Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3778/19.4T8VCT.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
REPÚDIO DA HERANÇA
GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES
HERDEIRO
AÇÃO SUB-ROGATÓRIA
SUB-ROGAÇÃO
CREDOR
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
PATRIMÓNIO DO DEVEDOR
PRAZO DE CADUCIDADE
PREJUÍZO PATRIMONIAL
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
Data do Acordão: 09/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Não envolvendo o repúdio da herança qualquer diminuição da garantia patrimonial do crédito, não se verifica o primeiro dos requisitos legais da impugnação pauliana previstos no art. 610.º do CC.

II - O repúdio da herança não é uma verdadeira e própria renúncia, pois que, por não consubstanciar uma disposição extintiva sem contrapartida, não tem natureza abdicativa.

III - Na medida em que a herança apenas se adquire com a aceitação (art. 2050.º do CC), no repúdio não estão em causa direitos hereditários anteriormente adquiridos pelo devedor.

IV - Tratando-se de um ato obstativo ou impeditivo de uma aquisição de uma situação jurídica complexa, ao qual o património do devedor se revela indiferente, não sofrendo qualquer modificação, não se permite ao credor o recurso à impugnação pauliana.

V - O repúdio, é também um negócio jurídico pessoal. A expectativa dos credores de se satisfazerem sobre os bens da herança a que o devedor é chamado é incerta e relativa, pois o ius delationis, que é incoercível, no seu exercício, depende exclusivamente da vontade do sucessível, dado o caráter intuitu personae da sucessão. Isto obsta tanto à impugnação pauliana do repúdio da herança (arts. 610.º e ss. do CC) como à sub-rogação do credor ao devedor no exercício do direito de aceitar a herança (arts. 606.º e ss., e art. 2049.º do CC).

VI - A necessidade de não deixar os credores pessoais do repudiante privados de tutela, dada a inaplicabilidade dos institutos gerais como a sub-rogação do credor ao devedor (arts. 606.º e ss. do CC) e a impugnação pauliana (arts. 610.º e ss. do CC), conduziu o legislador a consagrar o regime previsto no art. 2067.º do CC, conciliando o princípio da autonomia decisória do sucessível chamado e a indefetível exigência de salvaguarda dos credores. Está em causa a perda da oportunidade de poder adquirir, de ver aumentado o património, mas não uma diminuição desse património. O meio judicial para os credores exercerem a faculdade - que não depende de autorização judicial, mas é, necessariamente, de exercício judicial (art. 1041.º, n.º 1, do CPC) - de aceitar a herança, “em nome do repudiante”, é a ação em que deduzam o pedido de pagamento dos seus créditos contra o repudiante e contra aqueles que receberam os bens por efeito do repúdio (art. 1041.º, n.º 1, do CPC). Trata-se da atribuição ex lege, por via sub-rogatória - o que não quer dizer que estejamos perante uma verdadeira e própria sub-rogação -, de um direito que, no seu exercício, é pessoal do devedor e, por isso, insubrogável, e que já se extinguiu como consequência da declaração de repúdio.

VII - O art. 2067.º do CC como que se consubstancia num micro-sistema de tutela não recondutível a categorias jurídicas mais amplas, caracterizando-se por pressupostos específicos e pela finalidade de tutelar os credores do chamado em caso de repúdio da herança.

Decisão Texto Integral:  

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,



I - Relatório

1. Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Noroeste, CRL, intentou ação declarativa sob a forma de processo comum contra AA e Mulher, BB, CC, DD e EE, pedindo:

- a declaração de nulidade, por simulação, da escritura de “Repúdio de Herança” transcrita em 27.º da petição inicial, com todas as consequências legais e, consequentemente,

- o cancelamento de quaisquer registos ou ónus que eventualmente impendam sobre os prédios descritos em 30.º da petição inicial, lavrados com base na referida escritura de “Repúdio de Herança”;

E, subsidiariamente:

- julgar-se procedente, por provada, a impugnação pauliana desse negócio de “Repúdio da Herança”, com a consequente restituição do “quinhão hereditário” na medida do interesse da Autora, podendo esta executá-lo no património dos 3.º, 4.º e 5.º Réus;

E sempre, em qualquer caso:

- a condenação dos Réus no pagamento das despesas extrajudiciais, incluindo honorários de advogado, que a Autora suportar com a presente ação, valor esse a fixar em decisão ulterior.

2. Os 1.º e 2.º Réus, AA e BB, contestaram. Alegaram que, atendendo que a Autora pretende impugnar o repúdio da herança a que o 1.º Réu foi chamado por morte de seu Pai, FF. Como o 1.º Réu nunca aceitou esta herança, o repúdio não implica qualquer saída de bens do património dos 1.º e 2.º Réus, AA e BB. Os bens hereditários só integrariam o seu património se o 1.º Réu houvesse aceitado a herança (art. 2050.º, n.º 1, do CC), o que não se verificou. Entendem que, perante a falta de aceitação, pelo 1.º Réu, da referida herança, a Autora só poderia reagir por meio da ação sub-rogatória (art. 606.º do CC). Referem que a impugnação pauliana apenas permite aos credores reagir contra negócios validamente celebrados pelo devedor mediante os quais se opere a saída de bens do respetivo património. Por outro lado, ao tempo do repúdio da herança, a sociedade Eira Longa – Prestação de Serviços Técnicos e Agroflorestais, Unipessoal, Lda., não se encontrava sequer em incumprimento do contrato de mútuo. O 1.º Réu tem três filhos: o 3.º, 4.º e 5.º Réus. Nos termos dos arts. 2039.º e 2042.º, do CC, por força do repúdio da herança por parte do 1.º Réu, os 3.º, 4.º e 5.º Réus, filhos daquele, adquiriram, com a correspondente aceitação, respetivamente, 1/16 da herança aberta por óbito de seu avô, FF. Uma vez que o 3.º Réu, CC, em virtude do direito de representação previsto no art. 2042.º do CC, adquiriu, por sucessão legal, 1/16 daquela herança, de um lado e, de outro, também avalizou a livrança em branco subscrita pela sociedade mutuária, Eira Longa – Prestação de Serviços Técnicos e Agroflorestais, Unipessoal, Lda., a Autora poderá, em caso de incumprimento desta, executar o património daquele. Logo, a possibilidade mencionada pela Autora em 65.º da petição inicial mantém-se, apesar de o 1.º Réu ter repudiado a herança de seu Pai. Concluíram no sentido de que o repúdio da herança pelo 1.º Réu não teve, nem nunca teria como consequência impedir que aquele quinhão hereditário viesse a ser agredido pelos credores da sociedade mutuária, uma vez que, através do instituto do direito de representação, os seus filhos adquiriram, por sucessão legal, aquele direito e sem que os mesmos, nomeadamente o 3.º Réu, CC, que é avalista da livrança entregue à Autora, tivessem igualmente renunciado àquele direito. O repúdio da herança pelo 1.º Réu é, assim, um negócio válido, sendo que a vontade declarada corresponde integralmente à sua vontade real. Entendem, por outro lado, não se verificarem os requisitos da impugnação pauliana: aquando da celebração do contrato de mútuo entre a Autora e a sociedade mutuária, Eira Longa – Prestação de Serviços Técnicos e Agroflorestais, Unipessoal, Lda., foram constituídas hipotecas sobre dez prédios para garantir o cumprimento das obrigações por esta assumidas. Foi também entregue à Autora uma livrança em branco, subscrita pela sociedade mutuária Eira Longa – Prestação de Serviços Técnicos e Agroflorestais, Unipessoal, Lda., e avalizada pelos 1.º e 3.º Réus, AA e CC, bem como, ainda, por GG, Mãe do 3.º Réu. Os avalistas passaram a garantir, com todo o seu património, o cumprimento do contrato de mútuo em apreço. Continua, assim, a ser possível à Autora, em caso de incumprimento, requerer a penhora do quinhão hereditário de 1/16 do 3.º Réu, CC, e, posteriormente, enquanto comproprietária do prédio identificado em 30.º da petição inicial, exercer o seu direito de preferência na respetiva compra. Por último, impugnaram os restantes factos alegados pela Autora, concluindo pela improcedência da ação.

3. A Autora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Noroeste, CRL respondeu aos incidentes e exceções invocadas pelos 1.º e 2.º Réus, AA e BB.

4. Procedeu-se ao saneamento do processo e ao julgamento com observância do formalismo legal, que a respetiva ata reflete.

5. Na sentença de 5 de novembro de 2020, o Tribunal de 1.ª Instância decidiu o seguinte:

a) Julgar improcedente o pedido de declaração de nulidade por simulação, formulado a título principal;

b) Julgar procedente o pedido subsidiário de impugnação pauliana e, em consequência, declara-se ineficaz em relação à A. o acto formalizado pela escritura de “Repúdio de Herança” outorgado pelos 1ºs Réus, melhor descrito em 1.23. dos factos provados desta, reconhecendo à A. o direito à respectiva restituição do quinhão hereditário, na medida do seu crédito, podendo executá-lo no património dos 1ºs Réus.

c) Condenar os 1ºs RR AA e mulher a pagar as despesas extrajudiciais, incluindo honorários com advogado, que a autora teve de suportar com a presente ação, valor esse a fixar em decisão ulterior, designadamente em sede da execução já instaurada, absolvendo-se os restantes RR deste pedido.

d) Custas pela A. e RR. na proporção respectivamente de 1/4 e 3/4.

e) Registe e notifique.

6. Inconformados, os 1.º e 2:º Réus, AA e BB, interpuseram recurso de apelação.

7. A Autora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Noroeste, CRL apresentou contra-alegações e requereu, a título subsidiário, a ampliação do objeto do recurso.

8. Por acórdão de 6 de maio de 2021, o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu o seguinte:

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente procedente o recurso apresentado e improcedente a ampliação do seu objecto apresentada a título subsidiário e, em consequência:

a) Manter a sentença recorrida quanto à matéria de facto provada e não provada;

b) E revogar a sentença recorrida, julgando improcedente a impugnação pauliana peticionada.

Custas pela Recorrida”.

9. Não conformada, a Autora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Noroeste, CRL, interpôs recurso de revista, apresentando as seguintes Conclusões:

1.ª - O presente recurso de revista é admissível

- vd. art.º 627.º; n.º 1, art.º 629.º e n.º 1, art.º 671.º CPC

2.ª - Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, atribuindo a lei ao credor a faculdade de executar o património do devedor e fornecendo-lhe diversos meios de conservação do mesmo

- vd. art.º 601.º CC

- vd. art.ºs 605.º e ss. CC

3.ª - A ação sub-rogatória é classificada como direta ou indireta, sendo que esta consiste num meio de conservação da garantia geral, mediante a possibilidade de os credores poderem exercer contra terceiro os direitos patrimoniais que competem ao devedor

- vd. art.ºs 606.º e ss. CC

4.ª - A ação sub-rogatória indireta não atribui à recorrente qualquer preferência no pagamento, visto que, aproveita a todos os credores que a ela recorram

- vd. art.º 609.º CC

5.ª - Apesar da remissão prevista no art.º 2067.º do CC, existem diferenças substanciais entre a figura aí prevista e o regime da sub-rogação, sendo os pressupostos da ação sub-rogatória os seguintes:

i) omissão pelo devedor do exercício dos seus direitos contra terceiros

ii) conteúdo patrimonial desses direitos e não atribuição do seu exercício ao seu titular

iii) essencialidade desse exercício para a satisfação do direito do credor

- vd. art.º 606.º, ex vi art.º 2067.º CC

6.ª - A ação sub-rogatória caracteriza-se como sendo uma reação do credor contra uma conduta omissiva do devedor

- vd. MENEZES LEITÃO, in “Garantias das Obrigações”, 2012, 4.ª Ed., Almedina, pág. 56

7.ª - Se o devedor praticar positivamente um ato prejudicial ao(s) credor(es), este(s) deverá(ão) reagir através da impugnação pauliana e não mediante a ação sub-rogatória

