Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
52/19.0T9VNF.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: VALIDADE DA PROVA
REPRODUÇÕES FONOGRÁFICAS
DECLARAÇÕES DA OFENDIDA
PROCESSO DE NATUREZA CÍVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/19/2023
Votação: MAIORIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
Tendo o ofendido (entretanto falecido) prestado declarações em processo de natureza cível, e mau grado as mesmas terem sido declaradas nulas nos respectivos autos, nada impede que, no âmbito do processo criminal, que prossegue seus termos sob impulso da respectiva descendente, as mesmas possam valoradas ao abrigo das disposições conjugadas dos Artºs. 167º do C.P.Penal e 199º, nº 1, do Código Penal, na medida em que as reproduções fonográficas e, de um modo geral, qualquer reprodução mecânica, valem como prova de factos se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, ou seja, caso ocorra gravação sem o devido consentimento, o que claramente não foi ocaso.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Inquérito nº 52/19...., que correu termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, 2ª Secção de ..., da Procuradoria da República da Comarca ..., e que teve origem na certidão constante de fls. 3/130, emanada pelo Juízo Central Cível ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., tendo em vista a investigação da eventual prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo Artº 256º, do Código Penal, o Ministério Público, no momento processual a que alude o Artº 277º do C.P.Penal [1], proferiu o despacho de arquivamento que se mostra exarado a fls. 202/204, e que a seguir se transcreve na parte que ora interessa considerar [2]:
“Os presentes tiveram origem na extracção de certidão de fls. 3 e ss, determinada no Juízo Central Cível ... – Juiz, para investigação do crime de falsificação de documento p. e p. pelo art.º 256.º, do Código Penal, constante a fls. 109, da referida certidão.
Estará em causa o recibo constante a fls. 108, emitido em .../.../2016, emitido pela F..., no qual se atesta que AA terá realizado um tratamento de fisioterapia desde o ano de 2012 a 2015, por um período aproximado de 6 meses, sendo que AA refere não se lembrar se o mesmo existiu ou não.
*
Foram efectuadas as seguintes diligências consideradas úteis e pertinentes para a descoberta da verdade material:
- Não foi inquirido AA por o mesmo ter falecido entretanto (cfr. fls. 138);
- Inquirição de BB, a fls. 142
- Inquirição de CC a fls. 156;
- Inquirição de DD, a fls. 158.
- Declaração de fls. 166.
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Realizaram-se as diligências de prova tidas por convenientes, úteis e necessárias ao apuramento da verdade dos factos participados (cfr. artigo 262º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Não foi possível proceder à inquirição AA, uma vez que faleceu entretanto, sendo o seu depoimento essencial para aferir da existência ou não do tratamento de fisioterapia na clínica em que são gerentes os denunciados – F....
Das inquirições efectuadas verifica-se que a pessoa que assinou a declaração efectivamente não se encontrava trabalhar na altura dos tratamentos na clínica, contudo a mesma limitou-se a assinar uma declaração, sem que lhe possa ser assacada alguma responsabilidade por tal facto.
Referiu contudo, que assinou a referida declaração por lhe ter sido solicitado pelos auxiliares de fisioterapia DD e CC.
Inquiridos CC negou tal facto, negando ter dado tal ordem.
Inquirida DD referiu que não deu qualquer ordem e que desconhece quem o teria feito, referindo que qualquer fisioterapeuta poderia dar indicações à recepcionista para passar a declaração em causa.
Esclareceu que a partir de 2014 foi efectuada uma remodelação na clínica , passando a estar toda a documentação informatizada.
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Não foram inquiridas ou apresentadas outras testemunhas presenciais, que pudessem atestar acerca de declaração de ciência dos factos denunciados.
*
São estes os elementos de prova colhidos nos autos e, de momento, não se vislumbram quaisquer outras diligências probatórias úteis ou com relevo para o caso presente.
Cumpre agora apurar da existência, ou não, de indícios suficientes quanto a imputar aos arguidos a alegada prática do dos crimes denunciados e, consequentemente, virem a ser acusados, nos termos do artigo 283º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Os indícios suficientes são o conjunto dos elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados.
Para avaliar da existência dos referidos indícios, teremos que nos socorrer do material probatório recolhido e das disposições legais que prevêem e punem o tipo de crime imputado ao arguido, efectuando uma apreciação conjunta de ambos, com vista a verificar se os indícios eventualmente existentes são susceptíveis de integrar todos os elementos do crime, pois só com base na indiciação do seu total preenchimento poderá com segurança, afirmar-se que, com razoabilidade, ao arguido poderá vir a ser aplicada, em sede de julgamento, uma pena ou medida de segurança.
Ora, sem nos expandirmos mais, perante a factualidade supra descrita, podemos desde já afirmar que inexistem indícios suficientes da ocorrência do crime denunciado.
Apenas existe a versão apresentada pelo ofendido na petição inicial apresentada no Tribunal Cível e cuja extracção de certidão deu origem a estes autos, contudo não foi possível inquirir o mesmo, por ter, entretanto, falecido, sem que fosse possível conhecer a sua versão.
A pessoa que emitiu a declaração referiu tê-lo feito porque CC e DD lhe solicitaram tal emissão, tendo os mesmos negado.
Os eventuais suspeitos negam a prática dos factos e a a versão que apresentou dos factos é plausível, não existindo qualquer prova, que permite colocar em causa a sua versão, razão pela qual não se procedeu à constituição e interrogatório como arguidos.
Mas ainda que se entendesse que os mesmo tivessem dado tal ordem, não foram reunidos indícios suficientes de que o serviço de fisioterapia não tivesse sido prestado pela clínica.
Carecem os autos de mais elementos de prova, pelo que não podemos aferir maior credibilidade e valor à versão do ofendido, sem qualquer prova adicional.
Assim, caso fosse deduzida acusação pública pela prática do crime em causa, atenta a prova ora arrolada, forçosamente os denunciados se fossem constituídos como arguidos, poderiam vir a ser absolvidos, pelo crime que lhe é imputado e supra indicados em sede de julgamento, por aplicação do princípio in dubio pro reo.
Com isto não se quer dizer que os factos não tenham ocorrido tal como descrito pelo ofendido, apenas que inexistem indícios suficientes que nos levem a deduzir acusação contra os os denunciados, nos termos já explanados supra.
Em face do exposto, mais não resta ao Ministério Público do que determinar, também nesta parte, o arquivamento do presente inquérito, nos termos do artigo 277.º, n.º2, do Código de Processo Penal.
(...)”.
*
2. Por discordar de tal despacho de arquivamento, pelo requerimento de 15/07/2020, constante de fls. 211 / 221 Vº, EE, na qualidade de descendente do ofendido falecido [AA], veio solicitar a sua constituição como assistente, e requerer a abertura de instrução.
Sustentando, em síntese, que o Ministério Público omitiu, durante o inquérito, diligências obrigatórias, nomeadamente a constituição como arguida de BB (a pessoa que admitiu ter assinado o documento sem verificar a veracidade do seu teor), bem como dos demais denunciados, FF e GG (pessoas que estão na posse e usaram o dito documento), o que configura a nulidade do inquérito.
E que foi recolhida prova de que o documento em causa, assinado pela testemunha BB, com a conivência e colaboração da gerente e dona da clínica, DD, foi elaborado com o intuito de favorecer FF na acção cível que corre termos no Juízo Central Cível ..., J..., com o nº 187/16.....
Terminando a sua peça processual pedindo a prolação de despacho de pronúncia relativamente aos denunciados BB e DD pela prática, em co-autoria, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo Artº 256º, nº 1, als. a) e d), do Código Penal, e relativamente aos denunciados  FF e GG pela prática, em autoria material, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo Artº 256º, nº 1, als. e) e f) do Código Penal.
*
3. Distribuídos os autos ao Juízo de Instrução Criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi a requerente EE admitida a neles intervir na qualidade de assistente (cfr. despacho de 19/10/2020, exarado a fls. 270), e, na sequência da ulterior pertinente tramitação processual, foi designada data para o debate instrutório, o qual se realizou no dia 05/12/2022, conforme acta de fls. 563 / 564 Vº, após o que, no dia 22/12/2022  foi proferida a decisão instrutória que consta de fls. 568 / 574 Vº, com o teor que a seguir se transcreve, na parte que ora interessa considerar:
“(...)
Proferido despacho de arquivamento a fls. 202 e ss por se ter considerado não existir nos autos indícios suficientes da prática do crime de falsificação de documento, veio a assistente EE, a fls. 211 e ss requerer a abertura da instrução, alegando que o MP omitiu, durante o inquérito, diligências obrigatórias, nomeadamente que tivesse sido constituída arguida HH, a pessoa que admitiu ter assinado o documento sem verificar a veracidade do seu teor e que os denunciados tivessem sido constituídos arguidos e interrogados nessa qualidade, invocando, assim, a nulidade do inquérito.
Alega ainda que foi recolhida prova que o documento em causa assinado pela testemunha BB, com a conivência e colaboração da gerente e dona da clínica DD foi elaborado com o intuito de favorecer FF na acção cível que corre termos no Juízo Central Cível ..., J..., com o n.º 187/16.....
Mais invoca em 72) do RAI as diligências que considera necessárias que o MP tivesse levado a cabo.
Termina pedindo a prolação de despacho de pronúncia pelo crime de falsificação de documento relativamente aos denunciados BB e DD (em co-autoria, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1, als a) e d) do Cód. Penal), FF e GG (p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1, al.s e) e f) do CP).
***
A fls. 351 dos autos pronunciou-se o MP quanto à invocada nulidade, defendendo que a mesma não se verifica desde logo por que da prova produzida no inquérito não resultou fundada suspeita em relação a quem quer que fosse da prática de crime e, por isso, não se impunha o interrogatório e a constituição de arguidos, termos que se entende não verificada a aludida nulidade.
A fls. 355 dos autos também a arguida BB se pronunciou quanto à invocada nulidade, alegando, por um lado, a falta de legitimidade da assistente para a invocar e por outro, por que o MP só constitui como arguido se existirem fundadas suspeitas da prática de um crime, não sendo o caso dos autos.
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De igual modo se pronunciou, a fls. 363 e ss a arguida DD no sentido que tal nulidade deverá ser indeferida uma vez que o MP não deixou de realizar as diligências que a lei considera como obrigatórias.
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Em sede de instrução foi determinada a audição de CC que sendo marido da arguida DD declarou não pretender prestar declarações.
A fls. 464 foi prestada a informação pela F... de que não dispunha de recibos verdes em nomes dos fisioterapeutas que prestaram funções no período compreendido entre 2012 e 2015.
Pelo que foi oficiado à autoridade tributária que prestasse tal informação, tendo a mesma remetido a listagem constante a fls. 483, tendo sido possível aceder à identificação dos fisioterapeutas que prestaram serviços para a F... entre 2012 e 2015 (vide também fls. 488 e ss dos presentes autos), tendo-se determinado a sua audição.
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Foram inquiridas as testemunhas II, JJ, KK, LL e MM.
Realizou-se audiência de debate instrutório em conformidade com o processualismo legal conforme se alcança da respectiva acta (fls. 563 e ss).
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Questão prévia:

Da invocada nulidade do inquérito

Invoca a assistente a nulidade do inquérito uma vez que, segundo defende, o MP omitiu, durante o inquérito, diligências obrigatórias, nomeadamente que tivesse sido constituída arguida HH, a pessoa que admitiu ter assinado o documento sem verificar a veracidade do seu teor e que os denunciados tivessem sido constituídos arguidos e interrogados nessa qualidade.
Pois bem.
Veja-se que, a obrigatoriedade de audição dos arguidos decorre da interpretação da al. d) do n.º 2 do art.º 120º do Cód. Processo Penal.
Na verdade, a falta da audição do arguido em sede de inquérito fere esta fase processual de nulidade, conforme o descreve o supra citado normativo legal.
Na verdade, o Acórdão do STJ 1/2006 de 23.11.05 – DR 1 Série I-A, de 2.01.2006 fixou jurisprudência no sentido de que: “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal”.
O que este acórdão do STJ afirmou foi só a necessidade de serem observadas as garantias de defesa (todas as garantias de defesa) que a Constituição da República proclama que o processo criminal deve assegurar – artigo 32º, nº. 1. Ninguém deve ser surpreendido por uma acusação sem que antes lhe seja concedido tomar posição, defendendo-se, se e como entender, dos factos imputados” (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.01.2009, proferido no processo nº. 2648/08-2, Relator Fernando Monterroso, disponível em www.dgsi.pt).
Isto é, esta é uma garantia de defesa do arguido em caso de acusação, não quando o que existe é um arquivamento, já que neste caso, o MP entendeu que não existiam indícios que justificassem tal audição e por isso, nada havia a confrontar aos denunciados que não chegaram sequer a ser constituídos arguidos.
Por isso, não existiu qualquer nulidade cometida em sede de inquérito já que os arguidos apenas foram constituídos como tal após a abertura da instrução e tendo sido requerida a sua inquirição, os mesmos decidiram remeter-se ao silêncio.
Assim sendo, e constituindo competência exclusiva do MP a apreciação da necessidade dos actos de inquérito, a omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência (a audição de meros suspeitos não constitui acto obrigatório como já se supra expendeu).
Ademais, da análise dos autos, verificamos não ter sido omitida qualquer outra diligência legalmente obrigatória.

Pelo que, improcede pois, a invocada nulidade.
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Mantém-se a validade e regularidade da instância criminal que estiveram subjacentes à prolação do despacho de abertura de instrução, inexistindo quaisquer nulidades, questões prévias, incidentais e/ou supervenientes que cumpra conhecer e que invalidem o processado e obstem ao conhecimento do mérito dos autos.
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Com relevância para o despacho a proferir, concretamente, da ponderação da existência de indícios suficientes da prática, pelos arguidos, dos factos pelos quais foi deduzida acusação pública e da submissão daqueles a julgamento, com vista à aplicação de uma pena, importa proceder a uma apreciação critica e conjunta da prova produzida em sede de Inquérito e de Instrução, por referência ao Direito aplicável.
Pois bem.
Nos termos do artigo 286º, n.º1, do Código de Processo Penal, a Instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Por seu turno, de acordo com o disposto no artigo 308º, n.º1, daquele código, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, ou, no caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Finalmente, à luz do preceituado no art. 283º, n.º 2, do Código de Processo Penal, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.
Da conjugação dos supra citados normativos resulta que nesta fase da instrução não se pretende alcançar a demonstração da realidade dos factos em causa, mas, tão-somente, indícios de que um determinado arguido praticou um crime.
Ou seja, para a pronúncia de um arguido não se exige a prova, no sentido de certeza da existência do crime, mas apenas indícios ou sinais dessa ocorrência.
Assinale-se, porém, que as consequências que para um arguido poderão resultar da prolação do despacho de pronúncia são, ou poderão ser, gravosas, por poderem afectar o seu bom e reputação, pelo que, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos.
Por isso, tem-se entendido que a suficiência dos indícios que legitima a submissão de alguém a julgamento só ocorrerá quando, em face desses indícios, “seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição” (v. Figueiredo Dias in “Direito Processual Penal", Vol. 1º, 1974, p. 133).
Com tal fase não se pretende um novo inquérito, mas a comprovação, por parte do juiz de instrução criminal da decisão proferida pelo Ministério Público ou pelo assistente, de acusação ou de arquivamento, não obstante o Juiz de Instrução dever instruir autonomamente os factos em apreço, não se limitando ao material probatório apresentado pelos sujeitos processuais.
Reportando-nos ao caso dos autos e procedendo a essa articulação dos elementos probatórios carreados para os mesmos e respectivo enquadramento legal, constata-se o seguinte:

I. Relativamente à fase de inquérito:

Foi coligida a seguinte prova:
    
- Inquirição de BB, a fls. 142;
- Inquirição de CC a fls. 156;
- Inquirição de DD, a fls. 158.
- Declaração de fls. 166.
Não foi inquirido AA por o mesmo ter falecido entretanto (cfr. fls. 138).
Das inquirições efectuadas verifica-se que a pessoa que assinou a declaração admitiu ter assinado uma declaração contendo factos que não correspondiam à realidade.
Referiu que assinou a referida declaração por lhe ter sido solicitado pelos auxiliares de fisioterapia DD e CC.
Inquiridos CC negou tal facto, negando ter dado tal ordem.
Inquirida DD referiu que não deu qualquer ordem e que desconhece quem o teria feito, referindo que qualquer fisioterapeuta poderia dar indicações à recepcionista para passar a declaração em causa.
Esclareceu que a partir de 2014 foi efectuada uma remodelação na clínica, passando a estar toda a documentação informatizada.
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II. No que respeita à fase de Instrução Criminal:

Questão prévia quanto à prova a apreciar:

Da (in)validade das declarações de AA prestadas no processo cível

FF e GG arguidos nos autos, por requerimento sob a ref. ...17, juntaram aos autos dois documentos extraídos do processo n.º 187/16...., que corre os termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Cível ..., Juiz ... dos quais resulta que as declarações de prova antecipada prestadas por AA (entretanto falecido) nesses autos foram declaradas nulas.
Cumpre, assim, apreciar da validade de tais declarações nos presentes autos.
Tais declarações foram denominadas como sendo de memória futura, no entanto, diga-se desde já, que tais declarações não podem ser tratadas como tal.
A prestação de declarações para memória futura tem previsão legal nos artigos 271.º, 294.º e 320.º do Código de Processo Penal, preceitos legais respectivamente inseridos nas fases de inquérito, instrução e julgamento. Com efeito, verificados os pressupostos legais em que a produção é processualmente admitida, as declarações para memória futura constituem um modo de produção de prova pessoal submetido a regras específicas para acautelar o respeito dos princípios basilares do nosso sistema processual penal, entre os quais, destaca-se o princípio do contraditório.
A lei consagra, de modo expresso, o que pode determinar a realização da produção antecipada de prova consistente na tomada de declarações para memória futura, nomeadamente, quando uma testemunha esteja gravemente doente ou ainda quando se preveja que possa ter de se deslocar para o estrangeiro e quando esteja em causa uma vítima de crime de tráfico de pessoas ou crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, passando o legislador a consagrar a obrigatoriedade deste procedimento quando se trate de vítima menor de crime sexual. Este procedimento é motivado, essencialmente, por duas ordens de razão, por um lado, conseguir obter o depoimento de pessoas que previsivelmente não poderão estar presentes em julgamento e cuja inquirição se mostra essencial para o apuramento da verdade e, por outro lado, evitar que uma vítima tenha de repetir a narração de factos que lhe sejam particularmente difíceis de relatar, porque dolorosos de relembrar. As declarações para memória futura são assim tomadas para que possam, se necessário, serem apreciadas e levadas em conta pelo tribunal no julgamento.
Pois bem. Segundo o disposto no n.º 1 do art.º 271º do CPP as declarações são prestadas perante juiz de instrução, sendo obrigatória a presença do Ministério Público e do defensor do arguido, de acordo com o estatuído no n.º 3 do citado normativo legal, sendo que podem igualmente formular perguntas (cf. n.º 5 do mesmo dispositivo legal).
Veja-se que, as declarações que foram juntas aos autos, não foram prestadas perante juiz de instrução, nem estavam presentes os defensores dos arguidos ou o Ministério Público.
Quer isto dizer que as referidas declarações não podem ser enquadradas dentro deste regime legal.
Por outro lado, dispõe o art. 125º do CP dispõe que” São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”.

