Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | FERNANDO CHAVES | ||
| Descritores: | CRIME DE FRAUDE FISCAL QUALIFICADA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA REPOSIÇÃO DA VERDADE FISCAL | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 10/22/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
| Sumário: | I - A fraude fiscal, simples ou qualificada, só assume dignidade penal quando a conduta do agente se mostre idónea a obter uma vantagem patrimonial ilegítima igual ou superior a 15.000 euros, nos termos do artigo 103.º, n.º 2 do RGIT; II - O limite de 15.000 euros, limite negativo e quantitativo da incriminação, tem o seu espaço de aplicação tanto em sede do tipo base como do tipo qualificado de fraude fiscal; III - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada pela prática de crimes de natureza tributária tem que ser sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos nos termos do artigo 14.º do RGIT; IV - A necessidade do juízo de prognose a que se refere o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2012 não se verifica quando ao crime tributário corresponde apenas pena de prisão, como é o caso da fraude fiscal qualificada cometida por pessoas singulares. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães I – Relatório 1. No processo comum colectivo n.º 5/16...., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz ..., realizado o julgamento, foi proferida sentença em 06-03-2024, depositada na mesma data, com o dispositivo seguinte (transcrição): «Pelo exposto, julga-se a acusação/pronúncia parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se: a) Absolver o arguido AA da prática do crime de fraude fiscal, 103.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, e 104.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, por que vinha acusado. b) Declarar extintas as medidas de coacção aplicadas ao arguido AA – artigo 214º nº1, alínea d), do CPP. c) Condenar a arguida BB, pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, e 104.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão. d) Condenar a arguida BB, pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, e 104.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 1 (um) ano de prisão. e) Em cúmulo jurídico das penas referidas em c) e d), condenar a arguida BB na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, ficando no entanto a suspensão condicionada ao pagamento, no prazo de 4 (quatro) anos, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, das prestações tributárias em faltam, no valor de €42.368,90, e demais acréscimos legais, nos termos dos artigos 50º, do Código Penal e artigo 14º, nº 1, do RGIT. f) Condenar o arguido CC, pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, e 104.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 1 (um) ano de prisão. g) Condenar o arguido CC, pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, e 104.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 10 (dez) meses de prisão. h) Em cúmulo jurídico das penas referidas em f) e g), condenar o arguido CC na pena única de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, ficando no entanto a suspensão condicionada ao pagamento, no prazo de 4 (quatro) anos, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, das prestações tributárias em faltam, no valor de € 42.368,90, e demais acréscimos legais, nos termos dos artigos 50º, do Código Penal e artigo 14º, nº 1, do RGIT. i) Condenar a arguida EMP01... – Unipessoal, Lda., pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 7º, 103.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, e 104.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 500 (quinhentos) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros). j) Condenar a arguida EMP02..., Unipessoal Lda., pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 7º, 103.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, e 104.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 400 (quatrocentos) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros). k) Condenar a arguida EMP02..., Unipessoal Lda., pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 7º, 103.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, e 104.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros). l) Em cúmulo jurídico das penas referidas em j) e k), condenar a arguida EMP02..., Unipessoal Lda., na pena única de 600 (seiscentos) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros). m) Condenar os arguidos BB, CC, EMP01... e EMP02..., no pagamento ao Estado do valor de € 42.368,90 (quarenta e dois mil e trezentos e sessenta e oito euros e noventa cêntimos), nos termos do artigo 111º, nº 2 e 4, do Código Penal, sem prejuízo dos direitos da ofendida, Autoridade Tributária, e da dedução do montante de eventuais pagamentos por conta da dívida que os arguidos já tenham realizado. n) Condenar os condenados nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC para cada um – artigos 513º e 514º, do CPP e artigo 8º, nº 5 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais. Notifique. Após trânsito em julgado: - remeta boletim ao Registo Criminal. - comunique a decisão à administração fiscal – artigo 50º, nº 2, do RGIT. Proceda ao depósito – artigo 372º, nº 5, do Código Penal.» 2. Inconformado com a decisão, recorreu o arguido CC, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição): «1ª Vem o presente recurso interposto pelo recorrente da sentença que o condenou pela prática de um crime de fraude fiscal previsto e punido pelos artºs 103º nº1 al. a), b) e c) e 104º nº1 al. d), e), f) e nº2 do RGIT na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 4 anos, sujeita à obrigação de pagamento da quantia de 42.368,90€; 2ª O acórdão recorrido imputou ao recorrente a prática de dois crimes de fraude fiscal p.p. pelos artºs 103º nº1 al. a), b) e c) e 104º nº1 al. d), e), f) e nº2 do RGIT; 3ª No acórdão recorrido concluiu-se que existiram duas resoluções criminosas, pelo que o arguido foi condenado por cada uma das “parcelas” da conduta constantes da acusação; 4ª O acórdão recorrido não fundamenta devidamente a conclusão de terem existido duas resoluções criminosas, quando existem apenas 12 facturas em dois períodos trimestrais consecutivos do ano de 2015, pelo que se deve concluir que o acórdão recorrido peca por falta de fundamentação, o que o torna nulo nos termos do disposto nos artºs 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do CPP; 5ª O limite quantitativo constante do artº 103º nº2 do RGIT deve entender-se como integrante do tipo legal (neste sentido Germano Marques da Silva e Nuno Pombo supra citados), pelo que a acusação deveria ter alegado e provado que o arguido representou e quis obter uma vantagem patrimonial superior a 15.000 €, o que não aconteceu quer na acusação, quer no acórdão recorrido. 6ª Com efeito, no acórdão recorrido da forma como o elemento subjectivo se encontra descrito, poderia ser sustentáculo de uma condenação por contraordenação, designadamente a prevista no artº 114º nº1 e 5 ou 118º e 119º do RGIT que pune a falta de liquidação nas declarações fiscais independentemente do valor. 7ª Não se encontrando dado como provado o elemento subjectivo do crime de fraude fiscal, ou os factos que o preenchem, os factos constantes do acórdão são atípicos e, como tal, o arguido deve ser absolvido. 8ª O Tribunal fundou a sua convicção nas “informações intercalares” e finais dos dois inspectores, mas estas não podiam ser valoradas, quer porque não se trata de prova produzida em audiência de julgamento, quer porque se trata de declarações de testemunhas, cuja leitura não foi autorizada através de despacho; 9ª Uma “informação” de um OPC não é um meio de prova ou uma “prova” no sentido resultante do artº 355º do CPP e muito menos de um OPC/testemunha, desde logo porque, a informação em causa contém um resumo da prova produzida em inquérito feita pela testemunha/OPC, da qual não se distingue – nem se poderia distinguir – o que o OPC teve conhecimento através da investigação ou através de depoimentos testemunhais ou dos arguidos. 10ª Por outro lado, a informação final contém declarações de uma testemunha que esteve a depôr em audiência, sem que fossem cumpridos os formalismos legais. 11ª Assim, tal prova seria sempre proibida quer porque contém declarações da testemunha (artº 356º nº2 do CPP), quer porque contém factos cuja ciência da testemunha/OPC/Inspectores Tributários obtiveram de declarações de testemunhas e arguidos (nº1, 2 e 7 do mesmo artigo), quer porque não foram tomadas declarações para memória futura (nº2 al. a)), quer porque os sujeitos processuais não estiveram de acordo com a sua leitura ou decorrem de cartas precatórias ou rogatórias (als. b) e c) do nº2), nem a sua leitura foi requerida ou permitida (nº3 e 9). 12ª As normas dos artºs 127º, 355º nº1 e 327º nº2 do CPP interpretadas no sentido de que o tribunal pode fundar a sua livre convicção com base em documentos dos autos que contêm a análise da prova do inquérito efectuada por OPC não lidos em audiência são violadoras do disposto nos artºs 32º nº1 e 5 e 209º da CRP. 13ª Deve, assim, ser declarada a apontada nulidade do acórdão por violação das regras de proibição de prova. 14ª O depoimento dos dois inspectores, com o devido respeito, para além de contraditórios, não poderiam alicerçar a decisão condenatória do tribunal, porquanto mostraram-se eivados de juízos conclusivos e contaminados pela percepção que têm do arguido e da EMP02... face aos anteriores actos inspectivos. 15ª Ao contrário do que se diz a sentença recorrida, os documentos juntos pelo arguido demonstram matéria indiciária que contraria o que foi referido pelos dois inspectores, e o próprio relatório inspectivo que consta dos autos, ainda que em relação ao arguido seja referente a anos que não os relativos aos factos de 2015. 16ª Tudo somado, ou seja: prova documental e testemunhal, mais não existe que uma dúvida, ténue, da prática dos factos pelos quais o arguido vinha acusado, pelo que teria de levar à aplicação do princípio in dúbio pro reo, e à absolvição do arguido, e não à sua condenação. 17ª O vindo de descrever demonstra que a sentença recorrida incorreu em claro erro notório na apreciação da prova, porquanto quer os depoimentos das testemunhas, quer os documentos juntos pelo recorrente nunca poderiam ter chegado às conclusões a que aquelas chegaram, como não poderia, por arrasto, chegar à sentença recorrida. 