- vd. MENEZES LEITÃO, in “Garantias das Obrigações”, 2012, 4.ª Ed., Almedina, pág. 56

8.ª - A impugnação pauliana consiste na faculdade legalmente atribuída aos credores de reagirem contra atos do devedor que diminuam a garantia patrimonial do seu crédito em seu prejuízo

- vd. art.º 610.º do CC

9.ª - Os pressupostos da impugnação pauliana são, em suma, os seguintes:

- existência de um crédito

- realização pelo devedor de um ato que diminua a garantia patrimonial do crédito e que não seja de natureza pessoal

- anterioridade do crédito em relação ao ato ou, sendo posterior, ter o ato sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor

- sendo um ato oneroso, ocorrência de má fé, da parte do devedor e do adquirente

- que resulte do ato a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento da impossibilidade

10.ª - Em causa terão de estar atos que se repercutam em termos negativos no património do devedor, quer em razão do aumento do seu passivo, quer em razão da diminuição do seu ativo

11.ª - O repúdio da herança objeto destes autos é um ato gratuito, pelo que, in casu, o requisito da má-fé não releva para a decisão da causa

- vd. art.ºs 2062.º e ss. CC

- vd. 2.ª parte, n.º 1, art.º 612.º CC

12.ª - Para a procedência da impugnação pauliana é necessário que do ato impugnado resulte para o credor a impossibilidade (total ou parcial) de satisfação do crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade

- vd. al. b), art.º 610.º CC

13.ª - O instituto jurídico da sub-rogação não configura um regime imperativo de reação dos credores perante o repúdio de uma herança, nem o legislador excluiu aos credores a possibilidade de reagir nos termos gerais previstos na lei, designadamente, por via de impugnação pauliana

- vd. n.º 1 do art.º 2067.º do CC - vd. art.ºs 605.º e ss. CC

14.ª - A recorrente é livre de optar pelo procedimento judicial que melhor acautele os seus interesses e em normativo algum se prevê a obrigatoriedade de, num caso como o dos autos, ser forçada a optar pela ação de sub-rogação em detrimento da impugnação pauliana

- vd. art.ºs 605.º e ss. CC - vd. art.º 20.º CRP

15.ª - Caso a recorrente lançasse mão da ação de sub-rogação em detrimento da impugnação pauliana, tal ser-lhe-ia prejudicial, visto a ação de sub-rogação não lhe atribuir qualquer preferência de pagamento, contrariamente ao que sucede na impugnação pauliana

- vd. art.º 609.º e n.º 4, art.º 616.º CC

16.ª - In casu, nunca poderia a recorrente socorrer-se da ação de sub-rogação, pois que falha, desde logo, o primeiro dos pressupostos desse meio de reação - a omissão pelo devedor do exercício dos seus direitos contra terceiros

- vd. art.º 606.º CC, ex vi art.º 2067.º CC

17.ª - O “Repúdio da Herança” objeto destes autos não constitui um ato omissivo, mas antes um ato positivo dos recorridos

- cfr. pontos 1.23; 1.35; 1.36; 1.39 e 1.57 da matéria de facto provada do acórdão recorrido

18.ª - Os recorridos diligenciaram junto do cartório notarial pela marcação da escritura de “Repúdio da Herança”, forneceram os documentos necessários ao ato, outorgaram essa escritura e pagaram os devidos emolumentos, impostos e encargos

- cfr. pontos 1.23; 1.35; 1.36; 1.39 e 1.57 da matéria de facto provada do acórdão recorrido

19.ª - A sub-rogação não produz a reversão dos bens ao património do devedor, mas antes aos seus herdeiros imediatos

- vd. n.º 3, art.º 2067.º do CC

20.ª - A ação pauliana seria o meio processual adequado a proteger os interesses da recorrente e não a ação sub-rogatória, pois que, o “quinhão” hereditário do recorrido AA poderia não ser suficiente para saldar o crédito da recorrente e o crédito dos demais credores

21.ª - O entendimento perfilhado pelo acórdão recorrido como que força a recorrente a atuar em juízo salvando os interesses dos demais credores

22.ª - A impugnação pauliana da escritura de “Repúdio da Herança” objeto dos presentes autos, configura um meio idóneo de conservação de garantia patrimonial à disposição da recorrente

- vd. art.º 610.º CC

23.ª - Para que se verifique a impugnação pauliana não é necessária a saída de bens do património do devedor, bastando a existência de um “ato lesivo da garantia patrimonial do credor”, como a renúncia a direitos existentes no seu património

- vd. Ac. do TR Coimbra de 24.05.2015, proc. n.º 176/07.6TBVLF.C1

- vd. Ac. do TR Guimarães de 09.02.2017, proc. n.º 162/10.9TBAVV.G1

24.ª - Ao repudiar a herança, o recorrido AA realizou um ato lesivo da garantia patrimonial da recorrente, pois que, impediu o incremento do seu património em cerca de € 26.000,00 e, por tal efeito, impediu a recorrente de executar o seu património com esse acréscimo de valor

- vd. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª Ed. Revista e Atualizada, pág. 622

25.ª - Os recorridos agravaram a impossibilidade da recorrente em ver o seu crédito satisfeito à custa do património em causa, o que foi, aliás, expressamente reconhecido pelos próprios

- cfr. ponto 86.º das alegações de recurso dos recorridos

26.ª - Caso se entenda que o repúdio de uma herança não constitui um ato lesivo da garantia patrimonial, então, encontrado está o mecanismo para que os devedores incumpram com as suas obrigações

27.ª - O douto acórdão recorrido interpretou e aplicou incorretamente, no caso concreto, as seguintes disposições legais:

- art.ºs 605.º e ss. CC

- art.º 606.º, ex vi art.º 2067.º CC - art.º 610.º CC

- vd. al. a), n.º 1, art.º 674.º CPC

EM CONFORMIDADE COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE ESTE ALTO TRIBUNAL:

- admitir a presente revista

- deliberar conforme alegado nas conclusões da presente revista e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que mantenha a decisão de 1.ª instância nos precisos termos em que julgou ASSIM DECIDINDO FARÁ JUSTIÇA”.

10. Não houve contra-alegações.


II – Questões a decidir

Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, estão em causa as seguintes questões:

- se o repúdio da herança envolve ou não a diminuição da garantia patrimonial do crédito e, assim, se se verifica ou não o primeiro dos requisitos legais da impugnação pauliana (art. 610.º do CC);

- se o mecanismo técnico-jurídico de que o credor do repudiante pode lançar mão, para tutela dos seus interesses, é a sub-rogação dos credores, nos termos dos arts. 2067.º do CC e 1041.º do CPC.


III – Fundamentação

A) De Facto

É a seguinte a factualidade considerada como provada:

1.1. Corre termos neste juízo central cível, a execução comum n.º 3607/19…, Juiz …, instaurada em 26 de outubro de 2019 pela autora contra, entre outros, os 1.ºs e 2.º réus.

1.2. Essa execução tem por objeto o empréstimo n.º …381, concedido em 31 de março de 2016 pela autora à sociedade “E... -..., Unipessoal, Lda.”, no valor de € 690.000,00 (seiscentos e noventa mil euros).

1.3. Nesse contrato outorgaram também, na qualidade de garantes, os 1.ºs e 2.º réus.

1.4. Autora e, entre outros, 1.ºs e 2.º réus consignaram nesse contrato, com interesse, o seguinte:

a - a autora concedeu à referida sociedade, a seu pedido e no seu interesse, um empréstimo no montante € 690.000,00 (seiscentos e noventa mil euros)

b - o empréstimo era concedido pelo prazo de 237 (duzentos e trinta e sete) meses

c - o empréstimo seria reembolsado conforme o plano de reembolso anexo ao mesmo

d - o capital mutuado vencia juros à taxa anual nominal de 2,75%

e - as prestações de capital, de juros e demais obrigações eram exigíveis e deveriam ser pagas nas datas dos respetivos vencimentos, independentemente de qualquer aviso ou interpelação para o efeito

f - em caso de mora no pagamento de qualquer prestação de capital, de juros ou de outra obrigação, acresceria à taxa referida a sobretaxa de 3% sobre as quantias em dívida e pelo tempo em mora

g - em caso de mora no pagamento de qualquer prestação, a acrescer à referida sobretaxa, a autora poderia cobrar a comissão de recuperação dos valores em dívida, que não poderia ultrapassar os 4%.

1.5. Autora e, entre outros, 1.ºs e 2.º réus consignaram nesse documento, especificamente quanto a juros, o seguinte:

a - em caso de mora no pagamento de qualquer prestação ou obrigação seriam devidos juros moratórios, à taxa nominal aplicável, acrescida de 3 pontos percentuais

b - a autora poderia capitalizar os juros remuneratórios correspondentes a períodos não inferiores a 1 mês, ou caso houvesse carência de pagamento de juros correspondentes a períodos não inferiores a 3 meses, adicionando-os ao capital em dívida, para seguirem o regime deste

c - em caso de mora no pagamento de qualquer prestação, a acrescer à referida sobretaxa de juros moratórios, a autora poderia, querendo, cobrar a comissão de recuperação de valores em dívida, a qual não poderia exceder os 4%

1.6. Autora e, entre outros, 1.ºs e 2.º réus consignaram ainda nesse contrato, que estes se obrigavam a pagar as despesas, judiciais e extrajudiciais, que aquela suportasse, incluindo as com honorários de advogados, para reaver o seu crédito.

1.7. Bem como a pagar os impostos e encargos inerentes ao empréstimo e as relativas à constituição, execução e extinção das garantias associadas ao crédito.

1.8. Também na referida data, na Conservatória do Registo Predial de ... (“Casa Pronta”), autora e, entre outros, o 2.º réu outorgaram o “Título de Compra e Venda e Mútuo com Hipotecas”, em suma, nos seguintes termos:

“TÍTULO DE COMPRA E VENDA E MÚTUO COM HIPOTECAS (…)

B. IDENTIFICAÇÃO DOS INTERVENIENTES

B.1. PRIMEIRO - PARTE VENDEDORA E MUTUANTE/CREDORA HIPOTECÁRIA CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DO NOROESTE, CRL, (…) NIPC … (…)

(…)

B.2 SEGUNDO - PARTE COMPRADORA E MUTUÁRIA

B2. EIRA LONGA - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS TÉCNICOS AGROFLORESTAIS, UNIPESSOAL LDA., (…)

- A parte compradora e mutuária é representada neste ato por:

CC, (…) NIF …, (…).

B3. TERCEIRO - OUTROS INTERVENIENTES

a) CC, (…) NIF …, (…).

b) GG, (…) NIF …, (…).