No que concerne a fotografias e gravações, determina o artigo 167.º do CPP:
“As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.
Por seu turno, o crime de gravações ilícitas está previsto no art. 199º, nº 1 do CP, estatui que:
“1 - Quem sem consentimento:
a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; (…).”
Quer isto dizer que a existência de crime pressupõe desde logo a inexistência de consentimento pela parte de quem é alvo da gravação.
Assim sendo, e da conjugação das citadas normas extrai-se que a validade da prova está condicionada à inexistência de atividade criminosa na obtenção da gravação.
Assim, se a conduta traduzida na gravação das palavras proferidas configurar um ilícito penal não poderá ser atribuído valor probatório à gravação; caso contrário, será prova válida e sujeita à livre apreciação prevista no artigo 127.º do CPP.
Ora, as declarações (de prova antecipada) juntas aos autos foram prestadas voluntariamente pelo autor da referida ação cível (entretanto falecido), num tribunal, perante juiz, pelo que naturalmente não são gravações ilícitas para efeitos da lei penal, tanto mais, que foram gravadas voluntariamente e a pedido de quem as prestou.
Atento o exposto, consideramos que as declarações juntas serão prova válida e sujeita à livre apreciação do julgador.
Em sede de instrução foi determinada a audição de CC que, sendo marido da arguida DD, declarou não pretender prestar declarações.
Foram inquiridas as testemunhas II, JJ, KK, LL e MM.
A primeira testemunha, fisioterapeuta, declarou ter terminado o seu contrato com a F... por volta de 2012/3, desconhecendo como era feita a faturação, sendo certo que o nome de NN, nada lhe diz.
Por seu turno, JJ, auxiliar de fisioterapia, afirmou ter prestado serviços para a F... até 2012, diz nunca ter recebido instruções da DD e não se recordou de ter prestado serviços a alguém chamado AA.
O mesmo declarou KK, fisioterapeuta que prestou serviços para a F... de 2013 a 2017 e disse não se recordar de AA.
A testemunha LL, trabalhou na F... depois de 2014, e referiu que emitia recibos para cada utente, sendo que não prestou serviços, de acordo com os seus registos a AA, segundo as informações que prestou a fls. 549 dos autos.
Por último, a testemunha MM, fisioterapeuta, referiu ter prestado serviços para a F... nos anos de 2013/2014, sendo certo que, declarou que apenas o fez durante 15 dias e não se lembra de ter tratado AA.
*
III. Apreciando e decidindo:

Requer o assistente que seja proferido despacho de pronúncia pelo crime de falsificação de documento relativamente aos denunciados BB e DD (em co-autoria, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1, alíneas a) e d) do Cód. Penal), FF e GG (p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1, alíneas e) e f) do CP).

Ora, estatui o artigo 256.º, n.º 1 do C.P que:

“1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a)Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integrem;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d)Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;
é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias”.
A incriminação da falsificação de documento confere protecção “ à verdade intrínseca do documento enquanto tal”, como condição fundamental da “segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental” (cf. Helena Moniz, in Comentário Conimbricense, tomo II, Coimbra Editora, 1999, págs.679-680).
Sendo certo que, no fundamental, protege-se o documento sob a acepção de declaração corporizada sob as mais variadas formas (maxime em escrito), inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante (cf. o artigo 255.º, alínea a), do C.P.).
Usa distinguir-se entre várias espécies de falsificação, aludindo-se, neste âmbito, à falsidade intelectual e à falsidade material.
No espectro dos elementos subjectivos, além do conhecimento e vontade de realização dos elementos do tipo objectivo, a incriminação exige que o agente actue com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime – sem que no entanto a norma exija que o agente logre os seus intentos para a perfectibilização do crime.
Esta intenção, porém, não se refere aos elementos objectivos previstos no tipo, antes, o elemento subjectivo ultrapassa o elemento objectivo (cf. Sousa Brito, in A Burla do artigo 451º do Código Penal, Scientia Jurídica, 1983, pp.159 e 160).
Vale por dizer, que o agente quer um resultado que não é elemento do tipo objectivo.
A este propósito esclarece Hans-Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal – Parte General, tomo I, pp.437 e segs., que, nestes casos, “fala-se de intenção, com este significado, quando o autor persegue um resultado que há-de ter presente para a realização do tipo, mas que não necessita de alcançar”.
Pois bem, revertendo o que se acaba de expor para o caso em análise, temos que concordar com o assistente na medida em que existem nos autos indícios suficientes da prática do crime de falsificação, senão vejamos.
A arguida BB admite que assinou uma declaração que não corresponde à realidade pois a mesma apenas começou a prestar serviços para a F... a partir do ano de 2014 (mais concretamente a partir do dia 12 de Dezembro de 2014 a 31 de Maio de 2017)[3] significando que grande parte do período temporal a que alude na declaração a mesma não podia atestar tal facto, pois não se encontrava a trabalhar para tal entidade patronal, sendo certo que dentro do período coincidente (2012 a 2014) jamais referiu conhecer AA e que efectivamente pelo menos dentro do período coincidente a mesma o viu lá (veja-se que trabalhava no atendimento aos clientes, portanto, teria que ter contactado com o mesmo dado o elevadíssimo número de sessões que foram declaradas ter realizado).
Quer isto dizer que, BB sabia que o que atestava em tal documento não correspondia à realidade e não se diga que o facto de ser inexperiente profissionalmente a desculpabiliza já que a inexperiência profissional nada tem que ver com atestar falsidades e isso todas as pessoas sabem que o não podem fazer, é do senso comum.
Pese embora, a arguida DD ter negado que tivesse feito tal pedido, não se vislumbra por que motivo a fisioterapeuta iria passar uma declaração relativa a um período temporal da sua entidade patronal sem que tal lhe tivesse sido pedido, sendo que não se vislumbram motivos para que BB faltasse à verdade, já que não o fez quanto a si própria.
Veja-se que, foram pedidos elementos fiscais à autoridade tributária a fim de se saber quem prestou serviços para a F... dentro do período temporal de 2012 a 2015, constantes dos autos a fls. 488 e ss, tendo-se nesse seguimento determinado a audição desses técnicos em sede de instrução (vide acta fls. 534 a 536), sendo que, conforme se deixou referido supra, absolutamente ninguém se lembrava de ter prestado serviços a AA ou ter ouvido sequer este nome, o que é de facto muito estranho para quem  alegadamente recebeu 288 sessões se fisioterapia…
Veja-se que não há uma única factura, recibo, documento particular que ateste que tal sucedeu, apenas uma declaração que sabemos ser falsa como foi a própria que que elaborou e assinou ter admitido não corresponder à realidade.
Mesmo durante o ano de 2015 (quando se inicia o sistema do e-factura), os serviços de Finanças não detetaram qualquer factura emitida pela F... a AA, como decorre da declaração da informação prestada pelos serviços de Finanças a fls. 381 dos autos.

Ademais, a própria F... por e-mail remetido aos autos a fls. 373 informa o seguinte:
sendo certo que não pode deixar de esclarecer que se estranha o teor da declaração em causa uma vez que não é prática da nossa clínica realizar tratamentos nos moldes indicados na declaração (por um período de seis meses anuais, com uma frequência de três sessões por semana) ou seja, não é habitual nem recomendável submeter um paciente a tratamentos um período de seis meses e depois interromper outros seis meses. Antes é habitual a realização de um determinado número de sessões de forma seguida, por exemplo 10, 12 ou 15 sessões, uma interrupção e reinicia outro pack de sessões.
- Mais informa que a gerência desconhece quem solicitou e quem ordenou a emissão da declaração nos moldes em que foi emitida, sendo certo que a declaração a ser emitida foi ordenada por alguém alheio à gerência e que induziu em erro a administrativa que a elaborou e assinou.
- Sendo certo que é prática da clínica entregar recibos de quitação dos valores pagos em cada sessão ou no final de cada “pack” de tratamentos.
- Pelo que, se os tratamentos foram realizados, quem tem na sua posse a declaração também deveria possuir os correspondentes recibos de pagamento”.

Isto é, não se compreende que quem faz tantas sessões de tratamentos de fisioterapia não solicite o correspondente recibo, tanto mais que são despesas dedutíveis em sede de IRS.
Ou seja, podemos concluir, da concatenação destes elementos devidamente conjugados com as regras da experiência comum, de que tais tratamentos nunca foram prestados. Não há aliás, um único indício que aponte nesse sentido.
Ademais, ouvidas as gravações que foram juntas aos autos, percebemos que AA era alimentado pela arguida FF mediante pagamento de montantes e que no final da vida, ficou sem um único tostão, nas palavras do próprio.
Sem dinheiro (mais de 10.000 mil contos como o próprio refere nas suas declarações) e que da dita casa que alegadamente teria sido vendida ao filho da arguida FF não recebeu rigorosamente nada a título de pagamento.
De salientar que, em cerca de 45 m de gravações nada é referido quanto a sessões de fisioterapia, pelo contrário, AA queixa-se de maus tratos que lhe foram infligidos (sobretudo verbais pela arguida FF) e de ter sido abandonado depois de ter ficado sem bens e dinheiro.
Não podemos igualmente esquecer que quem levanta o incidente de falsidade do documento no processo cível ainda é o Autor AA que, à data, não havia ainda falecido, tendo o mesmo negado que tivesse recebido quaisquer tratamentos (cf. fls. 237 e 238 dos autos peça constante do processo cível).
Em face da prova assim coligida, existem indícios suficientes que BB elaborou e assinou um documento que sabia não corresponder à realidade e DD, foi quem ordenou a elaboração do documento em causa com o intuito de favorecer FF e GG na acção cível que corria os seus termos no Juízo Central Cível ....