18ª Deve, assim, considerar-se que o acórdão recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artº 410º nº2 al. c) do CPP e, na eventual improcedência das demais questões levantadas no presente recurso, deve ser o julgamento anulado; 19ª Sem desconhecer o princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal e bem assim o da imediação, os factos indiciários, conjugados com as regras da experiência e da normalidade do acontecer, não permitem concluir quanto à prova dos factos essenciais conforme apontado na decisão recorrida; 20ª Os inspectores tributários basearam o seu testemunho em audiência com base em factos inspectivos que realizaram em anos anteriores aos dos autos; 21ª Os inspectores tributários limitara-se a proferir considerações e suposições vagas e imprecisas sem suporte probatório no que se refere à matéria acusatória; 22ª Os inspectores tributários não ouviram o arguido, não ouviram fornecedores, nem clientes, e nem sequer investigaram qualquer facto referente ao 1º semestre de 2015 no que ao arguido e à EMP02... dizia respeito; 23ª No que se refere às testemunhas que não os inspectores tributários, e colocando de lado as tentativas de “saca-rolhas”, referem que o arguido levava obra (DD); que a contabilidade da EMP01... não era feita pela mesma empresa da EMP03..., que o gerente da EMP01... era o arguido AA (EE); que o arguido lhe disse que ia às confecções pedir serviços de confecção a feitio, que o arguido só transportava, que sub-contratava (TOC da EMP02...); 24ª A prova produzida no que se refere à inexistência dos serviços prestados insertos nas facturas em crise é quase nula, baseando-se em meras considerações e deduções sem suporte probatório; 25ª O arguido juntou aos autos elementos indiciários que contrariam a tese criminal que suportou a acusação e deu azo à sentença recorrida, quer seja no contrato de arrendamento celebrado com o Banco 1..., quer seja nas guias de transporte, quer seja no reconhecimento judicial do crédito da EMP02... sobre a EMP03... no valor de € 21.938,90; 26ª São aos magotes as empresas que iniciam a sua actividade com a sede na casa de morada de família de um dos sócios ou gerentes, sendo que, posteriormente, quando arrendam ou adquirem o espaço que efectivamente passa a ser a sede, não procedem à alteração junto da Conservatória do Registo Comercial; 27ª Como é perfeitamente normal e lógico que a arguida BB tenha ajudado o marido da sua filha a iniciar uma actidade no ramo têxtil por si dominado, e que lhe emprestasse o espaço físico para iniciar essa actividade, assim poupando um custo importante; 28ª Ao contrário dos juízos que foram sendo feitos ao longo do julgamento, a ajuda da arguida BB ao marido da filha, inclusivamente a ida ao gabinete de contabilidade para iniciar a actividade empresarial, é perfeitamente adequada e lógica; 29ª Ponderados todos os factos indiciários, incluindo os documentos apresentados pelo arguido no decurso da audiência, conjugados com as regras da experiência e da normalidade, não podiam ter sido dados como provados os factos insertos nos pontos 2) e 7) a 22), e por outro lado devia ter sido dado como provado que o arguido AA era gerente de direito e de facto da sociedade EMP03...; 30ª O arguido devia ter sido condenado na pena única de 1 ano de prisão, pena essa substituída por multa; 31ª A pena concretamente aplicada ao arguido não é adequada, justa e proporcional à medida da sua culpa, e também não é adequada aos fins da pena criminal; 32ª Face à ausência de antecedentes criminais do arguido, ao valor diminuto da quantia em dívida, até porque a do 2º período está quase encostada ao limite dos €15.000,00, e ao facto de se resumir a apenas dois trimestres consecutivos do ano de 2015, e às próprias empresas se encontrarem encerradas, entendemos que cumprindo as exigências do artigo 71º do CP, o arguido devia ter sido condenado na pena única de 1 ano de prisão, pena essa substituída por multa; 33ª Essa pena de 1 ano de prisão, substituída por multa, defende de forma adequada, proporcional e justa os fins das penas, quer seja no âmbito da prevenção geral, quer seja no âmbito da prevenção especial; 34ª No trecho dedicado à medida da pena a sentença recorrida fixa os pressupostos de que deve partir para condicionar a suspensão da execução da pena, mas não desce ao concreto, por forma a aquilatar da possibilidade de o arguido cumprir a condição; 35ª E o recorrente não conseguirá cumprir a condição, uma vez que conforme foi dado como provado o arguido e a companheira recebem a retribuição correspondente ao salário mínimo nacional, têm duas filhas menores, e pagam de renda a quantia de €652,00; 36ª Ora, com o devido respeito, o arguido não tem qualquer hipótese de cumprir a condição que foi aposta à pena aplicada, nem agora, nem daqui a 4 anos, pelo que deve ser anulada a condição da suspensão da execução da pena, por impossibilidade de cumprimento, num juízo de prognose quanto à eventual actividade que o arguido possa empreender nos próximos quatro anos, não esquecendo que tem duas filhas ainda dependentes, pelo que deve ser anulada a condição de suspensão da execução da pena. 37ª A sentença recorrida violou ou fez errada aplicação das normas constantes da motivação, nomeadamente: artigos 14º e 105º do RGIT; 41º, 45º e 71º do CP, não podendo, pois, manter-se. Termos em que com o douto suprimento de V. Exas. no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser proferido acórdão absolvendo o arguido do crime pelo qual foi condenado; se tal não for considerado deve ser declarada a apontada nulidade do acórdão por violação das regras de proibição de prova; ser declarada a nulidade da decisão por falta do juízo de prognose sobre a possibilidade do arguido poder cumprir a condição de pagar os €42.368,90; e, ainda em alternativa, ser alterada a medida da pena para 1 ano de prisão, substituída por multa, por só assim se fazer JUSTIÇA!» 3. O Ministério Público respondeu ao recurso, sem apresentar conclusões, pugnando pela manutenção do julgado. 4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na vista a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal([1]), subscrevendo a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso do arguido não merece provimento. 5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, o arguido nada disse. 6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão. * II - FUNDAMENTAÇÃO 1. A sentença recorrida 1.1. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (transcrição): «Da acusação/pronúncia: 1) A sociedade comercial por quotas EMP03..., Unipessoal, Lda., com número de identificação de pessoa colectiva ...41 e com sede efectiva, pelo menos durante o ano de 2015, na Rua ..., ..., ... Guimarães (não obstante, nesse período, registralmente, figurar como sede o edf. ..., n.º 29, ... andar F, ..., Guimarães), onde estiveram instalados os serviços comerciais, administrativos, maquinaria de produção, matérias primas e mão de obra, teve como objecto social a confecção de artigos de vestuário a feitio, e encontrava-se registada no Serviço de Finanças ..., estando colectada, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal de periodicidade trimestral. 2) Tal sociedade foi constituída a 4/4/2008, vindo a ser declarada a respectiva dissolução e o encerramento da liquidação, por decisão judicial de 13/6/2017, sendo a respectiva matrícula cancelada a 16/6/2017, sendo que, pelo menos durante o ano de 2015, sempre foi a arguida BB a responsável pela determinação da actividade que a dita sociedade comercial desenvolveu, nomeadamente pela celebração de negócios, fixando os seus termos, decidindo quais as relações comerciais que mantinha com terceiros, com quem tratava, sendo os responsáveis pela gestão e administração das mesmas, cabendo-lhes assim a decisão de afectação dos seus recursos financeiros à satisfação das respectivas necessidades e sobre os pagamentos aos fornecedores e credores daquelas, contratação de funcionários, e entrega de documentos que serviam de base à elaboração da contabilidade, sendo ainda aquela que determinava a entrega das declarações de rendimentos daquela sociedade para efeitos fiscais. 3) A arguida sociedade comercial por quotas EMP01..., UNIPESSOAL, LDA., com número de identificação de pessoa colectiva ...00, e com sede, pelo menos desde ../../2014, na Rua ..., ..., ... Guimarães, tem como objecto comercial a confecção de artigos de vestuário em série e aluguer de máquinas de confecção e industriais, encontrando-se registada no Serviço de Finanças ..., estando colectada, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal de periodicidade trimestral. 4) Tal sociedade foi constituída a 30/1/2012, sendo que, desde então e até à presente data sempre foi a arguida BB (não obstante registralmente figurar como gerente daquela sociedade arguida FF) a responsável pela determinação da actividade que a dita sociedade comercial desenvolve, nomeadamente pela celebração de negócios, fixando os seus termos, decidindo quais as relações comerciais que mantinha com terceiros, com quem tratava, sendo a responsável pela gestão e administração das mesmas, cabendo-lhe assim a decisão de afectação dos seus recursos financeiros à satisfação das respectivas necessidades e sobre os pagamentos aos fornecedores e credores daquelas, contratação de funcionários, e entrega de documentos que serviam de base à elaboração da contabilidade, sendo ainda aquela que determinava a entrega das declarações de rendimentos daquela sociedade para efeitos fiscais. 5) A arguida sociedade comercial por quotas EMP02..., UNIPESSOAL, LDA., com número de identificação de pessoa colectiva ...66, e com sede na Rua ..., ..., Guimarães, tem como objecto comercial a actividade de produção e comércio de têxteis e afins, encontrando-se registada no Serviço de Finanças ..., estando colectada, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal de periodicidade trimestral. 6) Tal sociedade foi constituída a 28/2/2002, sendo que, desde então e até à presente data sempre foi o arguido CC o responsável pela determinação da actividade que a dita sociedade comercial desenvolve, nomeadamente pela celebração de negócios, fixando os seus termos, decidindo quais as relações comerciais que mantinha com terceiros, com quem tratava, sendo o responsável pela gestão e administração das mesmas, cabendo-lhe assim a decisão de afectação dos seus recursos financeiros à satisfação das respectivas necessidades e sobre os pagamentos aos fornecedores e credores daquelas, contratação de funcionários, e entrega de documentos que serviam de base à elaboração da contabilidade, sendo ainda aquele que determinava a entrega das declarações de rendimentos daquela sociedade para efeitos fiscais. 7) Ora, os arguidos BB, por si e na qualidade de gerente de facto e responsável da sociedade arguida EMP01..., e CC, por si e na qualidade de gerente e responsável da sociedade arguida EMP02..., em data não concretamente apurada, mas sempre anterior ao mês de Fevereiro de 2015, decidiram criar um estratagema para reduzir o valor a pagar em sede IVA, através da utilização de facturas sem qualquer suporte em serviços prestados ou produtos fornecidos, por forma a incluir ali despesas que não foram efectivamente suportadas por aquelas sociedades, incrementando o valor do IVA suportado, aumentando assim o valor do IVA dedutível e diminuindo o valor de IVA a entregar à administração fiscal em cada período (trimestral), obtendo assim aqueles arguidos, para si e para as respectivas sociedades arguidas, uma vantagem patrimonial que sabiam indevida, assim se locupletando de verbas a que não tinham direito por corresponderem a impostos devidos ao Estado Português. 8) Assim, aqueles dois arguidos, aproveitando os contactos que mantinham, por si e em representação daquelas duas sociedades arguidas (e ainda a arguida BB em representação da sociedade EMP03...) combinaram entre si e com o arguido AA, que era, juntamente com a arguida BB, responsável pela condução da vida da sociedade EMP03..., um estratagema que consistia em incorporar na contabilidade regular das sociedades EMP01... e EMP02..., de forma sistemática e reiterada, facturas fictícias pertencentes, respectivamente, às sociedades EMP02... e EMP03... que documentassem transacções comerciais fictícias e/ou prestações de serviços que não correspondiam efectivamente a produtos fornecidos ou serviços prestados. 9) Para o efeito, a sociedade arguida EMP02..., através do referido arguido CC, no período compreendido entre os dias 27/2/2015 e 31/3/2015, emitiu, forneceu e entregou a favor da sociedade EMP01... e da arguida BB, sua responsável e gerente de facto, as seguintes facturas: [Imagem] 10) As referidas facturas foram depois entregues à arguida BB, na qualidade de gerente de facto da sociedade EMP01... e no interesse de todos inclusivamente desta sociedade, em conformidade com o plano por todos desenhado, bem sabendo todos que, pese embora o teor das facturas supra descritas, a sociedade arguida que delas constava como emitente não executou qualquer serviço nem entregou quaisquer bens à sociedade EMP01..., nem à arguida BB, sua responsável. 11) Destarte, esta arguida fez integrar na contabilidade da sociedade arguida EMP01... aquelas facturas e, assim, os valores do IVA das mesmas foram também considerados na declaração periódica de IVA do primeiro trimestre de 2015 daquela sociedade, pela arguida, ou alguém por esta mandatado para o efeito, que as apresentou junto da AT, pelo que tais valores foram assim objecto de dedução como IVA suportado, que implicou a obtenção de uma vantagem patrimonial relativamente a este imposto. 