Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3404/23.7T8VNF.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: LEVANTAMENTO DE SIGILO DE ADVOGADO
INTERESSE PREPONDERANTE
CARÁCTER ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIO DO DEPOIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2025
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. O sigilo profissional de advogado não é um dever absoluto; mas a razão de ser da sua existência (assente simultaneamente nas privadas confiança e lealdade entre o cliente e o advogado, e no público interesse da boa administração da justiça, que exige uma advocacia livre e independente) impõe que só em casos excepcionais possa ser quebrado.

II. Recusando-se uma testemunha advogado a prestar depoimento em audiência de julgamento, invocando o dever de sigilo profissional, e não sendo dispensada do mesmo pela Ordem dos Advogados, deve o tribunal superior decidir a questão em função da ponderação que faça dos interesses em litígio, por forma a fazer prevalecer o interesse preponderante (mercê de uma apreciação dos contornos do litígio, fundada na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses em confronto).

III. Terá ainda o tribunal superior que concluir pelo carácter absolutamente necessário do depoimento sujeito a segredo profissional (tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, e os ónus e as regras de prova), nomeadamente por ser: imprescindível (e não meramente útil), por mais ninguém saber o que a testemunha sabe; essencial, porque se não for prestado claudicará, total ou parcialmente, uma pretensão processual; e exclusivo, por não existir qualquer outro meio de prova.

IV. Num processo em que se discute o reconhecimento da insolvência de uma das partes ou do mal fundado dessa pretensão, estão em causa, não apenas o interesse privado (de natureza patrimonial) das partes, mas ainda a confiança do mercado (transparente e eficaz) nas decisões judiciais (que dele afastam os agentes económicos que deixaram de ter condições para aí continuarem, sob pena de provocarem, ou aumentarem, prejuízos a terceiros) e a recusa de indevida instrumentalização do próprio aparelho de Justiça do Estado (usado, não para o concreto fim que legitimamente deveria servir, mas posto ao serviço de outros e particulares propósitos).

V. O conjunto daqueles interesses privados (exclusivos das partes) e colectivos (do mercado e da sociedade em geral) constitui o interesse preponderante, face ao interesse da classe profissional dos Advogados na manutenção do respectivo segredo profissional.

VI. O depoimento de testemunha advogado que tenha tido intervenção directa nos factos exceptivos essenciais do reconhecimento da insolvência, sem que, para além das declarações das partes (previsivelmente contraditórias e presumivelmente parciais), outra prova posa ser produzida sobre eles, é: actual (por dizer respeito a um processo pendente); imprescindível (por só a testemunha poder esclarecer tais factos); essencial (condicionando o sucesso da oposição deduzida à insolvência); e exclusivo (pelo menos na parte que contende com os actos praticados pela própria testemunha).

VII. Consubstanciando o depoimento da dita testemunha, advogado, um depoimento directo, não sendo o segredo profissional a que está vinculada um fim em si mesmo, sendo a regra a manutenção do segredo mas admitindo excepções, mostra-se a mesma justificada no caso concreto, por ser aquele depoimento absolutamente necessário para o juiz da causa apurar a verdade e proceder à justa composição do litígio.
Decisão Texto Integral:
A questão objecto da causa apresenta-se como manifestamente simples, estando já suficientemente debatida na doutrina e na jurisprudência; e nos autos não foi impugnada qualquer matéria de facto.
Profere-se, assim, decisão sumária (nos termos dos art.ºs  652.º, n.º 1, al. c), e 656.º, ambos do CPC).
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DECISÃO SUMÁRIA

I - RELATÓRIO
1.1. Em ../../2023 EMP01..., Limitada, com sede na Rua ..., em ..., propôs uma acção especial de insolvência, pedindo que

· fosse declarada a insolvência de EMP02..., Limitada, com sede na Avenida ..., freguesia ..., em ....

Alegou para o efeito, em síntese, que dedicando-se ela própria ao comércio de compra e venda de bens imobiliários e à indústria de construção civil, e dedicando-se a Requerida (EMP02..., Limitada) à restauração e à realização de eventos, arrendou-lhe um imóvel em 04 de Junho de 2022, por € 2.000,00 mensais; e a mesmas nunca lhe pagou qualquer renda, devendo-lhe por isso a quantia de € 26.000,00.
Mais alegou que a Requerida (EMP02..., Limitada) encerrou o seu estabelecimento em Outubro de 2022, tendo sido retirado do mesmo todos os seus bens móveis e equipamentos; na mesma altura renunciou à sua gerência o único sócio habilitado a prosseguir a sua actividade; e possui um passivo superior a € 60.000,00 (discriminando os seus credores), que não poderá pagar, por nem ter activo para o efeito (nomeadamente, imóveis ou bens móveis sujeitos a registo), nem condições para retomar a sua actividade.
A Requerente (EMP01..., Limitada) arrolou quatro testemunhas.

1.2. Em 21 de Julho de 2023, regularmente citada, a Requerida (EMP02..., Limitada) deduziu oposição, pedindo que:

· não fosse decretada a respectiva insolvência;

· e a dedução dessa pretensão fosse considerada infundada, sendo a Requerente (EMP01..., Limitada) condenada a pagar-lhe a quantia de € 20.000,00, a título de indemnização de danos patrimoniais (avaliados em € 10.000,00) e não patrimoniais (avaliados em € 10.000,00) sofridos com ela.

Alegou para o efeito, em síntese, e quanto ao pedido de declaração de insolvência própria, que (conforme a Requerente bem saberia) ser o valor do seu activo intangível (marca, antiguidade na praça e valor do trespasse das suas instalações) muito superior ao das suas responsabilidades; e apenas ter encerrado o seu estabelecimento por o espaço arrendado pela Requerente (EMP01..., Limitada) não ter licença para funcionar como bar, ao contrário do que lhe tinha sido garantido por ela e era condição essencial para a celebração do contrato de arrendamento dos autos.
Mais alegou, quando ao pedido de condenação da Requerente (EMP01..., Limitada) por dedução infundada da respectiva pretensão, e relativamente aos danos de natureza patrimonial, ter sofrido junto dos seus fornecedores uma redução no prazo de pagamento e cortes na concessão de crédito; e quanto aos danos de natureza não patrimonial, ter visto afectada a sua imagem pública, tendo deixado de ser vista no mercado como séria e com capacidade financeira, para passar a ser vista como de sustentabilidade duvidosa.
Alegou ainda: ter sido constituída a sugestão e por acção do então advogado da Requerente (EMP01..., Limitada), AA (que lhe propôs a celebração de um contrato de arrendamento novo, em seu nome, em vez do trespasse do estabelecimento que então se encontrava a funcionar no imóvel por si pretendido); saberem ambas as partes que era condição da celebração do contrato de arrendamento invocado nos autos que o espaço estivesse licenciado para bar e discoteca, tendo-lhe sido garantida a existência dessa licença; não ter sido plasmada na primeira versão do contrato de arrendamento essa condição essencial da sua celebração, tendo por isso pedido a AA que o alterasse em conformidade (para que nele constasse de forma expressa); tendo-o aquele alterado e as partes assinado o mesmo, nunca lhe forneceu qualquer cópia, apesar das diversas interpelações que lhe fez (sendo que o exemplar junto aos autos não corresponde à versão definitiva); no mesmo dia em que abriu o estabelecimento foi interpelada pela Polícia de Segurança Pública para o fechar, por não ter licença de exploração de bar e discoteca, sendo que AA, a quem informou do sucedido, lhe respondeu que a licença existia e que iria aparecer; foi posteriormente objecto de intervenções da Polícia de Segurança Pública e da Polícia Municipal, reiterando a necessidade de encerramento do estabelecimento (então ainda a funcionar), com levantamento de vários autos de contraordenação, nunca lhe tendo sido exibida ou fornecida a licença de exploração de bar e discoteca; face ao não gozo da coisa para o fim a que se destinava, excepcionou a sua obrigação de pagamento da renda enquanto a licença não fosse apresentada; e há mais de um ano que pede a AA toda a documentação assinada pelas partes, no âmbito de contratos celebrados entre elas e terceiros, nunca lhe tendo a mesma sido entregue.
A Requerida (EMP02..., Limitada) arrolou cinco testemunhas, sendo a primeira delas «Dr. AA, advogado, com domicílio profissional na R. dos ..., SI, ... ..., a notificar pelo Tribunal».
 
1.3. Em 10 de Outubro de 2023, em sede de audiência final, foi proferido despacho saneador (certificando a validade e a regularidade da instância); identificou-se o objecto do litígio («Constitui objeto deste litígio a verificação dos pressupostos da declaração de insolvência da requerida EMP02..., Lda.») e enunciaram-se os temas da prova («a) Apurar se a requerente é credora da requerida» e «b) Apuar se a requerida se encontra em situação de insolvência»); apreciaram-se os requerimentos probatórios das partes (nomeadamente, admitindo os respectivos róis de testemunhas); e iniciou-se a produção de prova pessoal, não tendo, porém, sido autorizada a prestação do depoimento da testemunha AA, lendo-se nomeadamente na respectiva acta (que aqui se dá por integralmente reproduzida):
«(…)
TESTEMUNHAS da DEVEDORA

AA, já melhor identificado nos autos.
Prestou juramento legal e aos costumes disse ser advogado e que conhece a requerente porque é sua cliente e conhece igualmente a devedora, por via das suas funções.

