Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA JOÃO MATOS | ||
Descritores: | CONTRATO DE TRANSACÇÃO VÍCIO DE VONTADE MEIOS ALTERNATIVOS DE IMPUGNAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 03/20/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I. O contrato de transacção permite que as partes respectivas estabeleçam uma auto-regulação dos seus interesses, com concessões e cedências recíprocas (consubstanciando um negócio de natureza privada e substantiva, onde actua o princípio do dispositivo); e é-lhe naturalmente aplicável a disciplina dos contratos e o regime geral dos negócios jurídicos. II. A transacção pode ser afectada por vícios, quer substantivos, quer de forma. III. Estando em causa a nulidade ou anulabilidade de transacção homologada por sentença, e sendo esta um acto de jurisdição voluntária (e não um acto de jurisdição contenciosa), pode aquela ser declarada nula ou anulada da mesma forma e pelos mesmos fundamentos que qualquer outro negócio jurídico. IV. A lei processual actual (CPC de 2013) prevê, e em alternativa, que se peça o reconhecimento da invalidade de transacção, ou por meio de recurso de revisão da sentença homologatória que sobre ela tenha recaído, ou por meio de proposição de acção autónoma onde se formule o pedido de declaração de nulidade ou de anulação da dita transacção (sem que ao exercício desta última facultade se possa opor qualquer efeito do caso julgado - excepção ou autoridade - derivado da referida sentença homologatória). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos; 1.º Adjunto - José Carlos Pereira Duarte; 2.ª Adjunta - Maria Gorete Morais. * ACÓRDÃOI - RELATÓRIO 1.1. Decisão impugnada 1.1.1. AA, residente na Rua ..., ... B, em ... (aqui Autora e Recorrente) - representada para o efeito por BB, residente na Rua ..., em ... -, propôs uma acção declarativa sob a forma de processo comum, contra CC, residente na Rua ..., ...-esquerdo, em ... (aqui Ré e Recorrida), pedindo que · se declarasse que são falsas as declarações que lhe são atribuídas num termo de transacção e respectivo termo de autenticação, em que foi interveniente, e, em consequência, se declarasse que ambos são nulos (com as legais consequências); · (subsidiariamente) se anulasse o termo de transacção e o respectivo termo de autenticação, por incapacidade acidental dela própria. Alegou para o efeito, em síntese, que sendo mãe de BB e da Ré (CC), foi ela própria sujeita ao estatuto de maior acompanhado, fixando-se na sentença respectiva a limitação total para a celebração de quaisquer negócios desde Janeiro de 2013; e sendo nomeada sua acompanhante a filha BB. Mais alegou que, no período entre 05 de Janeiro de 2015 e 02 de Junho de 2018, a Ré (CC), então co-titular de contas bancárias suas, para as poder movimentar no seu exclusivo interesse, se apropriou, em proveito próprio, de parte significativa dos seus saldos; e, por isso, demandou-a numa acção de prestação de contas, que correu termos sob o n.º 28/18.... (pelo Juízo de Competência Genérica de Caminha, Comarca de Viana do Castelo). Alegou ainda que, encontrando-se então na dependência da Ré (CC), a mesma conseguiu, em ../../2019, que ela própria assinasse um termo de transacção e revogasse a procuração forense que outorgara a favor de quem, em seu nome, propusera a dita acção de prestação de contas, conseguindo ainda um termo de autenticação do documento que corporizava a pretensa transação, usando para o efeito um já inválido cartão de cidadão seu (por ter sido declarado extraviado junto da Conservatória do Registo Civil, o que era do conhecimento dela); e obteve depois sentença homologatória da dita transacção, que, a manter-se, inviabilizaria a recuperação de todas as quantias com que indevidamente se locupletou. Por fim, alegou não se encontrar em condições de avaliar o conteúdo e alcance das declarações que naqueles documentos lhe são atribuídas, não tendo, por isso, expresso uma vontade livre, clara, precisa e esclarecida, mercê do défice cognitivo que já então a afectava. Defendeu, por isso, que, não sendo as declarações que lhe são imputadas nos documentos referidos de sua autoria, nem por si proferidas, serem as mesmas falsas e, desse modo, nulas, nos termos do art.º 246.º do CC; e, se assim não fosse, seriam anuláveis, por incapacidade acidental da Declarante, nos termos do art.º 257.º do CC. 1.1.2. Regularmente citada, a Ré (CC) contestou, pedindo que se julgasse procedente a excepção dilatória de autoridade de caso julgado, sendo absolvida da instância; ou, subsidiariamente, que a acção fosse julgada improcedente, sendo ela própria absolvida dos pedidos formulados; e, em qualquer, caso, a Autora (AA) fosse condenada como litigante de má-fé, em multa e numa indemnização a seu favor (correspondente às despesas a que a obrigou com a demanda, incluindo os honorários dos seus Ilustres Mandatários, mas em montante nunca inferior a € 3.500,00). Alegou para o efeito, em síntese, ter a sentença homologatória da transacção que a Autora (AA) aqui pretende invalidar transitado em julgado, por dela não terem sido interpostos quaisquer recursos ordinário ou de revisão; e tendo depois a Autora (AA) interposto contra si uma nova acção de prestação de contas, ter sido absolvida da respectiva instância, por sentença que reconheceu a excepção de caso julgado verificado entre ela e a primeira proposta (sentença essa igualmente transitada em julgado). Mais alegou que só em sede de recurso de revisão a interpor da sentença homologatória da transacção havida na primeira acção de prestação de contas se poderia vir a obter a respectiva ineficácia; e não tendo o mesmo sido interposto, a autoridade de caso julgado formado na referida acção impediria que se conhecesse dos pedidos formulados nesta. Alegou ainda, prevenindo outro entendimento, ser falsa a generalidade dos factos alegados pela Autora, assim os impugnando (defendendo, nomeadamente, estar AA em condições de entender o conteúdo e alcance das declarações que prestou, quer no termo de transacção, quer no respectivo termo de autenticação, neles expressando a sua vontade de forma livre, deliberada e consciente, e não se ter ela própria apropriado de quaisquer quantias daquela); e não ter ainda a Autora (AA) consubstanciado factualmente a incapacidade acidental que apenas incipientemente alegou. Por fim, e em sede de litigância de má-fé, alegou litigar a Autora (AA) contra uma realidade que conhecia, alterando a verdade dos factos, e deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não poderia ignorar, fazendo um uso manifestamente reprovável do processo e dos meios processuais 1.1.3. Em sede de audiência prévia a Autora (AA) exerceu o seu contraditório relativamente à excepção de caso julgado invocada pela Ré (CC) na respectiva contestação, pedindo que a mesma fosse julgada improcedente «atendendo a que a ação em curso tem como escopo determinar a invalidade do termo de transação e do termo de autenticação homologado por sentença proferida no processo nº 28/19...., que correu termos neste Juízo de Competência Genérica de Caminha». 1.1.4. Na mesma audiência prévia foi então proferido saneador-sentença, julgando verificada a excepção dilatória de autoridade de caso julgado e absolvendo a Ré (CC) da instância, lendo-se nomeadamente na mesma: «(…) No âmbito do referido Processo n.º 28/19...., as partes apresentaram um termo de transação, do qual consta que a autora, dessa ação, AA, agora representada, nesta ação, pela sua acompanhante, BB, declarou que desistia dos pedidos aí formulados contra a ré, CC, desse documento constando, ainda, que esta declarou que aceitava essa desistência, e bem assim que a autora nada tinha a reclamar da ré, fosse a que título fosse, designadamente qualquer valor monetário ou outra obrigação conexa a essa. A referida transação foi homologada por sentença deste Tribunal, proferida nesse processo, datada de 11 de fevereiro de 2019. (…) Tal sentença transitou em julgado. A única reação cabível, pois, teria sido a interposição de recurso de revisão previsto pelo artigo 696.º d) do CPC e regulado pelos artigos 697º a 700º, sendo essa a sede própria para a apreciação dos fundamentos invocados nesta ação (cf. o artigo 700º nº 2 do CPC). Dúvidas não subsistem, assim, de que têm de ser reconhecidos os efeitos da sentença proferida no âmbito do Processo n.º 28/19...., estando este Tribunal a ela vinculado. A autoridade de caso julgado constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, cuja ocorrência impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cf. artigos 577.º, n.º 1 al. i), 576.º, n.ºs 1 e 2, e 578.º, todos do CPC). Deste modo, declaro verificada a invocada exceção e, em consequência, absolvo a ré da instância. Custas pela autora – cf. artigo 527.º n.º 1 do CPC. Registe e notifique. Valor 5.001,00€. (…)» * 1.2. Recurso 1.2.1. Fundamentos Inconformada com esta decisão, a Autora (AA) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que se revogasse a decisão recorrida e se ordenasse o prosseguimento dos autos. Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção): 1.º - A A. pretende obter sentença que declare que a mesma se encontrava incapaz de entender as declarações prestadas aquando da assinatura do termo de transação e do termo de autenticação, que deu origem à sentença proferida nos autos de processo de prestação de contas com o n.º 28/19...., já transitada em julgado, e em consequência o declare nulo. 2.º - A procedência da ineficácia ou nulidade do termo de transação determina a produção de efeitos quanto aquela sentença homologatória. 3.º - Anulada a transação, a sentença homologatória perde a sua eficácia, enquanto ato que determina os direitos e obrigações das partes, devendo assim considerar-se eliminada e substituída pela decisão que vier e ser proferida na ação de prestação de contas. 4.º - O artigo 291 n.º 2 do Código de Processo Civil, prevê que: “o trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, a desistência ou a transação não obsta a que se intente a ação destinada à declaração de nulidade ou anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento…” 5.º - O interessado na anulação da transação, confissão ou desistência homologada por decisão transitada em julgado, pode assim, optar por utilizar ação própria para o efeito, ou interpor recurso de revisão com base nos factos que fundamentam a nulidade ou anulabilidade da transação, desistência ou confissão. 6.º - A lei confere deste modo, a possibilidade de acionar meios processuais distintos para alcançar o mesmo resultado. 7.º - Nem sequer se exige a propositura de ação com vista à declaração da nulidade ou anulabilidade e, sucessivamente, a interposição de recurso de revisão, para obter a ineficácia dos efeitos jurisdicionais da decisão transitada em julgado. 8.º - Foi exatamente isso que a A. fez, optou em tempo, e deu entrada com a presente ação com vista a obter a declaração de nulidade do termo de transação e termo de autenticação, (junto ao autos com o n.º 28/19.... e que consubstanciou uma desistência por parte da autora naquela ação), nos termos do disposto no artigo 291.º n.º 2 do CPC. 9.º - A presente ação é suficiente para atingir os efeitos pretendidos, ou seja, o de atacar o vício da transação e simultaneamente neutralizar o caso julgado, obtendo-se de imediato, a declaração de nulidade do termo de transação, com as legais consequências. 10.º - Julgados procedentes os pedidos formulados na presente ação e transitada em julgado tal decisão, terá aquela eficácia, sem necessidade de recorrer ao recurso de revisão. 11.º - Mas mesmo que assim não se entendesse, e se vislumbre necessária a interposição de tal recurso, depois de anulada a transação, sempre a decisão de mérito a proferir nos presentes, se afiguraria útil, tendo em conta que serviria de fundamento ao recurso de revisão. 