Assim sendo, julgo indiciados os factos vertidos em 98º do RAI, designadamente as alíneas A) a P), inclusive, pelo que pronuncio:
- BB E DD, em co-autoria na prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1 alíneas a) e d) do Código Penal;
- OO E GG, em autoria material, na prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1, al. e) e f) do Cód. Penal;
*
Prova: toda a constante dos autos.
*
Medidas de Coacção:

Não se verificando qualquer das circunstâncias de que o art. 204.º do CPP faz depender a aplicação de outra medida de coacção, devem os arguidos aguardar os ulteriores trâmites processuais na situação em que se encontram, uma vez que já prestaram T.I.R., nos termos do art. 196.º do C.P.P..- cf. al b) do n.º 1 do art.º 213º do CPP.
***
Custas a cargo dos arguidos que se fixam em 2 UC’s cada um (tabela III do Regulamento das Custas Processuais), a liquidar a final em caso de condenação.
*
Remeta os autos à distribuição, para julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular.
(...)”.
*
4. Inconformados com tal decisão, dela vieram interpor recurso os arguidos FF e GG (em peça conjunta) e o Ministério Público .
*
4.1. Os arguidos FF e GG (em peça processual conjunta) nos termos que constam de fls. 695 Vº / 708 Vº, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):
“A. Porque do depoimento da, à data, testemunha, Sra. BB, a fls. 142 e ss. dos autos, não se vislumbra qualquer admissão de elaboração e assinatura da declaração de fls. 109 dos autos, contendo factos falsos, consubstanciados no tempo e na frequência de tratamentos de fisioterapia realizados ao Sr. AA.
B. Porque os factos que corporizam a declaração em causa lhe foram transmitidos por “terceiros”, confiando, e foi por isso que os aí colocou e depois assinou e até apôs o carimbo da empresa F..., não tendo sequer referido quem é que lhe solicitou essa declaração e a quem a entregou.
C. Porque o Tribunal a quo fundamentou, em parte, a Decisão de Pronúncia dos recorrentes com um alegado meio de prova indiciário – “prova antecipada” –, extraído do processo n.º 187/16...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Cível ..., Juiz ..., que “contaminou” toda a Decisão Instrutória (vide fls. 368, 371 e 376, todas dos autos).
D. Porque essa “prova antecipada”, consubstanciada em declarações de parte do autor naqueles autos, Sr. AA, sendo os ali réus, aqui recorrentes, foram declaradas nulas, logo de nenhum efeito, através de douto Despacho proferido no decurso da Audiência Prévia ocorrida naquele processo, em 06-12-2017, que foi confirmado por douto Acórdão proferido pelo Nobre Tribunal da Relação do Porto, em 11-05-2018, já transitado em julgado (vide fls. 537 a 538 verso, todas dos autos).
E. Porque a assacada nulidade naquele processo cível teve por base a inobservância de dois princípios basilares de qualquer direito processual: o princípio do contraditório e o princípio da igualdade das partes, que derivam, em última instância, do princípio do Estado de direito, encerrando uma particular garantia de imparcialidade do Tribunal perante as partes.
F. Porque a validação desse concreto meio de prova indiciário, além de atentar contra o caso julgado, também não se insere no disposto no artigo 125.º do CPP.
G. Porque a validação da “prova antecipada” pelo Tribunal a quo foi, com o devido respeito, precipitada, pois não atendeu à leitura global dos princípios estruturantes do nosso sistema jurídico e da unidade e coerência do mesmo, daí que deveria ter sido “banido”, aliás, como foi bem decidido/confirmado pelo Tribunal Superior.
H. Porque de todos os depoimentos que foram prestados em sede de instrução, não se retira, de modo algum, a asserção vertida na fundamentação da Decisão Instrutória, que diz: “absolutamente ninguém se lembrava de ter prestado serviços a AA ou de ter ouvido sequer esse nome, o que é muito estranho para quem alegadamente recebeu 288 sessões se fisioterapia…” (sic).
I. Porque da conjugação do depoimento das testemunhas, Sr. JJ e Sra. KK, respetivamente, auxiliar de fisioterapia e fisioterapeuta, verificou-se que havia uma enorme afluência de utentes na F...; eram atendidos, por cada fisioterapeuta ou auxiliar de fisioterapia, cerca de doze utentes num dia; que eram cerca de quatro técnicos a trabalhar, o que representa cerca de quarenta e oito utentes num dia que passavam pela F..., pelo que, em seis dias da semana, ou seja, de segunda-feira a sábado – período normal de trabalho –, tal é representativo de cerca de duzentos e oitenta e oito utentes e ou tratamentos realizados apenas numa semana (vide Ata de Inquirição de Testemunhas de fls. 422 e ss. dos autos e respetivas rotações das gravações supra referidas na motivação).
J. Porque, com tamanha afluência de utentes, como poderia um fisioterapeuta, um auxiliar de fisioterapia, uma rececionista ou uma gerente, todos em exercício de funções na F..., lembrar-se de um deles, em concreto? 
K. Porque o Sr. AA era, efetivamente, utente da F..., daí a mesma ter emitido a declaração de fls. 124 dos autos (ou esta também contém factos falsos?).
L. Porque o facto de se terem solicitado elementos fiscais à autoridade tributária a fim de saber quem prestou serviços e surgirem faturas-recibos e ou recibos verdes eletrónicos, num período temporal compreendido entre 2012 a 2015, emitidos por apenas cinco pessoas, nada nos diz, de suficiente (e inequívoco), no sentido de não haver mais pessoas a trabalhar na F... com as mesmas funções (fisioterapeutas e ou auxiliares de fisioterapia), bem como, que a emissão de parcos documentos contabilísticos não se compaginam com a afluência de utentes, o que é representativo de manifesta evasão fiscal.
M. Porque, atendendo ao universo de utentes da F... no referido período temporal, decorrente das declarações prestadas pelos trabalhadores, à época, conjugadas com as informações/documentos juntas a fls. 483 a 483 verso e 488 a 494, todas dos autos, decorre que a não existência de qualquer fatura-recibo ou recibo verde eletrónico em nome de AA, não significa que o mesmo não tivesse efetuado o número e frequência de tratamentos de fisioterapia constante da declaração de fls. 109 dos autos.
N. Porque é manifestamente falso as declarações prestadas pela F..., a fls. 374 e 375 dos autos, nomeadamente, quando afirma “que é prática da clínica entregar recibos de quitação dos valores pagos em cada sessão ou no final de cada pack de tratamentos”, face ao que resultou da prova produzida na fase de instrução.
O. Porque a asserção vertida na fundamentação da Decisão Instrutória que diz, “quem levanta o incidente de falsidade do documento no processo cível ainda é o Autor AA que, à data, não havia ainda falecido”, reportando a “fls. 237 e 238 dos autos peça constante do processo cível”, não tem qualquer respaldo com a prova carreada e aí referenciada pela Meritíssima Juiz de Instrução, por um lado, nem sequer em qualquer outra prova, por outro.
P. Atendendo às conclusões aqui enunciadas, extraídas da motivação supra, a pronúncia dos recorrentes pelos factos vertidos no artigo 98.º, alíneas a) a p), do requerimento de abertura de instrução de fls. 218 verso a 219 verso, dos autos, é ilegal e não tem por base indícios suficientes para os submeter a julgamento, pelo a Decisão Instrutória deverá ser revogada, o que se REQUER, com as devidas consequências legais.
Q. Violou, assim, a Decisão recorrida, por erro de interpretação e ou de aplicação, o disposto, além do mais, nos artigos 2.º e 32.º, n.º 2, ambos da CRP; artigos 125.º, 127.º, 167.º, 283.º, n.º 2, 308.º, n.º 1, todos do CPP; e os artigos 199.º, n.º 1 e 256.º, n.º 1, ambos do CP.