Nesta altura, pela Mmª Juiz foi ordenado que a testemunha AA não poderia testemunhar na presente audiência de julgamento, sem ser suscitado incidente de levantamento de sigilo profissional na competente ordem dos advogados, e só após poderia ser arrolado como testemunha, sendo autorizado a fazê-lo.
(…)»

1.4. Em 20 de Novembro de 2023 a testemunha AA veio pedir que se «determine a remoção» de si próprio «do rol de testemunhas e dê sem efeito a sua inquirição nessa qualidade», já que, tendo requerido junto da respectiva Ordem Profissional o levantamento do sigilo profissional, foi o mesmo indeferido «com fundamento na não verificação dos pressupostos da exclusividade, da essencialidade e da imprescindibilidade do meio de prova».

1.5. Em 23 de Novembro de 2023, retomada a audiência de julgamento, não prescindindo a Requerida (EMP02..., Limitada) da testemunha AA e requerendo que fosse junta aos autos a decisão do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, foi proferido despacho deferindo essa pretensão, lendo-se nomeadamente na respectiva acta (que aqui se dá por integralmente reproduzida):
«(…)
TESTEMUNHA da DEVEDORA
AA, já melhor identificado nos autos, o qual após instado pela Mmª Juíza disse:
"não estar autorizado a prestar depoimento como testemunha em virtude de a Ordem dos Advogados ter indeferido o pedido de incidente de levantamento de sigilo profissional, não tendo junto aos autos decisão da mesma por escrito, precisamente pelas razões de sigilo profissional inerentes".
*
Dada a palavra ao ilustre mandatário da devedora, pelo mesmo foi dito:
"não prescindo da inquirição da testemunha e requeiro que a Ordem dos Advogados seja notificada pelo Tribunal para juntar decisão que recaiu no incidente de levantamento de sigilo."
**
De imediato, pela Mmª Juiz foi proferido o seguinte:
DESPACHO
- Oficie à Ordem do Advogados, solicitando que informe estes autos sobre o teor do pedido de levantamento de sigilo profissional do Dr. AA.
(…)»

1.6. Em 05 de Dezembro de 2023 o Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados informou os autos, relativamente ao «pedido de dispensa de segredo profissional formulado pelo Senhor Dr. AA, datado de 20/10/2023», «que o mesmo ficou prejudicado, por falta de objeto, na parte referente à junção de documentos, uma vez que os mesmos não estão sujeitos ao sigilo profissional, e foi indeferido na parte respeitante ao depoimento, tudo por despacho datado de 21/11/2023, notificado ao requerente na mesma data».

1.7. Em 11 de Janeiro de 2024, retomada a audiência de julgamento, não prescindindo a Requerida (EMP02..., Limitada) da testemunha AA e tendo dispensado a mesma do sigilo profissional que guardaria enquanto seu anterior mandatário, foi proferido despacho, pedindo à Ordem dos Advogados que informasse se mantinha, ou alterava, a sua anterior posição, lendo-se nomeadamente na respectiva acta (que aqui se dá por integralmente reproduzida):
«(…)
Seguidamente, a Mmª Juíza questionou a ilustre mandatária da devedora sobre a prova testemunhal em falta, atento o ofício da Ordem de Advogado de 05-12-2023, pelo que a mesma, no uso da palavra fez para os autos o seguinte requerimento:
"Na sequência do email enviado pela Ordem dos Advogados aos autos no dia 05 de dezembro de 2023 e a posição tomada pela testemunha Dr. AA vem junto de V/Exa. expor e requerer a V/Exa. a repetição da notificação à Ordem de Advogados para juntar o parecer, uma vez que no email enviado por aquela entidade não se retira qualquer obstáculo a que o mesmo parecer seja de conhecimento público; ou ao invés, e na sequência do que é dito no mesmo email, seja notificado a testemunha Dr. AA para juntar tal parecer, uma vez que não conhece nenhuma decisão da Ordem dos Advogados que iniba de entregar o mesmo.
De todo o modo, saliente-se que a testemunha Dr. AA foi mandatário da Requerida, no mesmo período dos factos que consistem a causa de pedir da presente ação, tanto mais que foi a referida testemunha que procedeu à constituição de tal sociedade, conforme resulta do procedimento de constituição da mesma na plataforma Empresa na Hora, enquanto mandatário daquela.
Visando o sigilo profissional proteger o princípio da confiança entre cliente e Advogado, no entendimento da Doutrina e Jurisprudência conhecida ou beneficiária desse princípio e o próprio cliente, uma vez que a informação que se pretende esclarecer é preponderante e imprescindível para a descoberta da verdade material a apurar nos autos, a Requerida autoriza a testemunha Dr. AA a levantar o sigilo profissional a que se abrigou, nomeadamente, para que tal testemunha esclareça os factos que estiveram na base da constituição da Requerida e os fins a que esta se destinava.
Para instruir o presente requerimento, a Requerida requer o prazo de dois dias para juntar aos autos a troca de emails ocorrida entre a testemunha e o representante legal da Requerida, cujo conteúdo dos mesmos corresponde aos factos pré-contemporâneos e pós à constituição da Requerida.
Nestes termos, pelo menos no que se refere aos factos da relação de mandato celebrada entre a testemunha e a Requerida, e na sequência da autorização do levantamento do sigilo profissional dado por esta, a testemunha Dr. AA deverá ser notificada para prestar depoimento nos autos, o que se requer.
A este propósito, conferir entre outros o Acórdão proferido pela Relação de Coimbra de 28/11/2018."
*
Dada a palavra à ilustre mandatária do requerente, pela mesma foi dito "nada ter a opor"
**
De imediato, pela Mmª Juíza foi proferido o seguinte:
DESPACHO
"Embora tenha sido já ordenada a notificação à Ordem de Advogados para informar os autos sobre a decisão que recaiu no incidente de levantamento de sigilo profissional de AA, tendo sido enviada a resposta, por ofício de 05-12-2023, a informar que o mesmo foi indeferido, vem agora, a requerida/devedora informar que autoriza que ele preste o seu depoimento enquanto seu advogado.
Assim, sendo, oficie, como nota de urgente, o Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados que informe os autos, se nos termos da posição assumida pela devedora, no requerimento que antecede, pretende alterar a sua posição.
(…)»

1.8. Em 26 de Fevereiro de 2024 o Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados informou não poder alterar a sua posição anterior, por a mesma não ter sido objecto de impugnação, lendo-se nomeadamente no seu despacho (que aqui se dá por integralmente reproduzido):
«(…)

2. APRECIAÇÃO
Tendo em linha de conta o objeto da pronúncia ora solicitada, importa evidenciar que o Exmo. Senhor Dr. AA apresentou um pedido de levantamento de sigilo profissional para poder depor, na qualidade de testemunha, no âmbito do processo n.º 3404/23.... e que corre termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
O referido requerimento foi objeto de análise e decisão, em conformidade com os parâmetros estipulados no artigo 92.º do Estatuto da ordem dos Advogados. Nesta sequência foi emitido Despacho, datado de 20 de novembro de 2023, mediante o qual foi indeferida a pretensão do Requerente (Sr. Dr. AA) de prestar depoimento no processo acima identificado.
Pelo que, considerando o teor do requerimento datado de 11.01.2024, e os elementos fornecidos, somos do entendimento de que a decisão já proferida sobre o pedido de levantamento do sigilo profissional não deve (nem pode) ser alterada.
Com efeito, a referida decisão não foi objeto de impugnação, pelo que a mesma se tornou definitiva.
O Tribunal poderá, querendo, desencadear o incidente de levantamento de sigilo profissional a que se refere, nomeadamente, o n.º 4 do artigo 417.º do Código de Processo Civil.

3. CONCLUSÃO
Nestes termos, é nosso entendimento de que não deve ser alterada a posição já assumida no Despacho proferido em 20 de novembro de 2023, no âmbito do procedimento n.º ...23..., de indeferimento do pedido de levantamento do sigilo profissional formulado pelo Exmo. Senhor AA para prestar depoimento no processo n.º 3404/23.... que core termos no Juiz ..., do Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
Sem prejuízo do que antecede, o Tribunal poderá, querendo, desencadear o incidente de levantamento de sigilo profissional a que se refere, nomeadamente, o n.º 4 do artigo 417.º do Código de Processo Civil.
(…)»

1.9. Em 12 de Março de 2024 a Requerida (EMP02..., Limitada) veio pedir que fosse suscitado junto do Tribunal da Relação de Guimarães incidente de quebra de sigilo profissional quanto à testemunha AA.
Alegou para o efeito, em síntese: dispensar a testemunha desse sigilo; não ser a posição assumida pelo ... da Ordem dos Advogados vinculativa para o Tribunal; serem os factos em que a testemunha interveio preponderantes e imprescindíveis para a descoberta da verdade material (nomeadamente, os que levaram à constituição dela própria pela dita testemunha, bem como os «factos, termos, negociações, elementos essenciais e conclusões que estiveram na base do contrato e arrendamento, do qual a Requerente alega ter um crédito sobre a requerida (…) que sustenta o pedido de insolvência desta»); e ser o depoimento pretendido imprescindível e crucial para a descoberta da verdade, pelo protagonismo e importância da testemunha nos interesses discutidos na acção.

