Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
410/21.0T8MDC.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
RENÚNCIA À HERANÇA
REPÚDIO DA HERANÇA
ACTO DE NATUREZA PESSOAL
ACTO DE DISPOSIÇÃO PATRIMONIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- A renúncia à herança, referida no art. 2057º, nº 2, do C.C., é vulgarmente confundida com o repúdio, mas mais não é do que uma forma de alienação abdicativa, a favor de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta, só deste(s) e não de outro(s), e que apenas se convalida a favor deste(s), com a respectiva aceitação, sendo por este facto, um acto bilateral.
- No caso, atendendo a que estamos perante um acto de disposição patrimonial, gratuito, posterior ao apurado crédito do Autor e que prejudica a sua garantia patrimonial na medida em que envolve uma perda ou decréscimo do activo da devedora (art. 601º, do Código Civil), essa renúncia está sujeita à impugnação pauliana.
- Se os demandados nessa impugnação não fazem prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor ao da dívida ou dividas, no momento em que ocorreu a transmissão impugnada, como prescreve o art. 611º, do Código Civil, deve proceder essa impugnação.
Decisão Texto Integral:
Relator – Des. José Manuel Flores
1º - Adj. Des. Fernanda Proença Fernandes
2º - Adj. Des. Anizabel Sousa Pereira

ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – Relatório

- Recorrente(s): AA ;
- Recorrido/a(s):
- BB;
- CC, DD, EE e FF, na qualidade de únicas herdeiras de GG.
*
           
Veio AA, intentar contra: CC, DD, EE e FF, na qualidade de únicas herdeiras de GG e, ainda, BB, acção declarativa para Impugnação Pauliana, que culmina peticionando que se deverá ser declarado,

- Verificado o crédito do A. sobre a herança indivisa aberta por óbito de GG, no montante de € 11.160,00, bem como juros de mora, à taxa legal, desde 19/07/2018 até integral e efectivo pagamento, liquidando-se os vencidos até à entrada em juízo da presente acção no montante de € 1.433,00;
- Validamente impugnado o acto de renúncia à herança da falecida GG, decretando-se a ineficácia daquele acto em relação ao aqui Autor;
- Que o autor tem o direito a obter a satisfação integral do seu crédito à custa daquele direito e acção à herança objecto de renúncia pela GG ou dos bens em que tal direito se materializou, na medida do necessário para pagamento integral do seu crédito.
- Serem os Réus condenados a reconhecer o declarado neste petitório, com as consequências legais.

Citado os Réus, apresentou contestação BB defendendo-se por impugnação.

Foi proferida decisão que culminou com o seguinte dispositivo:
 “Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, porque provada, e, em consequência declara-se:
6.1. Verificado o crédito do A. sobre a herança indivisa aberta por óbito de GG, no montante de € 11.160,00, bem como juros de mora, à taxa legal, desde o incumprimento 25/10/2018 até integral e efectivo pagamento;
6.2. Absolvo os Réus de demais peticionado;        
Custas pelo Autor e Réu na proporção do decaimento que se fixa em 88% para o Autor e 12% para os Réus (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC).”
*
Inconformado com tal decisão, dela interpôs o Autor o presente recurso de apelação, em cujas alegações formula as seguintes
conclusões:

1ª – Uma das diferenças entre o repúdio da herança e a renúncia é que no primeiro caso o chamado à herança nem sequer aceita receber bens da herança enquanto que na renúncia a favor de um terceiro a aceitação da herança é necessária, embora tácita, pois verifica-se neste caso uma renúncia com eficácia translativa a favor de terceiro, a qual envolve uma aceitação tácita presumida da herança por parte do sucessor que a faz.
2ª - O acto impugnado é uma renúncia à herança e não repúdio como qualificado pelo tribunal recorrido e traduz-se numa alienação, a titulo gratuito, pela GG ao aqui réu BB da herança aberta por óbito dos pais desta.
3ª –O crédito do autor/recorrente é anterior ao acto impugnado.
4ª – Do acto impugnado resultou a impossibilidade ou agravamento dessa impossibilidade, para o autor/recorrente, de obter a satisfação integral do seu crédito.
5ª - A decisão recorrida fez uma qualificação jurídica e aplicação do direito erradas, violando dessa forma o disposto nos arts. 610º, 611º, 612º e nº 2 do art. 2057º do Código Civil.
5ª – Mostram-se assim preenchidos os requisitos para a impugnação pauliana do acto.
Nestes termos, nos mais de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exªs, deve julgar-se o presente recurso procedente e consequentemente ser alterada a decisão recorrida nos termos expostos, revogando-a e ser substituída por outra que julgue totalmente procedente a acção.      

