, km ..., ..., ..., seguiam no veículo automóvel de matrícula XZ-..-.., o arguido BB, que conduzia o veículo, e no lugar do passageiro, o arguido AA;
(…)
3. Na sequência de fiscalização ao referido veículo foi aprendido, junto à porta do passageiro:
- dezassete pacotes de heroína 3,335 gramas, de peso bruto;
- dezoito pacotes de cocaína com 2,007 gramas, de peso líquido;
4. Na revista pessoal realizada ao arguido AA foi apreendido:
- quatro pacotes de heroína, com 0,702 gramas, de peso bruto;
- nove porções de cocaína com 1,310 gramas, de peso líquido;
(…)
6. As substâncias descritas em 3) e 4) eram destinadas pelo arguido AA ao seu próprio consumo (…);”.
7. O arguido AA não possuía qualquer permissão legal para levar a cabo a conduta supra descrita, sabendo carecer da mesma, conhecia bem as características dos produtos em causa e que os detinha em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias;
8. Agiu o arguido AA sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei;
(…).”. [sublinhado e negrito nossos].
Como é sabido, o Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro [LEGISLAÇÃO DE COMBATE À DROGA], no seu CAPÍTULO III, reportado ao “Tráfico, branqueamento e outras infracções”, prevê um tipo de crime matricial, o do artigo 21.º, sob a epígrafe “Tráfico e outras actividades ilícitas”, por referência ao qual se previram tipos de crime derivados, como o sejam o de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º e o de traficante-consumidor, previsto e punido pelo artigo 26º, distinguindo-se estes últimos, respetivamente, sobretudo pela diminuição considerável da ilicitude do facto e pela circunstância de o agente ter por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal.
Por sua vez, num capítulo à parte, concretamente no Capítulo IV, reportado ao “consumo e tratamento”, o legislador previu, no artigo 40.º, o crime de “consumo de estupefacientes.
Ora, in casu o arguido AA foi acusado e condenado precisamente pela prática do crime de consumo de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 40.º, n.º 2, do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, ocorrido em 22 de dezembro de 2020.  

Dispunha, então, o citado artigo 40.º o seguinte:

Artigo 40.º
Consumo
“1 - Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 5 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
3 - No caso do n.º 1, se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena.”

E, pese embora a derrogação operada pelo artigo 28.º, da Lei n.º 30/2000, 29 de novembro, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2008, de 25-06-2008, publicado no DR, IA Série, de 05-08-2008, havia fixado a seguinte jurisprudência:
“Não obstante a derrogação operada pelo art. 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só quanto ao cultivo como relativamente a aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”
É incontestável, portanto, que à data dos factos, a conduta descrita na factualidade provada que vem imputada ao arguido AA fazia-o incorrer na prática do mencionado ilícito criminal pelo qual veio a ser condenado pelo tribunal a quo
Porém, a Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro [que veio clarificar o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade e estabelece prazos regulares para a atualização das normas regulamentares, alterando o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e a Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro], em vigor desde o dia 1 de outubro de 2023 [cfr. seu artigo 5.º], através do seu artigo 2.º, veio alterar o mencionado artigo 40.º nos seguintes termos:
Artigo 40.º
Consumo
“1 - Quem, para o seu consumo, cultivar plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - A aquisição e a detenção para consumo próprio das plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior constitui contraordenação.
3 - A aquisição e a detenção das plantas, substâncias ou preparações referidas no n.º 1 que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo.
4 - No caso de aquisição ou detenção das substâncias referidas no n.º 1 que exceda a quantidade prevista no número anterior e desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição e o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência.
5 - No caso do n.º 1, o agente pode ser dispensado de pena.”. [sublinhado e negrito nossos].

Ou seja, face à nova redação do citado artigo 40.º, introduzida pela Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro, mesmo que a aquisição ou detenção, das substâncias compreendidas nas tabelas i a iv, se reporte a uma quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio do agente, tal atuação constitui uma mera contraordenação, ou seja, não tem relevância criminal.
O mesmo será dizer que a conduta do arguido AA foi despenalizada, pois, pese embora tenha resultado provado que a quantidade do produto estupefaciente [heroína e cocaína] que lhe foi apreendida era superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias [cfr. factualidade vertida em 7 dos factos provados], também resultou provado/demonstrado que tais substâncias se destinavam exclusivamente ao seu consumo [cfr. factualidade vertida na primeira parte do artigo 6. dos factos provados: “As substâncias descritas em 3) e 4) eram destinadas pelo arguido AA ao seu próprio consumo (…)”].
E, assim sendo, em obediência ao disposto no artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, cabia ao tribunal a quo ter tido tal normativo legal em atenção e aplicá-lo ao caso dos autos, o que este não fez, incorrendo assim no apontado erro na aplicação do direito.
Procede, portanto, o recurso interposto pelo Ministério Público quanto a esta particular questão.