1.10. Em 18 de Março de 2024 a Requerente (EMP01..., Limitada) veio opor-se à dedução, pelo Tribunal da 1.ª instância, de incidente para levantamento de sigilo profissional, requerendo ainda que se concluísse a audiência de julgamento exclusivamente com as alegações finais e a com a prolação de sentença (esgotada que está a demais produção de prova arrolada pelas partes).
Alegou para o efeito, em síntese: ser o requerimento da Requerida (EMP02..., Limitada) nesse sentido intempestivo e dilatório; não ser o depoimento da testemunha AA imprescindível, já que o ex-gerente e ainda sócio da Requerida (BB) participou nas reuniões havidas entre ambas, o anterior explorador do estabelecimento (EMP03...) conheceu os termos do negócio e o próprio legal representante da Requerida (EMP02..., Limitada) poderia ter deposto em declarações de parte; e ser desnecessária a produção adicional de prova, uma vez que, não só Administrador Judicial Provisório nomeado nos autos atestou a ausência de viabilidade de prossecução de actividade por parte a Requerida (EMP02..., Limitada), como já está comprovada nos autos a sua situação de insolvência.

1.11. Em 22 de Março de 2024 foi proferido despacho, suscitando o incidente de quebra de sigilo profissional, lendo-se nomeadamente no mesmo (que aqui se dá por integralmente reproduzido):
«(…)
A requerida EMP02..., Lda, vem requerer seja levantado o incidente de quebra de sigilo profissional da testemunha Dr AA remetendo-se o expediente para o Venerando TRG para apreciação, nos termos do artigo 417º, nº4 CPC e 135º, nº3 do CPP.
Alega a requerida que a informação que pretende esclarecer com o depoimento da testemunha é imprescindível para a descoberta da verdade material, nomeadamente os factos que estiveram na base da constituição da sociedade requerida e os fins a que esta se destinava, bem como os elementos essenciais do contrato de arrendamento, cujo incumprimento fundamenta o invocado crédito da requerente e o seu pedido de declaração de insolvência da requerida.
O Código de processo penal consagra no artigo 135º, a propósito do segredo profissional, no seu nº2, que havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente de escusa de prestação de informação se tiver suscitado procede às averiguações necessárias e se concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena ou requer ao tribunal que ordene a prestação de depoimento.
Assim, aplica-se o nº3 do artigo 135º do CPP, que dispõe ser o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado a decidir da prestação das informações sujeitas a sigilo profissional.
A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
Assim, mostrando-se as informações solicitadas imprescindíveis para decidir do objeto dos autos, nomeadamente, para apurar se a requerida se encontra efetivamente em situação de insolvência, uma vez que alega ser o seu direito ao arrendamento do locado um seu ativo valioso, entendemos ser de fazer prevalecer a prestação do depoimento aos autos em prejuízo do sigilo profissional.
Desta forma, importa remeter os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, pois V. Exªs Srs Desembargadores, melhor decidirão.
Remeta os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães para apreciação do pedido da quebra de sigilo profissional por prestação de depoimento do advogado que terá redigido o contrato de arrendamento e estado presente durante as negociações.
(…)»

1.12. Em 08 de Abril de 2024, remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Guimarães, foi proferido despacho pelo Relator, ordenando a sua devolução ao Tribunal de 1.ª instância, para que se pronunciasse sobre a legitimidade da recusa a depor por parte da testemunha AA, lendo-se nomeadamente no mesmo (que aqui se dá por integralmente reproduzido):

«(…)
I - Devolução dos Autos à 1ª Instância
Compulsados os autos, verifica-se que, embora tenha sido deduzido o incidente de dispensa/quebra de sigilo profissional relativamente à testemunha Dr. AA (Advogado) pela Requerida, através de requerimento apresentado em juízo na data de 12/03/2024 (referência citius «15880400»), e apesar da sua dedução não suspender o prosseguimento dos autos (apenas suspende a produção daquela prova testemunhal), o Tribunal da 1ªinstância não determinou a autuação do presente incidente por apenso (integrando no mesmo aquele requerimento, o requerimento de contraditório da Requerente, e certidão contendo as peças processuais indicadas pelas partes e contendo todos os elementos processuais necessários à decisão do incidente), limitando-se a remeter os presentes autos a este Tribunal da Relação de Guimarães, no despacho de 22/03/2024 (referência citius «189768961»).
Mais acresce que, nesse despacho, o Tribunal da 1ªinstância também não se pronunciou sobre se a recusa de prestação de depoimento da aludida testemunha era legítima ou ilegítima como exige o disposto no art. 135º/2 do C.P.Penal (aplicável ex vi do art. 417º/4 do C.P.Civil de 2013), sendo que, se entender que é ilegítima, deverá ordenar a prestação do depoimento, e sendo que, só se entender que é legítima, é que deve dar prosseguimento ao presente incidente de dispensa/quebra de sigilo.
Face ao exposto e sem necessidade de outras considerações, determina-se a devolução dos autos ao Tribunal da 1ªInstância com a vista:
1º A pronunciar-se sobre a legitimidade/ilegitimidade da recusa de prestação de depoimento por parte da testemunha Dr. AA (Advogado);
2º E, apenas no caso de concluir pela legitimidade da mesma, a determinar o prosseguimento do presente incidente, autuando-o por apenso e instruindo-o com o requerimento que contém a sua dedução, com o requerimento de contraditório da Requerente, e com certidão contendo as peças processuais indicadas pelas partes e contendo todos os elementos processuais necessários à decisão do incidente, e, após, remeter a este Tribunal da Relação da Relação tal apenso que deve ser atribuído a este mesmo Juiz Relator.
(…)»

1.13. Em 16 de Abril de 2024, devolvidos os autos ao Tribunal de 1.ª instância, foi por ele proferido despacho, considerando legítima a recusa a depor apresentada pela testemunha AA, lendo-se nomeadamente no mesmo (que aqui se dá por integralmente reproduzido):
«(…)
Em obediência ao determinado pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, entendemos que a recusa a prestar depoimento é legítima, pelo que se deu seguimento ao incidente de dispensa de sigilo.
Autue por apenso, instruindo o incidente com as peças processuais ordenadas.
(…)»
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR
Mercê do exposto, no presente incidente uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal:

· Questão Única - Justifica-se o levantamento do sigilo profissional de advogado, invocado por AA (nomeadamente, por se verificarem os pressupostos legais que autorizam esse levantamento), por forma a que possa depor como testemunha na audiência de julgamento que aprecia o pedido de declaração de insolvência da Requerida (formulado pela Requerente) e o pedido de consideração de tal pretensão infundada, com condenação da Requerente no pagamento à Requerida de uma indemnização de € 20.000,00 (formulado por esta última) ?
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes nos autos os factos elencados em «I - RELATÓRIO» (relativos ao seu processamento), que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Dever de colaboração com a justiça - Recusa legítima
4.1.1.1. Princípio da cooperação
Lê-se no art.º 417.º, n.º 1, do CPC, que todas «as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, (...) facultando o que lhes for requisitado e praticando os atos que forem determinados».
Mais se lê, no art.º 7.º, n.º 4, do CPC, que sempre «que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo».
Os preceitos referidos são a indiscutível concretização do princípio da cooperação (consagrado expressamente no nosso sistema após a reforma de 1995/1996, por via do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro), princípio estruturante de todo o processo civil (aqui na sua vertente material, e relativo à instrução da causa). Segundo o mesmo, existe um dever geral - das partes e de terceiros - de colaboração com o tribunal, com vista «ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio», fim último que o art.º 411.º do CPC comete ao juiz.
Assume-se, com ele, uma «concepção moderna do processo civil, que passa a ser visto como uma comunidade de trabalho, assim se apelando ao contributo de todos os intervenientes processuais na realização dos fins do processo e responsabilizando-os pelos resultados obtidos» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 26, com bold apócrifo) [1].
Reconhece-se que no processo civil não são raros os casos em que, para a prova de determinados factos, se torna fundamental a obtenção de elementos que se encontram na disponibilidade exclusiva de terceiros (v.g. testemunhas ou instituições), e cujos beneficiários são terceiros à causa ou, sendo parte interessada, não concedem a autorização para a sua revelação.
Compreende-se, por isso, que as epígrafes dos art.ºs 417.º e 7.º, ambos do CPC, sejam, respectivamente, «Dever de cooperação para a descoberta da verdade» e «Princípio da cooperação»; e que as partes e os terceiros a quem o tribunal o solicitar tenham que facultar objectos que constituem meio de prova (art.ºs 429.º, 432.º e 436.º, todos do CPC), tenham que prestar depoimento e/ou declarações de parte e depoimento testemunhal (art.ºs 452.º, 466.º e 526.º, todos do CPC), tenham que esclarecer o relatório pericial (art.º 486.º, do CPC), ou tenham que se submeter a inspecção judicial e a exame pericial (art.ºs 467.º e 490.º, ambos do CPC).
Mais se compreende que se leia: no n.º 2 do art.º 417.º citado, que aqueles «que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis»; e na al. c) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC que a omissão grave do dever de cooperação possa, inclusivamente, dar lugar à condenação da parte como litigante de má-fé.
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4.1.1.2. Recusa (legítima) de cooperação
Contudo, e nos termos do n.º 3 do art.º 417.º citado, a «recusa [de colaboração] é (…) legítima se a obediência importar: violação da integridade física ou moral das pessoas (al. a); intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (a. b); ou violação do sigilo profissional ou de funcionário público, ou do segredo do Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4» (al. c).

