Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA LEONOR BARROSO | ||
Descritores: | AÇÃO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO FASE CONTENCIOSA ERRO NA TRAMITAÇÃO PROCESSUAL DECISÃO SURPRESA NULIDADE DA SENTENÇA EXCESSO DE PRONÚNCIA | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 04/02/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ANULADA A DECISÃO | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO SOCIAL | ||
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Sumário: | Padece de nulidade por excesso de pronúncia (615º, 1, d), CPC) a decisão que, após a frustração da tentativa de conciliação, apreciou da incapacidade para o trabalho quando havia outra questão controvertida (caducidade do direito de acção). A opção pela nulidade da decisão (e não nulidade processual) adequa-se melhor à circunstância específica de a recorrente se conformar com a decisão que conheceu da caducidade do direito de ação e apenas recorrer da decisão que apreciou da incapacidade para o trabalho, por esta ser uma decisão-surpresa (3º, 3, CPC) que lhe coartou a possibilidade de requerer junta médica. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO Em 26-09-2023, a sinistrada AA apresentou participação de acidente de trabalho ocorrido em 28-04-2020, dando inicio à fase contenciosa desta acção especial emergente de acidente de trabalho, em que é entidade responsável EMP01..., Companhia de Seguros, Sa. A seguradora atribuiu alta à sinistrada em 09-09-2020, sem qualquer grau de desvalorização. Em 29-12-2023, a seguradora, notificada para juntar diversa documentação, mormente boletins médicos e boletins de alta, apresenta requerimento onde, entre o mais, refere que “tendo em conta o preceituado no nº 1 do artigo 179º da lei 98/2009 de 4 de setembro, os presentes autos deverão improceder por caducidade do direito de acção”. A tentativa de conciliação frustrou-se, porque a seguradora, conquanto aceitasse a existência e caracterização do acidente como sendo de trabalho, o nexo causal, as lesões, e o montante da retribuição transferido, não aceitou a IPP de 3% atribuída pelo GML e “uma vez que os presentes autos deverão improceder por caducidade do direito de acção, conforme requerimento apresentado e junto aos autos em 29-12-2023.” No auto consignou-se despacho do Ministério Público no sentido de se aguardar pela propositura da acção por parte da sinistrada, representada por mandatário judicial. No prazo de 20 dias nenhuma das partes apresentou requerimento para perícia por junta médica. A senhora juiz a quo determinou, então, a notificação da seguradora para juntar aos autos a comunicação à sinistrada da alta clinica que lhe foi atribuída. A seguradora veio informar que “..se vê impossibilitada de remeter o documento solicitado por não ter sido localizado. Mais informamos que o referido documento foi entregue à sinistrada, na consulta em que foi atribuída alta.”. Seguidamente a senhora juiz proferiu dois despachos: I ) Um, a declarar a “manifesta improcedência da invocada caducidade”. Em suma, por, pese embora a alta clinica haja sido fixada pelos serviços clínicos em 9 de setembro de 2020 sem atribuição de IP, a seguradora não conseguiu fazer a prova de ter entregue à sinistrada o respectivo boletim de alta. Refere-se que:” não logrou a Seguradora demonstrar, como lhe competia, que a sinistrada tenha tido conhecimento da alta através de comunicação formal adequada, isto é, com a entrega do aludido boletim de alta. Salvo o devido respeito, o documento entregue à sinistrada pelo médico aquando da última consulta – e junto pela sinistrada com o requerimento que deu início ao processo – não constituiu a comunicação formal adequada da alta, não correspondendo ao modelo aprovado oficialmente referido no artigo 175.º, n.º 1 do RJAT. Assim sendo, o conhecimento não formal da sinistrada da data da alta, não tem a virtude de fazer desencadear o início do prazo da caducidade a que alude o artigo 179.º, n.º 1 do RJAT.” II ) Um segundo despacho com a epigrafe “sentença”, tendo por objecto a natureza e incapacidade para o trabalho, condenando-se a seguradora a pagar à sinistrada pensão anual de €218,51, remível, devida desde o dia a seguir à alta (09.09.2021) e juros, e €20 a título de despesas de deslocação e juros de mora. A SEGURADOA RECORREU. CONCLUSÕES: 1. A Recorrente não se conforma com a douta sentença proferida, a qual ignorou a posição da Ré Seguradora, decidindo que “as partes não se conciliaram, divergindo do resultado do exame médico realizado na fase conciliatória do processo, no que toca à incapacidade permanente parcial”. 2. Mais decidiu que já tinha decorrido o prazo de 20 dias a que alude o n.º 2 do artigo 138.º do CPT, sem que fosse requerida a realização de exame por junta médica, concordando, por fim, com o parecer do INML, fixando uma IPP de 3% à Sinistrada. 3. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, impediu a Ré Seguradora do exercício do direito a requerer exame por Junta Médica, por ter conhecido de questão que não podia, naquele momento conhecer. 