12.º - Ao proferir a decisão que absolveu a Ré da instância o Tribunal violou sem mais o disposto no artigo 291.º do CPC, negando desde logo hipótese à A. de provar os factos que alega na presente ação, impondo-se em consequência, que o presente recurso seja julgado procedente, revogando-se a decisão que absolveu a Ré da instância, devendo o processo prosseguir os seus termos a fim de ser proferida decisão de mérito sobre o peticionado. QUANTO À EXCEÇÃO DE CASO JULGADO 13.º - O Tribunal julga procedente a exceção do caso julgado, absolvendo a Ré da instância e fundamenta a sua decisão, nos termos do disposto nos artigos 576.º n.º 1 e 2 e 578.º, todos do CPC. 14.º - A exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado. 15.º - A execepção de caso julgado destina-se assim, a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual) o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a triplice identidade de sujeitos, objecto e pedido. 16.º - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma outra sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 581.º do CPC (identidade de Sujeitos, identidade de pedido e identidade de causa de pedir). 17.º - Tendo o Tribunal “a quo” decidido com base na excepção do caso julgado, importa aferir se os pressupostos de cuja a sua verificação se faz depender, se mostram ou não preenchidos. 18.º - Existe efectivamente identidade de sujeitos, posto que ambas ações são intentadas pela A. AA, quer agindo por si, quer encontrando-se representada pela sua filha, nomeada como sua acompanhante. 19.º - Não existe identidade de objecto e de pedido. 20.º - Estamos perante ações cujo o objecto, finalidade e a própria tramitação divergem. 21.º - O processo distribuído com o n.º 28/19...., consubstancia uma ação especial de prestação de contas, tem por objecto o apuramento e a aprovação de receitas obtidas e realizadas, por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha apurar-se. 22.º - O fundamento da acção de prestação de contas provocada (como é o caso no processo acima identificado), e portanto a sua causa de pedir, é o facto da aquisição da titularidade do direito (ser titular de uma conta bancária) perante quem esteja em condições de prestar a informação necessária, ou seja, quem geria ou administrava aquela conta bancária, no caso a aqui Ré. 23.º - O pedido resultante será indubitavelmente o de prestar as referidas contas e no caso de vir a resultar um apuramento de saldo positivo, a consequente condenação do administrador na sua entrega. 24.º - Na presente acção a causa de pedir é a incapacidade acidental de entender o sentido da declaração negocial ou a falta do livre exercício da vontade, notória e conhecida do declaratário. 25.º - O pedido, a obtenção de sentença que declare nulo o termo de transação junto aos autos com o n.º 28/19...., uma vez que, em resultado da sua incapacidade a Autora, não tinha o livre exercício da sua vontade e não tinha o discernimento necessário à outorga do referido termos, muito menos tinha a percepção do seu significado, do respectivo conteúdo e alcance, facto que era sobejamente conhecido da Ré, que a acompanhou no momento da outorga daquele documento. 26.º - Pelo exposto não podia a sentença em crise concluir pela identidade da causa de pedir e do pedido, na acção de prestação de contas e na presente acção de anulação. 27.º - Por conseguinte, terá de improceder a exceção de caso julgado. 28.º - Assim, ao decidir como decidiu, o Tribunal violou o disposto no artigo 581.º, 577 n.º 1 al. i) 576.º e 578.º todos do Código de Processo Civil. 29.º - Mas, ainda que se entendesse que a decisão em crise, se baseou na autoridade de caso julgado, o que não se concebe, também carece a mesma de fundamento legal, porquanto, o efeito positivo visado pela a autoridade do caso julgado, assenta numa relação de prejudicialidade da primeira acção em relação à segunda, que no caso a que se referem os presentes autos, não existe. 30.º - A decisão que vier a ser proferida na segunda acção, em caso de procedência do pedido, em nada depende da decisão proferida na primeira acção, nem tão pouco a contraria, simplesmente poderá determinar a nulidade de uma decisão e a continuação da acção, neste caso a de prestação de contas. 31.º - Por conseguinte, também por esta razão há-de improceder a exceção invocada. 32.º - Por conseguinte deve a decisão proferida ser revogada, substituindo-se por outra que determine o prosseguimento dos presentes autos, com vista ao apuramento dos factos que lhe servem de fundamento. * 1.2.2. Contra-alegações A Ré (CC) contra-alegou, pedindo que se julgasse improcedente o recurso e se confirmasse a sentença recorrida. * 1.2.3. Processamento ulterior do recurso O recuso foi admitido pelo Tribunal a quo como «de Apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo», o que não foi alterado por este Tribunal ad quem. * II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR2.1. Objecto do recurso - EM GERAL O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) [1]. Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [2], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa). * 2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciarMercê do exposto, e do recurso de apelação interposto pela Recorrente (AA), uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal ad quem: · Questão Única - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do direito, nomeadamente ao considerar verificar-se nestes autos a excepção dilatória de autoridade de caso julgado formado na primeira acção de prestação de contas proposta pela Autora (AA) contra a Ré (CC), devendo ser alterada a sua decisão (uma vez que o trânsito em julgado de sentença proferida sobre transacção, homologando-a, não obsta que que se intente acção destinada à respectiva declaração de nulidade ou à respectiva anulação) ? * III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO3.1. Decisão do Tribunal a quo O Tribunal a quo proferiu o seu saneador-sentença (julgando procedente a excepção dilatória de autoridade de caso julgado), sem previamente declarar quais os factos que considerava provados para esse efeito, ao contrário do que lhe impunha a lei. Essa sua omissão torna a respectiva decisão nula, por falta de fundamentação de facto (conforme art.