Particularizando quanto ao sigilo profissional, desde cedo se aceitou que o exercício de certas profissões, bem como o funcionamento de certos serviços, exige ou pressupõe, pela própria natureza das necessidades que visam satisfazer, que os indivíduos que a eles tenham que recorrer revelem factos que contendem com a esfera íntima da sua personalidade, quer física, quer jurídica.
Quando esses serviços ou profissões são de fundamental importância colectiva (porque virtualmente todos os cidadãos carecem de os utilizar), a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu funcionamento ou exercício constitui, como condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades, um interesse público [2].
Logo, o segredo profissional consiste na reserva que todo o indivíduo deve guardar sobre os factos conhecidos no desempenho das suas funções, ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou da sua profissão (Fernando Elói, «Da Inviolabilidade das correspondências e do sigilo profissional dos funcionários telégrafo-postais», O Direito, Ano LXXXVI, 1954, pág. 81) [3].
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Mais se lê, no n.º 4 do art.º 417.º do CPC, que, deduzida «escusa com fundamento na alínea c) do número anterior [violação do sigilo profissional ou de funcionário público, ou do segredo do Estado], é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado».
De forma conforme, lê-se no art.º 497.º, n.º 3, do CPC, que devem «escusar-se a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional, ao segredo de funcionários públicos e ao segredo de Estado, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se este caso o disposto no n.º 4 do artigo 417.º».

Logo, o «dever de cooperação para a descoberta a verdade tem dois limites: o respeito pelos direitos fundamentais, imposto pela Constituição e referido nas alíneas a) e b) do nº 3 (cf. os arts. 25-1 CP, 26-1 CP e 34-1 CP); o respeito pelo direito ou dever de sigilo, a que se refere a alínea c) do nº 3».
Contudo, enquanto que o primeiro limite é absoluto, não podendo o tribunal ultrapassá-lo, o segundo não o é, conforme desde logo resulta da redacção do n.º 4, do art.º 417.º, do CPC, e da remissão por ele feita para o CPP (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, pág. 223).

Com efeito, lê-se no art.º 135.º, n.º 1, do CPP, que os «ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos».
Havendo, porém, «dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias»; e se, «após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento» (n.º 2 do art.º 135.º citado).
Dir-se-á, assim, que invocada a escusa do dever de cooperação com o tribunal, por alegadamente o mesmo implicar violação de segredo profissional, e existindo dúvidas sobre a legitimidade da sua invocação (v.g. a matéria cuja revelação se pretende do inquirido se acha , ou não, coberta pelo segredo, se o inquirido está, ou não, vinculado ao segredo que invocou), o juiz decide, depois de proceder às averiguações necessárias; e, caso conclua pela ilegitimidade da escusa [4], determina a forma de cooperação requerida, cuja inobservância ficará, então, sujeita às cominações estabelecidas no n.º 2, do art.º 417.º, do CPC.

Compreende-se, por isso, que, face à recusa em depor de pessoa sujeita a sigilo profissional (pela invocação deste), o Tribunal em causa (perante o qual a mesma foi invocada) tenha de apreciar antes de mais a legitimidade da dita recusa, face aos concretos contornos do segredo profissional em causa.
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4.1.1.3. Sigilo profissional de advogado
4.1.1.3.1. Sede legal
Lê-se no art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados [5], sob a precisa epígrafe «Segredo Profissional», no seu n.º 1, que: «O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo».
Precisa-se ainda, no mesmo art.º 92.º, que: «A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço» (n.º 2); «O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo» (n.º 3); «O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5» (n.º 7).
Por fim, lê-se no n.º 5 do mesmo art.º 92.º, que os «atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo».

Consagra-se, assim, nos n.ºs 1, 2 e 7 do art.º 92.º citado, o dever profissional de sigilo de advogado (um dos deveres de segredo profissional expressamente considerados no art.º 135.º, n.º 1, do CPP) e as pessoas que estão obrigadas a observá-lo; e nos n.ºs 1 e 3 estabelece-se o objecto desse dever.
Logo, resulta hoje expressamente da lei que o âmbito do sigilo profissional de advogado deve ser entendido em termos amplos, não se restringindo aos factos que sejam conhecidos por via do exercício de mandato judicial, antes abrangendo todos os que sejam conhecidos por via do exercício da advocacia, e assentem na confidencialidade que é própria relação de confiança em que a mesma se funda [6].
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4.1.1.3.2. Ratio / Natureza
O sigilo profissional de advogado visa, essencialmente, duas finalidades: proteger a imprescindível confiança entre o advogado e o seu cliente (numa vertente eminentemente privada); e preservar o interesse público na correcta e eficaz administração da justiça (numa vertente eminentemente pública) [7].
Com efeito, o «segredo profissional sendo radicalmente um dever para com o cliente, já que sem ele seria impossível o estabelecimento da relação de confiança, resulta também de um compromisso da Advocacia para com a sociedade. Na verdade, a função social desempenhada pelos Advogados implica, para além da independência e isenção, o reconhecimento do seu papel de confidentes necessários» (Fernando Sousa Magalhães, Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, Almedina, 11.ª edição, 2017, pág. 137).
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Precisando a sua vertente mais privada, dir-se-á que o dever de guardar segredo profissional radica numa relação contratual de natureza privada, da qual resulta a confiança que se estabelece entre advogado e cliente e a lealdade daquele para com este (imprescindíveis para que sejam revelados todos os factos que permitam a defesa eficaz de direitos ou interesses cometida ao advogado). «O cliente, ou simples consulente, deve ter absoluta confiança na discrição do Advogado para lhe poder revelar toda a verdade, e considerá-lo como um “Sésamo que nunca se abre”» (António Arnaut, Estatuto da Ordem dos Advogados, 2.ª edição, Fora do Texto, 1995, pág. 60) [8]
Daí a tutela penal de que se reveste, lendo-se no art.º 195.º do CP (sob a precisa epígrafe «Violação de segredo»») que, quem, «sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias» [9].
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Precisando a vertente mais pública do sigilo profissional de advogado, dir-se-á radicar este (igualmente) na natureza social da função forense, sendo (também) um princípio de ordem pública: o patrocínio forense é considerado como «um elemento essencial à administração da justiça» (conforme art.º 208.º da CRP), já que pressuposto no direito fundamental de acesso ao direito (conforme art.º 20.º da CRP); e por isso se afirma que o advogado exerce «uma função pública de administração da justiça e é, por conseguinte, um órgão dessa administração» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Volume I, Coimbra Editora, 2004, pág. 471).
Logo, estando implícito no sigilo profissional o interesse público e preponderante da boa administração da justiça e o interesse da efectiva realização dos fins da actividade judicial (consagrado no art.º 202.º, da CRP), constitui-se ele próprio como uma exigência transversal a qualquer Estado de Direito Democrático (consagrado no art.º 2.º, da CRP), para o qual é indispensável o exercício em plena liberdade e independência da advocacia.
Dir-se-á mesmo que, devido a esta ligação do segredo profissional ao estado de direito democrático, tende-se a considerar que as normas que o regulam são de ordem pública; e gozam de protecção constitucional.
Compreende-se, por isso, que se afirme que o «dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade» (António Arnaut, Iniciação À Advocacia: História - Deontologia. Questões Práticas, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1996, pág. 65). Logo, o segredo profissional, representando um dos deveres supremos do advogado, é um princípio estruturante da própria classe, que radica na função ético-social da advocacia: «o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia» (Augusto Lopes Cardoso, Do Segredo Profissional da Advocacia, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, pág. 17).
Compreende-se ainda que, sistematicamente, a Ordem dos Advogados exija que seja cumprido com zelo e intransigência; e que quaisquer derrogações que possa registar revistam sempre carácter excepcional [10].
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Contudo, lê-se no n.º 4 do art.º 92.º do EOA que o «advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento».
Enfatiza-se, a propósito, que não cabe ao cliente desvincular o advogado do segredo profissional a que este se encontra obrigado, em seu directo e imediato benefício, mas sim ao conselho regional respectivo (do advogado em causa) da Ordem dos Advogados; e, deste modo, resulta claramente revelada e garantida a vertente pública do sigilo profissional em causa.
Compreende-se agora melhor que se afirme que, não obstante o segredo profissional de advogado vise «especificamente a tutela da relação advogado/cliente, tendo em conta a protecção da confiança do indivíduo que recorre aos serviços do advogado, nele confiando, ao revelar-lhe factos de cariz sigiloso, que deseja que se mantenham privados, e que o faz no intuito de melhor esclarecer o advogado quando à situação de facto existente», «tal é prosseguido num plano secundário ou até reflexo.
O bem primeiro a ser tutelado é, de facto, o interesse geral, social, que deve ser posto na confidencialidade e secretismo que hão-de revestir as relações havidas no exercício de certas profissões» (Ac. do STJ, de 15.02.2000, Garcia Marques, CJSTJ, Ano VIII, Tomo I, págs. 85-91).
O regulamento referido na parte final do n.º 4 do art.º 92.º do EOA é, precisamente, o Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional (Regulamento n.º 94/2006 OA, de 25 de Maio de 2006), aprovado pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados (publicado no DR, 2.ª Série, n.º 113, de 12 de Junho de 2006).
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Recorda-se, ainda, que se lê no art.º 135.º, n.º 2, do CPP, que, havendo «dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa [de prestação de depoimento, por invocação de segredo profissional], a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias»; e se, «após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento».
Deste modo, o dever de sigilo profissional de advogado só poderá deixar de ser observado, grosso modo, em duas situações: por autorização da própria Ordem Profissional, mercê de requerimento feito pelo advogado que pretenda depor (art.º 92.º, n.º 4, do EAO); ou por determinação judicial, nomeadamente quando o Tribunal considere ilegítima ou ilegal a recusa a depor (art.º 135.º, n.º 2, do CPP).
Fora destas duas legais e taxativas excepções, a protecção de que goza é tal que a revelação de informações cobertas pelo sigilo profissional de advogado implicará, não só a já vista responsabilidade criminal do infractor (conforme art.º 195.º, do CP), como igualmente responsabilidade civil e deontológica [11].
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As ditas excepções permitem, porém, afirmar que o sigilo profissional de advogado (contrariamente a outros segredos, como o religioso), não tem carácter absoluto, podendo sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Um entendimento contrário deixaria sem protecção - fazendo perigar a respectiva tutela - tais outros interesses e valores, também eles constitucionalmente consagrados, como é o caso da necessidade de obtenção de provas, enquanto corolário do direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva (art.º 20.º, n.º 1, da CRP) [12].