12) Com efeito, a arguida BB, em sede de IVA, ao fazer constar o imposto suportado nas facturas, bem sabendo que elas não correspondiam a serviços efectivamente prestados/produtos fornecidos, obteve para si e para a sociedade EMP01... uma vantagem patrimonial através da dedução indevida deste imposto no montante de € 25.565,10. 13) Defraudando, assim, o Estado no aludido montante ao fazerem crer ao Serviço de Administração Fiscal que o IVA deduzido se baseava em documentos que titulavam verdadeiras transacções, induzindo-o em erro quanto à sua autenticidade, com o que conseguiu que o mesmo visse o seu património prejudicado no correspectivo valor, com os quais se locupletou e que corresponde à vantagem patrimonial ilegítima que aquela sociedade arguida EMP01... e a arguida BB obtiveram. 14) E, para o mesmo efeito, a sociedade EMP03..., através da referida arguida BB, no período compreendido entre os dias 6/4/2015 e 15/5/2015, emitiu, forneceu e entregou a favor da sociedade EMP02... e do arguido CC, seu gerente, as seguintes facturas: 16) Destarte, este arguido fez integrar na contabilidade da sociedade EMP02... aquelas facturas e, assim, os valores do IVA das mesmas foram também considerados na declaração periódica de IVA do segundo trimestre de 2015 daquela sociedade, pelo arguido CC, ou alguém por este mandatado para o efeito, que as apresentou junto da AT, pelo que tais valores foram assim objecto de dedução como IVA suportado, que implicou a obtenção de uma vantagem patrimonial relativamente a este imposto. 17) Com efeito, o arguido CC, em sede de IVA, ao fazer constar o imposto suportado nas facturas, bem sabendo que elas não correspondiam a serviços efectivamente prestados/produtos fornecidos, obteve para si e para a sociedade EMP02... uma vantagem patrimonial através da dedução indevida deste imposto no montante de € 16.803,80. 18) Defraudando, assim, o Estado no aludido montante ao fazerem crer ao Serviço de Administração Fiscal que o IVA deduzido se baseava em documentos que titulavam verdadeiras transacções, induzindo-o em erro quanto à sua autenticidade, com o que conseguiu que o mesmo visse o seu património prejudicado no correspectivo valor, com os quais se locupletou e que corresponde à vantagem patrimonial ilegítima que aquela sociedade arguida EMP02... e o arguido CC obtiveram. 19) Os arguidos BB e CC, ao forjarem as facturas supra referidas, nos moldes referidos, utilizando-as nos termos e com os objectivos descritos puseram em causa o património do Estado – Administração Fiscal e a verdade da sua situação tributária o que quiseram e lograram. 20) Agiram os arguidos BB, por si e na qualidade de gerente de facto e responsável da sociedade arguida EMP01..., e CC, por si e na qualidade de gerente e responsável da sociedade arguida EMP02..., e sabiam que os serviços/produtos discriminados nas facturas acima referidas não correspondiam a quaisquer transacções levadas a cabo ou a prestações de serviços e que as mesmas se destinavam apenas a serem incorporadas na contabilidade daquelas sociedades, com o propósito conseguido, de obter para estas benefícios económicos que sabiam serem ilegítimos, à custa da diminuição do património do Estado e ainda de utilizar as importâncias monetárias correspondentes em proveito próprio e das sociedades das quais eram representantes, não obstante saber que tais quantias não lhes pertenciam, nem à sociedade, mas sim ao Estado. 21) Ademais, aquela arguida BB, em representação da sociedade EMP03..., de que eram gerente de facto, e o arguido CC, em representação da sociedade arguida EMP02..., de que era gerente de facto, tinham igual conhecimento e propósito, tendo emitido as facturas supra identificadas com a intenção de que, respectivamente, as sociedades arguidas EMP02... e EMP01... e os seus representantes obtivessem os aludidos benefícios patrimoniais com a utilização das ditas facturas, que as mesmas bem sabiam não assumir qualquer correspondência com serviços/bens efectivamente (não) prestados, estando igualmente conscientes que dessa forma ludibriavam os serviços da Administração Fiscal, o que quiseram e lograram. 22) Agiram os arguidos BB e CC todos sempre de forma livre, voluntária e consciente, e concertada entre si, bem conhecendo o carácter proibido e criminalmente punível das suas condutas e, mesmo assim, não se coibiram de o fazer. Mais se apurou: 23) O agregado da arguida BB apresenta uma dinâmica relacional positiva, sendo descrita uma atitude de apoio do filho para com a arguida, apesar de aquele atribuir à mãe um caráter reservado, sobretudo no que diz respeito à sua vida profissional e empresarial. O descendente auxilia a progenitora na supressão de dificuldades financeiras e sustentabilidade do agregado. 24) A arguida tem uma filha mais velha, fruto de uma relação anterior, de quarenta e dois anos de idade, autonomizada há vários anos, com quem descreve uma boa relação. Esta descendente é cônjuge do coarguido AA. 25) Relativamente à data dos factos constantes nos autos a situação registava as seguintes alterações: à data dos factos, integrava também este agregado GG, companheiro da arguida e pai do filho de ambos, HH. A arguida iniciou relação íntima com este companheiro quanto tinha vinte e nove anos de idade, tendo ambos mantido uma união de facto até cerca de 2015/2016. 26) A arguida concluiu o 4º ano de escolaridade, mas tem formação como modelista. 27) Actualmente, BB encontra-se desempregada, desde que encerrou a empresa “EMP04..., Unipessoal, Lda.”, em agosto de 2023, na qual exercia atividade por conta própria, na categoria de sócia-gerente. 28) Esta empresa foi constituída em 2016, tendo como atividade económica a confeção de outro vestuário exterior em série. Segundo a arguida, esta empresa vinha apresentando um desempenho económico-financeiro desfavorável, com acumulação de dívidas à Segurança Social e à Autoridade Tributária, que não teve capacidade de regularizar, referindo, neste contexto, ter já sido alvo de penhoras. Desta forma, entrou aquela empresa em insolvência, processo ainda em curso. 29) Nos últimos meses referiu ter auxiliado, ocasionalmente, uma amiga/colega, na prestação de serviços de limpeza, actividade que tem exercido de modo informal, descrevendo um rendimento mensal decorrente desta ocupação inferior a 200€ (duzentos euros) mensais. 30) A arguida apresenta evidente desânimo e desgaste psicoemocional relativamente a esta situação, manifestando sentimentos de incapacidade para fazer face às suas responsabilidades na empresa e sintomatologia ansiodepressiva. 31) BB sempre trabalhou na área da confeção têxtil, inicialmente por conta de outrem. Após iniciar união de facto com o ex-companheiro e, segundo a mesma, incentivada e com o apoio deste, constituiu a primeira empresa por conta própria na área têxtil, tendo sido sócia-gerente da “BB; Cª, Lda.”. O desempenho económico empresarial terá decorrido de forma favorável nos primeiros anos tendo, anos depois, revelado fragilidades económicas e uma espiral de endividamento, que acabaram por conduzir à sua insolvência e aos primeiros contactos da arguida com o sistema de justiça penal, por crimes de abuso de confiança fiscal e à Segurança Social. No sentido de tentar recuperar a atividade, fundou uma nova empresa, em nome da filha mais velha, a EMP01...- Confeção e Aluguer de Máquinas, Unipessoal, Lda.”. 32) Situação económica: Valor dos rendimentos líquidos da arguida: 0€; valor dos rendimentos líquidos do agregado: 1200€, aproximadamente (relativos ao vencimento do filho da arguida); valor total das despesas/encargos fixos do agregado:[X] Habitação: 30€ para consumos domésticos. A energia era paga pela empresa “EMP04..., Unipessoal, Lda.”, encontrando-se o agregado a regularizar a situação. A última conta de energia rondou os 400€, sendo expectativa que este valor seja acertado nos próximos meses. [X] Amortização com empréstimos bancários: cerca de 1000€ (crédito habitação) [X] Saúde medicação mensal cujos valores não conseguiu precisar [X] Outros: 181,28€ relativo a seguros obrigatórios do crédito à habitação. 33) A arguida descreve uma situação económica de gestão complexa, atentas as suas dívidas pessoais, relacionadas com os processos judiciais de que tem vindo a ser alvo, bem como as dívidas fiscais que resultaram da sua atividade empresarial. Refere ter tentado um acordo com a Segurança Social, por incumprimentos da “EMP04..., Unipessoal, Lda.”, tendo-lhe sido proposto um valor de cerca de 8000€ mensais, que considera demasiado elevado tendo em conta a situação económica difícil que atravessa. 34) Sobrevive com ajuda financeira do descendente, que assumiu a responsabilidade pela amortização do crédito da habitação. Beneficia ainda de ajuda e suporte consistente por parte da irmã e dos progenitores, que lhe garantem as refeições diárias. 35) Aufere alguns valores pecuniários, de baixo montante, quando auxilia uma amiga na prestação informal de serviços de limpeza. 36) A arguida apresenta inserção sociocomunitária positiva, sendo-lhe reconhecido um papel ativo na comunidade, designadamente ao nível da promoção da empregabilidade local. São-lhe atribuídos hábitos de trabalho e um estilo de vida simples e contido, não se observando sinais exteriores de riqueza, sendo do conhecimento local as dificuldades recentes ao nível empresarial. É descrita como pessoa de trato adequado e fácil, nada constando em seu desabono. 37) A arguida refere cefaleias e hipertensão, relevando, atualmente, problema de saúde do foro oftalmológico (trombose ocular) que se encontra a tratar, mas não impeditivo da execução das suas tarefas diárias. 38) Desenvolveu ainda perturbação de humor depressivo, reativo aos acontecimentos de vida negativos que têm ocorrido nos últimos anos, designadamente com as dificuldades empresariais, insolvências e contactos com o sistema de administração de justiça penal. Efetua toma regular de medicação psiquiátrica. 39) A arguida reflete criticamente acerca da sua situação jurídico penal atual, enquadrando-a num contexto de circunstâncias externas desfavoráveis (como as crises do setor empresarial têxtil, as crises económicas e o desempenho desfavorável das empresas a seu cargo), bem como a um conjunto de decisões que hoje considera que foram desajustadas e prejudiciais para si, para as próprias empresas e para o Estado. 40) A arguida BB já sofreu as seguintes condenações: a) Processo Comum (Tribunal Singular) nº 253/16...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães- J..., pela prática, em 2016, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 28-09-2018, transitada em julgado em 29-10-2018, a pena de 140 dias de multa, à taxa diária de € 5,50; b) Processo Comum (Tribunal Singular) nº 1793/17...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães- J..., pela prática, em 01-12-2013, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 11-07-2019, transitada em julgado em 01-10-2019, a pena de 160 dias de multa, à taxa diária de € 5,50. c) Processo Comum (Tribunal Singular) nº 247/15...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – J..., pela prática, em 16-02-2015, de um crime de abuso de confiança fiscal, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 04-10-2019, transitada em julgado em 04-11-2019, a pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 6,00; d) Processo Comum (Tribunal Singular) nº 190/17...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – J..., pela prática, em Setembro de 2016, de um crime de abuso de confiança fiscal, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 18-10-2019, transitada em julgado em 18-11-2019, a pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 6,00; e) Processo Comum (Tribunal Singular) nº 294/18...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – J..., pela prática, em 16-02-2018, de um crime de abuso de confiança fiscal, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 15-07-2020, transitada em julgado em 30-09-2020, a pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,50; f) Processo Comum (Tribunal Singular) nº 72/19...