4. Acresce que, a decisão recorrida contrariou ainda o despacho proferido pela Digníssima Senhora Procuradora no auto de não conciliação com o seguinte teor: “Atenta a posição assumida pelas partes, dou-as por não conciliadas e este ato por findo. Determino a remessa dos autos à secção, onde aguardarão a propositura da acção, por parte da sinistrada, representado nos mesmos por mandatário judicial. 5. Atenta a matéria em discordância, entendeu e bem o Ministério Público que os autos ficariam a aguardar a iniciativa do Sinistrado, e por conseguinte, a Ré Seguradora ficou a aguardar a entrada da acção nos termos e para os efeitos da al. a) do n.º do 117.º do CPT. 6. Todavia, o Tribunal a quo passou de imediato ao conhecimento do mérito da causa, decisão esse que, salvo melhor opinião, é proferida fora do momento próprio, numa altura em que ao juiz se encontrava expressamente vedada a possibilidade de tomar conhecimento dessa matéria. 7. A douta sentença recorrida errou na aplicação do direito, concretamente do disposto no artigo 117.º a 120.º do CPT, dando origem a uma decisão ilegal e contrária à lei. 8. Salvo melhor opinião, o conhecimento da excepção peremptória alegada pela Recorrente apenas poderia ocorrer findos os articulados, aquando do despacho saneador, nos termos das al. a) e b) do n.º 1 do art. 131.º do CPT. 9. A sentença a quo configura uma decisão surpresa, a qual se pronunciou sobre matéria que não podia conhecer, incorrendo em nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.° n.° 1, alínea d), do CPC, o que se invoca para os devidos efeitos legais. 10. Impõe-se, pois, a sua revogação e substituição por decisão que ordene que os autos aguardem pela propositura de acção nos termos e para os efeitos da al. a) do n.º 1 do artigo 117.º do CPT. Nestes termos e nos demais de direito, concedendo-se provimento ao presente recurso, deverá ser revogada a decisão de condenação da recorrente no pagamento de prestações infortunisticas decorrentes de uma ipp de 3%, ordenando que os autos aguardem a propositura de acção pelo sinistrado para início da fase contenciosa, assim se fazendo inteira e sã justiça!” SEM CONTRA-ALEGAÇÕES. PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO - sustenta-se que a apelação merece provimento. O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC. QUESTÕES A DECIDIR [1]: nulidade da decisão que apreciou, “ antes do seu tempo”, a questão da incapacidade para o trabalho. I.I. FUNDAMENTAÇÃO A - Factos: os referidos no relatório B - Direito A apelação tem por objecto a decisão judicial que fixou a natureza e grau de incapacidade e condenou a seguradora nas prestações infortunísticas - 140º, 1, CPT. O despacho que decidiu a questão da caducidade do direito de acção referente às prestações conferidas pela lei de acidentes de trabalho (179º da LAT) não foi objecto de recurso. A seguradora não se pronuncia sobre o seu mérito, nem, tão pouco, pede a sua revogação. O recorrente pretende apenas questionar a incapacidade para o trabalho fixada à sinistrada. Portanto, o primeiro despacho transitou em julgado, circunstância que se repercute na solução a dar ao caso. A seguradora alega que ficou impedida de apresentar requerimento por junta médica, por ter sido surpreendida pela tramitação seguida. Esperava a apresentação de petição inicial pela sinistrada para se iniciar a fase contenciosa e, afinal, a senhora juiz decidiu com base noutra tramitação que pressupunha que estivesse em causa apenas a questão da incapacidade para o trabalho, quando, na altura, estava também controvertida a caducidade do direito de acção. O que se traduz em decisão surpresa e configurará nulidade de decisão por excesso de pronúncia. Não existe dúvida que, à altura da tentativa de conciliação, conquanto a seguradora aceitasse a existência de acidente de trabalho, era controvertida outra questão, além da incapacidade para o trabalho. Quando as partes não chegam a acordo na tentativa de conciliação, a tramitação subsequente está dependente do que remanesce controvertido. Se as partes apenas discordam da fixação da incapacidade para o trabalho segue-se uma tramitação mais simples, bastando requerimento de perícia por junta médica e, após a sua conclusão, o juiz profere decisão- 117º,b), 138º, 2, CPT. Simplicidade processual que se justifica por apenas estar em causa uma questão eminentemente técnica, da área de medicina. Se a discordância se estende a outros aspectos não basta a realização de junta médica, por isso o processado é diferente. A fase contenciosa tem, então, por base petição inicial, a que se segue contestação. Articulados esses destinados à alegação dos factos que vão para além da incapacidade, mormente a própria ocorrência do acidente, o nexo de causalidade, o montante da retribuição, ou atinentes à descaracterização do acidente por inobservância das regras de segurança, ou por negligência grosseira do sinistrado, ou actuação culposa do empregador, para citar os exemplos mais paradigmáticos que aparecem em juízo. A tramitação, além de apenso para fixação de incapacidade, inclui actos comuns a outras formas de processo, como despacho saneador, realização de julgamento onde se admite a produção