Encontrando-se a conduta do arguido AA descriminalizada cumpre, agora, verificar que consequências daí advêm.
O Ministério Público/recorrente pugna pela absolvição do arguido AA e pelo encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência, com vista a apreciar a contraordenação.
Vejamos.
A questão de saber que consequências advêm para o arguido pelo facto de o legislador ter deixado de qualificar determinada conduta como crime para passar a qualificá-la como contraordenação não é nova e, do nosso ponto de vista, encontra-se bem tratada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 15-11-2006, Processo n.º 0510619, relatado pelo Ex.mo Desembargador Francisco Marcolino, no qual se pode ler o seguinte [transcrição]:
“(…) O Dr. Taipa de Carvalho in “Sucessão de Leis Penais”, 2ª edição revista, pgs. 120 e segs., trata aprofundadamente a questão.
Diz, nomeadamente:
“A L.N. é despenalizadora, logo eficácia retroactiva da despenalização (CRP, art. 29º, 4.-2ª parte; CP 1982/95, art. 2º, 2; CP 1886, art. 6º, 1 a).
A conversão da qualificação jurídico-legal de uma conduta de infracção penal (crime ou contravenção) em infracção de natureza administrativa (contra-ordenação) foi e continua a ser uma questão não resolvida, apesar do seu enorme alcance prático. Não é ousado afirmar que, também aqui, se jogam as garantias individuais do cidadão para cuja defesa se afirmou e consagrou constitucionalmente a proibição da retroactividade da lei penal desfavorável.
(…)
É urgente, portanto e em minha opinião, enfrentar o problema e resolvê-lo no respeito dos princípios fundamentais do Estado-de-Direito (formal e material) sobre esta matéria da vigência ou eficácia temporal da lei penal. Sendo - devendo ser - indiscutido o princípio da aplicação da lei penal favorável, tendo em conta as suas rationes jurídico-política e político-criminal e esclarecidos os pressupostos da sucessão de leis penais stricto sensu, a questão fulcral e decisiva passa a centrar-se na natureza das contra-ordenações: constitui o ilícito de mera ordenação social um ilícito essencialmente distinto do ilícito penal ou tratar-se-á apenas de uma distinção não essencial, não material, mas apenas de grau, sendo a infracção penal e a infracção contra-ordenativa espécies do mesmo género de infracções de direito público sancionatório?
Se a resposta for a de que a contra-ordenação é uma infracção de natureza administrativa, distinta, na sua natureza essencial e nos fins do seu sancionamento (punição), da infracção penal - o crime e mesmo a contravenção -, não pode existir a mínima dúvida de que a conversão legislativa de uma infracção penal numa contra-ordenação constitui uma despenalização da respectiva conduta e, necessariamente (CRP, art. 29º, 4, 2.ª parte; CP 1982/95, art. 2º, 2; CP 1886, art. 6º, 1), tem eficácia retroactiva; jamais, a partir da entrada em vigor da lei que alterou a qualificação, poderá aplicar-se a L.A. e, tendo já sido aplicada em sentença transitada em julgado, cessam a execução da pena e os efeitos penais da condenação. A responsabilidade penal, derivada do facto praticado antes do início de vigência da L.N., extingue-se plenamente.
Problema diferente - mas que já não respeita à vigência temporal da lei penal - é o da eficácia temporal da L.N., na medida em que passou a qualificar o facto (a hipótese legal) como contra-ordenação. Ora o princípio geral é o de que a lei que «cria» contra-ordenações só se aplica aos factos praticados depois da sua entrada em vigor (Dec. Lei n.º 433/82, art. 3º, 1 - eficácia pós-activa). Todavia, não está constitucionalmente consagrada - pelo menos de forma expressa - a proibição da retroactividade da lei sobre contra-ordenações.
Assim, se a lei que altera a qualificação do facto de crime (ou de contravenção) para contra-ordenação, não estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do seu início de vigência, tais acções que, necessária e constitucionalmente, são despenalizadas, também não podem ser julgadas como ilícitos de mera ordenação social. Tornaram-se, portanto, juridicamente irrelevantes.