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – J..., pela prática, em 2018, de dois crimes de abuso de confiança fiscal e um crime de abuso de confiança contra a segurança social, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 14-10-2021, transitada em julgado em 15-11-2021, a pena de 1 ano de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos; 41) O arguido CC é comerciante na área de cosmético, auferindo o salário mínimo nacional. 42) A companheira é trabalhadora por conta de outrem, auferindo o salário mínimo nacional. 43) Têm dois filhos, de 17 e 15 anos de idade. 44) Vivem em casa arrendada, sendo a renda mensal de € 652,00. 45) O arguido concluiu o 9º ano de escolaridade. 46) Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido CC. 47) A sociedade arguida EMP02..., Unipessoal Lda. está inactiva desde 2015. 48) Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida EMP02..., Unipessoal Lda. 49) A sociedade arguida EMP01... Unipessoal Lda. já sofreu as seguintes condenações: a) Processo Comum (Tribunal Singular) nº 253/16.... do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz ..., pela prática, em 2016, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 28-09-2018, transitada em julgado em 29-10-2018, a pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 5,00; b) Processo Comum (Tribunal Singular) nº 1793/17...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães- J..., pela prática, em 01-12-2013, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 11-07-2019, transitada em julgado em 01-10-2019, a pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 5,00; c) Processo Comum (Tribunal Singular) nº 247/15...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – J..., pela prática, em 16-02-2015, de um crime de abuso de confiança fiscal, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 04-10-2019, transitada em julgado em 04-11-2019, a pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 10,00;”. * 1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida (transcrição):«a) O arguido AA geria a sociedade EMP03..., juntamente com a arguida BB. b) O arguido AA actuou conforme referido em 21), juntamente com a arguida BB e em representação da sociedade EMP03.... c) O arguido AA agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem conhecendo o carácter proibido e criminalmente punível das suas condutas e, mesmo assim, não se coibiu e o fazer.» * 1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):«O tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, e bem assim a prova documental junta aos autos, toda ela livre e criticamente apreciada de acordo com as regras da experiência, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal. Os arguidos, quanto aos factos constantes do libelo acusatório, exerceram o direito a não prestar declarações (artigo 61º, nº 1, alínea d) e 343º, nº 1, do CPP). Contudo, a arguida, numa das sessões da audiência de julgamento, referiu que os cheques constantes de fls. 1298/1311 serviram para pagamento das facturas referidas no ponto 9) dos factos provados. EE, ex-contabilista da sociedade EMP03... desde a data da sua criação ate à sua insolvência, referiu que o gerente de direito da sociedade era o arguido AA, mas confirmou que quem contratou os seus serviços foram os arguidos AA e BB, sendo com esta, contudo, que contactava para tratar da documentação contabilística referente àquela sociedade. II, que trabalhou para a EMP03... durante cerca de dez anos, referiu que foi contratada por aquele que foi o companheiro da arguida BB, GG, o qual, depois terá passado a empresa para o arguido AA. Passou depois a trabalhar para a EMP01..., a qual era gerida pela arguida BB, sendo esta quem dava as ordens na empresa e que procedia ao pagamento dos salários. JJ, ex-contabilista da EMP02..., num registo que se nos afigurou objectivo e descomprometido, confirmou que quem geria aquela empresa era o arguido CC, pessoa com quem tratava dos assuntos contabilísticos. Mais confirmou que a empresa não tinha instalações próprias e não tinha conta bancária, sendo que nunca o arguido CC lhe entregou qualquer documento referente a recebimentos/pagamentos, designadamente recibos dos serviços prestados. DD, ex-trabalhadora das sociedades EMP03... e EMP01..., num registo igualmente seguro, objectivo e descomprometido, referiu que naquela primeira sociedade a sua patroa era a aqui arguida BB, tendo sido esta a contratá-la, pessoa de quem recebia as ordens e com quem tratava de todos os assuntos laborais. Quanto ao arguido AA, o mesmo era apenas um trabalhador que se dedicava a fazer etiquetas. Mais referiu a testemunha que, mais tarde, passou a trabalhar para a sociedade EMP01..., igualmente gerida pela arguida BB, até porque foi esta quem a contratou. KK, empresário, referiu que os cheques de fls. 1298/1311 foram-lhe entregues pelo arguido CC para desconto, adiantando-lhe, assim, o respectivo valor, já que se tratava de cheques pré-datados. Resulta da prova produzida, mormente testemunhal, que a arguida BB era, efectivamente, gerente da sociedade EMP01..., sendo a pessoa que comandava os seus destinos, sendo certo que, em boa verdade, a arguida não põe em causa aquela qualidade. Já quanto à sociedade EMP03..., queremos, atenta a prova testemunhal produzida, que a arguida BB não era alheia à sua gestão de facto, como bem se conclui dos depoimentos das diversas trabalhadoras que, ao longo de diversas empresas, têm trabalhado para a arguida, sendo por esta contratadas, ficando sob o seu poder de direcção. Aliás, o percurso empresarial da arguida, corrobora essa mesma conclusão, na medida em que ficou patente que a mesma tem criado, sucessivamente, diversas empresas, sempre que se depara com o insucesso da anterior, não deixando, contudo, de colocar “testas de ferro” nas várias empresas pelas razões que são sobejamente conhecidas e que, infelizmente, se tem tornado uma prática corrente e vista como normal no nosso tecido empresarial (cfr. certidões judiciais de fls. 1007/1114, de cujas sentenças resulta, claramente, que a arguida apesar de gerir de facto as sucessivas sociedades, nunca se assume como gerente de direito). Na verdade, da prova produzida, resulta que a arguida tinha o domínio da gestão da sociedade EMP03..., designadamente pela contratação de trabalhadores e do contabilista, com quem tratava dos assuntos societários, condutas que integram actos de gestão com suficiente relevo para se concluir que a arguida BB era interessada nos destinos da EMP03..., ou seja, que era sua gerente, sendo certo que, naturalmente, caberia a AA, enquanto gerente de direito a vinculação formal da sociedade EMP03..., a que não será alheio o facto deste ser próximo da arguida, enquanto companheiro da filha. Quanto ao arguido CC, não sofre igualmente dúvida, atenta a prova produzida, mormente testemunhal, que o mesmo era, efectivamente, gerente de facto da sociedade EMP02..., conforme bem ressaltou do depoimento da testemunha JJ. Quanto à participação do arguido AA na gestão de facto da sociedade EMP03..., teremos que reconhecer que a prova produzida foi escassa e muito vaga. Com efeito, apenas temos o depoimento da testemunha EE que confirmou que os seus serviços foram contratados pelo arguido e pela arguida BB. Mas aqui, conforme já se deixou claro, tal acto não se nos afigura determinante na medida em que é natural e expectável que enquanto gerente de direito, apenas ele tinha a legitimidade para vincular a sociedade. Assim, não se duvida que a simples circunstância do arguido AA figurar como gerente de direito da sociedade EMP03... nunca constituiria sólido apoio para, porventura com fundamento nas máximas da experiência comum, suportar, por si só, a conclusão de que o mesmo participou na gestão da sociedade e nas sucessivas tomadas de decisão que conduziram à emissão das facturas em causa, bem se vê que o sentido para que indubitavelmente apontam os elementos probatórios que vimos de considerar é da impossibilidade de se concluir que o referido arguido teve intervenção, directa ou indirecta, nos factos apurados. Na verdade, a sua verdadeira actuação no contexto descrito ficou muito nebulosa e ténue, ao contrário da descrita actuação da arguida BB. Assente que se mostra a conclusão de que a arguida BB era a gerente de facto das sociedades EMP03... e EMP01... e que, por sua vez, o arguido CC, exercia a gerência de facto da sociedade EMP02..., parte-se, agora, para a explicitação das razões que nos levam a concluir que as facturas em causa são falsas, no sentido de que não retratam serviços efectivamente prestados e não tiveram outro fim que não seja o de evitar o pagamento do imposto de IVA ao Estado. Nesta parte foi fundamental a prova documental dos autos e o depoimento das testemunhas LL e MM, ambos inspectores tributários. Assim, da prova documental, devidamente concatenada com a prova testemunhal, foi valorada a seguinte: declaração de IVA (fls. 5/6; 57/61, 97/101; 372/377); certidão permanente da sociedade EMP03... (fls. 12/16); facturas (fls. 21/24); balancete geral e extracto de conta de conferência (fls. 28/31; 36/41); documentos (fls. 182/198; 201/204; 208/235; 237/269;273/281); informação da AT (fls. 296/299); certidão permanente da sociedade EMP02... (fls. 315/316); relatório da acção inspectiva à sociedade EMP01... (fls. 344/355); certidão permanente da sociedade EMP01... (fls. 358/361); parecer, elaborado nos termos do artigo 42º, nº 3, do RGIT, tão só na parte atinente à análise da documentação contabilística e respectivas conclusões (fls. 392/417); documentos do anexo I. LL, inspector tributário, de um modo que se nos afigurou objectivo, escorreito e descomprometido, confirmou o teor do parecer de fls. 392/417, designadamente as conclusões nele exaradas, alcançadas com recurso aos documentos que foram coligidos, tendo a testemunha procedido à análise do trajecto da facturas em causa. Mais esclareceu que a EMP03... tinha cerca de 20 funcionários que, ao longo do tempo, foram transitando para a EMP01.... Aludiu ao tipo de actividade das empresas, designadamente trabalho a feitio, com margens curtas de lucro, cujo input é apenas o trabalho. Confirmou que a EMP02... não tinha trabalhadores e que as facturas pela mesma passadas à EMP03... tinham uma margem de lucro de 100% o que é manifestamente inaceitável, face ao tipo de actividade em causa. Aludiu às incoerências temporais referentes às diversas facturas. De resto, apontou para a falta de racional na entrega pela EMP03... à EMP02... de trabalho, quando aquela, na altura dos factos, estava ainda em laboração e tinha capacidade de trabalho, conclusões a que chegou pela análise da diversa documentação contabilística contemporânea e anterior aos factos. MM, inspector tributário, num registo igualmente seguro e objectivo, esclareceu que realizou uma inspecção à EMP02..., em 2015, tendo concluído que a empresa não tinha instalações afectas a qualquer actividade industrial, sendo o único trabalhador afecto, o aqui arguido CC. Nesse âmbito, o arguido, nunca apresentou a contabilidade, sendo certo que da análise que fez a testemunha, constatou que inexistia quaisquer declarações de operadores terceiros sobre aquisição de bens, nem havia evidências de input declarados por terceiros. Assim, analisando estes dois últimos depoimentos, alicerçados na análise da diversa documentação, conclui-se que as facturas em causa não têm por objecto reais transacções, conforme se passa a explanar, com recurso ao já aludido parecer. Com efeito, da análise à documentação junta aos autos extrai-se que as facturas em apreço nos autos, emitidas pela sociedade «EMP03..., Unipessoal, Lda.», representam serviços prestados sobre um conjunto de produtos têxteis facturados à sociedade comercial arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.», que por sua vez emitiu faturas à sociedade comercial arguida «EMP01..., Unipessoal, Lda.», e que aparentemente se referem a serviços prestados sobre os mesmos bens por aquela adquiridos à sociedade «EMP03..., Unipessoal, Lda.. No decurso do segundo trimestre do ano de 2015 (2015/06T), a sociedade «EMP03..., Unipessoal, Lda.» emitiu à sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.» as quatro faturas mencionadas na acusação. As faturas e o IVA nelas liquidado constituem a totalidade dos valores que constam da declaração periódica de IVA que está na base do presente processo (cf. fls. 5 e 21 a 24). Da contabilidade da sociedade «EMP03..., Unipessoal, Lda.» verifica-se que tais faturas não foram pagas pela sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.» (cf. fls. 28). Acresce que, tal como referido na informação da inspeção tributária, a sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.» foi objeto de vários procedimentos inspetivos, o último dos quais aos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014, no qual foram efetuadas correções fiscais e que deram origem a processo de inquérito por fraude fiscal – processo n.