NOS TERMOS E PELOS FUNDAMENTOS EXPOSTOS, E AINDA QUE POR FUNDAMENTOS DIVERSOS, DEVERÃO V. EXAS., VENERANDOS(AS) JUÍZES(AS) DESEMBARGADORES(AS), CONCEDER PROVIMENTO TOTAL AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, PROFERIR DOUTO ACÓRDÃO QUE REVOGUE A DECISÃO INSTRUTÓRIA DE 22-12-2022, COM A REFERÊNCIA N.º ...70, COM AS DEVIDAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, SEGUINDO-SE OS DEMAIS TERMOS ATÉ FINAL.
SÓ ASSIM FARÃO V. EXAS. A SÃ E HABITUAL                                       
JUSTIÇA!”. 
*
4.2. O Ministério Público, nos termos que constam de fls. 711 Vº / 719 Vº, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“1. O presente recurso vem intentado da douta decisão instrutória que pronunciou as arguidas BB e DD pela prática do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n. º1 als. a) e d) do CP, e os arguidos FF e GG, em autoria material, na prática do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n. º1 als. e) e f) do CP.
2. Considerou a Meritíssima Juiz de Instrução que, da prova reunida em inquérito e instrução, foram colhidos indícios suficientes dos factos descritos na decisão de pronúncia descritos nas alíneas a) a p) do requerimento de abertura de instrução (fls. 219 e 220).
3. Entendemos, porém, que os factos imputados aos arguidos, ao nível do tipo objetivo e ao nível do tipo subjetivo, não têm sustentação nos indícios de prova constantes dos autos de inquérito e de instrução.
4. A assistente, no requerimento de abertura de instrução, imputa às primeiras arguidas o fabrico/elaboração de documento – a declaração de fls. 109 (fls. 105) – de conteúdo falso, pois nele se refere que AA realizou tratamentos de fisioterapia na cínica F... desde o ano de 2012 a 2015, por um período aproximado de 6 meses anuais, com uma frequência de três sessões por semana, o que não corresponde à verdade.
5. Os elementos reunidos em inquérito e instrução não permitem concluir, com suficiente segurança, que a declaração junta aos autos contem informação que não corresponde há verdade, ou seja, que AA não realizou tais tratamentos de fisioterapia na clínica F....
Assim, relativamente à prova produzida em inquérito:
6. A decisão instrutória menciona que a arguida (anteriormente testemunha) BB admitiu ter assinado a declaração que não corresponde à realidade, pois a mesma começou a prestar serviços para a clínica F... a partir do final do ano de 2014, não podendo atestar o facto que consta da declaração referida.
7. Ora, tal depoimento não pode ser valorado, pois, a então testemunha, BB, veio a ser constituída arguida nos autos e, nessa qualidade, quando sujeita a interrogatório, usou do seu direito de não prestar declarações, pelo que, permitir, nestas circunstâncias a valoração desse depoimento prestado por testemunha previamente à constituição de arguido, seria violar, de forma insustentável, o direito ao silêncio com consagração constitucional, no art. 32.º da CRP e o art. 58.º, n.º1 al. a) e 6 do CPP.
8. Ainda que, por hipótese, se valore esse depoimento da testemunha, que veio a ser constituída arguida em momento posterior, julgamos que não é evidente que tal declaração se reporte às sessões de fisioterapia realizadas, ou antes, ao facto de a mesma ter prestado uma declaração que, em parte, se reporta a um período em que não trabalhava na clínica e que, portanto, não poderia atestar.
9. Perante tal depoimento de BB, julgamos que é foi possível deslindar que factos constam na declaração que não correspondem à verdade e em que termos.
10. As testemunhas CC (inquirida a fls. 156/157) e a testemunha DD (inquirida a fls. 158/159) negaram ter emitido qualquer ordem à rececionista BB para emitir a declaração de fls. 109, nada tendo esclarecido quanto à (in)veracidade do documento.
Relativamente à prova produzida em instrução:
11. O tribunal a quo alicerçou também a sua decisão no teor das declarações de prova antecipada prestadas por AA, no processo cível n.º 187/16...., que corre termos na comarca ....
12. Consideramos, tal como considerou o tribunal recorrido, que as declarações de prova antecipada prestadas voluntariamente pelo autor da referida ação cível 187/16.... (entretanto falecido), num tribunal, perante juiz, são prova válida e sujeita à livre apreciação do juiz, nos termos preceituados no art. 125.º e 127.º do CPP. Sucede que, ouvidas tais declarações, verificamos que as mesmas não fazem sequer menção a tratamentos de fisioterapia, pelo que, destas declarações não podemos concluir que as sessões de fisioterapia ocorreram ou não.
13. A mencionada declaração visou instruir o art. 233.º da contestação dos réus na aludida ação cível, sob o n.º 187/16...., como doc. n.º ..., e não foi ainda proferida sentença nesse processo, pelo que, até à presente data, tal facto não foi ainda julgado nem como provado nem como não provado, não sendo quanto a nós suficiente que o autor conteste tais factos e despolete incidente de falsidade (cfr. informação de fls. 169).
14. A informação fornecida pelo Serviço de Finanças ... de fls. 381, não permite concluir que não foram prestadas sessões de fisioterapia ao utente, mas tão só que, no ano de 2015, tais serviços não foram comunicados ao serviço de finanças para efeitos de IRS.
15. As testemunhas PP, KK, LL e MM, fisioterapeutas, e JJ, auxiliar de fisioterapia, inquiridos em sede de instrução, não conseguiram esclarecer se realizaram, ou não, tratamentos ao utente AA, não podendo, perante tais depoimentos, concluir-se que os serviços de fisioterapia foram ou não foram prestados. Saliente-se que decorreram cerca de 8-10 anos desde a alegada prestação dos serviços de fisioterapia, os técnicos inquiridos já não trabalham no local, os pacientes não eram seguidos pelo mesmo técnico, os quais realizavam inúmeros tratamentos diários, de segunda-feira a sábado, a inúmeros utentes.
16. Todos os arguidos, interrogados em sede de instrução, remeteram-se ao silêncio.
17. Não se apurou qualquer relação familiar, de amizade ou até de clientela entre os arguidos BB e DD e os arguidos FF e FF, ou qualquer motivação que permita, de acordo com as regras de experiência comum, indiciar que, de alguma forma as primeiras arguidas quiseram favorecer os segundos arguidos com a emissão de tal declaração de conteúdo falso e que estes últimos beneficiaram dessa declaração.
18. Perante os atuais indícios, para nós, não é provável que aos arguidos, em julgamento, seja aplicada uma pena, na medida em que os autos não revelam, com segurança, que o documento é falso e os termos em que foi emitido.
19. Ora, no caso sub judice, da conjugação de todos os elementos coligidos nos autos, formamos a convicção, baseada em juízos de normalidade e regras da experiência, de que a imputação do crime supra referido (falsificação de documento) aos arguidos não se mostra sufragado por um juízo de prognose de verificação dos atuais indícios (prova) em julgamento, em termos de ser seguramente expectável a condenação daqueles.
20. Portanto, e em conclusão, julgamos que a prova colhida nestes autos é insuficientemente no sentido de sustentar uma pronúncia pela prática, por parte dos arguidos, dos crimes que lhe são imputados.

Deste modo, deverá a douta decisão instrutória recorrida ser revogada e substituída por outra que não pronuncie os arguidos pelos factos constantes do requerimento de abertura de instrução.

Assim decidindo,
Vossas Excelências farão a necessária e habitual
JUSTIÇA!”.
*
5. Na 1ª instância a assistente EE respondeu a ambos os recursos, nos termos constantes de fls. 726/760, terminando essa sua peça processual com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

1.- A presente resposta vem das motivações de recurso oferecidas pelos Arguidos e, bem como, pela Digníssima Procuradora do Ministério Público da douta decisão de pronúncia proferida pelo Tribunal de Instrução a quo, por entenderem que não existem indícios suficientes da prática do crime que sustentem a decisão de pronúncia proferida.
2.- Salvo o devido respeito por melhor opinião, a douta decisão não merece qualquer reparo, devendo a mesma ser confirmada e mantida na ordem jurídica.

Vejamos,

3.- Argumentam ainda os Arguidos Recorrentes que a douta decisão de pronúncia é manifestamente ilegal, porquanto alicerça-se num meio de prova indiciário extraído de um processo cível onde foi declarado nulo, pelo que sempre o mesmo não poderia ter sido considerado e apreciado pelo Tribunal a quo.
4.- As referidas declarações para memória futura não foram reconhecidas naqueles autos cíveis, por uma questão meramente formal e apenas em relação ao aqui Arguido GG e ali Réu, uma vez que o mesmo não tinha sido notificado na pessoa da sua representante legal (sua mãe, aqui Arguida e ali Ré) para comparecer na diligência.
5.- Contudo, deixa-se nota que a Arguida FF, ali Ré, foi regularmente notificada para a diligência, tendo estado presente na mesma e patrocinada pelo seu advogado, tendo a mesma beneficiado da anulação das declarações para memória futura, apesar de não se ter verificado violação do princípio do contraditório e de igualdade de armas quanto a tal Arguida, pretendendo aquela tirar os mesmos benefícios nos presentes autos criminais.
6.- Acresce ainda que, em sede de processo penal, são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei (cfr. art. 125.º, CPP), sendo certo que não podem ser utilizadas provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa à integridade física ou moral das pessoas, sob pena de serem as mesmas nulas.
7.- Neste ensejo, o Tribunal de Instrução a quo entendeu que as referidas declarações para memória futura prestadas pelo Ofendido naqueles autos cíveis, os quais deram origem aos presentes autos, não poderiam ser enquadradas e, por conseguinte, valoradas como declarações para memória futura, ao abrigo das disposições dos arts. 271.º, n.º1, n.º3 e n.º5 do CPP, uma vez que as mesmas não foram prestadas perante Juiz de Instrução, nem estavam presentes os Defensores dos Arguidos ou o Ministério Público.
8.- Por tal motivo, as referidas declarações para memória futura não foram enquadradas e valoradas como tal meio probatório, precisamente, por as formalidades prescritas pela lei processual penal não terem sido observadas, onde se inclui o princípio do contraditório que os Arguidos Recorrentes fazem tanta questão de salientar.
9.- As referidas declarações para memória futura foram valoradas ao abrigo das normas ínsitas aos arts. 167.º do CPP e ainda 199.º, n.º1 do CP, na medida em que as reproduções fonográficas e, de um modo geral, qualquer reprodução mecânica valem como prova de factos se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, ou seja, caso ocorra gravação sem o devido consentimento.
10.- Conjugando os referidos preceitos legais conclui-se que a validade da prova está condicionada à inexistência da atividade criminosa na obtenção da gravação, pelo que, tendo o Ofendido prestado as mesmas voluntariamente, em ambiente judicial e perante Juiz, as mesmas são lícitas e podem ser valoradas ao abrigo do art. 127.º do CPP, pelo que a douta decisão de pronúncia não padece de qualquer ilegalidade, nem tampouco se encontra ferida de qualquer vício que acarrete a sua nulidade, devendo a mesma ser mantida, o que se requer.

POR OUTRO LADO, E SEM PRESCINDIR,

11.- Da prova testemunhal produzida em sede de instrução, resulta que nenhum fisioterapeuta, que prestou funções na referida Clínica, no período compreendido entre 2012 e 2015, se recorda do Ofendido.
12.- Aliás, a testemunha KK, que prestou funções de 2013 a 2017, foi mais além, esclarecendo que, atendendo ao nome invulgar do Ofendido (Cid), é estranho não se recordar do mesmo.
13.- De todo, de acordo com as regras da experiência comum, não é sequer verosímil que nenhum fisioterapeuta se recorde de um alegado utente, que efetuou supostamente, mais de 70 sessões anuais.
14.- Nem tampouco se mostra plausível que um alegado utente, que realizou 288 sessões de fisioterapia durante quatro anos, não tenha qualquer registo clínico, qualquer fatura e/ou recibo.
15.- Acresce ainda que, mesmo durante o ano de 2015, após a implementação do sistema e-fatura, a Autoridade Tributária e Aduaneira não detetou qualquer faturada emitida pela F... a favor de AA, conforme consta de fls. 381 dos autos.
16.- Note-se ainda o e-mail enviado aos autos pela Clínica F..., constante de fls. 373 dos autos, em que a mesma declara que muito estranha o teor daquela declaração, porquanto não é prática de tal Clínica realizar tratamentos da forma como ali se encontra descrita, e que é prática entregar recibos de quitação aos utentes no fim de cada sessão/pack de sessões.