O Recorrido HH apresentou contra-alegações nas quais conclui pela improcedência da apelação.

II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar:

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[2] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[3]
No caso, as questões enunciadas pela recorrente prendem-se com preenchimento dos requisitos para a impugnação pauliana do acto em crise.    Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos (cf. art. 662º, do Código de Processo Civil)
Provados

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1.1. Correu entre A., como exequente e GG, como executada, execução especial por alimentos por apenso aos autos de regulação das responsabilidades parentais que correu termos no extinto tribunal judicial de ... sob o Nº 374/09.... e a que veio a ser atribuído 716/10....,  do Juízo de Competência Genérica de ... – Juiz ..., tendo a mesma sido declarada extinta por inutilidade superveniente da lide por falta de indicação de bens à penhora, não tendo o Autor, ali Exequente,  se oposto a tal decisão, nem reclamado da mesma. (cfr doc. ..., junto com a PI e doc. ... junto com a contestação).
1.2. Em transacção, no dia 26 de Fevereiro de 2018, nos embargos de executado (apenso D) deduzidos naquela execução fixou-se a quantia exequenda em 12.000,00, da qual a GG se confessou devedora e se obrigou a pagar em prestações mensais e sucessivas de € 140,00 cada uma e no dia 20 de cada mês, vencendo-se a primeira no dia 20/03/2018,
1.3.  e que foi homologada por sentença, que condenou as partes nos seus precisos termos, (cfr decisão homologatória. doc. ..., junto com a PI).
 1.4. A ali executada, não cumpriu o acordado, tendo apenas pago seis prestações de 140,00€ cada, perfazendo o montante total de 840,00€, nomeadamente em 12/04/2018 (2ª prestação), 17/05/2018 (3ª prestação), 28/06/2018 (4ª prestação), 20/09/2018 (6ª prestação), 27/09/2018 (7ª prestação) e 25/10/2018 (8ª prestação) (cfr extracto de movimentos bancários de fls. 17v a 19v, docs. n.º ... a n.º 5, junto com a PI)
1.5. Em 19/07/2018 e perante o incumprimento da ali executada, o exequente requereu prosseguimento da execução. (cfr doc. ..., junto com a PI)
1.6. Em 23/10/2018 foi penhorado naquela execução o direito à acção e herança pertencente à executada, aqui 1ª ré, na herança indivisa aberta por óbito de sua mãe, falecida em ../../2011 e na herança indivisa aberta por óbito de seu pai falecido em ../../2010, para “garantia e pagamento da quantia de € 12.500,00, juros e demais despesas processuais”, (cfr auto de penhora de 23/10/2018 junta com PI)
1.7. Tal penhora foi notificada à executada, GG, em 23/10/2018 na pessoa do seu mandatário, o solicitador II, conforme notificação que se junta. (cfr doc 5, junto com a PI).
1.8. Tal penhora foi notificada ao 2º Réu JJ, em 20/11/2018 (cfr docs. n.º ... e ... juntos com a contestação).
1.9. Não se conformando com a referida penhora, o 2º Réu apresentou em 27/11/2018 uma comunicação ao Sr. Agente de Execução, através da qual se opôs a essa penhora e solicitava o levantamento da mesma em virtude da Escritura de Renúncia de Herança e Aceitação, outorgada que foi em 07/11/2018 e que anexou àquela (cfr doc. n.º ... junto com a contestação).
1.10. Na mesma data referida em 3.1.9., a ali executada, GG, já representada por novo mandatário, vem em requerimento naqueles autos de execução, para além do mais, invocar uma pretensa falta de notificação do auto de penhora e requerendo a sua notificação pois queria deduzir oposição em virtude de ter renunciado à herança, mas sem juntar o documento que comprova a renúncia. (cfr doc 6, junto com a PI).
 1.11. Em 21/01/2019 a executada, apresenta, na execução supra identificada, novo requerimento com o qual junta documento de renúncia, a título gratuito, à herança deixada pelos pais KK, falecido em ../../2010 e LL falecida em ../../2011, cujo direito e acção lhe havia sido penhorado naquela execução. (cfr doc 7, junto com a PI ).