ºs 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, al. b), do CPC), sem que, porém, a referida nulidade tenha sido arguida nos autos; e a mesma não é de conhecimento oficioso (conforme art.ºs 615.º, n.º 4 e 617.º, n.º 1 e n.º 6, ambos do CPC) [3]. Contudo, e atento o disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. c), do CPC [4], podia e devia este tribunal ad quem anular oficiosamente, e com tal fundamento, o dito saneador-sentença do Tribunal a quo (já que a total omissão de factos consubstancia o grau máximo do vício previsto na sua parte final) [5]. Face, porém, ao teor dos autos (nomeadamente, aos documentos autênticos nele insertos, não arguidos de falsos), e com relevo para o conhecimento e decisão do recurso de apelação interposto, encontra-se já assente a factualidade suficiente para o efeito. Assim, passa de seguida este Tribunal ad quem a discriminá-la, nos termos do art.º 607.º, n.º 4, II parte, do CPC (aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, do CPC, e do art.º 17.º, do CIRE). * 3.2. Decisão do Tribunal ad quemCom interesse para a apreciação da questão única enunciada, consideram-se provados os seguintes factos (por coincidentes com os documentos autênticos juntos por ambas as partes - pertinentes aos mesmos processos judiciais -, não arguidos de falsos, e por acordo das mesmas): 1 - Em Janeiro de 2019 AA (aqui Autora) propôs uma acção especial de prestação de contas contra CC (aqui Ré), que correu termos sob o n.º 28/19...., no Juízo de Competência Genérica de Caminha, Comarca de Viana do Castelo, lendo-se no seu petitório final: «(…) TERMOS EM QUE Recebido o presente requerimento, e considerando-se a presente ação procedente, requer-se que seja notificada a Requerida CC, para efetuar a prestação de contas devidas pela sua gestão e administração das contas bancárias n.º ...00 e ...66, no período compreendido entre as datas de 01 Janeiro de 2015 e a data de 06 de Junho de 2018, E ainda do movimento de levantamento de € 160,00 por si efetuado na conta de depósitos à ordem ...00 em 2018.06.08, justificando a movimentação de todos os levantamentos, pagamentos e transferências por si operados naquelas contas, apresentando a respetiva conta-corrente, de forma autonomizada para cada uma das duas contas e entregando à Requerente os saldos que, em resultado das contas que vierem a merecer a devida aprovação, pertencem à Requerente. Mas, para o caso de a Requerida não vir a prestar as devidas contas no prazo que lhe vier a ser deferido, Requer-se desde já, que a Requerente possa apresentar as suas contas, elaborando a respetiva conta-corrente, de forma autonomizada para cada uma das duas contas, com vista a que a Requerida lhe entregue os saldos que vierem a ser apurados. Valor da presente ação: €uros 41 373.06 – quarenta e um mil trezentos e setenta e três euros e seis cêntimos. (…)» 2 - No dia ../../2019 foi elaborado um documento epigrafado «TERMO DE TRANSACÇÃO», em que surgem como declarantes AA, identificada como «PRIMEIRA OUTORGANTE», e CC, identificada como «SEGUNDA OUTORGANTE», documento que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde nomeadamente se lê: «(…) Acordam no seguinte A Primeira Outorgante declara para os devidos e legais efeitos que desiste de todos os pedidos deduzidos contra a sua filha CC no âmbito do processo n.º 28/19.... que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo de Competência Genérica de Caminha relativamente à prestação de contas requerida. A Segunda Outorgante declara desde já aceitar a referida desistência dos pedidos, colocando-se por esta via termo ao litígio que as opunha. Com efeito, declara a Primeira Outorgante que nada mais tem a reclamar da Segunda Outorgante, seja a que titulo for, designadamente qualquer valor monetário ou outra obrigação conexa a esta. Declaram ainda as Outorgantes que prescindem mutuamente de custas de parte ou outros encargos advindos deste processo judicial. Por ser verdade, ambas as outorgantes declaram que se encontram cientes do seu conteúdo, assinando de livre vontade, aos cinco dias do mês de Fevereiro de dois mil e dezanove. (…)» 3 - No dia ../../2019 foi elaborado pela advogada DD, com a Cédula Profissional com o n.º ... e domicílio profissional na Rua ..., ..., ..., concelho ..., um documento epigrafado «TERMO DE AUTENTICAÇÃO», datado de ../../2019, segundo o qual compareceram perante ela, naquela data, AA, identificada como «primeira outorgante», e CC, identificada como «segunda outorgante», e emitiram as declarações que nele lhes são imputadas, documento que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde nomeadamente se lê: «(…) Verifiquei a identidade dos intervenientes por exibição dos seus referidos documentos de identificação. Declararam os Outorgantes: Quer, para fins de autenticação, me apresentaram um documento anexo denominado por “TERMO DE TRANSAÇÃO - TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VIANA DO CASTELO - JUÍZO DE COMPETÊNIA GENÉRICA DE ... PROCESSO Nº 28/19....”, declarando que já o leram e que estão perfeitamente inteirados do seu conteúdo, e que este exprimem as suas vontades. O Presente termo de autenticação foi lido aos interessados e aos mesmos explicado o seu conteúdo em voz alta e na sua presença. (…)» 4 - No dia 07 de Fevereiro de 2019, por meio de requerimento elaborado pelo próprio punho, CC juntou à acção especial de prestação de contas n.º 28/19.... o «TERMO DE TRANSACÇÃO» e o «TERMO DE AUTENTICAÇÃO», reproduzidos nos dois factos anteriores. 