Se, pelo contrário, a lei, que converte a infracção penal em contra-ordenação, estabelecer, por disposição transitória, a sua eficácia retroactiva, no sentido de tornar extensivo o seu regime e as coimas respectivas aos factos praticados na vigência da lei antiga (evitando, assim, a impunidade geral dos factos ainda não julgados), podem não levantar-se, mas também poderão surgir problemas de constitucionalidade da norma transitória.
(…)
não só a maioria da doutrina mas também o legislador consideram que entre crime (infracção penal) e contra-ordenação há uma autonomia essencial. Saliente-se, desde já, que o decisivo nesta matéria - em que estão em causa direitos fundamentais e a correspondente exigência de segurança jurídica que é servida pelo princípio da legalidade penal - são as normas jurídico-constitucionais e as normas ordinárias delas imediatamente decorrentes.
Efectivamente, analisando os art.ºs 27º, 2., 29º, 165º, 1 c) da CRP e os art.ºs 2º 49º, 1 do CP actual e, quanto às contravenções, art.ºs 6º e 123º do CP 1886, e confrontando-os com o art.º 165º, l d) da CRP e os art.ºs 3º e 33º do Dec. Lei n.º 433/82, constata-se que as contra-ordenações e as respectivas sanções são assumidas e positivadas pelo legislador constitucional e ordinário como infracções e sanções de natureza essencialmente diversa das infracções e sanções penais.
(…)
 o que é decisivo para o nosso problema da eficácia temporal da lei penal é o indiscutido facto de o legislador português considerar e tratar o ilícito de mera ordenação social como infracção de natureza essencialmente diversa da infracção penal, recusando, assim, uma simples distinção gradualista, e nem sequer as reconhecendo como espécies que entroncassem num género comum.