 1.12. Aquela renúncia da herança pela ali executada foi feita em benefício do seu irmão, aqui 2º R., tendo sido atribuído aquele acto o valor de quinhentos euros. (cfr doc 7, junto com a PI).
1.13. Requerimento e documento para o qual foi notificado o exequente, aqui A., em notificação elaborada via Citius em 30/01/2019. (cfr doc 8, junto com a PI).
1.14. Por notificação elaborada via Citius em 18/03/2019 foi o exequente notificado do despacho do Senhor Juiz que, decidiu ordenar o requerido, pela executada, levantamento da penhora, (cfr doc 9, junto com a PI).
 1.15. Para além do direito e acção à herança que havia sido penhorado naqueles autos de execução, (…) sendo o único bem que se encontrava penhorado na execução referida.
1.16. Após o levantamento da penhora referida em 3.1.6., na execução a que se refere o artigo 3.1.1., o Autor, ali Exequente, não requereu a penhora de quaisquer outros bens da “GG”, ali Executada,
1.17. designadamente, da pensão por invalidez que a mesma auferia da ..., mas creditada na conta de que a mesma era titular no Banco 1..., em Portugal (cfr doc n.º 10 junto com a contestação),
1.18. dos saldos bancários que a mesma ia detendo na conta n.º ... do Banco 1... (cfr doc n.º 11 junto com a contestação),
1.19. e dos bens móveis que compunham o recheio da sua residência, situada que era na «Rua ... – ... – ..., ... – ...» (cfr doc n.º 12 a 14.º junto com a contestação).
1.20. Até à presente data, do valor a cujo pagamento a GG se obrigou, na transacção referida em 2º desta peça, a fazer ao aqui A. apenas foi paga a quantia de € 840,00, continuando em dívida ao aqui A. a quantia de € 11.160,00, (…),
1.21. No dia 05 de Agosto de 2020, faleceu GG deixando como únicas herdeiras as suas quatro filhas, aqui primeiras rés,
CC,
DD,
EE,
FF, (cfr assento de óbito e escritura de habilitação de herdeiros de 12/08/2020 do Cartório Notarial da Notária MM, sito na Rua ..., ... em ..., docs 10 e 11).
1.22. A renuncia à herança referida em ../../2011.  adveio do facto da, entretanto falecida, “GG” pretender compensar, reembolsar e/ou pagar dessa forma os préstimos, as ajudas e os serviços que o 2º Réu lhe prestou, assim como, as despesas e os encargos que este lhe pagou nos últimos anos de vida da mesma,
1.23. considerando que, foi o 2º Réu que cuidou dos interesses pessoais e patrimoniais daquela,
1.24. não obstante o facto deste ser também credor daquela, em montante que ascende a 4.005,43€, proveniente de empréstimos em dinheiro que o mesmo fez àquela, e de despesas que este pagou por aquela, nos últimos 2 a 3 anos de vida da mesma,
1.25. nomeadamente:
a) emprestou-lhe 840,00€, através de 6 transferências que efectuou entre Fevereiro e Julho de 2020, no valor de 140,00€ cada (cfr docs. n.º ...7 e ...8 junto com a contestação);
b) pagou-lhe em 28/07/2020 a mensalidade na Residência Sénior ..., em ..., no valor de 1.170,00€ (cfr docs. n.º ...7 e ...9 junto com a contestação);
c) pagou-lhe o tratamento dentário, no valor de 198,00€ ((cfr docs. n.º ...0 junto com a contestação);
d) pagou-lhe diversa medicação, no valor total de 166,90€ (cfr docs. n.º ...1 junto com a contestação);
e) pagou-lhe diversas consultas, no valor total de 160,00€ ((cfr docs. n. º22e 23 junto com a contestação);
f) pagou-lhe fraldas, cuecas e pensos de incontinência, assim como, produtos de higiene pessoal, no valor total de 170,53€ ((cfr docs. n.º ...4 junto com a contestação);
g) e pagou-lhe o funeral, no valor de 1.300,00€ (cfr docs. n. º...5 junto com a contestação);
                                   
Factos não provados
Com interesse à boa decisão da causa, ficaram por provar todos os demais factos alegados pelas partes, designadamente os seguintes:
2.1. não eram nem são conhecidos outros bens penhoráveis à GG,
2.2. bem como juros de mora, à taxa legal, desde 19/07/2018 até integral e efectivo pagamento liquidando-se os vencidos até à entrada em juízo da presente acção no montante de €1.433,00.

