Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | BRÁULIO MARTINS | ||
Descritores: | ESCUSA RELAÇÃO COM O REQUERIDO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/05/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | DEFERIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
Sumário: | 1. O art.º 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa estatui que nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior, estabelecendo assim o chamado princípio do juiz natural, com o qual se pretende reforçar a já conatural e estatutária imparcialidade dos juízes. 2. Todavia, existem situações absolutamente excecionais e graves que permitem contrariar o dito preceito constitucional, mas sempre com o fito de reforçar as aludidas garantias de imparcialidade do julgador. 3. Nos termos do artigo 43.º do Código de Processo Penal, as causas de recusa e de escusa são as mesmas: existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. 4. A imparcialidade (e a sua quebra) pode ser encarada numa perspetiva subjetiva ou objetiva: a primeira radica no íntimo do julgador, a segunda é relacional. 5. Deve conceder-se a escusa ao Senhor Juiz requerente para intervir em autos de tratamento involuntário em que é requerido/internando advogado com quem, em momento prévio ao seu ingresso na judicatura, quando igualmente exercia a advocacia, partilhou o escritório, e com o qual estabeleceu estreitos laços profissionais e pessoais, mantendo-se estes últimos atualmente, o que é sobejamente conhecido da comunidade profissional e da comunidade em geral que se encontra sob a jurisdição do tribunal competente para a tramitação dos referidos autos, e onde o ora requerente exerce funções. | ||
Decisão Texto Integral: | I RELATÓRIO 1 O Mmo. Juiz titular do Processo n.º 1862/24...., Juízo Local Criminal de ... – J..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., solicitou a concessão de escusa de intervir nos autos, nos seguintes termos: Nos presentes autos de tratamento involuntário é Requerido/Internando AA, residente na Rua ..., ..., .... Dos fundamentos do incidente de escusa O signatário exerceu advocacia nas então designadas comarcas de ... e de ..., desde o ano de 2001 (o que refere por aproximação, por não lhe ser possível concretizar a data exacta no momento em que profere o presente despacho) até ingressar no ano de 2009 no XXVIII Curso de Formação de Magistrados para os Tribunais Judiciais, momento em que abandonou aquelas funções. Durante o período em que exerceu advocacia, o Signatário teve como colega de escritório o ora Requerido/Internando AA, o qual exercia igualmente advocacia, e com o qual manteve sempre - e continua a manter - uma relação de cordialidade e respeito recíproco, própria da proximidade ditada pela circunstância de ambos terem exercício as mesmas funções, no mesmo escritório e ao longo de muitos anos, partilhando diariamente as suas experiências profissionais e por vezes até de índole pessoal. Acresce que, a relação profissional que o Signatário manteve com o Requerido/Internando AA, é conhecida na comarca de ..., designadamente por alguns Magistrados Judiciais e do Ministério Público, e pela generalidade dos Il. Advogados e Senhores Oficiais de Justiça, que aqui exercem funções, sendo do conhecimento de ambos que o Signatário e o Requerido/Internando exerceram funções como advogados no mesmo escritório, sito na Avenida ..., ... ..., ao longo de vários anos. De resto, quando o Signatário ingressou no referido escritório de advocacia, já ali exercia funções o Requerido/Internando. Não obstante a natureza dos presentes autos, e pese embora não configurando as circunstâncias descritas, subjectivamente, impedimento à isenção e equidistância do requerente como juiz, entende que poderá existir o risco de a sua intervenção nos autos ser considerada suspeita, porquanto aquelas (circunstâncias) são, em abstracto e no nosso modesto entendimento, adequadas a fazer nascer e suportar dúvidas sérias sobre a imparcialidade do signatário, nos termos do artigo 43.º, nº.1, do C.P.Penal. Pelo exposto, considerando o disposto no art.43.º, nºs.1 e 4 do C.P.Penal, se suscita o presente incidente, solicitando ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães se digne apreciar a presente exposição e, a final, conceder escusa ao signatário para intervir nos presentes autos, sem prejuízo do disposto no artigo 43.