º 359/2... (cf. fls. 287 a 295). Das conclusões da ação inspetiva realizada àquela empresa em anos anteriores, concluiu-se que a mesma não apresentava estrutura empresarial que evidenciasse a realização ou intenção de realizar operações comerciais (cf. fls. 287 a 295). Dos elementos contabilísticos da sociedade «EMP03..., Unipessoal, Lda.» e da sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.» verifica-se que são cliente e fornecedor uma da outra (cf. fls. 28 e 3 – Anexo 1). Os elementos contabilísticos da sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.» demonstram que as aquisições efetuadas à sociedade «EMP03..., Unipessoal, Lda.» se encontram igualmente por pagar (fls. 3 e 7). Importa ainda sublinhar as seguintes circunstâncias: - Similitude do gerente de facto das empresas «EMP03..., Unipessoal, Lda.» e «EMP01..., Unipessoal, Lda.»; - O histórico fiscal das empresas «EMP02..., Unipessoal, Lda.» e «EMP01..., Unipessoal, Lda.», as quais foram objecto de fiscalizações em anos imediatamente anteriores e nos quais se concluiu que as mesmas foram, em anos imediatamente anteriores, respetivamente, emitente e utilizador de facturação falsa; - A inexistência de estrutura económica, mais precisamente, inexistência de funcionários, local de laboração e máquinas por parte da sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.»; - Inexistência de pagamentos das operações entre os intervenientes; - Valorização significativa dos produtos aquando da passagem pela sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.»; - Incoerência temporal, relativamente à data das faturas, entre a data da compra e da venda dos produtos entre as empresas, ou seja, a venda por parte da sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.» à sociedade arguida «EMP01..., Unipessoal, Lda.» ocorreu antes da compra à empresa «EMP03..., Unipessoal, Lda.»; - A sociedade arguida «EMP01..., Unipessoal, Lda.» apresenta um elevado valor de IVA dedutível na declaração periódica de IVA do primeiro trimestre do ano de 2015, incompatível com a actividade por si desenvolvida; Acresce que, a sociedade comercial «EMP03..., Unipessoal, Lda.» vendeu à sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.», no decurso do segundo trimestre do ano de 2015, bens/prestações de serviços no valor de €89.863,80, nos quais se incluem o valor de €16.803,80 referente a IVA – cfr. fls. 21 a 24. Já no período de imposto anterior, em 31-03-2015, a sociedade comercial «EMP03..., Unipessoal, Lda.» havia vendido ao mesmo cliente o valor de €18.660,58 na fatura n.º ...4 (cfr. fls. 88 do Anexo 1). Foi, então, de €108.524,38 (€18.660,58 + €89.863,80) o montante total de faturação da sociedade comercial «EMP03..., Unipessoal, Lda.» à sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.» no decurso do ano de 2015. Esta sociedade arguida foi também o único cliente da sociedade comercial «EMP03..., Unipessoal, Lda.» nesse ano e, desde então, não mais realizou operações comerciais. Constata-se, também, que a sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.» tinha como um dos seus principais clientes a sociedade arguida «EMP01..., Unipessoal, Lda.», a qual, tal como a sociedade comercial «EMP03..., Unipessoal, Lda.», era gerida de facto também pela arguida BB. Com base na consulta da aplicação de gestão da comunicação das faturas (e-fatura) e seguindo o suposto percurso dos bens/serviços transmitidos, verifica-se que os bens/serviços que foram vendidos nas faturas números ...5, ...6, ...7 e ...8, emitidas todas no segundo trimestre do ano de 2015 (nos meses de abril e maio) pela sociedade comercial «EMP03..., Unipessoal, Lda.», foram, na sua maioria, posteriormente vendidos/transmitidos, com significativa margem de lucro, pela sociedade arguida «EMP02..., Unipessoal, Lda.» à sociedade arguida «EMP01..., Unipessoal, Lda.» - cfr. facturas números ...36, ...46, ...55, ...56, ...58, ...60, ...61, ...63, ...65, ...66, ...69, ...76 e ...81, emitidas nos meses de janeiro, fevereiro, março abril e maio do ano de 2015 (cfr. fls. 124v, 1 19, 114v, 114, 113, 112, 111v, 110v, 109v, 109, 107v, 104 e 101v do anexo l). Dito isto, concatenando todos estes elementos objectivos ou indícios, chegamos à conclusão de que aqueles, devidamente conjugado, criaram um todo suficientemente convincente no sentido de que as facturas em causa não correspondem a trabalhos efectivamente prestados pelas sociedades emitentes. Com efeito, repisando-se um detalhe, importa atentar no facto de que a tais facturas não correspondem quaisquer meios de pagamento, como seria de esperar, sendo certo que tal conclusão vai ao encontro do depoimento do contabilista da EMP02..., que confirmou que o arguido nunca lhe entregou quaisquer documentos comprovativos de pagamento ou recibos o que é de todo inusitado, porque não está conforme às regras da normalidade e fogem às regras do bom senso. O facto de constar dos autos cópia de cheques alegadamente para pagamento das facturas referidas em 9), não belisca a conclusão a que chegamos, na medida em que, em rigor, não sabemos o destino de tais valores, sendo certo que este procedimento é frequente e habitual neste tipo de criminalidade, tudo com vista a criar uma aparência de regularidade das transacções, designadamente de pagamentos. Acresce que a documentação junta pela EMP02... (fls. 1316/1335; 1347/1351), não tem a virtualidade de contrariar a conclusão apontada, ou seja, não constituem contraindícios do que se acabou de expor. Em suma, do que se acabou de relatar, devidamente conjugado com as regras da normalidade, conclui-se que as facturas em causa são falsas, ou seja, que não têm correspondência com qualquer serviço prestado pelas sociedades emitentes. Quanto ao elemento subjectivo das condutas, o mesmo retirou-se da conjugação dos factos provados com as regras da experiência comum, pois qualquer cidadão que emite, contabiliza e utiliza facturas, sabendo que as mesmas não têm subjacentes quaisquer prestações de serviços, age com o propósito conseguido de evitar a liquidação e entrega de IVA, para assim pagar um valor inferior ao que efectivamente deveria ter pago, obtendo com isso uma vantagem patrimonial e causando prejuízos ao Estado de valor equivalente, colocando em crise o regular funcionamento do sistema fiscal e dos interesses por este servidos, não podendo ainda deixar de saber do carácter ilícito da sua conduta. No que diz respeito às condições sociais e económicas dos arguidos, foram valoradas as suas próprias declarações e o relatório social junto aos autos. A in/existência de antecedentes criminais resulta da análise dos CRC juntos aos autos.» * 2. ApreciandoDispõe o artigo 412.º, n.º 1 que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência: - nulidade da sentença por falta de fundamentação; - valoração de prova proibida; - erro notório na apreciação da prova; - violação do princípio in dubio pro reo; - enquadramento jurídico-penal; - medida das penas; - condição de suspensão da execução da pena de prisão. 2.1. Da nulidade da sentença por falta de fundamentação Alega o arguido que a sentença recorrida é nula, nos termos do disposto nos artigos 374.º n.º 2 e 379.º n.º 1 al. a) do CPP, porque não fundamenta devidamente a conclusão de terem existido duas resoluções criminosas quando existem apenas 12 facturas em dois períodos trimestrais consecutivos do ano de 2015. Vejamos. A sentença, acto decisório do juiz por excelência, divide-se em três partes: o relatório, a fundamentação e o dispositivo (artigos 97.º, nºs 1, a) e 2 e 374.º). A fundamentação é composta pela enumeração dos factos provados e não provados bem como pela exposição completa mas concisa dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374.º, n.º 2). Os factos provados e não provados que devem constar da fundamentação da sentença são todos os factos constantes da acusação e da contestação, os factos não substanciais que tenham resultado da discussão da causa e os factos substanciais resultantes da discussão da causa e aceites nos termos do artigo 359.º([2]). A fundamentação da sentença penal decorre da exigência de total transparência da decisão para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a actividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da actividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a Revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República. E por isso a lei fulmina com nulidade a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º, isto é, no que ora interessa, quando não contenha uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, das razões de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Se é certo que na fundamentação da matéria de facto não há que reproduzir os depoimentos e o conteúdo dos restantes meios probatórios, já que fundamentação não é sinónimo de redução a escrito da prova, também não basta a enumeração dos meios de prova e juízos conclusivos sobre os mesmos, tornando-se necessário explicar, embora de forma concisa, o processo de formação da convicção do julgador. Através da fundamentação da matéria de facto da sentença há-de ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal. Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo([3]). Portanto esse exame crítico deve indicar no mínimo, e não tem que ser de forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal. O que é essencial é que através da leitura da sentença se perceba por que razão o tribunal decidiu num sentido e não noutro, garantindo-se que a decisão sobre a matéria de facto não foi fruto de capricho arbitrário do julgador ou de mero “palpite”. Assim, sob pena de nulidade, a sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e dos meios de prova, há-de conter também “os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal colectivo num determinado sentido”([4]). Nisto se esgota a questão da nulidade da sentença por falta de exame crítico das provas. Esta nulidade só ocorre quando não existir o exame crítico das provas e não também quando forem incorrectas ou passíveis de censura as conclusões a que o tribunal a quo chegou. Percebidas as razões que serviram para a formação da convicção do tribunal podem os sujeitos processuais, com recurso ao registo da prova, argumentar no sentido da alteração da matéria de facto por parte do tribunal de recurso. Posto isto, dir-se-á que a fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida deixa claramente explicitado o iter da decisão e as razões da valoração efectuada, estruturada nos elementos de prova documental e pessoal que referencia e analisa de forma racional, lógica e crítica, assim como nas regras da experiência, indicando de forma clara a formação da convicção do tribunal a quo. No que respeita ao elemento subjectivo das condutas explicitou-se que «o mesmo retirou-se da conjugação dos factos provados com as regras da experiência comum, pois qualquer cidadão que emite, contabiliza e utiliza facturas, sabendo que as mesmas não têm subjacentes quaisquer prestações de serviços, age com o propósito conseguido de evitar a liquidação e entrega de IVA, para assim pagar um valor inferior ao que efectivamente deveria ter pago, obtendo com isso uma vantagem patrimonial e causando prejuízos ao Estado de valor equivalente, colocando em crise o regular funcionamento do sistema fiscal e dos interesses por este servidos, não podendo ainda deixar de saber do carácter ilícito da sua conduta.». A este respeito a realidade que emerge da factualidade provada, quanto ao conjunto de facturas referido no ponto 9) dos factos provados, é que a conduta do arguido CC, enquanto gerente da sociedade EMP02..., consistiu na emissão de facturas a favor da sociedade EMP01... e da arguida BB, sua responsável e gerente de facto, que as fez integrar na contabilidade da sociedade EMP01..., a fim de deduzir o respectivo IVA. Já relativamente ao conjunto de facturas referido no ponto 14) dos factos provados, o que resulta da factualidade provada é que a conduta do arguido CC, enquanto gerente da sociedade EMP02..., consistiu em receber facturas emitidas pela sociedade EMP03... e a fazê-las integrar a contabilidade da sociedade da EMP02..., a fim de deduzir o respectivo IVA. A estas duas situações que se traduzem em dois modos de execução perfeitamente autónomos, envolvendo diferentes sujeitos passivos de IVA, correspondem duas resoluções distintas e autónomas, ou seja, correspondem, numa compreensão global da conduta do arguido, uma pluralidade de sentidos de ilicitude típica, isto é, dois crimes. Assim, considerando os factos apurados, referindo-se o dolo do arguido a cada uma das descritas situações que, como decorre dos factos apurados, são duas distintas situações, existiu pluralidade de resoluções criminosas. Improcede, portanto, a invocada nulidade. 2.2. Da valoração de prova proibida Alega o recorrente que o tribunal a quo fundou a sua convicção nas “informações intercalares” e finais dos dois inspectores que não podiam ser valoradas quer porque não se trata de prova produzida em audiência de julgamento, quer porque se trata de declarações de testemunhas cuja leitura não foi autorizada através de despacho. Vejamos. O artigo 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa dispõe que são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. A nível infraconstitucional esta norma mostra-se replicada nos nºs 1 e 3 do artigo 126.º do Código de Processo Penal regulador dos métodos proibidos de prova [proibição absoluta de prova quanto ao n.º 1 e proibição relativa de prova quanto ao n.º 2]. As proibições de prova, como é sabido, consistem em verdadeiras garantias do processo penal no que respeita à defesa dos direitos fundamentais que compõem a dignidade da pessoa humana, funcionando como limites à descoberta da verdade. As proibições de prova em processo penal não se limitam a este artigo, pois encontramos dispersas pelo respectivo código várias disposições que as prevêem, v.g., artigos 129.º, n.º 1, 134.º, n.º 2, 147.º, n.º 7 e 355.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal. Como resulta da leitura da decisão recorrida o tribunal a quo formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, e bem assim a prova documental junta aos autos, toda ela livre e criticamente apreciada de acordo com as regras da experiência, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal. No que respeita especificamente ao parecer junto aos autos, elaborado nos termos do artigo 42.º, n.º 3 do RGIT, o tribunal a quo afirmou expressamente que o mesmo foi valorado tão só na parte atinente à análise da documentação contabilística e respectivas conclusões (fls. 392/417). Assim, ao contrário do que alega o recorrente, não se mostra feita nos autos a valoração de prova proibida, designadamente a valoração probatória de “informações intercalares” e finais dos dois inspectores tributários. Improcede, portanto, esta questão. 2.3. Do erro notório na apreciação da prova Alega o recorrente que a sentença recorrida incorreu em erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. c) do CPP, porquanto quer os depoimentos das testemunhas, quer os documentos juntos pelo recorrente nunca poderiam levar às conclusões a que chegou a sentença recorrida. Os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação do prova – são defeitos estruturais da própria decisão penal, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte, exclusivamente, do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum. No âmbito da revista alargada – comum designação do regime – o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, limitando a sua actuação à detecção dos vícios que a sentença, por si só e nos seus precisos termos, evidencia e, não podendo saná-los, determina o reenvio do processo para novo julgamento. O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O apontado vício é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e perceptível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do “homem médio”. Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial. Assim balizado o vício, lida a decisão em crise, não vemos que tenha sido considerado provado um qualquer facto que, notoriamente, não pudesse ter acontecido, nem que tenha sido valorado um qualquer meio de prova ao arrepio de critério legal estabelecido ou que esta tenha sido valorada contra as regras da experiência comum. O que parece ser o verdadeiro propósito do recorrente é antes discordar da decisão proferida sobre a matéria de facto por entender que nela foram cometidos erros de apreciação, o que é evidenciado quando o recorrente invoca quer os depoimentos das testemunhas, quer os documentos que juntou aos autos, deslocando, portanto, a questão para o campo da valoração da prova. Esta discordância já não tem a ver com o regime dos vícios da decisão, pois, a existir erro, ele não será notório, mas antes com o modo como o tribunal a quo valorou a prova produzida, ou seja, o uso que o tribunal recorrido fez do princípio da livre apreciação da prova. Assim balizada a questão, ela nada tem a ver com o invocado vício, mas antes com a discordância do recorrente em relação a concretos aspectos da decisão sobre a matéria de facto, discordância para a qual fixa a lei procedimentos a observar pelo recorrente, essencialmente, no artigo 412.º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, que prevê a principal regulamentação do recurso da matéria de facto ou, preferindo-se, da impugnação ampla da matéria de facto, mecanismo processual a que o arguido não recorreu. Em conclusão, não se evidencia o vício de erro notório na apreciação da prova que o recorrente aponta à sentença recorrida. 2.4. Da violação do princípio in dubio pro reo O nosso regime jurídico processual-penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova. A livre apreciação da prova pressupõe que esta seja considerada segundo critérios objectivos que permitam estabelecer o substrato racional da fundamentação da convicção. O princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o Tribunal decida pro reo, a favor do arguido, pois. Como acentua Jescheck “serve para resolver dúvidas a respeito da aplicação do direito que surjam numa situação probatória incerta”([5]) ou, dito de outro modo, significa que a persistência de dúvida razoável, após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido([6]). A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir «pro reo», tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal([7]) ([8]). Não é assim toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio([9]). A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável([10]). Daí que o tribunal de recurso só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido([11]). O princípio in dubio pro reo encerra, portanto, uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido. À semelhança do que sucede com os vícios consagrados no n.º 2 do artigo 410.º, em sede de recurso a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento, antes sendo um remédio jurídico. No caso em apreço, o recorrente invoca o princípio in dubio pro reo essencialmente como corolário da sua apreciação da prova, o que é evidenciado quando o recorrente alega que tudo somado, ou seja, prova documental e testemunhal, mais não existe que uma dúvida, ténue, da prática dos factos pelos quais o arguido vinha acusado, sendo que, em momento algum, resulta da sentença recorrida que relativamente aos factos provados e objecto dos autos, o tribunal se defrontou com dúvidas que resolveu contra o recorrente ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, se impunha que a devesse ter tido. Improcede, portanto, também esta questão. 2.5. Do enquadramento jurídico-penal Alega o recorrente que o limite quantitativo constante do artigo 103.º, n.º 2 do RGIT deve entender-se como integrante do tipo legal pelo que a acusação deveria ter alegado e provado que o arguido representou e quis obter uma vantagem patrimonial superior a 15.000 €, o que não aconteceu, quer na acusação, quer no acórdão recorrido, pelo que não se encontrando dado como provado o elemento subjectivo do crime de fraude fiscal o arguido deve ser absolvido. Vejamos. O artigo 103.º do RGIT incrimina como fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no artigo, que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. Essas condutas encontram-se descritas nas als. a) a c) do n.º 1. E o n.º 2 prescreve que “os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem ilegítima for inferior a (euro) 15.000” (na redação introduzida pela Lei n.º 60-A/2005 de 30/12). Por seu turno, o art. 104.º do RGIT prevê a fraude fiscal qualificada, com elevação da moldura abstracta quando, no que ora releva, “a fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente” – al. a) do n.º 2. O legislador do RGIT decidiu autonomizar num artigo próprio a figura da fraude fiscal qualificada, inicialmente com a introdução do n.º 1 e, no então n.º 2, com uma redacção que corresponde à da actual alínea a) do n.º 2. Com a Lei n.º 64-B/2011, de 30/12, cindiu o n.º 2 em duas alíneas, passando a al. a) a corresponder ao corpo do anterior n.º 2, constituindo a al. b) uma novidade, qualificando-se a fraude fiscal quando a vantagem patrimonial obtida pelo agente for superior a € 50.000,00. Quanto à al. a) do n.º 2 (qualificação da fraude fiscal pela utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente), pretende-se abranger situações de fraude que indiciam à partida uma maior gravidade, como a utilização de facturas falsas ou ainda a chamada fraude em carrossel. Para que se verifique a qualificação da fraude nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 104.º basta que ocorra a circunstância nela referida: utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente. Por outro lado, o valor de € 15.000,00 previsto no artigo 103.º, n.º 2 do RGIT integra o tipo de ilícito e estende-se ao tipo qualificado do artigo 104.º do mesmo diploma, que não prevê um tipo autónomo mas um conjunto de circunstâncias qualificadoras do ilícito base. Assim, todas as condutas adequadas a causar diminuição de receita tributária inferior a € 15.000 não serão puníveis mesmo que configurem uma das modalidades agravadas previstas no art. 104.º do RGIT. Como refere Susana Aires de Sousa «[e]ntre os tipos legais de Fraude simples e qualificada, na forma consumada, estabelece-se uma pura relação de especialidade (…) porque uma das normas – a Fraude qualificada – incorpora todos os elementos constitutivos do outro tipo legal – a Fraude simples – mas acrescenta ao facto matricial – ocultação ou alteração de valores – elementos suplementares ou caracterizadores; porém, estes novos elementos normativos não constituem um novo e autónomo facto ilícito – como aliás denuncia a letra do artigo 104.º ao remeter, logo no seu início, para os factos previstos no artigo anterior – mas pressupõem na sua base a conduta matricial tipificada no artigo 103.