Adianta-se, porém, que malgrado o sigilo profissional de advogado não seja um direito absoluto, e podendo ceder perante a necessidade de salvaguardar o interesse público da cooperação com a justiça e outros interesses constitucionalmente protegidos, as restrições ao mesmo apenas poderão derivar de lei formal expressa; e a sua aplicação em concreto terá de ser objecto de adequado controlo jurisdicional (já que as excepções contempladas na lei pressupõem sempre um conflito de interesses, a necessitar de ponderação e cautelas).
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4.1.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, verifica-se que, no âmbito do reconhecimento da situação de insolvência de EMP04..., Limitada (pedida por EMP01..., Limitada), e bem assim do apuramento do mal fundado dessa pretensão (pedida por EMP04..., Limitada), foi arrolado como testemunha por aquela primeira sociedade AA, advogado.
Mais se verifica que, afirmando desde logo a Requerida (EMP02..., Limitada) que a dita testemunha conheceu os factos em causa nos autos no âmbito do exercício da sua actividade profissional de advogado (em benefício quer da Requerente, quer dela própria), o mesmo foi reconhecido pelo próprio AA; e, por isso, está vinculado ao sigilo profissional, nos termos do art.º 92.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do EAO (isto é, estão em causa «factos cujo conhecimento lhe adveio do exercício das suas funções», referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente», e independentemente do «serviço solicitado ou cometido não envolver representação judicial ou extrajudicial, nem dever ser remunerado»).
Verifica-se ainda que, em sede de audiência de julgamento, se recusou a depor, mercê precisamente do dito sigilo profissional a que está obrigado.
Por fim, verifica-se que não foi autorizado a quebrar o dito sigilo profissional, pelo Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, em prévio pedido que ele próprio lhe formulou nesse sentido, inviabilizando assim ao seu depoimento em juízo [13].

Logo, mostra-se legal/legítima a invocação do dever de segredo profissional em causa (sigilo de advogado), feita pela testemunha advogado, como fundamento de recusa do cumprimento do seu dever de colaboração com a Justiça, como correctamente o entendeu o Tribunal de 1.ª Instância.
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Assente no caso dos autos a legitimidade ou legalidade da escusa invocada pela testemunha em causa (AA), dela, porém, não resulta a resposta à questão que se coloca no presente incidente, já que o que nele se pretende saber é se, não obstante o dever de sigilo profissional de advogado (aqui indiscutível), se justifica o seu levantamento, face aos concretos interesses conflituantes em presença.
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4.2. Levantamento de sigilo profissional de advogado - Critério
4.2.1.1. Incidente de levantamento de sigilo profissional de advogado
Recorda-se que se lê no n.º 4 do art.º 417.º do CPC que, deduzida «escusa com fundamento na alínea c) do número anterior [no caso, violação do sigilo profissional], é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acera da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado».
Recorda-se ainda que se lê, no art.º 135.º, n.º 2, do CPP (a propósito da verificação da legitimidade da escusa invocada), que, havendo «dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias»; e se, «após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento».
Por fim (e concluindo pela dita legitimidade da escusa, o que se verificou antes ser o caso dos autos), lê-se no n.º 3 do art.º 135.º do CPP que o «tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos».

Logo, o incidente de escusa de sigilo profissional de advogado (uma vez invocado este) desdobra-se em duas fases: uma primeira em que, havendo dúvidas sobre a legitimidade da invocação, será ao juiz da causa que caberá proceder às averiguações necessárias e proferir decisão, ordenando ele próprio a prestação do depoimento quando conclua pela ilegitimidade da recusa; e uma segunda em que, já tendo o juiz decidido previamente sobre a legitimidade da escusa, ordena a subida do incidente ao tribunal imediatamente superior ao seu, para que este aprecie e decida sobre a verificação dos pressupostos legais de quebra do sigilo profissional em causa [14].
Caberá, assim, ao tribunal onde o incidente se suscite pela primeira vez pronunciar-se sobre a legitimidade da escusa; e caberá ao tribunal superior para onde o mesmo seja remetido pronunciar-se exclusivamente sobre a quebra do sigilo profissional  [15].
Compreende-se que assim seja, já que, vinculando o segredo profissional «todos aqueles que, por via do exercício de profissão, têm acesso às informações indicadas, e no caso da legitimidade da recusa, visto a informação (ou depoimento) estar protegida pelo segredo, só o levantamento do sigilo pode obrigar a entidade à prestação da informação» (conforme Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2008, do STJ, de 13 de Fevereiro de 2008, publicado no DR, 1.ª Série, n.º 63, de 31 de Março de 2009).
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Contudo, quer no caso de apreciação da legitimidade da recusa, quer no caso de apreciação da justificação para quebra de sigilo profissional, «a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável» (art.º 135.º, n.º 4, do CPP, com bold apócrifo).
Admite-se, porém, que, quando o dito organismo já se tenha pronunciado sobre os fundamentos próprios da recusa para depor (isto é, não apenas sobre qualquer questões formais, nomeadamente a legitimidade do requerente da dispensa de sigilo profissional), possa ser dispensada a sua reiterada audição (na fase posterior, de apreciação dos fundamentos de quebra do dito sigilo) [16].
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4.2.1.2. Critérios de decisão - Interesse preponderante / Inequívoca necessidade
Recorda-se que se lê, no art.º 135.º, n.º 3, do CPP, que «o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos».
Mais se lê, no Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional (Regulamento n.º 94/2006 OA, de 25 de Maio de 2006), no seu art.º 4.º: «A dispensa do segredo profissional tem carácter de excepcionalidade» (n.º 1); «A autorização para revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, apenas é permitida quando seja inequivocamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado, cliente ou seus representantes» (n.º 2); «A decisão do Presidente do Conselho Distrital, nos termos do EOA e do presente regulamento, aferirá da essencialidade, actualidade, exclusividade e imprescindibilidade do meio de prova sujeito a segredo, considerando e apreciando livremente os elementos de facto trazidos aos autos pelo requerente da dispensa».
Dir-se-á, assim, que os critérios fundamentais de decisão serão o da prevalência do interesse preponderante e da inequívoca necessidade do meio de prova em causa.
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4.2.1.2.1. Prevalência do interesse preponderante
4.2.1.2.1.1. Em geral
Precisando o primeiro critério de decisão referido, de fazer prevalecer o interesse preponderante, considera-se que o tribunal superior poderá dispensar o titular do sigilo profissional se considerar relevante o interesse civil a satisfazer com a sua quebra [17].

Contudo, nesta ponderação do que seja «o interesse preponderante que deva prevalecer», deverá o Tribunal atender aos critérios gerais de resolução de colisão de direitos (nomeadamente, constitucionais).
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Com efeito, lê-se no art.º 18.º, n.º 2, da CRP, que «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
Compreende-se, assim, que se afirme que, no conflito de direitos em presença (sigilo profissional de advogado/confiança do cliente/reserva da vida privada versus realização da justiça) deverá prevalecer o mais relevante; mas essa relevância terá de ser aferida à luz do caso concreto, e dos princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade [18].
Precisando, atendendo ao conteúdo e à função específica de cada um dos direitos, pretender-se-á obter o máximo de protecção de cada um deles, sem os descaracterizar no seu núcleo essencial (princípio constitucional da concordância prática, face à vocação de integridade e completude que cada direito constitucional tem ínsita); e o sacrifício que se tiver que verificar será apenas o necessário à realização essencial do outro (princípios constitucionais da proporcionalidade, da adequação e da necessidade).
Afirma-se, por isso, que estando em causa o exercício simultâneo de dois direitos constitucionais, em colisão (reserva da vida privada versus realização da justiça), a solução de tal litígio deverá resultar de um juízo de ponderação, que procure, em face da situação concreta, encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto dos valores constitucionais, assim se actuando o critério da ponderação de bens (conforme Vieira de Andrade, Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, Almedina, pág. 220).
Do mesmo modo se entende o disposto no art.º 335.º, do CC, segundo o qual, «havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes» (n.º 1), sendo que, no caso de os direitos serem «desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior» (n.º 2).
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Contudo, e como desde cedo alertou a doutrina, a definição da superioridade de um direito em relação a outro terá que ser feita em concreto, pela ponderação dos interesses que cada titular visa atingir, não podendo - por exemplo - afirmar-se que o interesse pessoal seja, em todas as circunstâncias, superior ao patrimonial (Fernando Pessoa Jorge, Ensaios sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Almedina, 1999, pág. 201, com bold apócrifo).
Por outras palavras, «há que verificar se os direitos colidentes têm uma estrutura formal e um fundamento axiológico-normativo assentes quer em interesses juridicamente tutelados de qualidade e grau idênticos quer em interesses concretos juridicamente tutelados de qualidade e grau diverso mas de peso equilibrado, ou, diferentemente, se na colisão de direitos há predominância de interesses juridicamente tutelados de uma das partes.
Mas esta (…) ponderação (…) não pode ser exclusivamente feita mediante uma abstracta comparação de bens e valores jurídicos tutelados, pois depende largamente da situação concreta».
Assim, na «hierarquização legal dos valores pessoais e patrimoniais volta a imperar a importância objectiva de tais valores para a realização dos fins jurídicos da comunidade, particularmente, no que toca ao mais imediato e fundamental do comum da existência humana. Daí que, nem sempre os valores pessoais precedam os valores patrimoniais. Tal precedência verifica-se, sem dúvida, quanto ao valor da personalidade humana total integrando todos os valores singulares da personalidade, quanto ao valor da dignidade humana essencial e quanto aos valores vitais. Fora disto, já a indispensabilidade ou a importância de certos valores patrimoniais básicos poderão sobrepor-se ao relevo de valores de personalidade menos prementes» (Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág. 534 a 549) [19].