º, n.º 5, do mesmo diploma legal, quanto aos actos praticados e eventualmente a praticar, considerando a natureza urgente do processo [cfr. artigo 36.º da Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho (Lei da Saúde Mental). 2 O Mmo. Juiz junta certidão contendo a tramitação dos autos em causa. 3 Não se mostra necessária a realização de quaisquer diligências, contendo os autos todos os elementos para decidir. 4 Colhidos os vistos, foram os autos à conferência. II FUNDAMENTAÇÃO 1 Factos provados: Nos presentes autos de tratamento involuntário é Requerido/Internando AA, residente na Rua ..., ..., ..., tendo a distribuição determinado a respetiva titularidade ao Exmo. Sr. Juiz de Direito aqui requerente, BB. O Requerente exerceu advocacia nas então designadas comarcas de ... e de ..., desde cerca do ano de 2001 até ingressar no ano de 2009 no XXVIII Curso de Formação de Magistrados para os Tribunais Judiciais, momento em que abandonou aquelas funções. Durante o período em que exerceu advocacia, o Requerente teve como colega de escritório o ora Requerido/Internando AA, o qual exercia igualmente advocacia, e com o qual manteve sempre - e continua a manter - uma relação de cordialidade e respeito recíproco, própria da proximidade ditada pela circunstância de ambos terem exercício as mesmas funções, no mesmo escritório e ao longo de muitos anos, partilhando diariamente as suas experiências profissionais e por vezes até de índole pessoal. A relação profissional que o Requerente manteve com o Requerido/Internando AA, é conhecida na comarca de ..., designadamente por alguns Magistrados Judiciais e do Ministério Público, e pela generalidade dos Il. Advogados e Senhores Oficiais de Justiça, que aqui exercem funções, sendo do conhecimento de todos que o Requerente e o Requerido/Internando exerceram funções como advogados no mesmo escritório, sito na Avenida ..., ... ..., ao longo de vários anos. De resto, quando o Requerente ingressou no referido escritório de advocacia, já ali exercia funções o Requerido/Internando. 2 Fundamentação de facto. Para dar como provados os factos que antecedem, o tribunal atendeu às declarações do Mmo, Juiz no requerimento de pedido de escusa, totalmente credíveis, e na certidão que instrui o presente pedido. 3 O direito. A Constituição da República Portuguesa prevê que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão (…) mediante processo equitativo – cfr. art.º 20.º, n.º 4. Por outro lado, o art.º 32.º, n.º 9, do diploma fundamental estatui que nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior, estabelecendo assim o chamado princípio do juiz natural, com o qual se pretende reforçar a já conatural e estatutária imparcialidade dos juízes. Todavia, como sabemos, existem situações absolutamente excecionais e graves que permitem contrariar o dito preceito constitucional, mas sempre com o fito de reforçar as aludidas garantias de imparcialidade do julgador. Tais situações estão previstas, para o que aqui interessa, no Código de Processo Penal, que a este respeito contém as seguintes normas: Artigo 43.º Recusas e escusas 1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. 2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º 3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis. 4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2. 5 - Os actos processuais praticados por juiz recusado ou escusado até ao momento em que a recusa ou a escusa forem solicitadas só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os praticados posteriormente só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo. Artigo 44.º Prazos O requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório. Só o são posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate. Assim, podemos desde já afirmar que o pedido que ora se analisa é tempestivo, uma vez que os autos se encontram na fase prevista noa artigo 33.º da Lei n.