(…)

D. IDENTIFICAÇÃO DOS PRÉDIOS

D1. ELEMENTOS DESCRITIVOS DOS PRÉDIOS

Prédio 1

1. Natureza: misto - duas moradas de casas, um …, com uma dependência e logradouro e outra … e … andar, para habitação, com logradouro, cultura arvense de regadio, terreno de pastagem, lameiro e mata mista;

2. Destino: habitação, cultura arvense de regadio, terreno de pastagem, lameiro e mata mista;

(…)

4. Situação: lugar ..., freguesia ..., concelho ...;

5. Inscrição matricial: …36 e …11 urbanos e …88 rústico (…)

Prédio 2

8. Natureza: rústica - denominado «...» (…)

11. Situação: lugar ..., freguesia ..., concelho ...

12. Inscrição matricial: …87

Prédio 3

15. Natureza: rústica (…)

18. Situação: lugar ..., da freguesia ...., concelho ...;

19. Inscrição matricial: 50… - Secção AP; (…)

Prédio 4

22. Natureza: urbana - casa de único andar (…)

25. Situação: lugar de ..., Rua ..., da freguesia de ..., concelho da ...

26. Inscrição Matricial: …90 (…)

Prédio 5

29. Natureza: rústica - denominado «...» (…)

32. Situação: lugar ..., da União de Freguesias ..., concelho ...;

33. Inscrição matricial: …, o qual corresponde ao artigo … da freguesia de ... (extinta)

(…) Prédio 6

36. Natureza: Urbana - Fração autónoma designada pela letra «H», correspondente ao ... (…)

(…)

39. Situação: lugar ..., da União das Freguesias ..., concelho ...

40. Inscrição matricial: …70 (…)

Prédio 7

43. Natureza: Urbana - fração autónoma designada pela letra «Q», correspondente ao bloco … - … (…)

(…)

46. Situação: lugar ..., da União das Freguesias ..., concelho ...

47. Inscrição matricial: …19 (…)

Prédio 8

50. Natureza: urbana - fração autónoma designada pela letra «R». correspondente ao bloco … - … (…)

(…)

53. Situação: lugar ..., da União das Freguesias…..., concelho ...

54. Inscrição matricial: …19 (…)

Prédio 9

57. Natureza: urbana - terreno destinado a construção - lote n.º …

(…)

60. Situação: lugar ..., União das Freguesias ..., concelho ...

61. Inscrição matricial: …95, o qual corresponde ao artigo …93 da freguesia ... (…) Prédio 10

64. Natureza: urbana - casa de dois pavimentos, alboio e rossios (…)

67. Situação: lugar …, freguesia ..., concelho ...

68. Inscrição matricial: … (…)

D2. SITUAÇÃO REGISTRAL

Prédio 1

Prédio descrito sob o número …17, da SIFF - Conservatória do Registo Predial ..., (…)

Prédio 2

Prédio descrito sob o número …18 da SIFF – Conservatória do Registo Predial ..., (…)

Prédio 3

Prédio descrito sob o número …92, da SIFF - Conservatória do Registo Predial ..., (…)

Prédio 4

Prédio descrito sob o número …65, da SIFF - Conservatória do Registo Predial ..., (…)

Prédio 5

Prédio descrito sob o número …33, da SIFF - Conservatória do Registo Predial ..., (…)

Prédio 6

Prédio descrito sob o número …18, fração H, da SIFF - Conservatória do Registo Predial ..., (…)

Prédio 7

Prédio descrito sob o número …29, fração Q, da SIFF -Conservatória do Registo Predial ..., (…)

Prédio 8

Prédio descrito sob o número …29, fração R, da SIFF -Conservatória do Registo Predial ..., (…)

Prédio 9

Prédio descrito sob o número …19, da SIFF - Conservatória do Registo Predial ..., (…)

Prédio 10

Prédio descrito sob o número …1, da SIFF - Conservatória do Registo Predial ..., (…)

E. COMPRA E VENDA

E.1.

A PRIMEIRA, pelo seu representante, vende à SEGUNDA -EIRA LONGA - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS TÉCNICOS AGROFLORESTAIS, UNIPESSOAL, LDA.. - os imóveis identificados por prédio 1 e prédio 2, supra identificados, pelo preço global de DUZENTOS E SESSENTA E SEIS MIL TREZENTOS E SESSENTA EUROS, correspondendo ao prédio 1 o valor de 159.770,00 euros e 106.590,00 euros ao prédio 2, que já recebeu.

(…)

E.3. ACEITAÇÃO

As partes declaram aceitar o negócio, nos termos exarados. F. MÚTUO COM HIPOTECA

F.1. A Caixa Agrícola, (…), concede à sociedade mutuária (…), um empréstimo no montante de SEISCENTOS E NOVENTA MIL EUROS.

O empréstimo é feito pelo prazo de duzentos e trinta e sete meses, a contar da presente data.

Do referido montante, a parcela de duzentos e sessenta e seis mil e trezentos e sessenta euros destina-se a financiar a aquisição acima realizada; o montante de quatrocentos e sete mil seiscentos e vinte e cinco euros e oitenta e dois cêntimos, para reestruturação dos créditos …436. …024 e …0620 e regularização das contas DO …495 e …125 da MUTUÁRIA e o montante de dezasseis mil e catorze euros e dezoito cêntimos para a atividade da MUTUÁRIA, (…), regulado nas condições estabelecidas do Anexo I, que fica anexo e a fazer parte integrante do presente título, (…).

F.2. O SEGUNDO confessa a sociedade mutuária, (…), devedora à CAIXA AGRÍCOLA das quantias mutuadas (…).

Por este título, O SEGUNDO outorgante constitui, em nome da sociedade MUTUÁRIA, sua representada, a favor da CAIXA AGRÍCOLA, hipoteca sobre os prédios 1 a 8.

Que ainda pelo presente título, os TERCEIROS - HIPOTECANTES, constituem a favor da CAIXA AGRÍCOLA, hipoteca sobre os prédios 9 e 10.

Que as hipotecas ora constituídas se destinam a garantir o bom e integral pagamento de:

a) Do capital mutuado de SEISCENTOS E NOVENTA MIL EUROS

b) Respetivos juros, (…), acrescida em caso de mora, da sobretaxa de três por cento (3%)

c) Despesas que a Caixa Agrícola faça, incluindo honorários de advogados e outros mandatários (…).

Que a presente hipoteca é constituída com a máxima amplitude lega (…).

(…)

F.3. As partes declaram aceitar o negócio, nos termos exarados. (…)

ANEXO I, (…).

CLAÚSULA PRIMEIRA (Objeto, Finalidade e Confissão de dívida)

1. A CAIXA AGRÍCOLA concede a pedido e a favor da MUTUÁRIA um empréstimo do montante de SEISCENTOS E NOVENTA MIL EUROS.

2. Da quantia mutuada, a parcela de duzentos e sessenta e seis mil e trezentos e sessenta euros destina-se a financiar a aquisição dos imóveis identificados no título de que este instrumento é anexo, o montante de quatrocentos e sete mil seiscentos e vinte e cinco euros e oitenta e dois cêntimos, para reestruturação dos créditos …436. …024 e …620 e regularização das contas DO …9495 e …125 da MUTUÁRIA e o montante de dezasseis mil e catorze euros e dezoito cêntimos para a atividade da MUTUÁRIA, (…).

(…)

CLÁUSULA SEGUNDA (Prazo e Reembolso)

1. O empréstimo é concedido pelo prazo de duzentos e trinta e sete meses, com início nesta data.

2. O capital será reembolsado em dezoito prestações anuais constantes de capital e juros, vencendo-se as prestações de capital após o referido período de carência de trinta e quatro meses, também a contar da data deste contrato, e cada uma das restantes no correspondente dia de cada ano subsequente, de acordo com o plano de reembolso em anexo (ANEXO I).

CLÁUSULA TERCEIRA (Juros)

1. A quantia mutuada vence juros, postecipados e contados dia a dia, (…).

2. A taxa de juro nominal atual é de dois vírgula setenta e cinco por cento (…).

3. Os juros são pagos postecipadamente, vencendo-se a primeira prestação em 26/12/2016, e cada uma das demais no correspondente dia de ano subsequente.

4. Em caso de mora no pagamento de qualquer obrigação ou quantia serão devidos pela MUTUÁRIA juros moratórios calculados à taxa que resultar da aplicação de uma sobretaxa anual de 3% (três) por cento a acrescer à taxa de juros remuneratórios em vigor

(…).

5. A CAIXA AGRÍCOLA pode capitalizar os juros remuneratórios (…).

6. Em caso de mora no pagamento de qualquer prestação, a acrescer à sobretaxa a que se refere supra o número quatro, a CAIXA AGRÍCOLA poderá, querendo, cobrar a comissão de recuperação de valores em dívida, a qual não poderá exceder 4% (…).

(…)

CLÁUSULA QUINTA (Condições gerais)

1. As prestações de capital, os juros e demais obrigações são exigíveis e devem ser pagas nas datas dos respetivos vencimentos, sem necessidade de qualquer aviso ou interpelação.

(…)

3. No empréstimo e pelas operações e atos processados ao abrigo deste contrato, incidem as comissões e encargos da «Tabela de Preçário» da CAIXA AGRÍCOLA, (…).

(…)

7. A MUTUÁRIA também se obriga ao seguinte:

a) Pagar os impostos e encargos, (…), bem como as despesas, judiciais ou extrajudiciais, que a CAIXA AGRÍCOLA faça para assegurar ou obter o pagamento dos seus créditos.

(…)

CLÁUSULA SEXTA (Incumprimento e exigibilidade)

1. O não cumprimento de quaisquer obrigações (…), produz o vencimento antecipado e a exigibilidade imediata de todas as obrigações, (…) e especialmente nos seguintes casos:

a) Se não for paga alguma das prestações de capital ou de juros, no respetivo prazo, ou os juros moratórios, as comissões, encargos e despesas (…).

(…)

CLÁUSULA SÉTIMA (Hipoteca)

1. O bom, integral e pontual cumprimento das obrigações e responsabilidades decorrentes deste empréstimo, designadamente o reembolso do capital, pagamento dos juros, comissões, despesas judiciais extrajudiciais e demais encargos, fica garantido pela primeira hipoteca sobre os imóveis identificados na escritura de que este documento complementar é anexo.

(…)”.

1.9. A autora concedeu à referida sociedade um empréstimo, no montante de € 690.000,00, tendo o integral cumprimento do mesmo ficado garantido pelas hipotecas sobre os prédios concretamente referidos no transcrito “Título de Compra e Venda e Mútuo com Hipotecas”, ou seja, sobre os seguintes imóveis:

- PRÉDIO MISTO, denominado de “Quinta ...”, sito no Lugar ..., freguesia ..., ..., composto de duas casas, uma de ..., com uma dependência e logradouro, e outra e … e … andar, para habitação, com logradouro, cultura arvense de regadio, terreno de pastagem, lameiro e mata mista, descrito na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o n.º …17 e inscrito na matriz predial urbana sob os artigos …36 e …11 e rústica sob o artigo …88;

- PRÉDIO RÚSTICO, sito em ..., Lugar ..., freguesia ..., ..., composto de eucaliptal, pinhal, lameiro, terreno de mato, pastagem e mata, descrito na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o n.º …18, inscrito na matriz sob o artigo …87;

 - PRÉDIO RÚSTICO, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., composto de cultura arvense, alfarrobeiras e oliveiras, descrito na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o n.º …92, inscrito na matriz sob o artigo …50;

- PRÉDIO URBANO, sito na freguesia ..., concelho ..., composto de andar único, descrito na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o n.º …65, inscrito na matriz sob o artigo …90 - PRÉDIO RÚSTICO, denominado de «...», sito em ..., freguesia de ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o n.º …33, inscrito na matriz sob o artigo …75;

- FRAÇÃO AUTÓNOMA, designada pela letra “Q”, sita na freguesia ..., ..., bloco …, composta …, primeira loja, …, descrita na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o n.º …29;

- FRAÇÃO AUTÓNOMA, designada pela letra “R”, bloco ..., composta ..., segunda loja, lado norte, sita em ..., freguesia ..., ..., descrita na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o n.º …29, inscrita na matriz sob o artigo …...19.

- PRÉDIO URBANO, situado em ..., freguesia ..., ..., composto de terreno destinado a construção, lote n.º …, descrito na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o n.º …11, inscrito na matriz sob o artigo …95;

- PRÉDIO URBANO, situado em Costa, freguesia ..., ..., composto de casa com dois pavimentos, alboio e rossios, inscrito na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o n.º 1, inscrito na matriz sob o artigo …28. A autora registou a ser favor, respetivamente, cada uma dessas hipotecas sobre os prédios concretamente referidos pelas Aps. De 31/3/2016 – docs. 4 a 12.

1.11. Também como garantia do cumprimento das obrigações assumidas no referido contrato, foi entregue à autora uma livrança em branco, subscrita pela sociedade mutuária - cfr. doc. n.º 13 junto com a p.i.