Proclama a Introdução do Dec. Lei n.º 232/79, de 24 de Julho: «Necessidade, de dotar o país ... de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal ... uma forma autónoma de ilicitude que reclame um quadro próprio de reacções sancionatórias e um novo tipo de processo ... A contra-ordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal»... Não é, por isso, admissível qualquer forma de prisão, preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a expiação ético-pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do direito de mera ordenação social é a coima, sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas ... A consagração do regime geral relativo às contra-ordenações ... destinava-se, assim, naturalmente, a vigorar para o futuro ... Apesar disso, considera-se conveniente submeter, desde já, ao regime deste decreto-lei as contravenções e transgressões previstas na lei vigente, bem como outros casos que a lei venha a descriminalizar ..».
Reforça, por sua vez, o Relatório do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (que revogou o Dec. Lei n.º 232/79): «Manteve-se, outrossim, a fidelidade à ideia de fundo que preside à distinção entre crime e contra-ordenação. Uma distinção que não esquece que aquelas categorias de ilícito tendem a extremar-se, quer pela natureza dos respectivos bens jurídicos quer pela desigual ressonância ética. Mas uma distinção que terá, em última instância, de ser jurídico-pragmática e, por isso, também necessariamente formal».
Passando dos dois diplomas, instituintes da figura das contra-ordenações e do respectivo regime geral, para o campo da sua implementação-concretização, reparemos no Preâmbulo do Dec. Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro: «De acordo com as mais modernas correntes do direito criminal, e a fim de concorrer para a desejada harmonia do sistema jurídico, despenalizaram-se certos tipos de infracções, englobando-se os comportamentos respectivos no direito de mera ordenação social ... havendo o particular cuidado de extremar rigorosamente os campos dos 2 ilícitos em presença, a fim de evitar sobreposições ou confusões entre as previsões dos correspondentes tipos legais. Quer isto dizer que se relegaram para o capítulo das contra-ordenações apenas aqueles comportamentos que não põem em causa interesses essenciais ou fundamentais da colectividade e que, por isso, carecem de verdadeira dignidade penal».
No âmbito doutrinal, FIGUEIREDO DIAS: «Descriminalizar significará aqui expurgar as contravenções do domínio do direito penal - com todas as consequências que isso implica, quer ao nível da caracterização do ilícito respectivo, quer ao nível da determinação das espécies de sanções que lhes devem caber .. quer ao nível do processamento das infracções - para constituir com elas um autêntico «ilícito de mera ordenação social».
(…)
O Ac. da RP de 7 de Novembro de 2004 in CJ, Ano XIX, tomo 5, pg. 244, salienta:
“Deste modo, a conduta em questão que constituiria contravenção prevista na legislação então em vigor (agora revogada) foi retirada ao âmbito do direito penal e passou e enquadrar-se no âmbito do chamado ilícito de mera ordenação social, ilícito este que é distinto e autónomo daquele, como se refere no preâmbulo do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, reafirmando o que, de modo mais desenvolvido, se dissera já no relatório do Dec. Lei n.º 232/79, de 24 de Julho.
Com efeito e respigando algumas passagens do relatório do diploma de 1979, constata-se que ele se insere num movimento de descriminalização, assim se respondendo às necessidades de «purificação do direito criminal de formas de ilícito, cuja sede natural é o direito de mera ordenação social. E o que, por exemplo, deverá acontecer com as contravenções, tradicional e indevidamente integradas no ordenamento jurídico-penal».
Ainda conforme se refere no preâmbulo do mesmo diploma, entre os dois ramos de direito (penal e de mera ordenação social) «medeia uma autêntica diferença; não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza». E, de seguida, citando Eduardo Correia, Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973, pág. 268, diz-se que a contra-ordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal».
Aliás, a própria sanção - coima - tem «natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas», podendo «adoptar-se um processo extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípio da oportunidade»”. [sublinhados e negritos nossos].
Sufragamos, inteiramente, tal fundamentação, que pela sua clareza e pertinência aqui se trouxe à colação, acrescentando-se, ainda, os seguintes arestos:
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 09-02-2000, Processo n.º 0000354, relatado pelo Ex.mo Desembargador SEARA PAIXÃO, in www.dgsi.pt, sumariado nos seguintes termos:
“I - O principio da Lei mais favorável, previsto no art. 2º, nº 4 do Cod. Penal, só tem aplicação quando se ponderam Leis que versam infracções que tenham, em comum, natureza penal.
II - A transgressão integra-se no domínio do ilícito criminal, enquanto a contra-ordenação faz parte do ilícito de mera ordenação social, sendo ilícitos de natureza qualitativa diferente.
III - O primeiro protege aquele núcleo de valores essenciais à vida em sociedade, cujas violações envolvem uma censura ética e são punidas com penas, enquanto que "no direito das contra-ordenações, estão em causa advertências sociais, sanções ordenativas ou coima, que não constituem penas, mas medidas sancionatórias de carácter não penal.
IV - Perante ilícito de natureza diferente não há que ponderar o regime mais favorável da sucessão de leis, pois a lei que converte uma transgressão/contravenção em ilícito de mera ordenação social opera uma verdadeira despenalização, extinguida a responsabilidade penal.
V - Uma lei que "converte" uma infracção penal (crime ou contravenção) numa contra-ordenação é uma lei despenalizadora, e que, enquanto tal, se aplica retroactivamente. Neste caso não há uma verdadeira sucessão de leis penais, não intervindo assim, o principio da "lex mitior", mas o principio da lei despenalizadora, isto é, da extinção da responsabilidade penal.” [sublinhados e negritos nossos].
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 09-03-2000, Processo n.º 0054439, relatado pelo Ex.mo Desembargador GOES PINHEIRO, in www.dgsi.pt, assim sumariado:
“(…)
I - Com o dec. lei 263/98 de 19Ago, a «cobrança de tarifas superiores à legalmente fixadas», no «exercício da profissão de motorista de veículos ligeiros de passageiros de transporte público de aluguer», passou a constituir contra-ordenação (art. 11.1.a).
(…)
IV - A sucessão de tais normas implica ainda a descriminalização (retroactiva) das condutas típicas pretéritas (art. 2.2 do CP) e, ao mesmo tempo, a proibição da aplicação retroactiva da lei contraordenacional (art. 2.º do dec. lei 433/82 de 27Out).”. [sublinhados e negritos nossos].
Na verdade, o crime ou a contravenção integram-se no domínio do ilícito criminal, enquanto a contraordenação faz parte do ilícito de mera ordenação social, sendo ilícitos de natureza qualitativa diferente. O primeiro protege aquele núcleo de valores essenciais à vida em sociedade, cujas violações envolvem uma censura ética e são punidas com penas, enquanto que "no direito das contraordenações, estão em causa advertências sociais, sanções ordenativas ou coimas, que não constituem penas, mas medidas sancionatórias de carácter não penal" [Figueiredo Dias, in Direito e Justiça, vol. IV, 1989/1990, pág. 22 e 24.].
O direito de mera ordenação social caracteriza-se pela ausência de uma dimensão de censura ética da respetiva sanção (coima) e com a especificidade dessa sanção ser aplicada pela própria autoridade administrativa.
Assim sendo, aqui chegados, só nos resta concluir, portanto, que sendo o ilícito contraordenacional uma infracção de natureza administrativa, distinta do ilícito penal, quer quanto à sua natureza quer quanto aos seus fins, tendo a Lei n.º 55/2023 de 08 de setembro convertido a infracção penal em causa numa infração contraordenacional, ocorreu uma despenalização da conduta do arguido AA, cuja eficácia retroativa se impõe [artigo 2.º, n.º2, do Código Penal] e, consequentemente, igualmente se impõe a sua absolvição.