5 - No dia 11 de Fevereiro de 2019, na acção especial de prestação de contas n.º 28/19...., foi proferida sentença homologatória do «TERMO DE TRANSACÇÃO» reproduzido no facto provado enunciado sob o número 2, sentença que aqui se dá por integralmente reproduzida e onde nomeadamente se lê: «(…) Através do requerimento que antecede a A. veio declarar que desiste dos pedidos que formulou contra a R. e esta que aceita tal desistência. Não estando em causa direitos indisponíveis, a desistência do pedido é livre (cfr. art.º 283.º do CPC). Atenta a qualidade das partes, que são legítimas, e o seu objecto, que versa sobre direitos disponíveis (cfr. art.º 289.º, n.º 1, do CPC), a desistência dos pedidos formuladas pela A. é válida, o que declaro pela presente sentença, condenando e absolvendo as partes nos seus precisos termos. Pelo exposto, julgo a extinta a instância (art.º 290.º, n.º 3, e art.º 277.º, al. d), do CPC). Custas pela A. (art.º 537.º, n.º 1, do CPC). Fixo à acção o valor de € 41.373,06. Notifique. Registe. (…)» 6 - Não foi interposto qualquer recurso (ordinário ou de revisão) da sentença homologatória reproduzida no facto provado anterior. 7 - No dia 03 de Abril de 2019 foi publicitada, por meio de edital e anúncio, a distribuição no Juízo de Competência Genérica de Caminha, Comarca de Viana do Castelo, o processo de Acompanhamento de Maior com o n.º 130/19...., sendo dele beneficiária AA. 8 - Em 26 de Fevereiro de 2020, foi proferida sentença no Processo n.º 130/19.... (do Juízo de Competência Genérica de Caminha, Comarca de Viana do Castelo) decretando o acompanhamento de AA, sentença que aqui se dá por integralmente reproduzida e onde nomeadamente se lê: «(…) V. DISPOSITIVO Atento o exposto, julga-se a ação procedente e, em consequência: 1. Decreto o acompanhamento de AA; 2. Fixo o início da necessidade de acompanhamento, em Janeiro de 2013; 3. Como acompanhante, nomeio BB, sua filha, a qual assegurará a prestação de auxílio permanente de terceiros que lhe prestem cuidados de higiene, vestuário, arranjo pessoal, alimentação e saúde, ficando igualmente incumbida da representação da Beneficiária, em atos de gestão dos seus bens e património. 4. Decido limitar totalmente a celebração pela Beneficiária de qualquer negócio. 5. Fixo em 5 anos a periodicidade da revisão das medidas de acompanhamento decretadas. 6. Consigno que não há notícia de que a Beneficiária tenha celebrado testamento vital ou outorgado mandato para a gestão dos seus interesses. 7. Integram o conselho de família, como vogais, CC e CC (melhor identificadas no requerimento inicial). Sem custas, atenta a isenção prevista na al. l) do n.º 1 do art.º 4.º do RCP. Fixo à ação o valor de € 30 000,01 (trinta mil euros e um cêntimos). Registe e notifique. Publique a presente decisão através de anúncio em sítio oficial. * Após o trânsito em julgado da presente decisão, remeta certidão da mesma à Conservatória do Registo Civil para o seu averbamento no assento de nascimento da Requerida.(…)» * IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 4.1. Nulidade e anulabilidade de transacção 4.1.1. Contrato de transacção Lê-se no art.º 1248.º do CC que transacção «é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões» (n.º 1), podendo as mesmas «envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido» (n.º 2). Compreende-se, por isso, que se afirme que o «contrato de transação tem como pressuposto a existência dum conflito de interesses entre as partes perante um bem apto à satisfação duma sua necessidade. Mas a noção de litígio implica mais do que um mero conflito de interesses: é preciso que, com base nele, uma parte tenha deduzido contra a outra a pretensão processual fundada na afirmação de que o direito tutela o seu interesse (assim no art. 263.º do CPC, relativo à transmissão entre vivos de direito litigioso), ou, mais ainda, consiste nessa afirmação e na contestação da tutela afirmada pela contraparte (assim art. 579.º, n.º 3, ao tratar da proibição relativa da cessão de direito litigioso). A transação, quando é posterior à propositura da ação, termina litígios existentes, pressupondo assim conflito de interesses e pretensão; mas pode ter por função prevenir litígios ainda inexistentes, e então mais não pressupõe do que o conflito de interesses» (José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, Coordenação de Ana Prata, Volume I, 2.ª edição, Almedina, Outubro de 2021, pág. 1602, com bold apócrifo). * Compreende-se, ainda, que se afirme que a «transacção tem por objecto recíprocas concessões (…). Se a parte que invoca o seu direito desiste de o tornar efectivo, dando ao acto um simples efeito extintivo, há uma desistência; se a outra parte acaba por reconhecer a legalidade da pretensão, através de um acto com eficácia meramente confirmativa ou constitutiva, há uma confissão. Também não há na transacção o ânimo de fixar ou determinar a situação jurídica anterior das partes (negozio di acertamento); a ideia básica dos contraentes é a de concederem mutuamente e não a de fixarem rigidamente os termos reais da situação controvertida, como quando se fixa a redução do preço correspondente à venda de uma coisa defeituosa ou à entrega da obra com defeito por parte do empreiteiro» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1997, pág. 931, com bold apócrifo).Logo, através «da transação, as partes estabelecem uma auto-regulação que implica concessões e cedências, umas e outras verificadas comparativamente às suas pretensões, atuais ou potenciais. Tido em conta que as utilidades do bem não podem estar ao serviço da satisfação integral do interesse de ambas as partes, cada uma cede à outra parcelas desse interesse ou um seu sucedâneo» (José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, Coordenação de Ana Prata, Volume I, 2.