2. Direito
A Apelação do Autor insurge-se contra a sentença em crise na parte em que considerou que o acto visado pela sua impugnação pauliana constituía um repúdio da herança e que, por tal, não podia ser objecto dessa impugnação.
Na sentença, o Tribunal a quo, seguindo de perto a jurisprudência do Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.9.202[4],  considerou, em suma, que o “repúdio” não envolve aceitação da herança, não sendo um acto de disposição, não configura uma atribuição patrimonial, é, por isso, neutro, revestindo-se, ainda, de natureza pessoal porque apenas o chamado o pode exercer.
No entender do Apelante, essa decisão confundiu o repúdio da herança com a chamada renúncia da herança, referida no art. 2057º, nº 2, do Código Civil, e expressamente referida na escritura em causa, que tem eficácia translativa a favor de terceiro e envolve a aceitação tácita da herança por parte do sucessor renunciante.
Mais acrescenta que a matéria dos itens 3.1.16. a 3.1.19 da sentença é irrelevante porque não ficaram provados valores.
Conclui, a final, que a decisão recorrida fez uma qualificação jurídica e aplicação do direito erradas, violando o disposto nos arts. 610º, 611º, 612º e nº 2 do art. 2057º do Código Civil, e que se mostram preenchidos os requisitos para a impugnação pauliana do acto.
Em resposta, o Recorrido defende que a Apelação não impugnou devidamente a matéria de facto e devia tê-lo feito para discutir o direito, pelo que deve ser rejeitada. Mais acrescenta que o Apelante confunde a discussão da matéria de facto e a de direito, é o único responsável pela impossibilidade de satisfação do seu crédito, dada a sua inércia na execução que deduziu, e o acto em crise é um repúdio da herança, um negócio pessoal, que não envolve qualquer diminuição da garantia patrimonial do crédito, tem efeitos retroactivos à data da sucessão, não foi praticado com o intuito de impedir a satisfação dos direitos do Autor e não foi gratuito.

Será assim?

De acordo com o citado art. 610º, do Código Civil, “os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:

a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.”

Por sua vez, o citado art. 611º, dita que “incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.”
Por fim o invocado art. 612º, prescreve que:  1. O acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé. 2. Entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.

Posto isto, conforme ficou assinalado no Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 24.4.2024[5], só é possível recorrer a este instituto quando se apure:
1- a existência de um crédito (declarado ou não, vencido ou não - artigo 614º do Código Civil);
2- a prática, pelo devedor, de um acto que não seja de natureza pessoal, que provoque, para o credor um prejuízo (produza ou agrave a impossibilidade de o credor conseguir a inteira satisfação do seu crédito). A diminuição da garantia patrimonial pode verificar-se, ou por uma redução do activo do devedor, ou pelo aumento do seu passivo. Deve existir um nexo de causalidade entre o acto impugnado e a referida impossibilidade ou agravamento. O agravamento da impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação do seu crédito pode consistir na substituição dos bens do devedor por outros facilmente deterioráveis ou consumíveis. O momento a atender-se para averiguar se se verifica o requisito da insuficiência do património do devedor e bem assim da existência desses bens penhoráveis de igual ou maior valor é aquele em que ocorreu a transmissão.
3- a anterioridade do crédito relativamente ao acto ou, se o crédito for posterior, ter sido o acto dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor
4- que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé (artigo 612º do Código Civil). Basta o conhecimento da desconformidade do acto face ás regras jurídicas, a convicção da “conduta não ser recta conforme ao direito”, ficando afastada somente a negligência inconsciente. (cf Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/11/2014 no processo 2868/03.0TBVIS-P.C1).
           