Assim sendo,

17.- Da concatenação de todos estes elementos carreados para os autos, quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, conjugados com as regras da experiência comum, resulta evidente que os referidos tratamentos de fisioterapia nunca foram prestados.
18.- O que ainda sai realçado do facto de não haver um único indício de que os referidos tratamentos foram efetivamente prestados: não há uma única fatura, recibo, documento particular, ficha de cliente ou até mesmo registos clínicos dos alegados serviços de fisioterapia. Mais, os fisioterapeutas que prestaram funções naquela Clínica, no período em causa, não conhecem, não se recordam do Ofendido, nem tampouco o nome lhes suscita qualquer mínima lembrança.
19.- Nesta senda, conjugando todos esses indícios e ainda a ausência de indícios da efetiva prestação dos tratamentos de fisioterapia, cremos que o Tribunal de Instrução a quo muito bem andou ao proferir a decisão de pronúncia, devendo a mesma ser confirmada, o que se requer.

POR OUTRO LADO, E SEM PRESCINDIR,

20.- Certo é que, no crime de falsificação de documento, o bem jurídico acautelado concretiza-se na segurança e na credibilidade dos documentos no tráfego jurídico probatório, isto é, a veracidade intrínseca do documento como tal, ou seja, como meio de prova, merecedor de especial credibilidade e segurança.
21.- Naqueles autos cíveis, a declaração tinha o propósito de demonstrar e provar que os Réus, FF e GG tudo fizeram para prolongar a vida do ofendido, proporcionando-lhe tratamentos de fisioterapia, ou seja, os mesmos pretendiam através daquela declaração ludibriar o Tribunal e o Ofendido, aproveitando-se do teor daquele documento para provar um facto juridicamente relevante para sua tese, enquanto Réus, pois que alegam ter proporcionado e conduzido o ofendido, AA, a 288 sessões de fisioterapia durante os anos de 2012 a 2015.
22.- E ainda procuravam demonstrar que o Ofendido despendeu milhares de euros com tais tratamentos, por forma ainda a justificar o desaparecimento das quantias do ofendido das suas contas bancárias.
23.- Por forma a dar sustento à sua tese, FF e GG juntaram tal declaração da clínica “F...”, a qual era detida ou, pelo menos, gerida pelo casal CC e DD, segunda a ex-funcionária daqueles, mas pelo menos por DD, que era a gerente de facto e de direito.
24.- Da prova assim carreada para os autos, analisada ainda à luz das regras da experiência comum, dúvidas inexistem de que se verificam suficientemente indiciados os factos vertidos ao art. 98.º do RAI, designadamente, as alíneas a) a p), pelo que se encontra suficientemente indiciado de que DD e BB foram as agentes do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º1, alíneas a) e d) do C.P., bem como que FF e GG foram os agentes do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º1, alíneas e) e f) do C.P.
25.- Pelo que nenhum reparo merece a douta decisão de pronúncia, devendo a mesma ser confirmada por este Venerando Tribunal da Relação, o que se requer.
***
TERMOS EM QUE devem os recursos oferecidos pelos Arguidos e Ministério Público serem julgados totalmente improcedentes, por não provados, e, em consequência, ser confirmada a douta decisão de pronúncia, assim se fazendo inteira e sã
JUSTIÇA!
*
6. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal da Relação emitiu o parecer que consta de fls. 776, aderindo na íntegra ao recurso interposto pelo Ministério Público na 1ª instância.
*
7. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, não foi apresentada qualquer resposta.
*
8. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
           
II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, é hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2 [4].

Ora, na situação em apreço, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelos recorrentes, são as seguintes as questões que basicamente importa dilucidar:

- Saber se foram indevidamente valoradas, constituindo prova inválida, as denominadas declarações para memória futura prestadas por AA [pai da assistente, entretendo falecido] no âmbito do Proc. nº 187/16...., que corre termos no Juízo Central Cível ..., Juiz ... , do Tribunal Judicial da Comarca ..., as quais foram declaradas nulas [recurso dos arguidos FF e GG];
- Saber se foi indevidamente valorado o depoimento prestado na fase de inquérito por BB, então testemunha, a qual veio posteriormente a ser constituída arguida nos autos, na fase de instrução, sendo certo que,  nessa qualidade, quando sujeita a interrogatório, usou do seu direito de não prestar declarações [recurso do Ministério Público]; e
- Saber se existem nos autos indícios suficientes da prática, pelos arguidos, do crime de falsificação de documento que lhes foi imputado [ambos os recursos].
Vejamos, pois.
Como claramente decorre do Artº 286º, nº 1, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Trata-se de uma fase jurisdicional (facultativa) em que o juiz de instrução investiga autonomamente o caso que lhe é submetido, praticando os actos necessários a fundar a convicção que lhe permita proferir a decisão final de submeter ou não a causa a julgamento, ou seja, de pronunciar ou não pronunciar o arguido, tendo sempre em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o nº 2 do Artº 287º (Artºs. 288º, nº 4, e 308º, nº 1).