1.12. A referida livrança foi avalizada por, entre outros, 1.ºs e 2.º réus, assumindo-se estes responsáveis perante a autora pelo pagamento da dívida, em caso de incumprimento por parte da sociedade mutuária.

1.13. Sendo que, ficou desde logo estipulado que, em caso de incumprimento, a autora ficaria autorizada a completar o preenchimento da referida livrança pelo valor em dívida, o que fez.

1.14. Nem a sociedade mutuária, nem os referidos garantes pagaram a prestação do empréstimo que se venceu em 31 de Dezembro de 2018.

1.15. A autora, face a tal incumprimento, remeteu, entre outros, aos 1.ºs e 2.º réus avisos sucessivos por escrito, alertando-os para tal incumprimento e consequente vencimento de todo o crédito - cfr. docs. n.ºs 14 a 16 juntos com a p.i..

1.16. Entre outros, os referidos réus mantiveram o incumprimento, apesar de tais advertências, pelo que a autora considerou vencido todo o empréstimo e encargos acessórios.

1.17. Deste modo, no dia 11 de Outubro de 2019, entre outros, os 1.ºs e 2.º réus deviam à autora, relativamente ao empréstimo em crise, os seguintes valores:

a - € 690.000,00 de capital em dívida

b - € 33.464,57 de juros compensatórios

c - € 1.468,35 de juros de mora sobre capital d - € 873,11 de juros de mora sobre juros

e - € 415,00 de comissões

f - € 1.448,84 de imposto de selo, no total de € 727.669,87 (setecentos e vinte e sete mil, seiscentos e sessenta e nove euros e oitenta e sete cêntimos).

1.18. Sobre esse montante continuam a vencer-se juros no valor diário de € 114,34(cento e catorze euros e trinta e quatro cêntimos), o que perfaz, no dia 24 de outubro de 2019, o total de juros diários em dívida de € 1.486,42 mil, quatrocentos e oitenta e seis euros e quarenta e dois cêntimos).

1.19. Elevando, deste modo, o montante global em dívida, no dia 24 de Outubro de 2019, para € 729.156,29 (setecentos e vinte e nove mil, cento e cinquenta e seis euros e vinte e nove cêntimos).

1.20. O referido montante em dívida é ainda acrescido das despesas, judiciais e extrajudiciais, que a autora tenha de suportar na recuperação do seu crédito, incluindo-se honorários de advogado.

1.21. Por isso, foi instaurada a execução supra referida em 1.1. com o respetivo anexo de indicação de bens à penhora.

1.22. Em 07 de agosto de 2017, faleceu FF, pai do réu AA, sogro da ré BB e avô dos 2.º, 3.º e 4.º réus.

1.23. Na sequência, no dia 28 de novembro de 2017, compareceram no cartório notarial da notária QQ, sito em ..., os 1.ºs réus, tendo em escritura denominada de “Repúdio de Herança” feito consignar o seguinte:

“(…)

REPÚDIO DE HERANÇA (…)

PRIMEIROS

AA, contribuinte número ..., (…), e mulher BB, contribuinte número …,

(…). (…)

DECLAROU O PRIMEIRO OUTORGANTE VARÃO:

Que pela presente escritura, repudia a herança aberta por óbito de seu pai, FF, falecido a sete de agosto de dois mil e dezassete, (…).

(…)

Que tem como única descendência sucessível três filhos: 1) CC, (…)

2) DD, (…) 3) EE, (…)

DECLAROU A PRIMEIRA OUTORGANTE MULHER:

Que presta consentimento ao seu cônjuge para a prática do presente ato.

(…)”.

- cfr. doc. n.º 20 junto com a p.i.

1.24. Essa herança é composta por, entre outros, os seguintes imóveis:

- PRÉDIO URBANO, sito na freguesia ..., concelho..., composto por casa de habitação com dois pavimentos e leira de lavradio, inscrito na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o n.º …90 e inscrita na matriz sob o artigo …07

- PRÉDIO RÚSTICO, sito na freguesia ..., concelho ..., com 2.950 m², inscrito na matriz sob o artigo …01, que confronta a Norte com Caminho Público, a Sul com HH, a Nascente com Estrada e a Poente com II

- PRÉDIDO RÚSTICO, sito na freguesia ..., concelho ..., com 600 m², inscrito na matriz sob o artigo …01, que confronta a Norte, Sul e Nascente com JJ e a Poente com LL

- PRÉDIO RÚSTICO, sito na freguesia ..., concelho ..., com 950 m², inscrito na matriz sob o artigo ...30, que confronta a Norte com Estrada Nacional, a Sul com Limite de Freguesia, a Nascente MM e a Poente com Limite de Freguesia e NN - cfr. docs. n.ºs 21 a 26 juntos.

1.25. Em concreto, o real valor do prédio urbano referido no ponto anterior à data do repúdio era de €92.000,00, e actualmente €84.500,00.

1.26. Por seu turno, o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ..01. e melhor descrito em 1.24. à data do repúdio valia €40.800,00 e actualmente €42.000,00.

1.27. Na sequência, o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ..30. tinha à data do repúdio o valor de €550,00 e actualmente tem o valor de €600,00.

1.28. Por último, o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo …30, tinha à data do repúdio o valor de €32.600,00 e actualmente o valor real de mercado de € 33.600,00.

1.29. O valor real dos 4 imóveis que constituem a herança referida é de € 160.700,00 (cento e sessenta mil e setecentos euros).

1.30. O falecido FF deixou como herdeiros a sua esposa, OO e os dois filhos do casal – PP e o réu AA - cfr. doc. n.º 21 já junto.

1.31. Pelo que a quota hereditária do réu AA na herança aberta por óbito do seu pai é de cerca de € 26.000,00.

1.32. O empréstimo referido foi concedido pela autora à sociedade também para reestruturação dos créditos n.ºs …436, …024 e …620 junto daquela - cfr. ponto 2., cláusula primeira no doc. n.º 3 junto com a p.i.

1.33. Bem como, para regularização das contas de depósito à ordem n.º …495 e …125 que essa sociedade detinha junto da autora -cfr. ponto 2., cláusula primeira no doc. n.º 3 junto com a p.i..

1.34. O que era do conhecimento dos 1.ºs réus, visto que o 2.º réu é sócio gerente da referida sociedade “Eira Longa” e é filho do 1.º réu marido e neto do falecido FF e filho da avalista OO.

1.35. Foram os 1.ºs réus a diligenciar junto do cartório notarial pela marcação da transcrita escritura de “Repúdio de Herança”, tendo disponibilizado aí todos os documentos necessários.

1.36. Foram também os 1.ºs réus que pagaram os emolumentos dessa escritura, o imposto de selo e demais encargos.

1.37. Os 2.º, 3.º e 4.º réus não exercem, ou alguma vez exerceram, qualquer poder de facto ou de direito sobre os ditos prédios.

1.38. Desde 31 de dezembro de 2018, a autora detém sobre, entre outros, os 1.ºs e 2.º réus um crédito, no valor atual de € 729.156,29.

1.39. O réu AA repudiou o seu direito na herança aberta por óbito de seu pai.

1.40. Os 1.ºs réus tinham conhecimento das dívidas da sociedade “Eira Longa - ......” a vários credores, nomeadamente, à autora.

1.41. E estavam também perfeitamente conscientes do risco desses credores, mormente a autora, instaurarem execuções contra si, promovendo a penhora e venda judicial do referido “quinhão” e, consequentemente, dos imóveis antes identificados.

1.42. Os 1.ºs réus resolveram, então e desde logo, outorgar a dita escritura de “Repúdio de Herança”, a fim de impedir a satisfação do crédito futuro da autora: o património dos 1.ºs réus ingressaria na esfera jurídica dos 2.º, 3.º e 4.º réus, acabando por não responder pela dívida descrita.

1.43. Os 1.ºs réus não dispõem de quaisquer outros bens suscetíveis de penhora e satisfação do crédito da autora.

1.44. Entre outros, os 1.ºs e 2.º réus obrigaram-se expressamente a reembolsar a autora de todas as despesas que esta tivesse de suportar na recuperação do seu crédito.

1.45. À data da celebração do contrato de compra e venda e mútuo a sociedade “Eira Longa” tinha já acumuladas dívidas junto da própria autora.

1.46. Qualquer diligência executiva dirigida ao 1.º réu estaria destinada ao fracasso, visto o mesmo não dispor formalmente de quaisquer bens penhoráveis.

1.47. A sociedade comercial “EIRA LONGA – Prestação de Serviços Técnicos Agroflorestais, Unipessoal, Lda.”, sociedade de que o 2.º Réu é sócio e gerente, celebrou em 31 de Março de 2019 um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca – cf. fls. 34 e ss.

1.48. Mediante a celebração do supra referido contrato, a Autora mutuou àquela sociedade comercial o montante total de €690.000,00 (seiscentos e noventa mil euros).

1.49. Da quantia mutuada, €266.360,00 destinaram-se à aquisição dos seguintes prédios:

- Prédio misto denominado por Quinta ..., sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., composto por duas moradas de casas, uma ..., com uma dependência e logradouro e outra ... e 1.º andar, para habitação, com logradouro, cultura arvense de regadio, terreno de pastagem, lameiro e mata mista, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número …17 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o art.º …36 e …11 e na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o art.º ...88

- Prédio rústico denominado “...”, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., composto por eucaliptal, pinhal, lameiro, terreno de mato, pastagem e mata, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número …18 e inscrito na matriz predial rústica da freguesia..... sob o art.º ….87

1.50. Ao prédio misto corresponderia o valor de €159.770,00 e ao prédio rústico o montante de €106.590,00.

1.51. O valor restante da quantia mutuada, no montante de €407.625,00, tal como resulta do referido contrato, destinou-se à reestruturação dos créditos ….436, …024 e …620 e à regularização das contas DO …495 e …125 e a quantia restante de €16.014,18 para financiar a actividade da sociedade comercial mutuária, não lhe podendo ser dado outro uso ou destino.

1.52. Para garantia de bom, integral e pontual cumprimento das obrigações assumidas, foram constituídas hipotecas sobre os prédios supra identificados, bem como sobre outros prédios, rústicos e urbanos, prédios propriedade da sociedade comercial “EIRA LONGA - Prestação de Serviços Técnicos Agroflorestais, Unipessoal, Lda.”, do gerente daquela e 2.º Réu nos presentes autos e, ainda, de GG.

1.53. Foram assim igualmente constituídas hipotecas sobre os seguintes bens:

a) Prédio rústico sito em Lugar ..., freguesia ..., concelho..., composto por cultura arvense, alfarrobeiras e oliveiras, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número …92 e inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... sob o art.º …50-secção AP;

b) Prédio urbano, sito no Lugar ..., Rua ..., freguesia ..., concelho ..., composto por casa de único andar, descrito na Conservatória do Registo Predial …. sob o número …65 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o art.º …75;

c) Prédio rústico, denominado “...”, sito no Lugar ..., União das Freguesias ..., concelho ..., composto por pinhal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número …33 e descrito na matriz predial rústica da União das Freguesias ... sob o art.º …75;

d) Fracção autónoma designada pela letra “H”, correspondente ao ..., sita no lugar ..., União das Freguesias ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número …18 e descrito na matriz predial urbana da União das Freguesias ... sob o art.º …70;

e) Fracção autónoma designada pela letra “Q”, correspondente ao bloco ... – ... – primeira loja, lado direito, destina a comércio, sita no lugar ..., da União das Freguesias ..., concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o número …29 e inscrita na matriz predial urbana da União das Freguesias ... sob o art.º …19;

f) Fracção autónoma designada pela letra “R”, correspondente ao bloco ..., ..., segunda loja, lado norte, destinada a comércio ou serviços, sita no Lugar de ..., União das Freguesias de ..., concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número …29 e inscrita na matriz predial urbana da União das Freguesias de ... sob o art.º …19;

g) Prédio urbano, composto por terreno para construção, lote n.º …, sito no Lugar de ..., União das Freguesias de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número …29 e descrito na matriz predial urbana da União das Freguesias ... sob o art.º …19;

h) Prédio urbano, composto por casa de dois pavimentos, alboio e rossios, sita no Lugar …, freguesia ..., concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o número … e inscrita na matriz predial urbana da freguesia ... sob o art.º …28. (Cfr. Contrato de Contra e Venda e Mútuo com Hipotecas, junto com a petição inicial como Doc. n.º 2).