No caso, a questão colocada pelo Apelante centra-se, em primeira linha, na distinção entre repúdio da herança e renúncia à herança e no reflexo que este último acto pode ter no património do impugnante.
Começando por esse repúdio da herança, dir-se-á que o mesmo constitui um negócio unilateral e singular que pressupõem o chamamento dos sucessores.
Deste modo, este negócio, cujos efeitos se retrotraem ao momento da abertura da sucessão (cf. art. 2062º, do Código Civil), só é viável quando for aberta a sucessão, ou seja, com a morte do seu autor (cf. arts. 2031º e 2032º, do Código Civil).
Entende maioritariamente a doutrina que quer a aceitação da herança, quer o seu repúdio, configuram actos jurídicos unilaterais, não receptícios, individuais e livres, que retroagem ao momento da abertura da sucessão (artigos 2050.º, n.º 2, e 2060.º, CC, respectivamente), são irrevogáveis (artigos 2061.º e 2066.º, respectivamente), e caducam, em regra, ao fim de dez anos a contar do momento em que o sucessível teve conhecimento de ter sido chamado à sucessão (artigo 2059.º, n.º 1, CC) (cfr. Rabindranah Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Coimbra Editora, vol. II, 3.ª edição, pgs. 13-17).
Tratando-se de actos jurídicos de sentido oposto, são naturalmente incompatíveis, e, por força da sua irrevogabilidade, a herança aceite, expressa ou tacitamente, não pode ser repudiada, da mesma forma que a herança repudiada não pode ser objecto de aceitação posterior.[6]
O repúdio tem por objecto um universo patrimonial de eventuais activos e passivos (e não bens em concreto) cuja titularidade se pode transmitir do falecido para o sucessor, no momento da sua morte e apenas então, tudo se passando como se nunca o tivesse sido (art. 2024º, do Código Civil).
Por isso, tal como vem considerando a doutrina e a jurisprudência, nomeadamente a citada pelo Tribunal a quo[7], estamos perante um negócio ou acto que não envolve, pela sua natureza, uma diminuição do património pressuposto no citado art. 601º e, portanto, não é viável a sua impugnação por via do instituto desenhado pelo legislador no citado art. 610º, que pressupõe esse desvalor nos termos acima enunciados.
Coisa diversa é a chamada renúncia à herança.
Esta figura jurídica é vulgarmente confundida com o repúdio, mas mais não é do que uma forma de alienação abdicativa, a favor de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta, só deste(s) e não de outro(s), e que apenas se convalida a favor deste(s), com a respectiva aceitação, sendo por este facto, um acto bilateral.
Mais sucede, como bem assinala o Apelante, que aquele que declara renunciar à herança, deverá considerar-se que a aceita e a aliena, se o faz a favor apenas de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta, como está expressamente estabelecido no citado art.º 2057.º, n.º 2, do Código Civil (cf. art. 9º, do C.C.).
Assim o refere o Parecer RP. 209/2011 STJ-CT, citado por F. PEREIRA COELHO: “[s]e a renúncia aí [no art. 2057.º/2] hipotizada é feita de forma unilateral, como um comum repúdio – e é essa hipótese aquela que se afigura tida em consideração pela lei - , então é difícil (será aliás incorrecto) vir dizer-se que essa renúncia importa “aceitação” e  “alienação” da herança”, uma vez que “qualquer forma de alienação, gratuita ou onerosa, exige o concurso da aceitação do adquirente, ou seja, exige a forma contratual”, e assim é que, “[n]a melhor das hipóteses, o que se poderá dizer, em bom rigor, é que, na renúncia
unilateral em favor daquelas pessoas, se entende haver aceitação da herança e proposta de alienação da herança aceite – proposta que, dirigida àquelas pessoas, naturalmente tem de ser por elas aceite para que o respectivo contrato de ´alienação´ se perfaça”. Em sede de conclusão, este parecer refere ainda que “[f]altando o referido acto de aceitação, permanece o renunciante como legítimo titular do direito à herança cuja alienação propôs, estando consequentemente a validade da partilha extrajudicial de tal herança dependente de que ele nela (partilha) seja parte”[8]. (…)
Ao contrário dos efeitos da renúncia da herança, os efeitos do repúdio retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia (salvo para efeitos de representação), cf. decorre do art.º 2062.º do CC.
Na verdade os efeitos da renúncia da herança, prevista no citado art. 2057º, nº 2, do Código Civil, terão como referência cronológica o momento histórico em que ocorreu a aceitação do beneficiado com essa devolução.
Ora, no caso em apreço, julgamos que existe na decisão recorrida uma evidente confusão entre estes dois conceitos e uma indevida qualificação do acto em apreço.
Com efeito, o acto descrito nos pontos 1.11. e 1.12., dos factos assentes supra mencionados, e titulado pela escritura junta como documento ..., da p.i., datada de 7.11.2018, constitui, tal como anuncia o seu título, uma renúncia de herança dado que visou, conforme resulta da declaração nela inscrita, a “renúncia a título gratuito à herança” deixada pelos pais da declarante “em benefício do segundo outorgante seu irmão”, ou seja, um acto de alienação da sua quota na referida herança a favor de um herdeiro específico, o que denota uma vontade de ultrapassar os efeitos legais de  um simples repúdio, que conduziriam à consideração de um universo sucessível pré-estabelecido e teria os efeitos previstos no citado art. 2062º, do Código Civil.