Estatuindo o Artº 292º, nº 1, a regra de que em instrução são admissíveis  todas as provas que não forem proibidas por lei.         
Por outro lado, há que ter em conta que, como se alcança do Artº 298º, no âmbito da instrução há-de realizar-se o debate instrutório o qual visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento.
E que, após o debate instrutório, será proferido despacho de pronúncia ou de não pronúncia consoante existam ou não indícios suficientes que justifiquem a submissão ou não do arguido a julgamento.
Sendo certo que um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e do despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência dos indícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes (cfr. Artºs. 277º, nº 2 e 308º, nº 1).
Podemos dizer, em suma, que a instrução visa a comprovação judicial de acusar ou não acusar, isto é, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada ao arguido uma pena, pelos factos e ilícito que lhe são imputados, nomeadamente pelo assistente no requerimento de abertura de instrução, como sucede no caso vertente.
Efectivamente, dispõe o supra citado Artº 308º, nº 1, que, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respectivos factos; caso contrário, como já se disse, profere despacho de não pronúncia.
Resulta, por sua vez, do Artº 283º, nº 2, para o qual remete o Artº 308º, nº  2, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
A doutrina tem-se pronunciado abundantemente sobre o que deve entender-se por “indícios suficientes”.
O Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Primeiro Volume, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 133, refere que “(…) os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição.”.
Na mesma linha de pensamento esclarece o Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português, Do Procedimento (Marcha do Processo), Universidade Católica Editora, Volume 3, 2015, pág. 170 e sgts., que, “para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige (…) a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido”.
Porém – adverte o mesmo Autor – “Esta possibilidade é uma possibilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido”.
Acrescentando, ainda, que "A referência que o art. 301º, nº 3, faz à natureza indiciária da prova para efeitos de pronúncia inculca a ideia de menor exigência, de mero juízo de probabilidade. Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação. A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (art. 283º, nº 2(); não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.”.
E terminando, dizendo, assertivamente, que “A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação”.
Em sede jurisprudencial, vem-se entendendo, também, que os indícios suficientes correspondem a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si, conduzam à convicção de culpabilidade do arguido e de lhe vir a ser aplicada uma pena.
Disso mesmo dá conta, v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/06/2006, proferido no âmbito do Proc. nº 06P2315, disponível in www.dgsi.pt, no qual se expende:
“(...) a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame.
Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronúncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (artº 3º daquela Declaração e 27º da Constituição da República).
E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição» (…).”.
Na mesma senda se pronunciado, mais recentemente, o acórdão daquele Alto Tribunal, de 05/02/2020, proferido no âmbito do Proc. nº 73/17.7TRGMR.S1, também disponível in www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma:
“(...)
Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade, enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.”.
Finalmente, há que relembrar, também, que na instrução, e como consequência da estrutura acusatória do processo [5], o juiz está vinculado na pronúncia aos termos da própria acusação ou do requerimento instrutório do assistente, sendo certo que, sem acusação formal ou implícita não pode haver pronúncia nem o juiz pode pronunciar o arguido por factos que alterem substancialmente a acusação [6]  [7].
Que a instrução não constitui um julgamento antecipado onde o grau de exigência de certeza é, necessariamente, muito superior, razão pela qual o juiz de instrução deve proferir despacho de pronúncia quando, atenta a prova indiciária existente, objectivamente considerada, se convença que é maior a probabilidade de o arguido ter cometido o crime imputado, do que a de o não ter cometido.
E que o princípio da livre apreciação da prova previsto no Artº 127º do C.P.Penal, que tem inteira aplicação em sede de julgamento, também se aplica no âmbito da instrução, impondo-se ao Juiz de Instrução, sendo um princípio geral de processo penal com incidência no decurso de todo o processo.
Ora, exposto que está, em termos sintéticos, o quadro legal em que se deve mover o Juiz de Instrução quando profere a decisão instrutória, seja de pronúncia, seja de não pronúncia, e voltando ao caso vertente, analisemos, então, as questões concretamente postas à nossa consideração nos presentes recursos.
Começando pela alegadas invalidades da prova trazidas à liça por todos os recorrentes.
Efectivamente, nesta sede, alegam desde logo os recorrentes FF e GG que o tribunal a quo fundamentou, em parte, a decisão de pronúncia em causa com um alegado meio de prova indiciário – “prova antecipada” –, extraído do processo nº 187/16...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Cível ..., Juiz ..., que “contaminou” toda a decisão instrutória.
Adiantando, ainda, que essa “prova antecipada”, consubstanciada em declarações de parte do autor naqueles autos, AA, sendo os ali réus, aqui recorrentes, foram declaradas nulas, logo de nenhum efeito, através de despacho proferido no decurso da audiência prévia ocorrida naquele processo, em 06/12/2017, que foi confirmado pelo acórdão proferido em 11/05/2018 pelo Tribunal da Relação do Porto,  já transitado em julgado.
Que a assacada nulidade naquele processo cível teve por base a inobservância de dois princípios basilares de qualquer direito processual: o princípio do contraditório e o princípio da igualdade das partes, que derivam, em última instância, do princípio do Estado de direito, encerrando uma particular garantia de imparcialidade do Tribunal perante as partes.
Que a validação desse concreto meio de prova indiciário, além de atentar contra o caso julgado, também não se insere no disposto no Artº 125º do C.P.Penal.
E que a validação da “prova antecipada” pelo tribunal a quo foi precipitada, pois não atendeu à leitura global dos princípios estruturantes do nosso sistema jurídico e da unidade e coerência do mesmo, razão pela qual deveria ter sido “banido”, aliás, como foi bem decidido/confirmado pelo tribunal superior.
Salvo o devido respeito, não lhes assiste qualquer razão.
Vejamos.
Compulsando os autos, constata-se que, no seu requerimento de abertura de instrução (doravante RAI), no âmbito da prova a considerar nessa sede, fez a assistente alusão às declarações para memória futura prestadas pelo ofendido (seu pai) no processo nº 187/16...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Cível ..., Juiz ..., declarações essas que, em virtude de o mesmo ter falecido na pendência dos presentes autos, deverão ser consideradas, valendo “com força probatória plena” (cfr. fls. 221).
Mais se constata que, pelo despacho do Mmº JIC, de 02/06/2021, exarado a fls. 368, foi determinado se solicitasse àquele tribunal o envio do auto de tomada de declarações para memória futura referido a fls. 221.
Que, pelo ofício de 16/12/2021, constante de fls. 376, o Juízo Central Cível ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., remeteu aos autos o suporte digital contendo as ditas declarações para memória futura de AA [suporte digital esse que se mostra anexado à contracapa do 2º volume].
E que, pelo requerimento de 02/11/2022, constante de fls. 537 Vº / 538, os arguidos FF e GG vieram dar conta nos autos que a prova antecipada consubstanciada em tais declarações para memória futura foi declarada nula pelo despacho proferido naquele processo no dia 06/12/2017, despacho esse confirmado pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/05/2018, o que, efectivamente, se comprova pelo teor de fls. 538 Vº / 548 Vº.
Sucede que, como facilmente se colhe da decisão recorrida, tais “declarações para memória futura” não foram enquadradas e valoradas como tal pelo tribunal a quo na decisão recorrida, por não estarem verificados os respectivos requisitos legais, maxime o disposto no Artº 271º, nºs. 1, 3 e 5 do C.P.Penal, dado que as mesmas não foram prestadas perante juiz de instrução, nem na respectiva produção estiveram presentes os Defensores dos arguidos ou o Ministério Público.
Com efeito, as referidas declarações para memória futura foram consideradas e valoradas pelo tribunal a quo ao abrigo das disposições conjugadas dos Artºs. 167º do C.P.Penal e 199º, nº 1, do Código Penal, na medida em que as reproduções fonográficas e, de um modo geral, qualquer reprodução mecânica, valem como prova de factos se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, ou seja, caso ocorra gravação sem o devido consentimento, o que claramente não foi ocaso.
Subscrevendo-se inteiramente a posição da Mmª JIC quando, na decisão recorrida, a este propósito afirma:
“(...) da conjugação das citadas normas extrai-se que a validade da prova está condicionada à inexistência de atividade criminosa na obtenção da gravação.
Assim, se a conduta traduzida na gravação das palavras proferidas configurar um ilícito penal não poderá ser atribuído valor probatório à gravação; caso contrário, será prova válida e sujeita à livre apreciação prevista no artigo 127.º do CPP.
Ora, as declarações (de prova antecipada) juntas aos autos foram prestadas voluntariamente pelo autor da referida ação cível (entretanto falecido), num tribunal, perante juiz, pelo que naturalmente não são gravações ilícitas para efeitos da lei penal, tanto mais, que foram gravadas voluntariamente e a pedido de quem as prestou.
Atento o exposto, consideramos que as declarações juntas serão prova válida e sujeita à livre apreciação do julgador.”.
Nestas circunstâncias, não tem sustentação bastante o vício que os recorrentes FF e GG à decisão recorrida, não fazendo qualquer sentido, salvo o devido respeito, a invocação da figura do “caso julgado”, que manifestamente não ocorre, sendo a prova em causa, nos termos considerados, perfeitamente admissível e valorável, à luz das princípios ínsitos nos Artºs. 125º e 127º do C.P.Penal.
Soçobra, pois, esta questão recursória suscitada pelos arguidos FF e GG.
E quanto à questão da invalidade da prova invocada pelo recorrente Ministério Público?
Com efeito,  como se alcança do seu recurso, neste âmbito sustenta o Ministério Público, em síntese, o seguinte:
- A decisão instrutória faz menção a que a arguida BB, funcionária administrativa da clínica “F...”, admitiu que assinou a declaração que não corresponde à realidade, pois a mesma começou a prestar serviços para a “F...” a partir do ano de 2014 não podendo, por conseguinte, atestar o facto que consta da declaração que refere que o tratamento de fisioterapia teve lugar no período compreendido entre o ano de 2012 e o ano de 2015;
- Ora, tal depoimento da arguida (então testemunha) BB não pode ser valorado como foi, pois, conforme resulta dos autos, a então testemunha BB, veio a ser constituída arguida nos autos e, nessa qualidade, quando sujeita a interrogatório, usou do seu direito de não prestar declarações;
- Estabelece o Artº 58º, nº 1, al. a), e nº 6 do C.P.Penal, que:
“1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:
a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal;
(…)
6 - A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.”;
- Aquando da inquirição de BB (cfr. fls. 142/143) surgiram fundadas suspeitas da prática pela mesma do crime de falsificação de documento, pois foi essa mesma testemunha emitiu e assinou a declaração de fls. 109;
- No entanto, de acordo com o preceito legal transcrito, tal inquirição na qualidade de testemunha não deveria ter sido levada a cabo, antes deveria, naquele momento, a entidade que presidia ao ato, constituir BB como arguida; não tendo ocorrido essa constituição de arguida, aquelas declarações não podem ser utilizadas como prova;
- Acresce que, em interrogatório, a arguida não prestou declarações e podia tê-lo feito, nos termos do depoimento que prestou como testemunha;
- Permitir, nestas circunstâncias a valoração desse depoimento, seria violar, de forma insustentável, o direito de defesa do arguido com consagração constitucional, no Artº 32º da C.R.P..
Salvo o devido respeito, não se vislumbra qualquer vicissitude processual (que, aliás, o recorrente não tipifica) no que tange, à valoração, pelo tribunal a quo, nas concretas circunstâncias processuais, do aludido depoimento prestado por BB no âmbito do inquérito, na qualidade de testemunha.
Questão essa, ademais, intimamente conexionada com a invocada nulidade, esgrimida pela assistente no seu RAI, traduzida na omissão, durante o inquérito, por banda do Ministério Público, além do mais, na constituição dos suspeitos (entre os quais a dita BB) como arguidos, e bem assim no respectivo interrogatório, nos termos do disposto no Artº 272º do C.P.Penal, a qual foi apreciada na decisão recorrida como “Questão prévia”, tendo a Mmº JIC concluído não ter sido cometida tal nulidade, prevista no Artº 120º, nº 2, al. d), do C.P.Penal, o que não mereceu qualquer reacção por banda de nenhum dos sujeitos processuais [aqui se incluindo, obviamente, o Ministério Público e a ora arguida BB, que aliás se conformou com a decisão de pronúncia].
Muito se estranhando, até, que o recorrente Ministério Público sustente, agora, em sede recursória, numa espécie de flagrante venire contra factum proprium, e com uma discutível “legitimidade”, que a inquirição de BB, na qualidade de testemunha, conforme auto de fls. 142/143 (de 21/06/2019), não deveria ter sido levada a cabo, e que, naquele momento, a entidade que presidia ao acto [8] deveria tê-la constituída como arguida.
Pois, como se alcança de fls. 351, na sequência do despacho de 03/05/2021, exarado a fls. 340, no dia 10/05/2021, o Ministério Público tomou posição totalmente oposta sobre o assunto, ali aduzindo, então, o Exmo. Procurador da República subscritor, de forma expressa, o seguinte (transcrição):
“EE invoca no RAI, além do mais, que o Ministério Público não procedeu ao interrogatório dos suspeitos como arguidos, pelo que verifica-se a nulidade insanável prevista no artº 119º, al. d), do CPP (falta de inquérito, visto a obrigatoriedade de tal diligência).
Preceitua o artº 272º do CPP, “1-Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguida, salvo se não for possível notificá-la”.2-O Ministério Público, quando proceder a interrogatório de um arguido…comunica-lhe, pelo menos com vinte e quatro horas de antecedência, o dia, hora e local da diligência.
Só cessa a obrigatoriedade de interrogatório quando não for possível convocar a pessoa para o efeito, caso em que o investigado assume a qualidade de arguido logo que contra ele seja deduzida acusação ou requerida instrução – artº 57º, nº 1, do CPP.
Ou seja, podendo o denunciado ser constituído arguido, e nessa qualidade interrogado, e não o tendo sido, cometer-se-ia a nulidade prevista no artº 120º, nº 2 al. d), do CPP.
Porém, no caso dos autos, o Ministério Público entendeu que, por não haver denunciado indicado (os autos tiveram origem numa certidão extraída de um processo cível a correr termos na Comarca ... da ..., nº 187/16....) e porque da prova produzida no inquérito não resultou fundada suspeita em relação a quem quer que fosse da prática de crime, designadamente do crime de falsificação em apreço, não se impunha o interrogatório e constituição de arguido nos termos que a requerente do RAI invoca.
Termos em que, por não verificada a invocada nulidade, deverão os autos prosseguir os seus termos nesta fase de instrução.
(…)”.
Acresce que, contrariamente ao que aduz o recorrente Ministério Público, mau grado ter sido formalmente constituída arguida em momento posterior, na fase de instrução [o que sucedeu no dia 20/01/2021, a fls. 320, altura em que também prestou o respectivo TIR, que se mostra junto a fls. 321], a mencionada BB não foi, nessa qualidade, sujeita a qualquer interrogatório, não fazendo sentido, pois, invocar-se, para aquele efeito, que usou do seu direito a não prestar declarações.
Soçobra, pois, esta questão recursória esgrimida pelo recorrente Ministério Público.
Resta abordar a questão de fundo, ou seja, apurar se existem ou não nos autos indícios suficientes da prática, pelos arguidos, do crime de falsificação de documento que lhes foi imputado.
Ora, adiantando a nossa resposta, afigura-se-nos que, da conjugação e concatenação de toda a prova produzida, quer na fase de inquérito, quer na fase de instrução, conjugada com as regras de experiência comum e da normalidade das coisas, se impõe concluir pela existência de tais indícios, tal como decidiu a Mmª JIC na decisão posta em crise pelos recorrentes, cuja argumentação se sanciona.
Com efeito, e sinteticamente, há que sublinhar que [e contrariamente ao que alegam os recorrentes FF e GG], efectivamente, a arguida BB admitiu ter assinado uma declaração (cuja cópia consta de fls. 109) que não corresponde à realidade, dado que apenas começou a prestar os seus de enfermeira para “F...” a partir de Dezembro de 2014, os quais cessou em Maio de 2017, e que o fez a pedido da sua entidade patronal, que era composta por um casal de auxiliares de fisioterapia, DD e CC.
Deve, pois, concluir-se - como bem refere a Mmª JIC -, que a maior parte do período temporal (anos de 2012 a 2015)  a que se alude na declaração em causa jamais poderia ter sido atestado pela mencionada BB, e que a mesma sabia bem que o que atestava em tal documento não correspondia à realidade, sendo totalmente inócua a aparente tentativa de se desculpabilizar quando afirma que “era bastante nova” e que tinha “pouca experiência no meio laboral”.
Concordando-se também com a Mmª JIC quando refere que, mau grado a arguida DD ter negado que tivesse feito aquele pedido, não se vislumbra por que razão aquela fisioterapeuta iria passar uma declaração relativa a um período temporal da sua entidade patronal sem que tal lhe tivesse sido solicitado, não se vislumbrando qualquer motivo para que BB faltasse à verdade, tanto mais que o não fez em relação a si própria.
Acresce que, tendo sido solicitados elementos fiscais à autoridade tributária com vista a apurar-se quem prestou serviços para a “F...” dentro do período temporal de 2012 a 2015, e que constam de fls. 488 e ss, e tendo, nessa sequência, sido inquiridos os técnicos de fisioterapia ali identificados [PP, JJ, KK, LL e MM], nenhum deles se recordava de ter prestado serviços ao mencionado AA ou ter ouvido sequer este nome, o que não deixa de ser “muito estranho para quem  alegadamente recebeu 288 sessões se fisioterapia”.
Com efeito, não existe nos autos uma única factura, um recibo, ou um documento particular que ateste que tal sucedeu, mas tão somente uma declaração que claramente não corresponde à realidade, como admitiu a pessoa que a elaborou e assinou, ou seja, a arguida BB.
Sendo ademais revelador da situação em causa o facto de, nem mesmo durante o ano de 2015 [quando se inicia o sistema do e-factura], os serviços de Finanças terem detectado qualquer factura emitida pela “F...” em nome do contribuinte AA, como decorre da declaração por aqueles serviços prestada em 14/07/2021, que consta de fls. 381.
E bem assim o requerimento que a própria “F...” remeteu aos autos através do email de 17/06/2021, que se mostram juntos a fls. 373/375, no qual, além do mais, afirma:
“(...) - Sendo certo que não pode deixar de esclarecer que se estranha o teor da declaração em causa uma vez que não é prática da nossa clínica realizar tratamentos nos moldes indicados na declaração (“por um período de seis meses anuais, com uma frequência de três sessões por semana”) ou seja, não é habitual nem recomendável submeter um paciente a tratamentos um período de seis meses e depois interromper outros seis meses.
- Antes é habitual a realização de um determinado número de sessões de forma seguida, por exemplo 10, 12 ou 15 sessões, uma interrupção e reinicia outro pack de sessões.
- Mais informa que a gerência desconhece quem solicitou e quem ordenou a emissão da declaração nos moldes em que foi emitida, sendo certo que a declaração a ser emitida foi ordenada por alguém alheio à gerência e que induziu em erro a administrativa que a elaborou e assinou.
- Sendo certo que é prática da clínica entregar recibos de quitação dos valores pagos em cada sessão ou no final de cada “pack” de tratamentos.
- Pelo que, se os tratamentos foram realizados, quem tem na sua posse a declaração também deveria possuir os correspondentes recibos de pagamento”.
Bem podendo concluir-se, pois, que os tratamentos em causa, nos moldes mencionados na declaração cuja cópia consta de fls. 109, não foram prestados, não havendo um único indício que aponte nesse sentido.
E que, como se assevera na parte final da decisão recorrida, “(...) existem indícios suficientes que BB elaborou e assinou um documento que sabia não corresponder à realidade e DD, foi quem ordenou a elaboração do documento em causa com o intuito de favorecer FF e GG na acção cível que corria os seus termos no Juízo Central Cível ....”.
Consequentemente, da conjugação e concatenação de todos os elementos probatórios produzidos, afigura-se-nos, tal como considerou a Mmª JIC, encontrar-se suficientemente indiciada a prática, por banda dos arguidos, do crime de falsificação de documento que lhes foi imputado, cujos elementos objectivos e subjectivos foram devidamente analisados no despacho de pronúncia e, concomitantemente, existir uma probabilidade elevada da condenação dos mesmos arguidos em julgamento.
Pelo que, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, não se vislumbrando a violação de nenhuma das normas legais e/ou constitucionais invocadas pelos recorrentes, nem qualquer outra, nenhuma censura nos merece o despacho recorrido, que se confirma, soçobrando totalmente ambos os recursos.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos FF e GG, e pelo Ministério  Público, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida de pronúncia dos arguidos.
*
Custas pelos arguidos / recorrentes FF e GG, fixando-se em 3 (três) UC a taxa de justiça a suportar por cada um deles, delas estando isento o recorrente Ministério Público - Artºs. 513º, 514º e 522º, nº 1, do C.P.Penal, e Artºs. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo na primeira página as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários – Artºs. 94º, nº 2, do C.P.Penal, e 19º, da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto).
*
Guimarães, 19 de Setembro de 2023