º». Em conclusão, afirma que a fraude fiscal, simples ou qualificada, só assume dignidade penal quando a conduta do agente se mostre idónea a obter uma vantagem patrimonial ilegítima igual ou superior a 15.000 euros, nos termos do artigo 103.º, n.º 2 do RGIT([12]). Assim, o limite de € 15.000,00, limite negativo e quantitativo da incriminação, tem o seu espaço de aplicação tanto em sede do tipo base como do tipo qualificado de fraude fiscal([13]). Revertendo ao caso dos autos, de acordo com os factos provados nos pontos 7) a 22), dúvidas não restam que o arguido CC ao utilizar facturas falsas, de comum acordo e em conjugação de esforços com a arguida BB, as quais pretendiam documentar operações comerciais inexistentes, visando defraudar a liquidação tributária em sede de IVA, bem sabendo que elas não correspondiam a serviços efectivamente prestados/produtos fornecidos, obteve para si e para a sociedade EMP02... uma vantagem patrimonial através da dedução indevida deste imposto no montante de € 16.803,80, assim como aquela também obteve para si e para a sociedade EMP01... uma vantagem patrimonial através da dedução indevida deste imposto no montante de € 25.565,10, causando, pois, ao Estado – Administração Fiscal prejuízos de montante superior a € 15.000 nos períodos tributários em causa, tendo os arguidos de forma livre, voluntaria e consciente, bem conhecendo o carácter proibido e criminalmente punível das suas condutas e, mesmo assim, não se coibiram de o fazer. Assim, encontram-se preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de fraude qualificada, previsto e punido pelos artigos 103.º, nºs 1, al. a), 2 e 3 e 104.º, nºs 1 e 2, al. a) do Regime Geral das Infracções Tributárias, pelo que nenhuma censura merece a condenação do recorrente. 2.6. Da medida da pena única O arguido foi condenado pela prática de dois crimes de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, e 104.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do Regime Geral das Infracções Tributárias, nas penas de 1 (um) ano de prisão e de 10 (dez) meses de prisão. Em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 4 (quatro) anos, sob a condição de proceder ao pagamento, no prazo de 4 (quatro) anos, das prestações tributárias em faltam no valor de € 42.368,90. O regime legal de punição do concurso de crimes encontra-se previsto no n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal: quando alguém tiver praticado vários crimes, antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, tendo em conta na determinação da medida da pena, em conjunto os factos e a personalidade do arguido. A pena única do cúmulo, também chamada pena conjunta, de acordo com o artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal, tem a sua moldura abstracta definida entre a pena mais elevada das penas parcelares e a soma de todas as penas em concurso, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa. Por outro lado, segundo preceitua o n.º 1 do referido artigo, na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que o cúmulo jurídico de penas não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão-só, a quantificar a pena única a partir das penas parcelares cominadas. Com efeito, a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto. Como esclareceu o Prof. Eduardo Correia, autor do Projecto do Código Penal, no seio da respectiva Comissão Revisora([14]), a razão pela qual se manda atender na determinação concreta da pena unitária, em conjunto, aos factos e à personalidade do delinquente, é de todos conhecida e reside em que o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário, de onde resulta, como ensina Jescheck, que a pena única ou conjunta deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente([15]). No mesmo sentido se pronuncia o Prof. Figueiredo Dias ao referir que tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou, tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)([16]). Adverte no entanto que, em princípio, os factores de determinação da medida das penas singulares não podem voltar a ser considerados na medida da pena conjunta (dupla valoração), muito embora, «aquilo que à primeira vista possa parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração»([17]). Assim, importante na determinação concreta da pena conjunta será a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuador e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele([18]). Alega o recorrente que a pena única aplicada não é adequada, justa e proporcional à medida da sua culpa pelo que devia ter sido condenado na pena única de 1 ano de prisão, substituída por multa, face à ausência de antecedentes criminais, ao valor diminuto da quantia em dívida até porque a do 2º período está quase encostada ao limite dos € 15.000,00, ao facto de se resumir a apenas dois trimestres consecutivos do ano de 2015 e às próprias empresas se encontrarem encerradas. Na determinação da medida das penas aplicadas ao arguido CC [parcelares e única] o tribunal a quo considerou o seguinte: «A infracção penal em causa é punível com pena de prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas – artigo 104º, nº 1 e 2, do RGIT. Chegados, assim, ao momento de determinar a concreta medida da pena, impõe-se considerar que aquela determinação é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (cfr. artigo 71º, nº 1, do Código Penal), ou dito de outro modo, a prevenção geral positiva ou de integração é a finalidade primordial, entendida esta como reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança, face à violação da norma. Conforme Figueiredo Dias (Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Coimbra Editora 2005, pág. 227 e ss.), a pena deve ser determinada no interior de uma moldura de prevenção geral positiva, cujo limite é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral positiva, a medida da pena será encontrada em função das exigências de prevenção especial positiva, ou seja, de ressocialização do agente. No entanto, a culpa do agente será sempre o limite inultrapassável da medida concreta da pena (cfr. artigo 40º nº 2 do Código Penal). A medida da necessidade da tutela de bens jurídicos terá que ser encontrada em concreto, segundo as circunstâncias do caso em análise e não em abstracto, já que o carácter abstracto dessa necessidade foi previamente definido pelo legislador penal ao determinar a moldura penal abstracta aplicável. Em conformidade com o disposto no artigo 71º, nº 2, do Código Penal, atender-se-á a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, exemplificando aquele normativo alguns factores concretos que relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção. Acresce que nos termos do artigo 13º do RGIT, na medida da pena atender-se-á ainda ao prejuízo causado pelo crime. No presente caso, é de realçar o seguinte: - o dolo reveste a sua modalidade mais grave - dolo directo; - a ilicitude é elevada; - o número de facturas e valores em causa; - o tempo entretanto decorrido desde a prática dos factos; - o não ressarcimento do prejuízo causado; No que concerne às necessidades de prevenção geral no presente caso, há que reconhecer que as mesmas são elevadas uma vez que este tipo de crime se tem revelado frequente e há que reconhecer que os impostos são um meio prioritário na prossecução dos fins do Estado de Direito e uma obrigação para todos os cidadãos, cuja violação o legislador quis punir de forma severa e pedagógica. Quanto às necessidades de prevenção especial, importa atentar no seguinte: (…) Quanto ao arguido CC: está bem integrado em termos familiares e profissionais e não tem antecedentes criminais. Pelo que tudo ponderado entende-se proporcional e adequado fixar as seguintes penas: (…) - 1 (um) ano de prisão para o arguido CC, quanto às facturas referidas em 9); - 10 (dez) meses de prisão para o arguido CC, quanto às facturas referidas em 9); * Tendo os arguidos praticado dois crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, sendo considerados, em conjunto, para determinação da medida pena, os factos e a personalidade do agente – artigo 77º, nº 1, do Código Penal.Tal como afirma FIGUEIREDO DIAS, na determinação da pena de concurso “tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes de verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, sobretudo, a questão de se saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só uma pluriocasionalidade que não radica na sua personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta” (in “As Consequências Jurídicas do Crime”, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 291, § 421). Nos termos do artigo 77º, nº 2, do Código Penal, a moldura penal do concurso de crimes em que será encontrada a pena única, tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa. Assim, neste caso, as molduras do concurso serão as seguintes (…) - 1 (um) ano a 1 (um) ano e (10) meses de prisão, no caso do arguido CC; Assim sendo, ponderando-se a personalidade dos arguidos, bem como todas as circunstâncias supra referidas, dir-se-á que todos os factos pelos quais o arguido é condenado nestes autos se relacionam entre si, existindo uma certa conexão temporal entres os mesmos (…) pelo que se entende adequado fixar as seguintes penas únicas: (…) - 1 (um) ano e (seis) meses de prisão, para o arguido CC» Aqui chegados, importa salientar que a moldura abstracta da pena do crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.º, nºs 1, al. a), 2 e 3 e 104.º, nºs 1 e 2, al. a) do RGIT, é, no caso das pessoas singulares, a de prisão de um a cinco anos. Assim sendo, é patente que a sentença recorrida, ao fixar a pena parcelar de 10 (dez) meses de prisão para o arguido CC quanto às facturas referidas em 14) [por lapso refere-se 9)] padece de lapso já que esta pena foi fixada abaixo do limite mínimo legal de 1 (um) ano de prisão, ou seja, 12 (doze) meses, o que se traduz reflexamente também numa incorrecta determinação da moldura do respectivo concurso de crimes. Este lapso não é passível de ser corrigido sob pena de violação da reformatio in pejus, pois traduzir-se-ia num agravamento da pena parcelar aplicada em 1.ª instância, sendo que da decisão final foi interposto recurso apenas pelo arguido CC – cfr. artigo 409.º do Código de Processo Penal. De todo o modo, o recorrente não sindica as penas parcelares mas tão só a medida da pena única que entende ser desajustada face à ausência de antecedentes criminais, ao valor diminuto da quantia em dívida até porque a do 2º período está quase encostada ao limite dos € 15.000,00, ao facto de se resumir a apenas dois trimestres consecutivos do ano de 2015 e às próprias empresas se encontrarem encerradas. Como decorre de tudo o exposto, o recorrente labora num equívoco, pois não se deve, nem pode confundir a fundamentação relativa à escolha e medida de cada uma das penas singularmente consideradas com a fundamentação que a lei exige para fixação, em cúmulo jurídico, da pena unitária ou conjunta, já que nesta o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz, nomeadamente, uma personalidade propensa ao crime, ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido([19]). A determinação da pena do concurso exige um exame crítico de ponderação conjunta sobre a conexão e interligação entre todos os factos praticados e a personalidade do seu autor, de forma a alcançar-se a valoração do ilícito global e entender-se a personalidade neles manifestada, de modo a concluir-se pela motivação que lhe subjaz, se emergente de uma tendência para delinquir, ou se se trata de pluriocasionalidade não fundamentada na personalidade, tudo em ordem a demonstrar a adequação, justeza, e sobretudo, a proporcionalidade, entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação conjunta daqueles dois factores. A moldura abstracta a considerar para a fixação da pena única é a de 1 (um) ano a 1 (um) ano e (10) meses de prisão em face das penas parcelares que foram determinadas pela 1ª instância – n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal. No caso em apreço, quanto à personalidade do arguido, tendo em conta os factos perpetrados e o respectivo contexto, poder-se-á concluir que o ilícito global não permite considerar a existência de uma tendência criminosa. Por outro lado, ficando provada a existência de uma relação entre os dois crimes de fraude fiscal qualificada, cometidos consecutivamente, dever-se-á concluir que os factos se encontram estreitamente conexionados. Desta forma, atento o número de crimes e a moldura penal do concurso a considerar nos termos definidos pela 1ª instância, a fixação da pena única em 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão não merece censura, devendo por isso, ser mantida. Esta pena única de prisão, porque superior a um ano, não é susceptível de ser substituída por pena de multa, como pretende o recorrente, em face do disposto no artigo 45.