Trata-se de um acto gratuito, como emerge da declaração da renunciante e da inexistência de qualquer contrapartida envolvida nessa transacção, sendo despiciendo que se tenha demonstrado, extra escritura, que a sua autora teve como propósito compensar o beneficiado nos termos previstos nos itens 1.22., dos factos julgados assentes supra (cf. também o que dita art. 394º, do Código Civil).
Mas será que estamos perante um acto de natureza pessoal, como defende a decisão recorrida?
Ora, como assinala o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, acima citado, os actos pessoais são “actos de conteúdo não patrimonial, i.e., não susceptíveis de avaliação pecuniária. Como estes actos não afectam directamente a garantia patrimonial do crédito constituída pelo património do devedor, a sua impugnabilidade não tem razão de ser. Apesar de poderem produzir efeitos indirectos ou reflexos no património do credor, levando em devida linha de conta as razões de ordem pública que lhes estão subjacentes, não se admite a impugnação pauliana restringida às consequências imperativas legalmente estabelecidas de carácter patrimonial dos actos de natureza pessoal.”
E se é certo que, como se assinala nesse arresto, no repúdio está apenas em causa o carácter pessoal da decisão de adquirir – ou não - a qualidade de herdeiro, que apenas o sucessível chamado o pode exercer, aqui, na renúncia à herança, diversamente, está em causa também um património hereditário ideal que já entrou na esfera jurídica do renunciante que, previamente a teve de aceitar para poder emitir tal declaração de vontade, como resulta do disposto no citado art. 2057º, nº 2, do Código Civil.
Podemos assim concluir que, neste caso, o acto - a renúncia à herança - não deixa de ter tradução patrimonial que releva para os efeitos do o incluir no universo dos que estão abrangidos pela previsão do citado art. 610º, do Código Civil. É como refere Pires Lima e Antunes Varela[9], o acto do devedor pode ser uma renúncia desde que, tal como sucede neste caso, essa renúncia seja necessária para que os valores patrimoniais saiam do património do devedor.
Deste modo, diversamente do que entendeu a decisão recorrida, julgamos que essa disposição da aqui devedora estava sujeita à impugnação pauliana suscitada pelo Autor e nunca poderia ser objecto da medida prevista no art. 2067º, nº 1[10]. Aliás, devia ter-se mantido penhorado na execução referida nos factos assentes o referido quinhão, dado que, diversamente do repúdio, não tinha efeitos retroactivos e só se efectivou com a aceitação do beneficiado, depois da penhora do quinhão em causa.
Neste conspecto, a questão que se coloca, tendo em mente o que dita o art. 663º, do Código de Processo Civil, é a de saber se, ainda assim, estão reunidos todos os pressupostos para a procedência da impugnação em apreço (?).
No caso, atendendo ao que acima deixámos dito, estamos perante um acto de disposição patrimonial, gratuito, posterior ao apurado crédito do Autor (item 1.2.) e que prejudica a sua garantia patrimonial na medida em que envolve uma perda ou decréscimo do activo da devedora (art. 601º, do Código Civil), que foi avaliado em pelo menos 500 euros (cf. item 1.12. dos factos assentes).
Estão assim reunidos todos os requisitos positivos dos quais faz depender o legislador, no art. 610º, do Código Civil, a procedência da peticionada impugnação pauliana.
Neste cenário, restaria aos Réus nesta demanda, pela negativa, alegar e produzir prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor ao da dívida ou dividas[11], no momento em que ocorreu a transmissão impugnada, como prescreve o citado art. 611º, do Código Civil.
Neste momento impõe-se um ponto de ordem.
A decisão em crise exarou e motivou uma decisão sobre os factos que considerou relevantes para o julgamento da lide. Essa decisão não foi impugnada, maxime nos termos dos arts. 640º e 662º, do Código de Processo Civil. Não se encontram nas conclusões do recurso, ou sequer nas alegações que as precedem, quaisquer pedidos de impugnação dessa decisão[12], pelo  que, em princípio, nos devemos ater aos factos considerados pela primeira instância.
E se tivermos em conta aquilo que assim ficou apurado, de facto, como assinala o Recorrente, não está provado, nem sequer foi alegado (se nos ativermos ao que ficou dito em 39 a 41 da contestação) que houvessem no património da devedora, em de 7.11.2018, bens de valor igual ou superior à divida que se registou nos factos assentes e que ascende a mais de 11000 euros (cf. aquilo que já ficou definitivamente decidido em 6.1. da sentença), em rigor, nem ficou minimamente precisado o valor dos bens descritos em 1.17. a 1.19., supra, nem que o seu valor, nesse preciso momento, fosse igual ou superior a esse montante.
Deste modo, foi incumprido o ónus previsto na 2ª parte do art. 611º, do Código Civil, razão pela qual nada obsta à procedência da impugnação pauliana em apreço e, assim, à apelação, no que diz respeito à transmissão em causa, devendo ter-se em conta aquilo que já se encontra definitivamente decidido (cf. art. 635º, nº 5, do C.P.C.).