Por fim, reitera-se que, «mesmo o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses. Inclusivamente, caso sejam possíveis e adequados vários modos de exercício dos direitos superior e inferior, a solução legal do conflito impõe que as partes adoptem modos alternativos de exercício que respeitem a diferença axiológico-jurídica em causa e se mostrem não colidentes entre si ou, se isso não foi possível, impõe que o titular do direito predominante adopte o modo de exercício mais moderado ou menos gravoso, que limite ao mínimo o direito secundário» (Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág. 549).
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4.2.1.2.1.2. Em particular (sigilo profissional de advogado)
Particularizando agora a «prevalência do interesse preponderante», no que ao sigilo profissional de advogado diz respeito, pressupõe a mesma que a prestação de depoimento se decida depois de ponderados jurisdicionalmente os interesses em confronto, isto é, da relação de confiança e lealdade entre o cliente e o advogado e da realização da justiça (esta quer no caso concreto, pela precisa pretensão da sua quebra - com acrescida produção de prova -, quer no âmbito geral da defesa intransigente de um dos principais traços de uma advocacia livre e independente); e essa ponderação incumbe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado (conforme Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2008, do STJ, de 13 de Fevereiro de 2008, publicado no DR, 1.ª Série, n.º 63, de 31 de Março de 2009).

Por outras palavras, o tribunal superior, ao realizar esse juízo, deverá «actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, maxime o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão» (Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, págs. 457-458).

Contudo, para o efeito não bastam afirmações apriorísticas de que o interesse na realização e na boa administração da justiça, atenta a sua dimensão social, deverá prevalecer sobre o interesse particular do cliente/consulente do advogado em não ver divulgada informação que confiou a este; ou que, estando em causa um direito de personalidade (à reserva da vida privada), o mesmo deverá prevalecer sobre o reconhecimento de um direito patrimonial (objecto da acção judicial onde se pretende obter o depoimento sujeito a sigilo profissional de advogado).
Impõe-se, pelo contrário (e, por isso, se reafirma), que esse juízo de ponderação tenha que «ter, sempre e necessariamente, em conta a natureza dos interesses em causa: desde logo, trata-se de interesses privados (e não interesses públicos, como sucede necessariamente no âmbito do processo penal) que poderão, por sua vez, revestir natureza pessoal ou patrimonial - e, neste último caso, de valores muito variáveis. (…)
Daqui decorre que a dispensa do invocado sigilo dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa» (Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, ibidem, com bold apócrifo) [20].
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4.2.1.2.2. Inequívoca necessidade
Precisando agora o segundo critério de decisão referido, da inequívoca necessidade do meio de prova, vem-se defendendo que, no âmbito do processo civil (em que estão em causa interesses privados), a quebra do sigilo profissional de advogado surge com características marcadamente excepcionais, em conjunturas muito particulares [21]; deverá ser aferida com base na estrita necessidade (numa lógica de imprescindibilidade da informação pretendida); e limitar-se ao mínimo indispensável à concretização dos valores pretendidos alcançar.
Precisa-se ainda que «a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade significa duas coisas: a descoberta da verdade é irreversivelmente prejudicada se a testemunha não depuser ou, depondo, o depoimento não incidir sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional e, portanto, o esclarecimento da verdade não pode ser obtido de outro modo, isto é, não há meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 379).

Ora tudo isto é claramente reafirmado pelo art.º 4.º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional, quando impõe que na decisão de dispensa do segredo profissional (aqui, pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, directamente ao advogado que lha requeira), se afira da imprescindibilidade, da essencialidade, de exclusividade e da actualidade, do meio de prova sujeito a segredo (precisamente, como forma de aferir da absoluta/inequívoca necessidade da revelação dos factos sujeito a sigilo).
Pretende-se deste modo significar: com a imprescindibilidade, que o meio de prova sujeito a sigilo deverá ser indispensável e não meramente útil; com a essencialidade, que o meio de prova sujeito a sigilo deverá ser de tal modo determinante que, a não ser concedida a dispensa, a parte interessada poderá ver a sua posição claudicar, total ou parcialmente [22]; com a exclusividade, que inexiste qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo; e com a  actualidade, que o meio de prova sujeito a sigilo diz respeito a um processo pendente.

Compreende-se, por isso, que se decida que: o segredo profissional deve ceder, «excepcionalmente, perante outros valores que, no caso concreto, se lhe devam sobrepor, designadamente, quando os elementos sob segredo se mostrem imprescindíveis para a protecção e efectivação e direito ou interesses jurídicos mais relevantes» (Ac. do STJ, de 15.02.2018, Henrique Araújo, Processo n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1); o «critério legal a utilizar vinculado à lei processual (…), para decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional, é que esta se mostre justificada, sendo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, (…) e a necessidade de protecção e bens jurídicos» (Ac. do STJ, de 05.04.2018, Pires da Graça, Processo n.º 2/16.5TRPRT-A.S1); a «quebra do segredo profissional só deve ser autorizada ou imposta quando estejam em causa interesses excepcionalmente relevantes e quando a sua revelação surja como última ratio, Isto é, o não depoimento vale como regra geral e a obrigação de depor como a excepção» (Ac. da RG, de 17.12.2019, Alcides Rodrigues, Processo n.º 74/18.8T8GMR.G1).

Compreende-se, ainda, que, não invocando a parte interessada na quebra de sigilo profissional de advogado a concreta factualidade sobre a qual pretende que seja produzido o depoimento em causa, já se tenha decidido que não pode a pretendida quebra ser autorizada, precisamente por não dispor o Tribunal superior de factos que permitam concluir pela excepcionalidade da situação sub judice e pela absoluta necessidade/imprescindibilidade do depoimento pretendido.
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Concluindo, em sede de processo civil, a dispensa de invocado sigilo profissional de advogado reveste natureza excepcional; depende sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e nas relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa; e só deverá ser concedida se a informação pretendida for necessária (tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, bem como os ónus e as regras de prova) e imprescindível (no sentido de não poder ser obtida de outro modo).
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4.2.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.2.2.1. Prevalência do interesse preponderante
Concretizando, verifica-se que a acção especial que constitui os autos principais tem como simultâneo objecto de julgamento o reconhecimento da situação de insolvência de EMP02..., Limitada (pedido por EMP01..., Limitada), bem como o reconhecimento do mal fundado dessa pretensão, com a inerente condenação de EMP01..., Limitada a indemnizar aquela primeira Sociedade (que precisamente formulou este pedido).
Mais se verifica que a legitimidade da Requerente (EMP01..., Limitada) para pedir a insolvência da Requerida (EMP02..., Limitada) radica na sua qualidade de credora desta, mercê de rendas em dívida resultantes de um contrato de arrendamento de imóvel que celebrou com ela, para exploração da actividade de restauração ou similares de hotelaria; e que a Requerida (EMP02..., Limitada) defende que essa dívida é inexistente, uma vez que, tendo arrendado o dito imóvel para exploração de bar e discoteca, a mesma revelou-se impossível (por inexistência da necessária licença, que a Requerente lhe assegurara existir), sendo nessa privação do gozo da coisa que radicou precisamente a sua decisão de não pagar a renda (conforme a lei a autorizaria).
Verifica-se ainda que a testemunha AA (que não patrocina qualquer das partes nos autos [23]) foi, segundo a versão da Requerida (EMP02..., Limitada), o advogado que assessorou ambas no dito negócio de arrendamento e, por isso: aconselhou a que o imóvel não fosse objecto de trespasse mas sim de novo arrendamento, constituindo-se para o efeito uma nova sociedade (a aqui Requerida); ele próprio coadjuvou essa constituição; redigiu o contrato de arrendamento celebrado entre as partes, sabendo que o imóvel se destinava à exploração de bar e discoteca, sendo, por isso, essencial a existência de licença para o efeito; não estando evidenciada esta realidade na sua primeira versão, elaborou uma segunda conforme (tendo, porém, sido junta aos autos a primeira); tendo várias vezes sido interpelado pela Requerida (EMP02..., Limitada) para que lhe entregasse cópia da versão definitiva assinada pelas partes, nunca o fez; e tendo-lhe várias vezes sido pedida a licença de exploração do imóvel para bar e discoteca, afirmou sempre que a mesma existia mas nunca a entregou à Requerida (EMP02..., Limitada).