de outros meios de provam compatíveis com um maior âmbito de litigiosidade, seguido de sentença - 117º, 1, a), 118º, 119º 129º, 131º 134º, 135º, CPT. No caso, existindo discordância sobre a caducidade do direito de acção, outra deveria ter sido a tramitação, tendo por base petição inicial, prosseguindo-se depois a tramitação mais completa acima referida. A senhora juiz, porém, decidiu de imediato, quer a questão da caducidade, quer da incapacidade para o trabalho. Julgamos que tal se deveu ao facto de a caducidade exigir a prova pela seguradora da comunicação formal à sinistrada, em boletim de modelo oficial, da alta clínica (35º e 175º LAT) e de a seguradora ter reconhecido, ainda na fase conciliatória, que não dispõe de tal documento. O que levou a senhora juiz a quo a querer “agilizar” o processo. Mas, ao fazê-lo, sem sequer ouvir as partes, cortou à seguradora a possibilidade de requerer exame por junta médica e questionar a incapacidade para o trabalho, que igualmente não tinha aceite e sobre a qual poderia requerer prova na fase contenciosa (junta médica). Foi proferida uma decisão surpresa que viola o principio do contraditório (3º, 3, CPC ” 3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” A decisão surpresa tanto pode ocorrer quanto ao aspecto jurídico da causa (quando a solução do juiz não seja de todo previsível e não haja um alerta do tribunal), como quanto ao aspecto processual da causa, mormente quando não se realiza diligência prescrita por lei, impedindo a parte de se pronunciar, em violação do princípio do contraditório - ac. RG de 2-05-2024, p.753/21.2T8VVD.G2, www.dgsi.pt Aqui chegados, a jurisprudência das secções cíveis desta Relação não tem convergido nas consequências de violação do contraditório. Uns entendem que se trata de nulidade processual (195º CPC) por violação de norma processual própria e/ou conjugada com o art. 3º CPC, outros de nulidade de sentença por excesso de pronúncia (615º, 1, d), CPC ) no sentido não tradicional do termo, mas entendida como decisão proferida fora do momento próprio, a qual ”consome” e cobre a nulidade processual - ver ac. acima referenciado onde se sumarizam as posições, e ac. RG de 28-09-2023, p. 5153/18.9T8VNF.G1 (nulidade processual) e ac.s RG de 15-12-2022, p. 689/19.7T8PTL.G1, ac. 12-11-2020, p. 2892/20.8T8VNF.G1 (nulidade de sentença). O caso específico de que nos ocupamos, de errada tramitação da fase contenciosa dos acidentes de trabalho, tem sido tratada pela secção social desta Relação como uma nulidade processual e não como nulidade de sentença, as quais têm diferentes regimes, mormente prazos de arguição. A nulidade processual, ao invés da nulidade de sentença, deve ser arguida no prazo geral de 10 dias e perante a primeira instância. Tem-se admitido, porém, a sua arguição no próprio requerimento de interposição de recurso de apelação quando seja revelada com a notificação da decisão recorrida, e numa perspectiva de economia e simplificação processual - ac.s da RG de 10-09-2020 p. 568/18.5Y3BRG.G1, de 10-09-2020, p. 176/18.0Y3BRG.G1, de 3-12-2020, p. 6645/18.5T8BRG-B.G1 e ac. RE de 4-04-2018, p. 1713/15.8T8STR.E1, www.dgsi.pt. No caso, quer se opte por uma, ou por outra tese, a arguição é tempestiva, sendo revelada e consumida pela decisão recorrida. Atenta a especificidade de a seguradora recorrente se conformar com a decisão que apreciou da caducidade da acção, apenas impugnando o despacho que fixa a incapacidade para o trabalho, visando apenas a oportunidade de apresentar requerimento por junta médica, a opção pela nulidade processual fundada em erro na forma de processo, traria consequências inconciliáveis, por implicar apresentação de petição inicial. Ao caso adequa-se melhor a solução da nulidade da decisão por excesso de pronúncia (615º, 1, d), CPC), por ter sido proferida antes de as partes serem avisadas, ouvidas (3º, 3, CPC) e de terem a possibilidade de requerer junta médica. O regime desta nulidade dá ao juiz maior liberdade sobre o modo de “solucionar” a patologia, que deve também nortear-se pelos princípios da agilização, da simplificação e adequação processual (6º CPC). Por último, o despacho do Ministério Público exarado no auto de tentativa de conciliação não regula o processado (que decorre da lei), é apenas circunstância a atender pelo juiz na solução do caso, e releva apenas ao nível das expectativas da parte. Estas ficam acauteladas com a anulação/revogação da decisão recorrida, dando-se às partes o prazo legal de 20 dias para requererem a junta médica. I.I.I. DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso e revogar a sentença que decidiu a incapacidade permanente para o trabalho e fixou as prestações infortunísticas, concedendo-se às partes o prazo legal de 20 dias para apresentar requerimento por junta médica, seguindo-se o processado que se imponha, após o que deverá ser de novo decidida a questão da incapacidade permanente para o trabalho. Custas a cargo de quem for condenado a final. Notifique. Guimarães, 2-04-2025 Maria Leonor Barroso (relatora) Vera Sottomayor Antero Veiga [1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s. |