º, n.º 1 do Código Penal. Improcede, portanto, esta questão. 2.7. Da condição da suspensão da execução da pena de prisão Alega o recorrente que não tem qualquer hipótese de cumprir a condição que foi aposta à pena aplicada, nem agora, nem daqui a 4 anos, pelo que deve ser anulada a condição da suspensão da execução da pena, por impossibilidade de cumprimento, num juízo de prognose. Estamos perante um crime de natureza fiscal pelo que importa ter em conta o disposto no art.º 14.º do RGIT, cuja redacção, subordinada à epígrafe «suspensão da execução da pena de prisão», é a seguinte: «1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa. 2 – Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode: a) – Exigir garantias de cumprimento; b) – Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível; c) – Revogar a suspensão da pena de prisão.» Na sequência das muitas dúvidas surgidas, quer acerca da constitucionalidade de tal solução, quer sobre a razoabilidade da imposição de tal pagamento nas situações de incapacidade financeira do condenado, muitas têm sido as decisões dos tribunais das instâncias superiores que sobre aquela norma se vêm pronunciando, estando hoje assente, por um lado, que a mesma não padece de inconstitucionalidade([20]), por outro, que se exige, da parte do julgador, um juízo sobre a razoabilidade da condição, conforme Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 8/2012 (in DR, I série, n.º 206, de 24/10/2012). De salientar, porém, que a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012, no sentido de que «[n]o processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105º, nº 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º, nº 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14º, nº 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado de prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade por omissão de pronuncia.» não é aplicável no caso vertente, uma vez que a necessidade do juízo de prognose a que se refere o aludido acórdão só se verifica quando o crime tributário em questão é punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução nos termos do artigo 14.º, n.º 1 do R.G.I.T.) ou outra pena não privativa da liberdade. Na verdade, extrai-se da fundamentação do aludido acórdão de fixação de jurisprudência que «a questão central em debate num e noutro dos processos em confronto gira em torno da questão de saber se, em caso de condenação por crime de abuso de confiança fiscal, que prevê, em alternativa, pena de prisão ou de multa, escolhida a pena de prisão, e optando-se depois pela substitutiva suspensão da execução de tal pena, o que acarreta face ao artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, incontornavelmente, necessariamente, a imposição de condição de pagamento da prestação em dívida e legais acréscimos, há que ponderar ou não a razoabilidade da condição imposta, na consideração de que, face ao concreto/real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, máxime, situação económica, será de exigir o cumprimento. Por outras palavras, se face e não obstante o imperativo da imposição da condicionante há ainda alguma margem de liberdade do julgador e se é de ter em conta o princípio da razoabilidade previsto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal e, existindo essa possibilidade, a sua não consideração origina nulidade por omissão de pronúncia.». Como sublinha o Acórdão da Relação do Porto de 20-02-2013, «[o] que resulta do acórdão é, antes, que, a prévia opção por pena de prisão suspensa na sua execução (com o que isso implica de obrigatória sujeição dessa suspensão ao pagamento das quantias devidas, nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) em face da opção por outra pena (deve subentender-se, pena não privativa da liberdade), designadamente a pena de multa, está dependente de um juízo de prognose sobre a capacidade de o condenado pagar tais quantias, tendo em conta a sua situação económica presente e futura. Esta jurisprudência, diretamente aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do R.G.I.T. – crime punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa –, poderá ser aplicável a outros crimes tributários também puníveis com pena de prisão (também eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa. No caso em apreço, em que está em causa um crime de fraude fiscal tributária, punível apenas com pena de prisão, não se coloca a possibilidade de opção entre pena de prisão suspensa na sua execução e pena de multa.»([21]). O Acórdão Uniformizador n.º 8/2012 em nenhum momento afirma, nem dele se pode extrair que, caso o arguido não tenha capacidade económica para pagar as quantias em dívida ao Estado, a pena de prisão deva ficar suspensa sem a condição imposta pelo artigo 14.º, n.º 1 do RGIT, ou que esta condição deva limitar-se ao pagamento de quantia inferior à devida, dentro das possibilidades económicas do arguido. Não era essa a questão a decidir no mencionado acórdão do Supremo Tribunal, tratando-se de matéria em que não havia qualquer conflito, porquanto nenhum dos acórdãos em confronto - quer o recorrido, quer o fundamento - defendia tal solução. Perante o modo imperativo como a condição é exigida pelo legislador, a recusa de aplicação da norma em causa só pode fundar-se em eventual desconformidade constitucional, sendo certo que o Tribunal Constitucional e o próprio STJ se têm pronunciado, sem divergências, pela sua constitucionalidade. Por isso, a sua única interpretação possível, em conjugação com o artigo 50.º, n.º 1 do CP, é, em cada caso concreto, avaliar se, perante as circunstâncias definidas neste artigo - atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste - e comprovada a capacidade económica de o condenado pagar a prestação tributária em dívida e acréscimos legais, «a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficientes as finalidades da punição». O caso sobre o qual se debruçou o acórdão de uniformização de jurisprudência respeitava a crime punido com prisão ou multa, tendo-se entendido que, ao ponderar a suspensão da execução da prisão e perante a incapacidade financeira do arguido, deveria o tribunal voltar ao momento anterior, da escolha da pena, reconhecendo não haver condições para tal suspensão, e optar, eventualmente, pela pena de multa, em vez da prisão. No caso dos autos tal procedimento não é possível porque o crime de fraude fiscal em causa, como foi cometido por pessoa singular, é punido apenas com prisão, não se colocando, assim, a possibilidade de opção entre a suspensão da execução da prisão e a pena de multa([22]). Em conclusão, a necessidade do juízo de prognose a que se refere o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 8/2012 só se verifica quando o crime tributário em questão é punido com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução nos termos do artigo 14.º, n.º 1 do R.G.I.T.) ou outra pena não privativa da liberdade, o que não sucede relativamente ao crime de fraude fiscal qualificada por cuja prática o recorrente foi condenado nestes autos([23]). Improcede, portanto, esta questão. * III – DISPOSITIVONestes termos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido CC e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida. * Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC´s (arts. 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa a este diploma).(O acórdão foi processado em computador pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP) * Guimarães, 22.10.2024 Fernando Chaves (Relator) Anabela Rocha (1ª Adjunta) Luísa Alvoeiro (2ª Adjunta) [1] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem. [2] - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 292. [3] - Acórdão do STJ de 12/4/2000, Proc. n.º 141/2000 - 3ª, SASTJ, n.º 37, pág. 83. [4] - Acórdão do STJ de 13/2/92, Colectânea de Jurisprudência, Ano XVII, Tomo I, pág. 36; Acórdão do Tribunal Constitucional de 2/12/98, DR, IIª Série, de 5/3/1999. [5] - Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª edição, pág. 127. [6] - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, edição de 1974, pág. 215. [7] - Cf. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, página 166. [8] - No mesmo sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 05.02.2009, 14.10.2009 e de 15.04.2010, proferidos nos processos nºs 2381/08 - 5, 101/08.7PAABT.E1.S1 - 3 e 154/01.9JACBR.C1.S1 - 5, in www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos/secçãocriminal. [9] - Acórdão do STJ de 4.11.1998, in BMJ n.º 481, pág. 265. [10] - Neste sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1966), pág. 25. [11] - Acórdão do STJ de 02.05.1996, CJ, ACSTJ, 1996, Tomo II, pág. 177. [12] - O Limiar Mínimo de Punição da Fraude Fiscal Qualificada: Entre Duas Leituras Jurisprudenciais Divergentes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 4, págs. 612-634. [13] - Neste sentido pode ver-se ainda: na doutrina, Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Universidade Católica Editora, 2009, pág. 237; Isabel Marques da Silva, em RGIT, Cadernos IDEF, 5, 2ª edª., pág. 164, Susana Aires de Sousa, Os crimes Fiscais, 2009, pág.118; Simas Santos e Jorge de Sousa, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2008, p. 737; Nuno Pombo, em Fraude Fiscal, A norma incriminadora, a Simulação e outras reflexões, Almedina 2007, pág. 215; na jurisprudência, Acs. do TRP de 16.03.2011, Proc. n.º 65/05.9IDAVR.P1, de 23.03.2011, Proc. 70/05.5IDAVR.P1, de 18.09.2013, Proc.º 67/10.3IDPRT.P1, de 09.04.2014, Proc. 31/06.7IDVRL.P1, Acs. do TRC de 19.01.2011, Proc. 1036/06.3TAAVR.C1, de 12.03.2014, Proc. 44/03.0IDGRG.C2, Ac. TRG de 03.07.2012, Proc. 116/08.5IDBRG-A.G1 e Ac. do TRE de 20.12.2018, Proc. n.º 149/16.8IDFAR.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.; em sentido contrário, Ac. do TRG 18.05.2009, Proc. 352/02.8IDBRG.G1 e Ac. do TRC de 07.03.2012, Proc. 720/08.1TACBR.C1, ambos também disponíveis em www.dgsi.pt. [14] - Acta da 28ª Sessão realizada em 14 de Abril de 1964. [15] - Tratado de Derecho Penal, Parte General, Volumen Segundo, página 1029. [16] - Cfr. Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 421, págs. 291 e 292. [17] - Cfr. Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 422, pág. 292. [18] - Cfr. Acórdãos do STJ de 14/02/2007, Proc.º n.º 4100/2006 e de 23/2/2011, Proc.º 429/03.2PALGS.S1, este disponível em www.dgsi.pt/jstj. [19] - Cfr. Acórdãos do STJ de 6/5/2004 e de 16/11/2005, CJ, ACSTJ, Ano XII, tomo II, pág. 191 e Ano XIII, tomo III, pág. 210, respectivamente. [20] - Cfr., entre outros, os Acórdãos nºs 237/2001, 335/2003, 376/2003, 500/2005, 543/2006, 29/2007, 61/2007, 556/2009, 587/2009, 51/2020 e 546/2024 e as Decisões Sumárias nºs 312/2011, 522/2012, 68/2015 e 606/2016, tudo disponível em www.tribunalconstitucional.pt. [21] - Processo n.º 131/08.9IDPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt. [22] - Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 05-06-2018, Proc. n.º 3912/12.5T3SNT.L1-5, que aqui seguimos de perto, disponível em www.dgsi.pt. [23] - Acórdão da Relação do Porto de 29-04-2015, Proc.º n.º 290/07.8IDPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt. |