º 35/2023, de 21/07, o tribunal a que foi dirigido é o competente, e o requerente tem legitimidade para apresentar o pedido. Por outro lado, constatamos que, segundo a norma acima transcrita, as causas de recusa e de escusa são as mesmas: existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. A imparcialidade pode ser encarada numa perspetiva subjetiva ou objetiva: “ (…) a quebra da imparcialidade subjetiva, que depende de motivos pessoais e do foro íntimo do juiz, requer uma forte exigência e prudência na análise dos fatores exteriores e pessoais, mas objetiváveis, que possam ou sejam suscetíveis de determinar a recusa; sendo as condições da imparcialidade subjetiva do foro íntimo do juiz, só manifestações pessoais sérias, anteriores ou contemporâneas, em relação a algum interessado ou algum interesse discutido no processo, podem justificar a recusa: a imparcialidade subjetiva presume-se, e só pode ser posta em causa em circunstâncias certamente excecionais. Na imparcialidade objetiva a questão apresenta-se numa perspetiva substancialmente diversa. Trata-se de fundamentos que, embora referidos ao juiz, são objetivos, e que, por isso, não afetam nem coloca pessoalmente em causa o juiz; apenas constituem circunstâncias relacionais ou contextuais objetivas suscetíveis de gerar no interessado o receio da existência da ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa: opiniões antecipadas do juiz; posições anteriormente tomadas no processo; declarações públicas que veiculem uma opinião concreta sobre o caso, circunstâncias ou contingência de relação (amizade ou inimizade) com algum dos interessados, são fatores que, dependendo da intensidade, têm justificado a recusa com fundamento na afetação da imparcialidade objetiva” – cfr. Conselheiro Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pag. 146/147. Não se verifica, evidentemente, qualquer situação que possa envolver o risco de fazer perigar a imparcialidade subjetiva, sendo ainda certo que o próprio requerente declara a sua firme certeza de que se encontra em condições de julgar a causa com total imparcialidade. Note-se, assim, que o pedido que ora se aprecia constitui, portanto, comportamento especialmente escrupuloso e cuidadoso da Exmo. Sr. Juiz requerente. Quanto às questões relativas à imparcialidade objetiva, recordemos o que, essencialmente, está em causa: o ora requerente exerceu advocacia em momento prévio ao ingresso na magistratura judicial, tendo, nesse contexto, sido colega de escritório do ora requerido/internando, igualmente advogado, com o qual estabeleceu estreitos laços profissionais e pessoais, mantendo-se estes últimos ainda atualmente, factos sobejamente conhecidos da comunidade profissional e da comunidade em geral que se encontra sob a jurisdição do tribunal competente para a tramitação dos autos e onde o ora requerente exerce funções. Estamos, portanto, fundamentalmente, no âmbito das “circunstâncias ou contingências de relação” com o requerido/internando, que é antigo colega de trabalho do Exmo Sr. Juiz requerente da escusa. O que está fundamentalmente em causa é a primordial imagem de imparcialidade de que goza o julgador perante os intervenientes no processo e perante comunidade em geral, devendo adotar-se sempre as medidas necessárias para a preservar, logo que se descortine motivo sério e grave para tal. Em relação à seriedade e gravidade do motivo que pode levar ao deferimento da recusa/escusa, diz-se no Acórdão do STJ de 13 de Fevereiro de 2013, processo nº 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, in www.dgsi.pt, que «A seriedade e gravidade do motivo resultam de um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro), formulado com base na percepção que um cidadão médio tem sobre o reflexo daquele facto concreto na imparcialidade do julgador.» Ora, concordamos com o Mmo. Juiz requerente quando afirma que mantém todas as condições para decidir sob a égide do principal traço definidor do poder jurisdicional, a imparcialidade, mas também aceitamos como possível que os intervenientes nos autos, os familiares e demais amigos do internando, e a comunidade em geral, que, reconheça-se, não é de relevante dimensão, pois se trata de cidade mediana grandeza, atentos os parâmetros do nosso país, possam, atenta a invocada relação de proximidade, lobrigar na situação descrita um fator perturbador do equidistante labor que deverá ser desenvolvido na tramitação e julgamento dos autos. III DISPOSITIVO Assim sendo, defere-se o pedido de escusa de intervenção no Processo n.º 1862/24...., apresentado pela Exmo. Sr. Juiz de Direito BB, a exercer funções no Juízo Local Criminal de ... – J..., do Tribunal Judicial da Comarca de .... Sem tributação. Guimarães, 05 de Junho de 2024. Os Juízes Desembargadores Bráulio Martins Júlio Pinto Isabel Gaio Ferreira de Castro |