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Florbela Sebastião e Silva (Juíza Desembargadora Adjunta)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto) – Vencido, conforme declaração junta

Declaração de voto

Salvo o devido respeito pelo entendimento que obteve vencimento no aresto, julgo que os recursos dos arguidos e do Ministério Público mereciam provimento.
Com efeito, entendo que a decisão recorrida encerra uma valoração proibida da prova resultante do depoimento prestado em inquérito pela então testemunha BB, depois constituída arguida nos autos (e que, no exercício de um direito processual que lhe passou a assistir, não prestou declarações como tal, nem em inquérito nem em instrução).   
O Ministério Público ouviu-a como testemunha, mas, no decurso da inquirição, devia tê-la constituído arguida - cf. art. 59º, nº1, do Código de Processo Penal (CPP). Aliás, nenhuma outra prova distinta ou complementar indiciadora da responsabilidade criminal da então testemunha foi produzida nos autos depois daquela inquirição, pelo que, obviamente, foram as suas próprias declarações que conduziram à sua ulterior constituição como arguida e, agora, à sua pronúncia pelo Tribunal recorrido.   
Por conseguinte, salvo melhor opinião, atento o disposto no art. 58º, nº6 do CPP, ex vi do art. 59º, nº4, as declarações prestadas em inquérito pela ora arguida, então testemunha BB, não podiam ter sido valoradas pelo Tribunal a quo.
Por outro lado, afigura-se-me que, uma vez mais, assiste razão aos recorrentes quando pugnam pela impossibilidade de serem utilizadas como meio de prova nos autos declarações que foram prestadas em processo cível pelo pai da Assistente (entretanto falecido).      
Aquelas declarações foram prestadas noutro processo e, mormente, foram declaradas nulas por decisão judicial ali proferida e transitada em julgado, gerando caso julgado formal, o que, para todos os efeitos, as torna inválidas (de nenhum efeito) - cf. disposições combinadas dos arts. 620º e 630º, nº 2, última parte, ambos do Código de Processo Civil (CPC).      
Ademais, com todo o respeito, parece-me artificioso o argumento aduzido no despacho de pronúncia e acolhido no acórdão de que o que se está a valorar são reproduções fonográficas (qualquer reprodução mecânica), como se fosse um meio de prova autónomo (cfr. disposições conjugadas do art. 167º do CPP e 199º, nº1, do Código Penal), porquanto o que verdadeiramente foi valorado pelo Tribunal a quo foram declarações (prestadas por alguém que não é testemunha/ interveniente), independentemente do suporte em que foram gravadas.
Consequentemente, a minha decisão seria uma de duas (cfr., por ex., acórdão do TRC de 27/11/2013, processo nº 319/06.7TASPS.C1, in www.dgsi.pt):
Caso se concluísse que o Tribunal recorrido, para a pronúncia dos arguidos, se socorreu de outros meios de prova para além dos que julgo inválidos, teria de se declarar a respetiva proibição de valoração daqueles e o processo teria de voltar à primeira instância para que proferisse nova decisão instrutória, expurgada daquelas "invalidades";
Caso se concluísse que o Tribunal recorrido, para a pronúncia, somente valorou os meios de prova que julgo inválidos, seria de revogar desde já, em sede de recurso, a decisão recorrida, determinando a não pronúncia dos arguidos.

O Juiz Desembargador (2º Adjunto)
Paulo Correia Serafim


[1] Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
[2] Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
[3] Ver documento constante dos autos a fls. 166 emitido pela própria F....
[4] Cfr., neste sentido, o Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo) ”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.
[5] Que tem consagração constitucional, no Artº 32º da nossa lei fundamental.
[6] Neste sentido, o Prof. Germano Marques da Silva, ibidem, pág. 164.
[7] Está em causa o designado princípio da “vinculação temática e da vinculação dos poderes de cognição do Tribunal”.
[8] Por sinal uma Exma. Técnica de Justiça Auxiliar a prestar serviço no Departamento de Investigação e Acção Penal, 2ª Secção de ..., onde corria termos o inquérito, por competência delegada, como se afirma no auto.