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente a acção e, em sua substituição nessa parte, decidindo, julgar totalmente procedente a acção e, em conformidade, decretar a ineficácia daquele acto (renúncia referida supra em 1.11. e 1.12.) em relação ao aqui Autor, permitindo-se a este executar o quinhão hereditário daquela GG no património do Réu contestante.
As custas da acção, atendendo ao disposto no art. 527º, do Código de Processo Civil, serão suportadas pelos Réus, nos termos dos arts. 528º, nº 1, do mesmo Código.
No restante, nomeadamente quando ao decidido em 6.1. da decisão recorrida, mantém-se o julgado.

Condena-se nas custas da apelação o Recorrido BB (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil).
N.
*
Sumário[13]:
- A renúncia à herança, referida no art. 2057º, nº 2, do C.C., é vulgarmente confundida com o repúdio, mas mais não é do que uma forma de alienação abdicativa, a favor de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta, só deste(s) e não de outro(s), e que apenas se convalida a favor deste(s), com a respectiva aceitação, sendo por este facto, um acto bilateral.
- No caso, atendendo a que estamos perante um acto de disposição patrimonial, gratuito, posterior ao apurado crédito do Autor e que prejudica a sua garantia patrimonial na medida em que envolve uma perda ou decréscimo do activo da devedora (art. 601º, do Código Civil), essa renúncia está sujeita à impugnação pauliana.
- Se os demandados nessa impugnação não fazem prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor ao da dívida ou dividas, no momento em que ocorreu a transmissão impugnada, como prescreve o art. 611º, do Código Civil, deve proceder essa impugnação.
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Guimarães, 29-05-2024


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
[2] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
[4] https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bf8293aed269c648802587580055c388?OpenDocument
[5] Inédito, proferido no proc.  2723/20.9T8BCD.G2
[6] https://jurisprudencia.pt/acordao/200506/pdf/
[7] Que aliás terá tido origem no Ac. desta Secção do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6.5.2021, in https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/3954f22f60d68e60802586e70051494b?OpenDocument
[8] Cf. Penhora de Quinhões Hereditários: a prática versus a teoria, Alice Correia, in  https://recipp.ipp.pt/bitstream/10400.22/19446/1/DM_MariaCorreia_MSOL_2021.pdf, p. 38/39
[9] In Código Civil Anotado, vol. I, 4ª Ed., p. 626
[10] Dado que neste caso essa já fora aceite…
[11] …que não apenas da dívida de que é titular activo o impugnante
[12] Pelo que não faz sentido, como propõe o Recorrido, discutir qualquer rejeição de recurso nessa matéria…
[13] Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.