Logo, e indiscutivelmente, estamos perante um conflito de interesses privados, sendo o direito da Requerida (EMP02..., Limitada) - que a mesma pretende salvaguardar, com a pretensão de desvinculação do segredo profissional em causa -  de exclusiva, ou preponderante, natureza patrimonial; e impõe-se ainda considerar a simultânea e indesmentível natureza pública do interesse subjacente ao sigilo de advogado (em benefício da comunidade geral dos cidadãos, constituinte do Estado de Direito Democrático, fundado nomeadamente na boa administração da justiça, para cuja realização é imprescindível uma advocacia livre e independente, e o carácter excepcional das quebras daquele segredo profissional).
             
Verifica-se ainda que, não tendo a Requerida (EMP02..., Limitada) aduzido expressamente nos autos razões que justificassem que se viesse a dar prevalência à pretendida defesa de interesses privados próprios (repete-se, aqui concretizados numa vertente patrimonial), face ao interesse da classe profissional dos Advogados, reconhecida esta como imprescindível à boa administração da justiça, crê-se, porém, resultarem as mesmas sobejamente dos autos.
Com efeito, estando inicialmente em causa uma insolvência, não deixa o exigível rigor posto no seu reconhecimento de se reflectir na transparência e na eficácia do mercado, que deverá poder confiar nas decisões judiciais que dele afastam os agentes económicos que deixaram de ter condições para aí continuarem, sob pena de provocarem, ou aumentarem, prejuízos a terceiros.
Já relativamente ao subsequente objecto do processo - isto é, à dolosa dedução de um pedido infundado de insolvência -, não deixa de nele estar em causa uma indevida instrumentalização do próprio aparelho de Justiça do Estado, usado não para o concreto fim que legitimamente deveria servir, mas posto ao serviço de outros e particulares propósitos.
Logo, quer quanto ao inicial objecto dos autos principais, quer quanto àquele que (com a oposição da Requerida) se lhe somou, verifica-se que os respectivos âmbitos extravasam a mera e restrita natureza privada dos interesses das partes, contendendo com outros interesses, estes de natureza colectiva.
Ora, o conjunto daqueles interesses privados (exclusivos das partes) e colectivos (do mercado e da sociedade em geral) constitui o interesse preponderante, face ao interesse da classe profissional dos Advogados na manutenção do respectivo segredo profissional.
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Mostra, assim, verificado nos autos o primeiro requisito de que depende o levantamento de sigilo profissional impetrado, isto é, reportar-se o mesmo à defesa de um interesse preponderante.
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4.2.2.2. Inequívoca / absoluta necessidade
Concretizando novamente, e agora quanto ao seguindo requisito enunciado antes para o mesmo efeito, veio desta vez a Requerida (EMP02..., Limitada) aduzir factos demonstrativos do carácter absolutamente necessário (tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, bem como os ónus e as regras de prova) do depoimento a prestar pela testemunha AA.
Com efeito, lê-se no seu requerimento de dedução, pelo Tribunal de 1.ª instância, do incidente de levantamento de sigilo profissional de advogado: «nestes [autos] discute-se, o papel da testemunha Dr. AA no aconselhamento prestado à Requerida na sua constituição, os termos do contrato de arrendamento em causa nos autos, o fim a que o mesmo se destinava e a promessa, pelo Requerente que, em tal imóvel, a Requerida podia exercer a actividade de bar e discoteca, o que se veio a demonstrar não estar licenciado facto que a requerida só teve conhecimento após varias interpelações por parte das autoridades policiais, e as sucessivas promessas que a licença iria aparecer sendo que a Requerida só deixou de pagar as rendas enquanto tal licença não aparecesse»; e «foi a testemunha que desempenhou papel principal e decisivo nos factos em discussão, cujo esclarecimento e interpretação do contrato de arrendamento e as condições essenciais da validade do mesmo e que levaram a Requerida a manifestar a sua vontade em contratar», «da existência ou não da licença do imóvel para a actividade de bar e discoteca, e as diligencias efectuadas ou não pela testemunha e o Requerente para a obter».

Ora, é apodítico que o depoimento pretendido é actual, no sentido de que diz respeito a um processo pendente.
Considera-se ainda que o mesmo é imprescindível (e não meramente útil), isto é, indispensáveis, por mais ninguém saber o que a testemunha AA sabe, para além das próprias partes (cujas declarações são, por isso, as mais das vezes contraditórias e desvalorizadas, pelo natural comprometimento que têm no desfecho da acção). Ilustrando, se o anterior titular do negócio que se exercia no imóvel depois arrendado à Requerida (EMP02..., Limitada) poderá explicar os termos em que o mesmo se desenvolvia, não poderá, porém, atestar o que a mesma visava com o seu novo e próprio negócio, o que lhe foi prometido pela Requerente (EMP01..., Limitada), o que lhe foi aconselhado pela testemunha AA, que intervenção teve este na constituição da Requerida (EMP02..., Limitada), se respeitou a vontade de ambas as partes na redacção do contrato de arrendamento que depois celebraram, quantas versões do mesmo existiram, se não facultou cópia dele que lhe tivesse sido pedida pela Requerida (EMP02..., Limitada), e se reiteradamente lhe asseverou existir licença de exploração de bar e discoteca sobre o dito imóvel.
Tem-se ainda tal depoimento como essencial, já que a matéria dele objecto coincide com os factos essenciais constitutivos da excepção (de prévio incumprimento do contrato pela Requerente) à constituição do crédito (de pagamento de rendas) vencido e não satisfeito, invocado como primeiro fundamento da insolvência da Requerida (condicionando, por isso, o sucesso da oposição por ela deduzida).
Por fim, tem-se ainda o mesmo depoimento por exclusivo, pelo menos numa sua grande parte (nomeadamente, a que se reporta aos actos praticados pela própria testemunha), por não existir qualquer outro meio de prova que não ele (salvaguardadas as declarações de parte de Requerente e da Requerida, as quais, porém, se desvalorizam para este efeito, mercê as razões já aduzidas supra, de previsível caracter contraditório e de presumível parcialidade).
Logo, consubstanciando o depoimento da dita testemunha, advogado, um depoimento directo e não meramente indirecto [24], não sendo o segredo profissional a que está vinculada um fim em si mesmo, e sendo a regra a manutenção do segredo, a excepção existe e encontra justificação em casos como este, em que é absolutamente necessário para o juiz da causa «apurar a verdade e proceder à justa composição do litígio» (art.º 411.º, do CPC).
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Mostra, assim e igualmente, verificado nos autos o segundo o requisito de que dependia o levantamento de sigilo profissional impetrado, isto é, ser absolutamente necessário esse levantamento.
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Concluindo, tendo presente os contornos do caso concreto, ponderados os interesses e direitos em presença (nomeadamente, o interesse da Requerida à produção de prova sobre direito privado seu, de natureza preponderantemente patrimonial, concretização do seu mais amplo direito de acesso ao Direito, e o interesse público na boa administração da justiça, que não só exige uma advocacia independente, como também que o aparelho de Justiça não seja instrumentalizado por interesses diferentes daqueles que deve servir), e perante o dever de sigilo profissional de advogado invocado, dir-se-á que que se justifica o seu levantamento quanto a AA.
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V- DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, julgo procedente o presente incidente de levantamento de sigilo profissional quanto à testemunha AA e, em consequência,

· Dispenso AA, advogado, do cumprimento do dever de sigilo profissional que invocou para não depor em sede de audiência de julgamento que decorre perante o Tribunal de 1.ª Instância, sobre os factos alegados na oposição ao pedido de declaração de insolvência de EMP02..., Limitada (apresentada pela própria).
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Custas do incidente pela Requerida, que arrolou a testemunhas em causa, por ser ela quem do mesmo tirou proveito (art.º 527.º, n.º 1, in fine, do CPC).
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Estando a continuação da audiência de julgamento que se realiza no Tribunal de 1.ª instância agendada para o próximo dia 25 de Fevereiro de 2025, pelas 10.00 horas, comunique desde já ao mesmo o teor da presente decisão, com menção de que é ainda passível de reclamação para a conferência, conforme art.º 652.º, n.º 3, do CPC.
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Guimarães, 11 de Fevereiro de 2025.


A presente decisão singular é assinada electronicamente pela respectiva

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos.