ª edição, Almedina, Outubro de 2021, pág. 1602, com bold apócrifo). As ditas concessões recíprocas podem traduzir-se, quer na redução do direito controvertido, quer na constituição, modificação ou extinção de um direito diverso dele (exigindo-se, porém, nesta última hipótese, de transacção novativa, que tais actos não se apresentem com carácter autónomo, antes estando conexos com a anterior relação controvertida). «A natureza substantiva do negócio de transação, por isso incluído no CC, é patente neste regime: através dela, as partes atuam diretamente sobre as situações jurídicas preexistentes, mantendo-as, alterando-as ou, no limite, criando-as (quando anteriormente não existiam) com um claro efeito negocial, de natureza preclusiva; preclude a discussão sobre a existência e o conteúdo das situações jurídicas controvertidas e as situações jurídicas em que as partes ficam investidas são por ela queridas, independentemente do conteúdo dessas situações preexistentes» (José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, Coordenação de Ana Prata, Volume I, 2.ª edição, Almedina, Outubro de 2021, pág. 1603). * Está-se, assim, perante um negócio de autocomposição do litígio, de natureza privada e substantiva, onde actua o princípio do dispositivo, subtraindo ao tribunal o poder de decidir a causa mediante a aplicação do direito objectivo aos factos provados. É precisamente mercê desta «natureza substantiva» dos «negócios de autocomposição do litígio» que o juiz, ao homologar algum destes atos, «não tem (…) que indagar sobre a verificação dos pressupostos processuais» (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, pág. 571).Considerada como contrato, e «dado o carácter sinalagmático e correspectivo das concessões recíprocas», a transacção é «um contrato oneroso», a que naturalmente será aplicável a «disciplina dos contratos (arts. 405.º e segs.)» e o «regime geral dos negócios jurídicos» (arts. 217.º e segs.)» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1997, pág. 630). * 4.1.2. Nulidade e anulabilidade de transacção - Meios de reconhecimentoLê-se no art.º 291.º, n.º 1, do CPC, que a «confissão, a desistência e a transação podem ser declaradas nulas ou anuladas como os outros atos da mesma natureza», isto é, os outros negócios jurídicos. Logo, a confissão, a desistência ou a transacção podem ser afectadas, quer por vícios substantivos (art.º 301.º, n.º 1, do CPC, e art.ºs 240.º a 257.º, ambos do CC), quer por vícios de forma (art.º 301.º, n.º 3, do CPC) [6]. * Mais se lê, no n.º 2 do art.º 291.º citado, que o «trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, a desistência ou a transação não obsta a que se intente ação destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação».Com efeito, estando em causa a «nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transação em que a decisão [sentença homologatória transitada em julgado] se fundou», e sendo a sentença homologatória que sobre as mesmas tenha recaído «um acto administrativo, um acto de jurisdição voluntária» e não um acto de jurisdição contenciosa (José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3.º, Coimbra Editora, 1946, pág. 534), podem ser declaradas nulas ou anuladas da mesma forma e pelos mesmos fundamentos que qualquer outro negócio jurídico. A lei processual actual (CPC de 2013) prevê assim, e em alternativa, que se peça o reconhecimento da invalidade de transacção, ou por meio de recurso de revisão da sentença homologatória que sobre ela tenha recaído, ou por meio de proposição de acção autónoma onde se formule o pedido de declaração de nulidade ou de anulação da dita transacção [7]. Regressou-se, deste modo, à solução consagrada no CPC de 1939 e no CPC de 1961, na versão posterior à reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08 de Março, de um único meio processual para a impugnação simultânea do acto das partes (contrato de transacção) e do acto jurisdicional (sentença homologatória respectiva) [8]. Recorda-se, a propósito, que na versão inicial do CPC de 1961 se distinguia «entre os efeitos (negociais) do acto de confissão do pedido, desistência ou transacção e os efeitos (processuais) da sentença que o homologasse; e, por isso, se duplicaram os meios de impugnação de tais actos, exigindo-se uma primeira acção autónoma, seguida de um recurso de revisão. Assim, no «direito anterior ao DL 38/2003, quer a anulação, quer a declaração de nulidade, da confissão do pedido, desistência ou transação só podiam, após o trânsito em julgado da sentença que as homologasse, ser feitas valer em ação autónoma; esta ação, dirigida contra o ato das partes, teria de ser seguida, se fosse procedente, pela interposição de recurso de revisão, dirigido contra a sentença homologatória, a fim de lhe destruir os efeitos; este recurso devia ser interposto no prazo de 60 dias posterior ao trânsito em julgado da sentença proferida na ação de declaração de nulidade e ou de anulação, mas não depois de 5 anos decorridos sobre o trânsito em julgado da sentença homologatória, mas, no caso de demora da ação que pudesse pôr em risco o respeito por este último prazo, o recurso de revisão devia ser interposto antes da decisão da ação de declaração de nulidade ou anulação e suspenso até que ela fosse proferida; quanto à ação, só estava sujeita a prazo de caducidade (um ano sobre a cessação do vício) quando, sendo de anulação, os efeitos do ato impugnado tivessem sido produzidos (art. 287 CC), isto é, quando o negócio de autocomposição tivesse sido cumprido ou o ato de desistência da instância tivesse dado lugar à extinção desta» (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, pág. 573). * 4.1.2.1. Recurso de revisãoPrecisando, lê-se no art.º 696.º, do CPC, que a «decisão transitada em julgado (…) pode ser objecto de [recurso de] revisão». Logo, enquanto «que com a interposição de qualquer recurso ordinário pretende-se evitar o trânsito em julgado duma decisão desfavorável, através do recurso extraordinário [assim qualificado no art.