1.54. Ainda como garantia do bom e integral cumprimento do contrato de mútuo celebrado, foi entregue como garantia à Autora uma livrança em branco, subscrita pela sociedade comercial “EIRA LONGA – Prestação de Serviços Técnicos Agroflorestais, Unipessoal Lda.” e avalizada pelos 1º e pelo 2.º Réus, bem como por GG. – Cfr. Doc. n.º 13 junto pela Autora com a petição inicial.

1.55. No âmbito do contrato de compra e venda e mútuo com hipotecas ficou acordado o plano de pagamento em prestações melhor descrito no documento de fls. 28 vº dos autos cujo teor se dá aqui por reproduzido.

1.56. O incumprimento de tal plano ocorreu com o não pagamento da prestação do empréstimo vencida em 31/12/2018.

1.57. A escritura pública de repúdio da herança foi celebrada a 28 de Novembro de 2017.

1.58. Não obstante o 1.º Réu marido ser pai do 2.º Réu, é o 2.º Réu, e não aquele, quem é sócio e gerente da sociedade comercial mutuária “EIRA LONGA Prestação de Serviços Técnicos Agroflorestais, Unipessoal, Lda.”

1.59. Quem avalizou a livrança subscrita pela sociedade comercial mutuária entregue à Autora foi a mãe do 2.º e 3.º Réus, GG.


Factos julgados Não Provados:

2.1. Os 1.ºs réus tinham já, então, a noção de que a sociedade “Eira Longa - …”, em virtude da situação económica difícil em que se encontrava, não iria conseguir pagar as suas dívidas.

2.2. Por tal efeito, na qualidade de avalistas do empréstimo referido, os 1.ºs réus sabiam que seriam responsabilizados pelo pagamento decorrente do aval pelos mesmos prestado.

2.3. Os 1.ºs réus tinham, pois, perfeita consciência do risco que o seu património pessoal corria para eventual satisfação dos credores da sociedade “Eira Longa - …”, nomeadamente a autora.

2.4. O 2.º réu falou então com os 1.ºs réus, dando-lhes conhecimento do risco sério do “quinhão” hereditário do réu AA ser executado pelos credores da referida sociedade.

2.5. E, por tal efeito, perder a propriedade dos prédios descritos em 30.º da petição inicial, pois que, o “quinhão” hereditário do réu AA poderia ser objeto de penhora e posterior venda judicial.

2.6. Assim, acordaram os réus, em conluio, que, por forma a evitar tal desiderato, o réu AA teria de repudiar ficticiamente o seu direito na herança do seu pai FF, sendo que, a ré BB, também ficticiamente, daria o seu consentimento a tal ato de repúdio, dando também disso conhecimento aos 3.º e 4.º réus, por forma a que, desse modo, os 1.ºs réus ficassem, apenas formalmente, desprovidos de quaisquer bens suscetíveis de penhora, uma vez que, esses bens seriam, dessa forma, “transferidos” para o património dos filhos do 1º Réu - os 2.º, 3.º e 4.º réus, deste modo, assegurando que o seu direito na herança referida não seria afetado pelos credores da sociedade “Eira Longa - ..”, mormente, pela autora.

2.7. Consequentemente, o referido “quinhão” repudiado apenas figuraria ficticiamente no património dos 2.º, 3.º e 4.º réus, continuando, na verdade, e na respetiva proporção, o 1.º réu a ser o legítimo adquirente do mesmo.

2.8. Deste modo, os 1.ºs réus asseguravam que não perderiam o seu direito sobre esse “quinhão” e, em consequência, sobre os prédios referidos em 30.º da petição inicial.

2.9. A ré BB entendeu perfeitamente as explicações e todo o propósito antes descrito, tendo aceitado de imediato participar em tal estratagema, bem como entendeu a já referida possibilidade de vir a autora a adquirir parte desses prédios e, mais tarde, poder requerer a indivisibilidade dos mesmos.

2.10. Assim, os 1.ºs réus não entregaram, nas respetivas proporções, aos 2.º, 3.º e 4º réus quaisquer bens pertencentes a esse “quinhão” hereditário e, pois, estes também não os receberam.

2.11. O réu AA não quis na realidade repudiar a sua quota na herança aberta por óbito de seu pai e a ré BB não quis, correspondentemente, dar o seu consentimento a tal acto de repúdio.

2.12. São apenas, entre outros, os 1.ºs réus que entram e permanecem nos prédios pacificamente e usufruem dos mesmos como bem entendem, designadamente quem limpa, conserva e cuida desses prédios, bem como colhem os frutos provenientes dos mesmos, sem oposição de quem quer que seja e à vista de todos.

2.13. São também, entre outros, os 1.ºs réus quem paga o IMI devido à fazenda nacional e todas as despesas relativas a esses prédios.

2.14. O motivo que levou a que o 1.º Réu Marido repudiasse a herança aberta por óbito do seu pai reside no facto de o mesmo se encontrar desavindo com o seu irmão, bem como ao facto de o mesmo ser casado em segundas núpcias com a 1.ª Ré mulher e ter três filhos, dois deles, o 2.º e o 3.º Réus, filhos do seu primeiro casamento, e ser seu entendimento que repudiando aquela herança os seus três filhos ficariam em pé de igualdade em relação aos direitos que cada um iria adquirir na mesma - igual proporção de 1/6 daquela herança, o que não sucederia caso o 1.º Réu marido não renunciasse à mesma e viesse a falecer antes da sua esposa, a 1.ª Ré mulher.

2.15. É única e exclusivamente o 2.º Réu quem gere e administra, de forma independente a autónoma a sociedade comercial Eira Longa., da qual é o único sócio.

2.16. Não obstante a relação de parentesco existente entre o 1.º Réu marido e o 2.º Réu, este não tem qualquer tipo de participação na gestão ou administração da sociedade comercial de que o seu filho é gerente e único sócio.

2.17. O 1.º Réu marido antes de repudiar a herança a que tinha direito por óbito do seu pai, tal como já era sua real vontade, teve oportunidade de propor à Autora que o mesmo fosse dado como garantia do bom e integral cumprimento das obrigações assumidas pela sociedade mutuária, em 54 substituição de algum dos bens anteriormente dados em garantia e sobre os quais foi constituída hipoteca voluntária.

2.18. Nessa altura a Autora não mostrou qualquer interesse no referido quinhão hereditário”.

B) De Direito

Questão de saber se o repúdio da herança envolve ou não a diminuição da garantia patrimonial do crédito e, assim, se se verifica ou não o primeiro dos requisitos legais da impugnação pauliana (art. 610.º do CC)

O cumprimento das obrigações é assegurado pelos bens que integram o património do devedor, que é a garantia geral e comum das obrigações. Conforme o art. 601.º do CC, pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora. A lei não se limita a conceder ao credor o direito de promover a execução forçada da prestação, no caso de o devedor não cumprir voluntariamente, e se ressarcir à custa do património do obrigado, se a realização da prestação não for possível. Concede-lhe ainda os meios necessários para defender a sua posição contra os atos praticados pelo devedor, capazes de prejudicarem a garantia patrimonial da obrigação, diminuindo a consistência prática do seu direito de agressão sobre os bens do obrigado.

a) A impugnação pauliana

1. Em abstrato, podem ser objeto de impugnação pauliana todos os atos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do credor comum que não sejam de natureza pessoal (art. 610.º do CC).

2. Os arts. 610.º e 612.º do CC estabelecem os requisitos cumulativos da impugnação pauliana. Assim, conforme o art. 610.º, são objeto de impugnação pauliana os atos, via de regra praticados pelo devedor, que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e que não sejam de natureza pessoal.

3. Este meio de conservação da garantia patrimonial assume uma função cautelar e conservatória da garantia patrimonial.

b) O repúdio da herança não envolve diminuição da garantia patrimonial do crédito

1. A impugnação pauliana pressupõe a verificação de um prejuízo (eventus damni) causado pelo ato impugnado: a diminuição da garantia patrimonial do crédito. Esse prejuízo pode traduzir-se numa diminuição da garantia patrimonial tout court (decorrente de atos praticados a título gratuito ou oneroso, mas, neste caso, mediante a perceção de contrapartida inadequada), numa alteração patrimonial qualitativa suscetível de afetar negativamente a garantia patrimonial (substituição de bens dotados de liquidez em sede executiva por bens dificilmente alienáveis e/ou facilmente ocultáveis) ou numa destinação do património (mediante a prática de atos que, todavia, deixam inalterado o património em quantidade e qualidade).

2. O conhecimento do prejuízo para o credor (consilium fraudis) não é pressuposto da impugnação pauliana de atos praticados a título gratuito - ou de atos substancialmente neutros por não configurarem atribuições patrimoniais e, por isso, não serem suscetíveis de ser qualificados como onerosos ou gratuitos, como a renúncia abdicativa e, se fosse impugnável, eventualmente, a “renúncia” obstativa ou impeditiva.

3. O sucessível chamado, ao repudiar, não está a alienar bens que tenha adquirido por via sucessória, o que, por si só, demarca o repúdio da situação típica da impugnação pauliana. Como não consubstancia qualquer alienação ou oneração dos bens do devedor, o repúdio não implica qualquer diminuição da garantia patrimonial do devedor mediante a redução do respetivo ativo ou aumento do passivo.

4. O repúdio não acarreta, pois, qualquer alteração in pejus da garantia patrimonial do crédito, pois não está em causa um ato de disposição, a constituição de garantias reais ou pessoais ou a assunção de obrigações. O repudiante não se despoja de qualquer valor que compusesse já o seu património.

5. Não envolvendo o repúdio da herança qualquer diminuição da garantia patrimonial do crédito, não se verifica o primeiro dos requisitos legais da impugnação pauliana previstos no art. 610.º do CC, o que obsta à procedência da mesma.

6. Daqui decorre igualmente que a impugnação pauliana da escritura de “Repúdio da Herança” não se traduz no mecanismo adequado para o efeito pretendido pela Autora/Recorrente.

c) O repúdio da herança não é uma verdadeira e própria renúncia

1. O repúdio da herança não é uma verdadeira e própria renúncia, pois que, por não consubstanciar uma disposição extintiva sem contrapartida, não tem natureza abdicativa. Traduz-se antes numa simples omissio dquirendi, i.e., numa “renúncia”[1] preventiva, impeditiva ou obstativa. Pode, a este propósito, falar-se de recusa em lugar de renúncia[2].