Relembrando os ensinamentos de Taipa de Carvalho, ob. citada, pág. 133:
“(…) Não se trata, pois, de uma verdadeira sucessão de leis penais, não intervindo, assim, o princípio da lex mitior (CP 1982/95, art. 2º, 4, e CP 1886, art. 6º-2), mas o princípio da lei despenalizadora, isto é, extintiva da responsabilidade penal (CP 1982/95, art. 2º, 2., e CP 1886, art. 6º, 1 e 3)”, posição, igualmente sufragada, entre outros, além dos já citados, no aresto deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 23-02-2015, Processo n.º 56/13.6PTBGC.G1, relatado pelo Ex.mo Desembargador FERNANDO MONTERROSO, in www dgsi.pt, no que aqui ora releva se encontra assim sumariado:
“(…)
II) Perante ilícitos de natureza diferente não há que ponderar o regime mais favorável da sucessão de leis, pois a lei que converte um crime ou uma contravenção em ilícito de mera ordenação social opera uma verdadeira despenalização, extinguindo a responsabilidade penal.”.

Já quanto ao propugnado encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência, com vista a apreciar a contraordenação, entendemos que o recurso não poderá proceder.
Na verdade, tendo em conta tudo quanto se referiu supra, que nos levou à conclusão de que o ilícito contraordenacional é uma infracção de natureza administrativa, distinta do ilícito penal, não esquecemos o que decorre da norma ínsita no n.º4 do artigo 40.º na redação introduzida pela Lei n.º 55/2023 de 08 de setembro, ou seja que verificando-se a situação ali descrita [relembre-se: “no caso de aquisição ou detenção das substâncias referidas no n.º 1 que exceda a quantidade prevista no número anterior e desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio (…)”], a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, além do seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição, o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência, ou seja, o encaminhamento para a entidade a quem, nos termos do artigo 5.º, n.º1, da Lei n.º 30/2000 de 29 de novembro [que define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica] compete o processamento das contraordenações e a aplicação das respetivas sanções.
Acontece, porém, que, na data da prática dos factos aqui em causa tal normativo legal ainda não se encontrava em vigor e, como tal, com exceção das consequências que daí se impõem extrair quanto à despenalização da conduta do arguido, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, do mesmo não se pode extrair qualquer outro efeito, sob pena de se violar o princípio da legalidade previsto no artigo 2.º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro [ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL], do qual decorre que só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática”.
Não desconhecemos que há situações em que a lei que altera a qualificação do facto de crime para contraordenação estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às ações praticadas antes do seu início de vigência, e perante tal possibilidade analisamos a Lei aqui em causa [a Lei 55/2023 de 08 de setembro] sob esse prisma. Porém, constatamos que esta não prevê qualquer norma transitória que aponte nesse sentido.
O mesmo será dizer que o pretendido encaminhamento da presente situação para comissão para a dissuasão da toxicodependência com vista, naturalmente, ao processamento da inerente contraordenação e a aplicação das respetivas sanções ao arguido AA não poderá proceder.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em, concedendo parcial procedência ao recurso interposto pelo Ministério Público:
A. Julgar despenalizada a conduta por cuja prática o arguido AA veio a ser condenado pelo tribunal a quo e, consequentemente, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, determina-se a sua absolvição, com o inerente oportuno arquivamento dos autos.

Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 21 de maio de 2024
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

Os Juízes Desembargadores

Isilda Maria Correia de Pinho [Relatora]
Carlos da Cunha Coutinho [1.º Adjunto]
Fernando Chaves [2.º Adjunto]


[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.