º 627.º, n.º 2 do CPC] de revisão visa-se a rescisão duma sentença transitada». Será, por isso, «o último remédio contra os erros que atingem uma decisão judicial, já insusceptível de impugnação por via dos recursos ordinários» (Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª edição, Almedina, Abril de 2008, pág. 306). Compreende-se, assim, que se afirme que, bem «consideradas as coisas, estamos perante uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza. Em princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, se feche a porta a qualquer pretensão tendente a inutilizar o benefício que a decisão atribuiu à parte vencedora». Contudo, «pode haver circunstâncias que induzam a quebrar a rigidez do princípio. A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio» (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, págs. 335 e 336, com bold apócrifo) [9]. Logo, no recurso de revisão «estamos em presença de casos cuja gravidade justifica, de “per si”, a prevalência das exigências da justiça sobre as exigências da segurança» (José João Baptista, Dos Recursos, Universidade Lusíada, 1988, pág. 131); e que justificam este «incidente póstumo de reabertura da instância para revogação de uma decisão transitada em julgado» (Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 2.ª edição, Coimbra Editora, Novembro de 2015, pág. 202). Face ao já exposto, compreende-se que os fundamentos do recurso de revisão sejam limitados e taxativos [10] (sendo que, relativamente aos demais possíveis fundamentos de impugnação de uma decisão judicial - nomeadamente, de uma sentença ou acórdão -, poderão e deverão ser invocados em sede de recurso ordinário que a mesma comporte). Lê-se, assim, no art.º 696.º, al. d), do CPC (e no que ora nos interessa), que a «decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando» se «verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transação em que a decisão se fundou». Logo, a parte que tenha optado pelo recurso de revisão (em vez da instauração de acção autónoma para obter o reconhecimento da invalidade de tais actos processuais de auto-conformação da lide) terá de alegar o concreto vício susceptível de interferir na sua validade, admitindo-se os mais «variados, tantos quanto os que emergem da legislação substantiva aplicável à concreta relação jurídica» (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, Setembro de 2018, pág. 337). O recurso de revisão tem de ser interposto no prazo de 60 dias, contados a partir do momento em que a parte tem conhecimento do fundamento de nulidade ou de anulabilidade do negócio de autocomposição do litígio; mas não depois do prazo de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão homologatória (art.º 697.º, n.º 2, al. c), do CPC). * 4.1.2.2. Acção autónomaPrecisando novamente, lê-se no art.º 286.º do CC que a «nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal». Mais se lê, no art.º 287.º seguinte, que só «têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e só dentro de ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento» (n.º 1); contudo, enquanto «o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção» (n.º 2). Logo, o interveniente em contrato de transação que entenda viciado por erro na formação ou na declaração da sua vontade, ou por falta de consciência da declaração emitida, ou por falta de livre exercício da sua vontade, e que pondere pedir o reconhecimento de tal vício em acção autónoma (com a consequente anulação da transacção), terá que avaliar rapidamente (dentro do ano subsequente à cessação do concreto vício em causa) se pretende, ou não, a manutenção do contrato; e, decidindo-se pela sua não manutenção, terá que alegar, na acção que proponha, todos os factos concretos que consubstanciam o vício que nela alegue. Caso a acção venha proceder, isto é, sendo «considerado sem existência e eficácia jurídica o acto processual da confissão, desistência ou transacção, parece que, ipso facto, a sentença homologatória se deve ter como ineficaz. Cessando o pressuposto ou fundamento do acto processual, caduca a decisão que o homologou» (Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, pág. 344). Contudo, o autor suportará então as custas do processo (art.º 535.º, n.º 1 e n.º 2, dl. d), do CPC [11]). * 4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)4.2.1. Invalidade de transacção Concretizando, verifica-se que, surgindo AA como parte num contrato de transacção alegadamente celebrado em ../../2019, entre ela e CC, com termo de autenticação da mesma data, e homologado por sentença proferida em 19 de Fevereiro de 2019, veio a mesma propor em 25 de Fevereiro de 2021 a presente acção, pedindo que se reconheça a respectiva invalidade. Mais se verifica que o fez alegando não ter tido consciência das declarações que ali prestou, nem ter então exercido livremente a sua vontade, face ao défice cognitivo e à deterioração de comportamento que regista desde Janeiro de 2013; e que justificou a atribuição do estatuto de maior acompanhado, por sentença de 26 de Fevereiro de 2020. Logo, concedendo-lhe a lei a possibilidade de optar entre a interposição de um recurso de revisão da sentença homologatória da transacção em causa, ou a interposição de acção autónoma para reconhecimento do alegado vício que a afectou, verifica-se que escolheu esta última, sem que ao exercício dessa facultade (repete-se, expressamente conferida por lei) se possa opor qualquer efeito do caso julgado (excepção ou autoridade) derivado da referida sentença homologatória. * Mostra-se, assim, procedente o primeiro fundamento do recurso de apelação interposto pela Autora (isto é, que o recurso de revisão não era a «única reação cabível» e «sede própria para a apreciação dos fundamentos invocados nesta ação», conforme erradamente ajuizou o Tribunal a quo) * 4.2.2. Remanescente objecto do recurso (conhecimento prejudicado) O pedido de alteração do decidido no saneador-sentença proferido nos autos (nomeadamente, a revogação da decisão de absolvição da Ré da instância e o prosseguimento dos autos) já foi alcançado com a procedência do primeiro fundamento invocado nesse sentido pela Recorrente. Logo, declara-se prejudicado, por inútil, o conhecimento do remanescente objecto do seu recurso, nos termos do art.