7. Na medida em que na ordem jurídica portuguesa a herança apenas se adquire com a aceitação (art. 2050.º do CC), no repúdio não estão em causa direitos hereditários anteriormente adquiridos pelo devedor, porquanto este nunca aceitou, expressa ou tacitamente, a herança a que foi chamado. Não pode, pois, referir-se, nesta sede, a ampla faculdade de disposição que, em geral, caracteriza do direito subjetivo. Por isso, não sendo um ato de disposição patrimonial, não se se verifica, desde logo, o primeiro pressuposto da impugnação pauliana: “ato que envolva diminuição da garantia patrimonial” (art. 610.º do CC). Não se coloca a questão do seu caráter gratuito ou oneroso, porquanto se pode dizer, conforme referido supra, que o repúdio é um ato substancialmente neutro em virtude de não ser um ato de disposição e não configurar uma atribuição patrimonial. Consequentemente, não se pode pretender a sua assimilação a uma doação indireta em virtude do efeito patrimonial reflexo ou mediato que possa produzir ex lege na esfera dos sucessíveis subsequentes. É que a manifestação unilateral de vontade do repudiante tem apenas em vista a não aquisição da herança – i.e., recusá-la - e, consequentemente, o efeito de o considerar retroativamente como não chamado, salvo para efeitos de representação (art. 2062.º do CC). Não existe qualquer animus donandi. Trata-se de uma mera omissio adquirendi, de um ato negocial de exercício negativo do direito de suceder que impede a aquisição do domínio e da posse dos bens da herança. Reitera-se, pois, que a aquisição da herança não opera, entre nós, automaticamente, pressupondo antes a declaração de vontade de aceitação por parte do sucessível chamado (por força do adágio semel heres semper heres). Não pode, por conseguinte, dizer-se que o repúdio acarreta uma diminuição do património do repudiante, pois este não adquiriu qualquer direito hereditário, nem tão pouco adquiriu a qualidade de herdeiro, porquanto não se verificou qualquer transmissão hereditária ipso iure. Ao tempo do repúdio, os bens da herança repudiada não integram (nunca integraram e não virão a integrar) o património do repudiante, encontrando-se numa situação de indeterminação ou transitoriedade – de jacência -, pois deixaram de ser do de cujus e estão à espera de ser adquiridos pelos sucessíveis subsequentes, pelos chamados subsequentes à herança. Na nossa ordem jurídica, o chamamento à herança concebe-se, não como atribuição provisória ou eventual de uma titularidade hereditária que tem lugar no momento da morte do causante, mas antes como faculdade de optar entre adquirir e ser herdeiro, se aceita, ou não o ser, se repudia. Os bens da herança repudiada não ficam abandonados nem se transmitem a terceiro, pois é a lei – ou o causante - que estabelece o seu destino mediante o recurso diferentes institutos jurídicos. A herança ou quinhão repudiado é objeto de nova vocação a favor de outros sujeitos, designadamente mediante o ius repraesatentionis (art. 2062.º, in fine, do CC), que protege os descendentes do repudiante.

8. Na esfera jurídica do repudiante encontrava-se apenas o direito de aceitar ou repudiar a herança. Este direito, no caso de o sucessível chamado à herança falecer sem a haver aceitado ou repudiado, transmite-se aos seus herdeiros (art. 2058.º, n.º 1, do CC). Mas objeto do repúdio é a herança e não o próprio direito de a aceitar, apesar de o repudiante ser considerado como não chamado (eficácia ex tunc do repúdio; o repudiante fica definitivamente excluído da sucessão, com efeitos que se retrotraem ao momento da morte do causante). Trata-se do exercício em sentido negativo do direito de suceder. O chamado é titular de um poder sem caráter de patrimonialidade - insuscetível de ser alienado ou cedido a terceiro -, que pode ser exercido mediante a aceitação ou o repúdio.

9. O repúdio não deixa nunca de ser expressão do exercício em sentido negativo do ius delationis, do qual deriva e no qual encontra a sua origem, ainda que os seus efeitos se assemelhem aos de uma renúncia preventiva, impeditiva ou obstativa. Tratando-se, pois, de uma manifestação do exercício do ius delationis no seu sentido negativo, é, consequentemente, expressão de rejeição ou recusa, não só daquilo a que o sucessível foi chamado e que, portanto, não é seu, não estando nem integrando o seu património, mas também da aquisição da qualidade ou da condição de herdeiro, sem determinar o destino desses bens nem receber qualquer contrapartida. Impede a entrada no seu património daqueles bens, porção ou quota da herança a que foi chamado. Como que se verifica uma perda passiva (e não ativa), na medida em que não saem bens do património do repudiante, mas se impede a entrada de um ganho que obteria se aceitasse a herança.

10. Tratando-se de um ato obstativo ou impeditivo de uma aquisição – omissio adquirendi – de uma situação jurídica complexa, ao qual o património do devedor se revela indiferente, não sofrendo qualquer modificação, não se permite ao credor o recurso à impugnação pauliana. O repúdio não determina uma diminuição do património do repudiante, mas tão somente uma falta de aquisição. Justamente por se traduzir no impedimento de uma aquisição de uma situação jurídica complexa e, por isso, não conformar um ato de disposição e consequente empobrecimento patrimonial sem contrapartida, não se lhe aplica o instituto da impugnação pauliana. Com efeito, se o direito ou situação jurídica complexa cuja aquisição se impede ainda não havia ingressado na esfera jurídica do repudiante, não há um ato de empobrecimento passível de impugnação pelos credores[3].

11. Por outro lado, se o repúdio fosse considerado ineficaz perante o credor impugnante, na estrita medida em que os respetivos efeitos fossem suscetíveis de lesar os seus interesses, não teria lugar, como consequência imediata, um incremento patrimonial do devedor, afigurando-se antes necessária, para esse efeito, a prática de outro ato. É que aquela ineficácia do ato de repúdio não consente, in casu, de per si, uma expansão da garantia patrimonial e a satisfação do credor. Essa declaração de ineficácia seria, pois, inutiliter data, porque não poderia entender-se que a impugnação do repúdio pelos credores vale como aceitação da herança em seu benefício. O acolhimento de uma demanda que não consente obter o bem jurídico visado pela ação, segundo a correspondente conformação normativa, não pode considerar-se compatível com o instituto previsto pelo legislador.

12. O credor não pode lançar mão da impugnação pauliana, pois que o repúdio tem, de per si, consequências patrimoniais totalmente neutras, não se verificando a existência de um ato que envolva diminuição da garantia patrimonial. O repúdio não se traduz num ato idóneo a constituir um vulnus da garantia patrimonial de que gozam os credores. A impugnação pauliana teria unicamente o efeito de tornar o repúdio ineficaz perante o credor, na medida em que fosse lesado pelos seus efeitos, não comportando qualquer consequência restitutória e não permitindo ao credor agir in executvis. Por conseguinte, à impugnação pauliana seguir-se-ia a sub-rogação do credor ao devedor e, depois, a executibilidade dos bens que competissem ao devedor.

13. A “renúncia” meramente impeditiva ou obstativa ou recusa, enquanto ato neutro não dispositivo, diferentemente da renúncia abdicativa, que é um ato neutro dispositivo, encontra-se, em princípio, fora do âmbito da impugnação pauliana, por não resultar em qualquer empobrecimento patrimonial do devedor[4].

14. De qualquer modo, a qualificação do repúdio como renúncia não tem consequências práticas, porque a lei disciplina, de modo como que integral, os respetivos efeitos, limites e forma, assim como prevê o mecanismo de tutela dos credores do repudiante.

d) O repúdio é um ato de natureza pessoal

1. De acordo com o art. 610.º do CC, não podem ser objeto de impugnação pauliana os atos do devedor de natureza estritamente pessoal, nem as respetivas consequências legais de natureza patrimonial. Trata-se de atos de conteúdo não patrimonial, i.e., não suscetíveis de avaliação pecuniária. Como estes atos não afetam diretamente a garantia patrimonial do crédito constituída pelo património do devedor, a sua impugnabilidade não tem razão de ser. Apesar de poderem produzir efeitos indiretos ou reflexos no património do credor, levando em devida linha de conta as razões de ordem pública que lhes estão subjacentes, não se admite a impugnação pauliana restringida às consequências imperativas legalmente estabelecidas de caráter patrimonial dos atos de natureza pessoal[5].

2. O repúdio, além de ser um negócio jurídico unilateral, singular, não recipiendo, irrevogável, insuscetível de ser sujeito a termo ou condição e indivisível, é também um negócio jurídico pessoal[6].

3. A atribuição do ius delationis faz-se intuitu personae, em consideração e em contemplação da pessoa do sucessível tanto pela lei como pelo causante. O ius delationis reveste-se, por isso, no seu exercício, de natureza pessoal. Está em causa o caráter pessoal da decisão de adquirir – ou não - a qualidade de herdeiro. Apenas o sucessível chamado o pode exercer. De resto, os credores dispõem da denominada ação sub-rogatória (art. 2067.º do CC). A natureza pessoal do direito de suceder resulta também do regime da actio interrogatoria consagrado no art. 2049.º do CC.

4. Aliás, a expectativa dos credores de se satisfazerem sobre os bens da herança a que o devedor é chamado é incerta e relativa, pois o ius delationis, que é incoercível, no seu exercício, depende exclusivamente da vontade do sucessível, dado o caráter intuitu personae da sucessão. Isto obsta tanto à impugnação pauliana do repúdio da herança (arts. 610.º e ss do CC) como à sub-rogação do credor ao devedor no exercício do direito de aceitar a herança (arts. 606.º e ss, e art. 2049.º do CC).

5. Revestindo-se o repúdio de natureza pessoal, não se verifica o segundo dos requisitos legais da impugnação pauliana previstos no art. 610.º do CC, o que impede a procedência da mesma.

6. Daqui decorre também que a impugnação pauliana da escritura de “Repúdio da Herança” não consubstancia o mecanismo adequado para o efeito pretendido pela Autora/Recorrente.


Questão de saber se o mecanismo técnico-jurídico de que o credor do repudiante pode lançar mão, para tutela dos seus interesses, é a sub-rogação dos credores, nos termos dos arts. 2067.º do CC e 1041.º do CPC

1. O repúdio da herança implica o afastamento de certos bens que, a ser aceite o convite envolvido na vocação, viriam a integrar o património do devedor sucessível. Por isso mesmo, o repúdio pode implicar prejuízo para os credores do repudiante, que se veem impedidos de realizar o seu crédito à custa dos bens da herança, uma vez perdida a qualidade de património autónomo que a caracteriza. Está aqui em causa a função externa do património, como garantia comum dos credores. Compreende-se, pois, a atribuição, aos credores, de meios de reação ao repúdio, uma vez que é suscetível de afetar negativamente a garantia patrimonial (e geral) dos credores, em que se fundam os meios de conservação dessa garantia[7].

2. Não deve, todavia, descurar-se que o princípio da responsabilidade patrimonial do devedor e os correspondentes meios de assegurar a garantia dela decorrente pressupõem que os bens em causa estejam ou tenham estado no património do devedor, ou, pelo menos, venham (ou possam vir) a estar. Na verdade, nenhuma destas situações se verifica no caso de repúdio da herança, pelos menos em sistemas jurídicos, como o português, em que a aquisição sucessória depende de aceitação. O devedor que repudia a herança não adquiriu, nem virá a adquirir os bens que a integram[8].

3. A necessidade de não deixar os credores pessoais do repudiantes privados de tutela, dada a inaplicabilidade dos institutos gerais como a sub-rogação do credor ao devedor (arts. 606.º e ss do CC) e a impugnação pauliana (arts. 610.º 3 ss do CC), conduziu, pois, o legislador a consagrar o regime previsto no art. 2067.º do CC, conciliando o princípio da autonomia decisória do sucessível chamado e a indefetível exigência de salva... dos credores. Daqui resulta uma composição equitativa dos interesses em conflito.

4. É que a aceitação da herança pode aumentar a solvibilidade ou diminuir a insolvibilidade do devedor. O repúdio, por seu turno, traduzindo-se numa omissio adquirendi, além de frustrar as expectativas dos credores, é também passível de causar prejuízo aos seus interesses, pois impede a entrada, no património do devedor repudiante, de bens à custa dos quais poderiam satisfazer os seus direitos. Está em causa a perda da oportunidade de poder adquirir, de ver aumentado o património, mas não uma diminuição desse património, porque não há alienação, cessão ou transmissão de bens, nem saída de bens do mesmo património. O devedor não tem obrigação de adquirir nem os credores têm direito a que o devedor adquira. Em virtude da alienidade dos credores perante os bens da herança a que o devedor foi chamado e do prejuízo que o repúdio lhes causar em virtude de o devedor não adquirir algo que podia adquirir, a lei, no art. 2067.º do CC, consagra a denominada sub-rogação dos credores.

5. O repúdio, enquanto negócio jurídico através do qual o sucessível chamado declara não querer receber os bens que lhe são devolvidos, configura-se como pressuposto da aceitação da herança pelos credores.