[1] Pronunciando-se especificamente sobre o princípio da cooperação, Fernando Pereira Rodrigues, O Novo Processo Civil. Os Princípios Estruturantes, 2013, Almedina, Novembro de 2013, págs. 101-124.
[2] Conforme Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 110/56 (publicado no BMJ n.º 67, pág. 124), citado no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 49/1991, de 12.03.1993, cujo relator foi Ferreira Ramos.
[3] No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 15.02.2000, CJSTJ, Ano VIII, Tomo I, págs. 85-89, onde nomeadamente se lê que o segredo profissional consiste na proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional.
[4] A ilegitimidade da escusa invocada por testemunha para não depor poderá resultar, designadamente, por a mesma não exercer com carácter regular a profissão a que a lei permite ou impõe o sigilo profissional invocado, ou não reunir os requisitos necessários para o seu exercício, ou não ter conhecido os factos no exercício da mesma, ou não ser uma das pessoas legalmente vinculada ao dito segredo, ou não se verificarem os requisitos específicos fixados nos estatutos profissionais para o efeito, como seja a prévia consulta e decisão de organismo representativo da profissão (conforme Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, 2014, Agosto de 2014, Almedina, pág. 242).
[5] O Estatuto da Ordem dos Advogados (aqui doravante EOA) foi aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro (que revogou o anterior Estatuto, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro).
[6] Defendendo o carácter amplo do sigilo profissional em causa: Ac. da RP, de 27.05.2008, José Vieira e Cunha, Processo n.º 0821390 (in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem); ou Ac. do STJ, de 15.02.2000, CJSTJ, Ano VIII, Tomo I, págs. 85-91. 
[7] Na dupla vertente referida (e numa jurisprudência uniforme):
.  Ac. da RL, de 23.02.2017, Cristina Branco, Processo n.º 1130/14.7TDLSB-C.L1-9 - onde se lê que, tanto «o dever de sigilo que a lei substantiva prescreve como o direito ao sigilo que o direito processual reconhece, visam salvaguardar simultaneamente bens jurídicos de duas ordens distintas. A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra-individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir a confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões».
. Ac. do STJ, de 15.02.2018, Henrique Araújo, Processo n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1 - onde se lê que o «dever de guardar segredo profissional tem as suas raízes no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, mas também na dignidade da advocacia na sua função de manifesto interesse público. Nas palavras de António Arnaut, o fundamento ético-jurídico do sigilo profissional de advogado radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense. A obrigação de segredo transcende, por consequência, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral».
[8] No mesmo sentido, António José e Lima, Do Segredo Profissional, 1939, citado no Ac. da RL, de 09.03.1995, CJ, Ano XX, Tomo II, pág. 69, onde se lê que «a profissão de advogado tem, por consequência, de inspirar uma confiança sem limites e assegurar uma discrição absoluta (…). Pode dizer-se que a profissão de advogado se assemelha, de certo modo, à do confessor e é assim uma espécie de sacerdócio que impõe, a quem o exerce, deveres indeclináveis e obrigações rigorosas».
[9] A concreta incriminação em causa leva a que haja quem defenda que, presentemente, «é clara a prevalência da tutela da privacidade, bem jurídico pessoal, face ao bem jurídico supra-individual institucional, (…), sem prejuízo de os valores supra-individuais, que se “identificam com o prestígio e confiança em determinadas profissões e serviços, como condição do seu eficaz desempenho”, aparecerem sempre incindivelmente associados à punição da violação do sigilo profissional, embora “com o estatuto de interesses (apenas) reflexa e mediatamente protegidos”» (conforme já citado Ac. da RL, de 23.02.2017, Cristina Branco, Processo n.º 1130/14.7TDLSB-C.L1-9).
[10] Reconhecendo expressamente o carácter excepcional de qualquer quebra autorizada de sigilo profissional de advogado, lê-se no art.º 4.º, n.º 1, do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional (Regulamento n.º 94/2006 OA, de 25 de Maio de 2006), que a «dispensa do segredo profissional tem carácter de excepcionalidade».
[11] Sobre as várias formas de responsabilidade em que incorre o advogado que viole o sigilo profissional a que está obrigado - e ainda com absoluto interesse para todas as demais questões pertinentes àquele segredo -, Cremilda Maria Ramos Ferreira, Sigilo Profissional na Advocacia, Coimbra Editora,1991; e Rodrigo Santiago, Do Crime de Violação de Segredo Profissional no Código Penal de 1982, Almedina, Coimbra 1992.
[12] Neste sentido, Ac. do STJ, de 14.01.1997, BMJ, n.º 463, pág. 472, onde se lê que «o direito ao sigilo (…), em si próprio inquestionável, à luz do moderno âmbito do direito de personalidade, não pode considerar-se absoluto de tal forma que fizesse esquecer outros direitos fundamentais, como o direito ao acesso à justiça (a menos que, contra “o civilizado” artigo 1.º do CPC, se privilegiasse a “justiça” privada !) ou, por exemplo, o dever de cooperação, tradicional no processo civil português».
Já antes o Tribunal Constitucional decidira no mesmo sentido, ao pronunciar-se sobre o segredo bancário, lendo-se nomeadamente no seu Ac. n.º 278/95, de 31.05.1995 (publicado no DR, 2.ª Série, de 28.07.1995), que o mesmo «não é um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos», como de «investigação criminal».
[13] Precisa-se que, para a legitimidade da recusa a depor, é suficiente não ter sido obtida a competente autorização do Conselho Regional da Ordem dos Advogados para revelar o segredo profissional, sendo irrelevante para o efeito a razão pela qual a dita autorização não foi obtida (v.g. por o advogado vinculado ao segredo não a ter chegado a pedir, por, tendo-o feito, não ter fundamentado ou instruído corretamente o seu requerimento, ou por, tendo formulado pedido e fundamentado e instruído devidamente o mesmo, tê-lo visto improceder na apreciação de mérito que lhe era devida).
[14] Neste sentido, e a propósito do incidente de escusa de segredo profissional de advogado: Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, 2004, pág. 457; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição, Universidade Católica Portuguesa, 2008, pág. 377; e Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, 2014, Almedina, Agosto de 2014, págs. 240 e 254-255.
[15] Neste sentido, do diferente objecto de decisão dos dois tribunais envolvidos no incidente de levamento de sigilo profissional de advogado, Ac. da RG, de 10.07.2019, Joaquim Boavida, Processo n.º 2084/17.3T8VRL-A.G1, onde se lê que «estando os factos submetidos a sigilo, o que a Relação julga não é a justificação da escusa, mas sim se a quebra do sigilo profissional se justifica, após ponderação dos interesses em conflito, ajuizando qual deles deverá, in casu, prevalecer. O n.º 3 do artigo 135.º do CPP é claro ao dispor que o tribunal superior decide a prestação de depoimento com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada. Portanto, justificada será a quebra do sigilo e não a escusa».
Reiterando-o, Ac. da RG, de 17.12.2019, Alcides Rodrigues, Processo n.º 74/18.8T8GMR.G1.
[16] Neste sentido, defendendo que - em hipótese como esta - a reiteração dessa audição consubstanciaria um acto inútil, proibido pelo art.º 130.º, do CPC, Ac. da RG, de 17.12.2019, Alcides Rodrigues, Processo n.º 74/18.8T8GMR.G1.
[17] Neste sentido, e desenvolvendo, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, págs. 223-225. 
[18] Neste sentido, Ac. da RL, de 19.09.2006, Graça Amaral, Processo n.º 5900/2006-7.
[19] No mesmo sentido, Ac. da RL, de 20.02.1992, CJ, 1992, Tomo I, pág. 160, onde se lê que «os direitos de diferente natureza em conflito (por exemplo direitos de personalidade e direitos patrimoniais) não implicam sempre e necessariamente a prevalência de uns sobre outros; tudo depende da relatividade concreta dos interesses e dos factos provados».
[20] Pronunciando-se igualmente sobre a aplicação do princípio da prevalência do interesse preponderante (como critério de decisão de quebra de sigilo profissional), em termos idênticos aos aqui expostos, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires e Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pág. 492. 
[21] Neste sentido, do carácter excepcional de qualquer derrogação, Ac. do STJ, de 15.02.2000, CJSTJ, Ano VIII, Tomo I, págs. 85-91, onde nomeadamente se lê «que nesta matéria vigora um princípio de subsidiariedade, porque, sendo o segredo profissional “timbre da advocacia e condição sine qua non da sua própria dignidade”, a sua revelação só será possível como última ratio».
[22] Augusto Lopes Cardoso acrescenta ainda, a propósito deste requisito, que o facto que se pretende revelar (com a quebra do sigilo profissional) tenha «um relevo tal que o seu conhecimento ou ignorância condicione de maneira decisiva o desfecho do julgamento» (in Do Segredo Profissional na Advocacia, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2020, pág.130).
[23] Precisa-se, a propósito, que não se crê ser admissível o levantamento de sigilo profissional a um advogado para depor como testemunha no mesmo processo em que intervém, ou interveio, como mandatário (ainda que juntando para o efeito substabelecimento, com ou sem reserva), por manifesta incompatibilidade com a dignidade do mandato forense, enquanto participante na administração da justiça. Caber-lhe-á, por ter presenciado factos, perspetivar a possibilidade de o seu depoimento se tornar necessário; e, nessa medida, não deverá aceitar o patrocínio.
Com efeito, seria «incompreensível a todas as luzes que ele [advogado] pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que antes ocupara» (Augusto Lopes Cardoso, Do Segredo Profissional da Advocacia, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1997, págs. 82-83).
No mesmo sentido se pronunciou já o Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, no seu Parecer 35/PP/2015-P [relatora Paula Costa] nele se lendo que, «tendo aceite o exercício daquele mandato [o advogado] ajuizou da inexistência de factos suscetíveis de constituírem incompatibilidade e impedimentos ao exercício do mandato - artigos 81.º, n.º 2, 83.º, n.º 1 e 92.º, do EAO». «O mesmo é dizer que, se o advogado aceitou o patrocínio da causa, é porque considerou que não existiam circunstâncias inconciliáveis com esta tarefa e que pudessem vir a comprometer ou diminuo a amplitude do exercício da advocacia».
Ora, «este juízo sobre a possibilidade de aceitar o patrocínio de determinada causa, deve ser feito pelo advogado à partida e não no decurso do processo, pois ao contrário do juiz que não tem essa escolha, cabe-lhe a decisão de aceitar ou não intervir no processo na qualidade de advogado».
[24] Sobre a discussão gerada em torno da (in)admissibilidade do depoimento indirecto, Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, 2014, Almedina, Agosto de 2014, págs. 177-198.