º 608.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, do mesmo diploma. * Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela procedência do recurso de apelação da Recorrente (EE).* V - DECISÃOPelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Autora (AA), e, em consequência, em · Revogar o saneador-sentença proferido nos autos (nomeadamente, na parte em que julgou verificada a excepção de autoridade de caso julgado, absolvendo a Ré da instância), ordenando o normal prosseguimento da acção (nomeadamente, com a prolação de despacho de aperfeiçoamento da petição inicial, caso o Tribunal a quo entenda que se justifica, ou de identificação do objecto do litígio e de enunciação dos temas da prova). * Custas da apelação pela Recorrida (art.º 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficie.* Guimarães, 20 de Março de 2025. O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos; 1.º Adjunto - José Carlos Pereira Duarte; 2.ª Adjunta - Maria Gorete Morais. [1] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem). [2] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido». [3] Neste sentido, Ac. da RG, de 17.05.2018, Maria João Matos, Processo n.º 2056/14.0TBGMR-A.G1; ou Ac. do STJ, de 30.11.2021, Maria da Graça Trigo, Processo n.º 1854/13.6TVLSB.L1.S1. [4] Lê-se no art.º 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, que a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular «a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta». [5] Neste sentido, Ac. da RC, de 19.02.2013, Virgílio Mateus, Processo n.º 618/12.9TBTNV.C1, onde se lê que, faltando «a especificação dos factos provados na sentença (…), o Tribunal da relação pode e deve anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida pela 1ª instância», já que a lei lhe «concede tal poder nos casos em que a decisão sobre a matéria de facto é meramente deficiente ou escassa para decisão de todos os pontos controvertidos da questão de direito, por maioria de razão também o concede quando se verifique uma total ausência da fixação da matéria de facto na sentença». [6] No mesmo sentido, Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2.ª edição aumentada e reformulada, Almedina, Outubro de 2009, pág. 295. [7] No mesmo sentido: . António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires e Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, Setembro de 2018, pág. 337 - onde se lê que, transitada «em julgado a sentença homologatória, é legítimo aceder ao recurso extraordinário de revisão (art. 696.º, al. d)), invocando o vício gerador da nulidade ou da anulabilidade. Fica ainda salvaguardada a instauração de ação autónoma em que os vícios geradores da invalidade sejam alegados». . António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, pág. 406 - onde se lê que o fundamento do recurso de revisão previsto na al. d) do art. 696.º do CPC «(invalidade da confissão, desistência ou transação), deve ligar-se directamente ao disposto no art. 291º que abre ao interessado duas possibilidades de uso alternativo: instauração de acção para declaração de invalidade ou interposição de recurso de revisão». [8] No mesmo sentido: Ac. da RE, de 16.06.2016, Manuel Bargado, Processo n.º 1561/15.7T8PTM.E1; Ac. da RG, de 20.10.2016, Conceição Bucho, Processo n.º 978/06.0TBPTL-G.G1; Ac. do STJ, de 13.11.2018, Cabral Tavares, Processo n.º 97/15.9T8MGR.C1.S1; ou Ac. da RC, de 18.12.2019, Moreira do Carmo, Processo n.º 834/16.4T8GRD-A.C1. [9] No mesmo sentido, Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2.ª edição, Almedina, Outubro de 2009, pág. 292, onde se lê que, não «fora este mecanismo, haveria decisões manipuladas ou injustas que, porque transitadas em julgado, jamais poderiam ser modificadas, pese o reconhecimento daquela sua manipulação ou inequívoca injustiça». [10] Neste sentido, na doutrina: . José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 222 e 224 - onde se lê que o «recurso extraordinário de revisão visa combater um vício ou anomalia processual de especial gravidade, de entre um elenco taxativamente previsto»; e, por isso, «delimita-se exclusivamente pelos fundamentos». . Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos recursos, Quid Juris, Sociedade Editora, pág. 339 - onde se lê que, como «resulta claramente do adjectivo utilizado, a enumeração legal dos fundamentos da revisão é taxativa». Na jurisprudência: . Ac. do STJ, de 18.09.2007, Armindo Monteiro, Processo n.º 07P2287- onde se defende que, sendo taxativos os fundamentos da revisão extraordinária, atento o princípio da intangibilidade do caso julgado, é vedada ao julgador uma interpretação elástica desses fundamentos, sob pena de subversão desse princípio e a necessidade de acautelar os valores da certeza e da segurança inerentes às decisões judiciais transitadas. . Ac. do STJ, de 07.04.2011, Maia Costa, Processo n.º 60/02.0TAMBR-B.S1- onde se defende que a certeza e a segurança jurídicas, associadas ao caso julgado, apenas poderão ceder em casos excepcionais e taxativos aos interesses da verdade e da justiça, sendo aqueles coincidentes com os limitados fundamentos do recurso de revisão. [11] Recorda-se que se lê no art.º 535.º do CPC que, quando «o réu não tenha dado causa à ação e a não conteste, são as custas pagas pelo autor» (n.º 1); e entende-se «que o réu não deu causa ação» quando «o autor, podendo logo interpor recurso de revisão, faça uso sem necessidade do processo de declaração» (n.º 2, al. d)). |