6. O meio judicial para os credores exercerem a faculdade – que não depende de autorização judicial, mas é, necessariamente, de exercício judicial (art. 1041.º, n.º 1, do CPC) – de aceitar a herança, “em nome do repudiante”, é a ação em que deduzam o pedido de pagamento dos seus créditos contra o repudiante e contra aqueles que receberam os bens por efeito do repúdio (art. 1041.º, n.º 1, do CPC).

7. Essa aceitação deve ter lugar no prazo – de caducidade (art. 298.º, n.º 2, do CC) - de seis meses, contados do conhecimento do repúdio pelos credores (art. 2067.º, n.º 2, do CC). O dies a quo é, pois, o do conhecimento do repúdio e não o do repúdio.

8. A aceitação só se torna efetiva após a obtenção, pelos credores do repudiante, de sentença de reconhecimento dos seus direitos de crédito e do direito de aceitar a herança. Se os seus direitos não forem satisfeitos voluntariamente pelo repudiante ou pelo sucessor imediato, os credores podem recorrer à execução, invocando como título executivo a sentença obtida (art. 1041.º, n.º 2, do CPC). A sentença favorável que os credores obtenham na denominada ação sub-rogatória permite-lhes, assim, executar a decisão contra a herança (rectius, contra os chamados subsequentes que tenham, entretanto, aceitado a herança e, por isso, a expensas do seu património), ou seja, pagar-se à custa dos bens que a integram (rectius, que se encontram no património dos sucessores subsequentes). Uma vez obtido o pagamento, o que restar da herança não cabe ao repudiante, mas aos sucessíveis, a quem, por efeito do repúdio, a herança seja deferida (art. 2067.º, n.º 3, do CC).

9. O art. 606.º, n.º 2, do CC – para o qual remete o art. 2067.º, n.º 1, do mesmo corpo de normas -, limita a admissibilidade da ação sub-rogatória aos casos em que esta “seja essencial à satisfação ou garantia do direito do credor”. Este requisito implica a avaliação da situação patrimonial do repudiante e a da própria herança. De um lado, no que respeita ao património do devedor, o repúdio acarreta prejuízo para os credores quando esteja insolvente. Afigura-se, contudo, suficiente a insolvência como situação de facto, i.e., a insuficiência do património para, por si só, satisfazer ou garantir os direitos dos credores (art. 606.º, n.º 2, do CC). De outro lado, ainda que se que verifique uma situação patrimonial deficitária do devedor, o repúdio só causa necessariamente prejuízo aos credores se a herança for solvente, se for integrada por bens que colmatem essa carência patrimonial, i.e., se for superavitária[9].

10. A aceitação operada por determinado credor só a este beneficia e não afasta os efeitos decorrentes do repúdio do sucessível, conforme resulta dos arts. 2067.º, n.º 3, e 2049.º, n.º 3, do CC. Com efeito, na medida em que, segundo o art. 2067.º, n.º 3, do CC, a aceitação dos credores visa assegurar-lhes a satisfação dos respetivos créditos, uma vez que estes sejam pagos, o remanescente não aproveita ao repudiante, mas aos sucessíveis imediatos, a quem caiba o direito de suceder por efeito do repúdio. Por seu turno, conforme o art. 2049.º, n.º 3, do CC, se o sucessível, notificado para exercer o direito de suceder e declarar se aceita ou repudia a herança, a repudiar, passam a notificar-se os sucessíveis imediatos, segundo a ordem de preferência dos correspondentes factos designativos. Contudo, a aceitação que alguns destes venha a fazer não prejudica o direito atribuído pelo art. 2067.º do CC aos credores do repudiante[10].

11. Em conformidade com o art. 1041.º, n.º 2, do CPC, os credores aceitantes podem executar os créditos sobre a herança (rectius, sobre os bens entretanto adquiridos pelos chamados subsequentes que aceitaram a herança) e, por isso, sobre bens que não integram o património do devedor, nunca o integraram e nem o virão a integrar. São aqueles bens da herança que caberiam ao devedor se não houvesse repudiado, agora no património dos sucessores subsequentes, que respondem, para além dos seus encargos próprios (art. 2068.º do CC). Os credores não adquirem, com a aceitação, a qualidade de herdeiros ou de legatários[11].

12. A aceitação dos credores não põe em causa o repúdio, não o afastando ab initio. Na verdade, do art. 2067.º do CC não resulta que o repúdio seja afetado por essa aceitação, nomeadamente por não configurar a sua anulação ou impugnação. O destino estabelecido para os bens remanescentes da herança – a atribuição aos sucessores imediatos – apenas se concilia com uma solução de subsistência do repúdio. Por conseguinte, o repudiante continua afastado da sucessão, não recebendo o remanescente e, nos termos do art. 2062.º do CC, considerando-se como não chamado. O repudiante não se torna, pois, sucessor por força da aceitação dos credores. Subsiste o efeito típico do repúdio: o chamamento do sucessível subsequente. Apesar de não afastar a vocação, a aceitação e a qualidade de sucessores dos sucessíveis subsequentes (art. 2067.º, n.º 3, do CC), a aceitação da herança pelos credores do repudiante produz um relevante efeito na situação patrimonial do devedor e dos herdeiros subsequentes: o primeiro, na medida da satisfação dos créditos pela herança (rectius, pelos bens entretanto adquiridos pelos sucessores subsequentes), fica liberto das correspondentes dívidas, sem que tal ocorra à custa do seu património; os segundos, por seu turno, não recebem o património tal como, em princípio, o repúdio lhes facultaria, pois percebem-no desfalcado dos bens necessários para pagar aos credores do repudiante, em virtude da perturbação sofrida pelo fenómeno sucessório[12].

13. Reitere-se que os credores não têm o poder de aceitar a herança, que o ius delationis foi exercido e se extinguiu com a declaração de repúdio do devedor, que a ação sub-rogatória não retira efeitos ao repúdio e que os credores não são considerados sucessores do de cujus. Está em causa a atribuição ex lege, por via sub-rogatória – o que não quer dizer que estejamos perante uma verdadeira e própria sub-rogação -, de um direito que, no seu exercício, é pessoal do devedor e, por isso, insubrogável, e que já se extinguiu como consequência da declaração de repúdio.

14. A outorga desta faculdade aos credores do repudiante representa algo de verdadeiramente singular, anómalo e excecional, porquanto cria uma situação que é a antítese do repúdio. Os efeitos da ação sob-rogatória assemelham-se aos da aceitação da herança, na medida em que os credores podem satisfazer-se sobre os bens da herança como se estes houvessem ingressado no património do devedor em resultado de aceitação. Daí que o exercício desta ação sub-rogatória se revele contra a natureza da própria declaração de repúdio e pressuponha uma alteração do sentido unidirecional, irreversível e irrevogável que caracteriza e é identificativo do ius delationis no seu exercício. Contudo, nem o repudiante se converte em herdeiro do causante (apesar de o art. 2067.º do CC referir que “os credores do repudiante podem aceitar a herança em nome dele”), permanecendo alheio à comunhão hereditária, pois não pode adquirir a qualidade de herdeiro de modo totalmente involuntário, com sacrifício do seu direito à autodeterminação no domínio sucessório, nem tão pouco os credores sucedem ao causante. O art. 2067.º do CC, além de derrogar características essenciais do direito de suceder como direito de exercício pessoal (e, assim, insubrogável) em qualquer das faculdades alternativas nele contidas - aceitar ou repudiar -, intransmissível inter vivoshoc sensu, pessoalíssimo, compreende também uma ideia de renovação desse direito, extinto pelo repúdio do sucessível, mediante a atuação da faculdade de aceitar nele contida[13].

15. Trata-se, na verdade, de conferir aos credores do repudiante uma ampla legitimação para agir in executivis. A aceitação da herança “em nome do repudiante” deve entender-se em sentido funcional, como intrinsecamente conexa com o escopo de satisfação dos credores sobre bens hereditários. Consequentemente, aos credores que ajam ex art. 2067.º não será oponível a aquisição dos bens hereditários por parte dos sucessores subsequentes. Deste modo, o art. 2067.º não preclude a aquisição do quinhão que competiria ao repudiante pelos chamados subsequentes, considerando-se que a aceitação da herança pelos credores, “em nome do repudiante”, não implica a revogação do repúdio, mas unicamente a possibilidade de executar os bens hereditários nos limites do quinhão que caberia ao devedor repudiante. É que não se trata de uma verdadeira e própria aceitação da herança pelos credores do repudiante, pois apenas os chamados ex lege ou ex voluntate o podem fazer. Aos credores é apenas consentido satisfazer-se sobre o pars bonorum relitta.

16. O art. 2067.º do CC permite aos credores aceitar a herança “em nome do repudiante” com o único objetivo de lhes permitir satisfazer-se sobre os bens hereditários, como que se tais bens integrassem o património do devedor e não tivesse havido repúdio. Todavia, os credores não se substituem propriamente ao devedor repudiante na aceitação, porquanto os bens da herança repudiada não ingressam no seu património. Os credores do repudiante ficam apenas autorizados a agredir executivamente aqueles bens que, na ausência de repúdio, teriam integrado a garantia patrimonial do seu devedor. Consequentemente, a ação deve ser intentada também contra aqueles para quem os bens passaram por virtude do repúdio (art. 1041.º do CPC): os sucessíveis subsequentes que aceitaram a herança em lugar do repudiante. Estes sofrem a ação executiva dos bens hereditários que já ingressaram no seu património por uma dívida de outrem. Configura-se aqui uma hipótese de litisconsórcio necessário dos chamados que hajam medio tempore aceitado a herança, apesar de serem terceiros relativamente à relação obrigacional subsistente entre o repudiante e os seus credores. Todavia, sofrem os efeitos do julgado. O interesse da tutela do crédito como que assim se sobrepõe ao interesse do repudiante e dos chamados subsequentes que hajam aceitado a herança.

17. O art. 2067.º é uma norma especial, pois consagra uma disciplina nova ou diferente para círculos mais restritos de pessoas, coisas ou relações e, por isso, como que consome as normas do direito comum previstas nos arts. 606.º e ss, e 610.º e ss do CC. A aplicação da sub-rogação dos credores e o afastamento da sub-rogação do credor ao devedor e da impugnação pauliana concretiza um princípio geral de direito, segundo o qual a norma especial afasta a aplicação da norma geral, pois entre as normas dos arts. 2067.º, de um lado e, de outro, dos arts. 606.º e ss e 610.º e ss, do CC, existe uma relação de especialidade. Tem de prevalecer a norma especial, “porque agarra mais de perto a situação de facto que regulamenta”. Acresce que não se verifica a existência de qualquer lacuna que possa determinar a integração da disciplina especial através da analogia legis e iuris.

18. Note-se, de resto, que a norma do art. 2067.º do CC poderia até ser considerada excecional, um verdadeiro ius singulare. Com efeito, de um lado, o repúdio da herança, em virtude de não envolver diminuição da garantia patrimonial do crédito e de se revestir de natureza pessoal, não seria suscetível de ser impugnado paulianamente à luz do regime plasmado nos arts. 610.º e ss.; e, de outro lado, por não se verificar a inércia do devedor no exercício de um direito que lhe tenha sido conferido e por o direito de aceitar a herança ter natureza pessoal, não se aplicaria a disciplina prevista para a sub-rogação do credor ao devedor nos arts. 606.º e ss. do CC. Por conseguinte, poderia dizer-se que o art. 2067.º do CC, combinando de algum modo a impugnação pauliana com a sub-rogação do credor ao devedor, como que permitindo a impugnação pauliana do repúdio da herança (apesar de este não configurar uma diminuição da garantia patrimonial do crédito e de ter natureza pessoal), assim como a sub-rogação do credor no exercício do direito de aceitar a herança (não obstante a inverificação de qualquer inércia do devedor no exercício do direito de suceder e a natureza pessoal do mesmo direito) consagra um regime oposto ao regime-regra previsto nos arts. 610.º e ss. e 606.º e ss. do CC.

19. Na verdade, a denominada ação sub-rogatória dos credores como que combina a impugnação pauliana (arts. 610.º e ss do CC) e a sub-rogação do credor ao devedor (arts. 606.º e ss do CC) em via consequencial e diacrónica. Como que visa tornar inoponível aos credores a declaração de repúdio na estrita medida em que os seus efeitos os possam lesar – i.e., aquele “efeito secundário” do ato impugnado, que se traduz na subtração dos bens hereditários à ação executiva dos credores do repudiante. Uma vez impugnado e eliminado o ato preclusivo da inércia, o credor pode aceitar a herança repudiada em via sub-rogatória, podendo até dizer-se que a impugnação do repúdio pelos credores vale como aceitação em benefício desses credores (e, por isso, na medida exigida pela satisfação dos seus créditos)[14]. Dado que, além do exercício do direito do devedor pelos credores, se neutraliza, na medida do interesse destes (art. 2067.º, n.º 3, do CC), o ato de repúdio, não se exige a verificação dos requisitos da impugnação pauliana, de modo a alargar âmbito de aplicação deste meio de tutela dos interesses dos credores[15].

20. Todavia, não está em causa uma verdadeira e própria impugnação pauliana. Desde logo,  porque o ato de repúdio tem natureza pessoal. Depois, porque o repúdio não consubstancia uma verdadeira disposição patrimonial com empobrecimento. Em terceiro  lugar, os credores não atacam propriamente o repúdio, sendo tão somente admitidos a aceitar a sucessão, “em nome do repudiante”, apesar de já ter havido repúdio. Também não se revoga nem se deixa sem efeito a declaração de repúdio, que é definitiva e irrevogável, mantendo-se os seus efeitos típicos quanto ao repudiante (que subsiste afastado da herança, como se não tivesse havido vocação, conforme o art. 2062.º do CC) e aos sucessores subsequentes (o chamamento destes persiste para receberem o que da herança restar após o pagamento dos credores do repudiante). Os credores só podem agir sobre os bens, porção ou quota que corresponderia ao devedor se este houvesse aceitado a herança, com o limite do valor dos créditos de que sejam titulares antes do repúdio. Como não é um ato de disposição (i.e., de alienação), porquanto a aquisição sucessória depende de aceitação do sucessível (art. 2050.º do CC), o repúdio, em lugar de ser considerado como ineficaz perante os credores, seria antes reputado como inoponível a esses credores. Acresce a circunstância de a disciplina da impugnação pauliana não se conciliar totalmente com o estabelecido para a aceitação dos credores: exigência da má fé nos casos de alienação onerosa[16]. De resto, de iure constituto, pode dizer-se que a remissão estabelecida no art. 2067.º para os arts. 606.º e ss do CC (i.e., para os arts. 606.º, n.º 2, e 607.º) impede a possibilidade de construir o instituto consagrado naquele preceito com base na impugnação pauliana[17].

21. Não se trata igualmente de verdadeira e própria sub-rogação, mas antes de uma espécie de legitimação sub-rogatória. Desde logo, não há qualquer omissão ou inércia do devedor no exercício de direitos de conteúdo patrimonial que lhe sejam conferidos contra terceiro: o direito de suceder já foi exercido pelo devedor mediante o repúdio. Depois, o ius delationis tem, no seu exercício, caráter pessoal e extingue-se com a declaração de repúdio. Acresce que a sub-rogação dos credores não se destina a fazer ingressar os bens da herança repudiada no património do devedor, que não os adquire nem mesmo na concorrência dos créditos feitos valer (e, assim, não se aplica uma regra como aquela do art. 609.º do CC).

22. Os credores obtêm o resultado almejado sem fazer entrar os bens da herança repudiada no património do devedor e sem tornar o repúdio ineficaz. Os bens que restarem após a satisfação dos credores pertencem aos sucessores subsequentes.

23. O art. 2067.º do CC como que se consubstancia num micro-sistema de tutela não recondutível a categorias jurídicas mais amplas, caracterizando-se por pressupostos específicos e pela finalidade de tutelar os credores do chamado em caso de repúdio da herança. Prevê uma espécie de legitimação sub-rogatória para a aceitação da herança[18].

24. Mais do que uma ação dirigida à conservação da garantia patrimonial, o art. 2067.º do CC prevê um mecanismo de satisfação direta do crédito, dirigido à efetiva reintegração satisfativa do concreto e real interesse jurídico do credor do repudiante. Este mecanismo técnico-jurídico reveste-se de natureza cautelar (em sentido atécnico) e recuperatória enquanto considerado como instrumental da execução individual sobre bens da herança repudiada até à concorrência da satisfação dos direitos dos credores.

25. De resto, do regime previsto no art. 2067.º do CC resultam efeitos jurídicos da mesma natureza ou substancialmente análogos àqueles da impugnação pauliana, porquanto permite aos credores do repudiante satisfazerem os seus créditos sobre bens entretanto adquiridos por sucessíveis subsequentes. Com efeito, os credores do repudiante, tal como o credor impugnante, são admitidos a executar os seus direitos sobre os bens hereditários, sem estes integrarem o património do devedor, de um lado e, de outro, verifica-se que em ambos os casos só o credor aceitante ou o impugnante beneficiam da sua atuação (art. 616.º, n.º 4, do CC)[19].

26. Poderia, até, referir-se que as normas dos arts. 610.º e ss CC são absorvidas pelo art. 2067.º do mesmo corpo de normas, em virtude da existência de uma relação de consunção.

27. Assim, o Direto das Sucessões já consagra um mecanismo de proteção dos credores que torna inútil o recurso à impugnação pauliana. A Autora dispunha de outro meio eficaz para prevenir ou reparar o prejuízo causado à sua garantia patrimonial. Por outro lado, a não aplicação em tempo da sub-rogação é imputável à Autora impugnante, pois esta conhecia os elementos necessários ao exercício atempado da sub-rogação dos credores.

28. O mecanismo técnico-jurídico de que Autora poderia lançar mão para  reagir contra o repúdio da herança pelo 1.º Réu seria a sub-rogação dos credores, prevista nos arts. 2067.º do CC e 1041.º do CPC.

29. Impunha-se, assim, à Autora, a propositura da acção sub-rogatória - processo especial previsto no art. 1041.º do CPC.

30. Consequentemente, tem de improceder a peticionada impugnação pauliana, confirmando-se o acórdão recorrido.

IV – Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pela Autora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Noroeste, CRL confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela Autora/Recorrente.


Lisboa, 21 de setembro de 2021.


Sumário: 1. Não envolvendo o repúdio da herança qualquer diminuição da garantia patrimonial do crédito, não se verifica o primeiro dos requisitos legais da impugnação pauliana previstos no art. 610.º do CC. 2. O repúdio da herança não é uma verdadeira e própria renúncia, pois que, por não consubstanciar uma disposição extintiva sem contrapartida, não tem natureza abdicativa. 3. Na medida em que a herança apenas se adquire com a aceitação (art. 2050.º do CC), no repúdio não estão em causa direitos hereditários anteriormente adquiridos pelo devedor. 4. Tratando-se de um ato obstativo ou impeditivo de uma aquisição de uma situação jurídica complexa, ao qual o património do devedor se revela indiferente, não sofrendo qualquer modificação, não se permite ao credor o recurso à impugnação pauliana. 5. O repúdio, é também um negócio jurídico pessoal. A expectativa dos credores de se satisfazerem sobre os bens da herança a que o devedor é chamado é incerta e relativa, pois o ius delationis, que é incoercível, no seu exercício, depende exclusivamente da vontade do sucessível, dado o caráter intuitu personae da sucessão. Isto obsta tanto à impugnação pauliana do repúdio da herança (arts. 610.º e ss do CC) como à sub-rogação do credor ao devedor no exercício do direito de aceitar a herança (arts. 606.º e ss, e art. 2049.º do CC). 6. A necessidade de não deixar os credores pessoais do repudiante privados de tutela, dada a inaplicabilidade dos institutos gerais como a sub-rogação do credor ao devedor (arts. 606.º e ss do CC) e a impugnação pauliana (arts. 610.º 3 ss do CC), conduziu o legislador a consagrar o regime previsto no art. 2067.º do CC, conciliando o princípio da autonomia decisória do sucessível chamado e a indefetível exigência de salva... dos credores. Está em causa a perda da oportunidade de poder adquirir, de ver aumentado o património, mas não uma diminuição desse património. O meio judicial para os credores exercerem a faculdade – que não depende de autorização judicial, mas é, necessariamente, de exercício judicial (art. 1041.º, n.º 1, do CPC) – de aceitar a herança, “em nome do repudiante”, é a ação em que deduzam o pedido de pagamento dos seus créditos contra o repudiante e contra aqueles que receberam os bens por efeito do repúdio (art. 1041.º, n.º 1, do CPC). Trata-se da atribuição ex lege, por via sub-rogatória – o que não quer dizer que estejamos perante uma verdadeira e própria sub-rogação -, de um direito que, no seu exercício, é pessoal do devedor e, por isso, insubrogável, e que já se extinguiu como consequência da declaração de repúdio. 7. O art. 2067.º do CC como que se consubstancia num micro-sistema de tutela não recondutível a categorias jurídicas mais amplas, caracterizando-se por pressupostos específicos e pela finalidade de tutelar os credores do chamado em caso de repúdio da herança.


Maria João Vaz Tomé (relatora)

António Magalhães

Jorge Dias

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[1] O legislador não definiu a renúncia nem a dotou de disciplina geral própria. Existem diversos tipos de renúncia.
[2] Cf. Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, A renúncia abdicativa no Direito Civil (Algumas notas tendentes à definição do seu regime), Coimbra, Coimbra Editora, 1995, pp.85 e ss., 155.
[3] Cf. Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, A renúncia abdicativa no Direito Civil (Algumas notas tendentes à definição do seu regime), Coimbra, Coimbra Editora, 1995, pp.88-89, 156-157.
[4] Cf. Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, A renúncia abdicativa no Direito Civil (Algumas notas tendentes à definição do seu regime), Coimbra, Coimbra Editora, 1995, pp.155-156; João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Coimbra, Almedina, 2004, pp.118-119.
[5] Cf. João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Coimbra, Almedina, 2004, pp.105-106.
[6] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, Lisoa, Quid Juris Sociedade Editora, 2012, pp.66-69.
[7] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2012, p.280.
[8] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Da aceitação da herança pelos credores do repudiante, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2010, pp.112-113.
[9] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2012, p.282. Via de regra, sendo alheios à herança, os credores do repudiante não dispõem de elementos para avaliar a sua solvibilidade - cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Da aceitação da herança pelos credores do repudiante, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2010, pp.75-76, 78.
[10] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2012, p.283.
[11] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2012, p.283; Luís A. Carvalho Fernandes, Da aceitação da herança pelos credores do repudiante, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2010, pp.94-95.
[12] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Da aceitação da herança pelos credores do repudiante, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2010, pp.96-97.
[13] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Da aceitação da herança pelos credores do repudiante, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2010, pp.105, 110.
[14] Cf. Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, A renúncia abdicativa no Direito Civil (Algumas notas tendentes à definição do seu regime), Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p.96.
[15] Cf. João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Coimbra, Almedina, 2004, pp.120-121.
[16] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Da aceitação da herança pelos credores do repudiante, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2010, p.119.
[17] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, Lisoa, Quid Juris Sociedade Editora, 2012, p.286; Luís A. Carvalho Fernandes, Da aceitação da herança pelos credores do repudiante, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2010, p.66.
[18]É um instrumento técnico-jurídico próprio, particular, a se, de concretização da garantia patrimonial, afim dos meios de conservação” - cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2012, p.286.
[19] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Da aceitação da herança pelos credores do repudiante, Lisboa, Quid Juris Sociedade Editora, 2010, p.120.