Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
88/23.6T8FAF.G1
Relator: PAULA RIBAS
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVENTE CREDOR
REPRESENTAÇÃO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
ILEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A ação destinada à restituição de quantia de que se afirma ser titular e à fixação de uma indemnização por danos não patrimoniais não pode ser proposta por pessoa singular declarada insolvente, na pendência do processo de insolvência.
2 – Estando em causa uma situação de indisponibilidade relativa, o credor insolvente é parte ilegítima para a propositura daquela ação.
3 – Tal ilegitimidade conduz à absolvição do réu da instância e não pode ser suprida pela intervenção do administrador de insolvência e a suspensão da instância tendo em vista o suprimento de uma qualquer situação de incapacidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório:

AA intentou ação comum contra Banco 1... SA requerendo a condenação desta no pagamento da quantia de 6.000,00 € a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação e vincendos, bem como a restituição da quantia de 150,01 euros que afirma ter sido cativada pela ré e que lhe pertence, a que acresceriam juros nos mesmos termos.

Fundamentou a sua pretensão alegando que era titular de uma conta bancária aberta na instituição ré e que esta aceitou a realização de uma penhora de quantia nela depositada que era ilegal, tendo desse facto dado conhecimento imediato à ré.

Mais refere que mesmo depois de ter sido ordenado o levantamento da penhora, a ré não devolveu a totalidade do valor que foi penhorado.
Afirmando que esta situação lhe causou danos não patrimoniais, requer a condenação da ré no pagamento de uma indemnização e na restituição do montante penhorado que ainda não foi devolvido.

A ré apresentou contestação.
Quando estava já designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento, o Mmº Juiz então titular do processo fez constar nos autos ter tomado conhecimento que o autor estava insolvente e que a sua declaração de insolvência seria prévia à propositura desta ação, podendo tal facto suscitar uma questão de ilegitimidade ativa, solicitando informações sobre o processo.
As partes foram convidadas a pronunciar-se sobre essa ilegitimidade.

Juntas tais informações, em 03/12/2023, foi proferido o seguinte despacho:
Da irregularidade da representação do Autor.
Tendo em conta, como pressuposto necessário, que “O despacho saneador tabelar (que continua a dever ser proferido no presente quadro jurídico-processual) que apenas enuncie, sem concretamente apreciar, a legitimidade das partes, não faz caso julgado (nem formal), e não obsta a que o assunto – que é de conhecimento oficioso – possa vir, numa fase subsequente, a ser ponderado e fundamentadamente decidido, seja na sentença final, seja mesmo como objeto do recurso de apelação, em concernente acórdão proferido pelo tribunal de recurso (artigos 510º, nº 3, início, 495º, início, 660º, nº 1, início, e 713º, nº 2, final, do CPC)”, cumpre apreciar qual é o efeito da declaração de insolvência do A. sobre os termos da presente ação.

Preceitua o artigo 81.º do CIRE, na parte que aqui releva, o seguinte:
“1 - Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
2 - Ao devedor fica interdita a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros suscetíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo. (…)
4 - O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”.

Por outro lado, quanto ao conceito de massa insolvente, lê-se no artigo 46.º do CIRE que:
“1 - A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
2 - Os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta”.

Ora, o A. foi declarado insolvente em 5 de julho de 2022 (antes da instauração da presente ação), em processo que ainda não foi encerrado.
Posto isto, a massa insolvente integraria, tendo em conta a conjugação das duas sobreditas normas legais, os bens e direitos adquiridos pelo insolvente na pendência daquele processo.
Em consequência, julga-se que, efetivamente, o A. carece de legitimidade para prosseguir, por si, do lado ativo, na presente ação, visto que passa a ser representado, por imposição legal, pelo “administrador da insolvência que em tais termos assume a legitimidade processual para demandar ou ser demandado em ações em que se discutam os direitos/deveres patrimoniais daqueles” – Ac. Do Tribunal da Relação do Porto de 08.06.2022, proc. n.º 13191/21.8T8PRT.P1, relator: Isoleta De Almeida Costa, disponível em www.dgsi.pt.
Assim, no sentido de sanar a irregularidade da representação do A. nestes autos, determina-se que se proceda à notificação (com as formalidades da citação) do Sr. Administrador de Insolvência do A. para, no prazo de dez dias, querendo, ratificar os atos anteriormente praticados pelo insolvente nestes autos, sob pena de, não o fazendo, ficar sem efeito todo o processado desde o início (artigo 27.º, n.º1, 2 e 4 e 28.º, n.º1 e 2 do Código de Processo Civil).
Durante o referido prazo, a presente instância ficará suspensa, nos termos do preceituado no artigo 28.º, n.º2 do Código de Processo Civil”.
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Inconformado, veio o autor apresentar recurso de apelação, concluindo nos seguintes termos:

“a. O autor/apelante não se conforma com o douto despacho proferido a fls… dos autos, datado de 03/12/2023, que se pronunciou sobre a sua legitimidade e regularidade de representação atenta a sua condição de insolvente, entendendo que o mesmo fez uma errada aplicação e interpretação da lei substantiva e da lei processual, em clara violação ao disposto no artigo 81º do CIRE e artigo 30º do CPC.
b. Com efeito, declarada a insolvência do aqui autor, o mesmo conserva o exercício de todos os seus direitos pessoais estranhos à insolvência, podendo manter a administração dos bens estranhos à massa insolvente.
c. O nº 4 do artigo 81º do CIRE estatui que o administrador da insolvência apenas “assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”.
d. Contudo, e salvo melhor entendimento, tal privação não consubstancia uma incapacidade judiciária do insolvente, porquanto, a declaração de insolvência não implica uma perda da sua capacidade judiciaria mas, e apenas em determinadas situações, uma substituição na sua representação processual.
e. A extensão dessa substituição processual encontra-se confinada à finalidade para a qual tal mecanismo foi previsto: proteção do património do insolvente em função do interesse dos credores por forma a salvaguardar a satisfação dos respetivos créditos.
f. E, nessa medida, a incapacidade do insolvente não é extensível às matérias de natureza pessoal, às patrimoniais estranhas à massa insolvente, bem como às relacionadas com o património insolvente que visem a valorização ou o aumento do mesmo.
g. Não se pode olvidar a natureza jurídica da privação que recai sobre o insolvente. Esta privação não deve ser vista como sendo uma manifestação de qualquer incapacidade ou de ilegitimidade, mas sim como de indisponibilidade relativa (neste sentido, Maria do Rosário Epifanio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição, pp. 109 a 115).
h. O artigo 81º do CIRE significa que a inibição do insolvente se revela inoperante relativamente a matérias de natureza pessoal em geral, e outrossim, quanto às patrimoniais estranhas à massa, bem como às relacionadas com o património do insolvente que visem a valorização ou aumento do mesmo. – Cfr. Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 2019/12/10, Relatora: Graça Amaral, disponível in www.dgsi.pt
i. Visa a lei impedir a pratica por parte do devedor de atos que de alguma forma possam comprometer o respetivo património em prejuízo dos credores. – Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 2017/11/02, relator José Rainho, disponível in www.dgsi.pt. E daqui que só quando esses interesses dos credores estejam em causa se pode ter como observável uma tal privação ou inibição.
j. Nas palavras de Manuel Andrade (in Teoria Geral da Relação Jurídica, II, p. 113): “. Sendo assim, é claro que a inibição deve julgar-se estabelecida e sancionada em correspondência com o motivo que a inspirou, isto é, consoante o exigir da proteção que se quis dispensar aos interesses dos credores. Nada menos do que isso, mas também nada mais do que isso.” (negrito e sublinhado nosso)
k. Assim, nos termos do supra citado acórdão do STJ de 2017/11/02, se a atividade do devedor insolvente não é de molde a colocar em causa a salvaguarda do seu património em detrimento dos direitos dos credores, como é o caso da presente ação, entende aquele não estar perante uma questão de subsunção ao regime legal previsto no artigo 81º do CIRE.
l. Acresce que, o pedido na presente ação visa tão só o arbitramento da compensação devida pelos atos ilegais praticados pelo réu, que é em tudo alheio ao processo de insolvência. Não se mostrando possível a restituição natural, a lei civil prevê uma compensação em dinheiro pelos danos patrimoniais que se vierem a provar ter existido na esfera do autor.
m. Sendo certo que, o pedido de reconhecimento da existência do direito a ser ressarcido pelos danos causados pela conduta da ré nestes autos, não se pode confundir, desde logo, com a existência de um crédito pertencente à massa insolvente, pois o mesmo ainda não se mostra definido.
n. Duvidas não haveria, se houvesse algum crédito (já reconhecido) pertencente à massa insolvente.
o. A interposição da presente ação por parte do autor, declarado insolvente, não envolve qualquer diminuição do seu património, antes podendo trazer vantagens para os seus credores.
p. Não estando agora em causa se o pedido formulado na acção tem fundamento ou não, entende o autor, aqui recorrente que, perante a sua situação de insolvente, não estava legalmente inibido de propor a mesma, não havendo lugar à representação pelo administrador de insolvência.
q. Nos presentes autos o que se pretende é a tutela de uma ofensa a bens de carácter imaterial – desprovidos de conteúdo económico, insuscetíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro; é o prejuízo que, sendo insuscetível de avaliação pecuniária, porque atinge bens que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária.
r. Pelo que, salvo melhor entendimento, sempre deverá o presente recurso proceder, substituindo-se o despacho proferido por outro que reconheça ao autor, na devida qualidade, e respetiva legitimidade ativa na ação, por a mesma não ser suscetível de comprometer o seu património em detrimento dos interesses gerais da massa insolvente, não estar relacionada com bens da massa insolvente nem ser uma ação exclusivamente patrimonial e como tal não se mostrando aplicável ao caso o disposto no artigo 81º do CIRE, não sendo caso de representação (substituição) do autor por parte do administrador de insolvência e de necessidade de ratificação de quaisquer atos”.
A ré contra-alegou, pugnando pela manutenção do despacho proferido.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Tal decisão foi confirmada neste Tribunal, sendo determinada a notificação das partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de, perante a questão suscitada, a sua apreciação implicar a absolvição da instância da ré, desfecho que não havia sido equacionado por qualquer das partes.
Ambas as partes se pronunciaram.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Questões a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts.º 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:

1 – se o autor, estando declarado insolvente, poderia ter proposto esta ação, considerando o seu objeto;
2 – concluindo-se que não a poderia propor, declarado que estava insolvente, qual a consequência da sua indevida propositura.

III – Fundamentação de facto:

Têm relevo para a apreciação das questões suscitadas, os seguintes factos retirados dos elementos documentais constantes dos autos:

1 – O autor requereu em 25/08/2022 a nomeação de patrono no âmbito do instituto do apoio judiciário visando a propositura desta ação.
2 – A ação foi apresentada em juízo em 19/01/2023.
3 – O autor apresentou-se à insolvência em 02/07/2022, tendo tal insolvência sido declarada em 05/07/2022.

IV - Do objeto do recurso:

Começa por referir-se que, como decorre do despacho proferido, o autor estava já declarado insolvente quando foi proposta esta ação, ainda que esta ação se considere proposta no dia 25/08/2022 e não no dia 19/01/2023, como resulta do disposto no art.º 31.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29/07 (“a ação considera-se proposta na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono”).
Não está assim em causa saber se o administrador de insolvência pode substituir o autor, como acontece quando a declaração de insolvência ocorre depois de proposta a ação, mas, como se disse, e em primeiro lugar, saber quem poderia propor esta ação, considerando o seu objeto e a declaração de insolvência do autor.
O despacho proferido confunde dois diferentes pressupostos processuais, citando um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto: a legitimidade e a capacidade processual. Por um lado, refere que “o A. carece de legitimidade de prosseguir, por si, do lado ativo”, mas, por outro lado, decide “no sentido de sanar a irregularidade da representação do A. nestes autos”, determinar a notificação do administrador do processo de insolvência, nos termos do art.º 27.º do C. P. Civil.

Ora, apenas a incapacidade judiciária ou a irregularidade da representação (necessária porque aquela existe) pode ser suprida pela intervenção de um representante, pois que a ilegitimidade singular é insuprível.
Nos termos do n.º 1 do art.º 30.º do C. P. Civil, o “autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar”, exprimindo-se esse interesse, por força do nº2 daquele preceito, pela utilidade derivada da procedência da ação. No seu nº3 esclarece-se que “na falta de indicação em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Constituindo a legitimidade um pressuposto processual, nos termos dos arts.º 278.º, n.º1, alínea d), 576.º, n.º2, 577.º, alínea e), e 578.º, do C. P. Civil, cuja falta obsta a que o julgador se debruce sobre o mérito da causa, aquela terá de ser aferida sem que se conheça da real relação jurídica controvertida, mas apenas analisando a ação tal como é configurada pelo próprio autor.
A ilegitimidade singular é insuprível e conduz inevitavelmente à absolvição do réu da instância – vide, por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08/06/2022, do Juiz Desembargador João Ramos Lopes, proc. 4611/22.5T8PRT.P1, in www.dgsi.pt.
Assim, se vier a afirmar-se a ilegitimidade do autor para propor esta ação, atenta a sua situação de insolvente, como afirmou o Tribunal a quo, tal implicará necessariamente a absolvição da ré da instância e não o suprimento de qualquer situação de incapacidade do autor.
Já a capacidade consiste na suscetibilidade de se estar, por si, em juízo, tendo por base e por medida a capacidade de exercício de direitos. Assim, se o autor for incapaz para a propositura desta ação, haverá que desencadear o mecanismo previsto no art.º 27.º do C. P. Civil e que permite, precisamente, o suprimento dessa incapacidade.
O que não faz sentido é afirmar-se a ilegitimidade e pretender que a mesma seja ultrapassada por via do mecanismo que permite o suprimento da falta de capacidade processual.     
Aliás, como resulta do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que foi citado no despacho proferido, para afirmar a ilegitimidade do autor, tendo-se naquele concluído pela ilegitimidade do autor insolvente para propor a ação (que visava a condenação do réu no pagamento de uma quantia com base no enriquecimento sem causa), decidiu-se ali absolver o réu da instância e não, como fez a Mm.ª Juiz titular do processo apesar da citação efetuada, pela realização das diligências tendo em vista suprimento da sua incapacidade (Proc. 13191/21.8T8PRT.P1 da Juiz Desembargadora, Isoleta de Almeida Costa).
Vejamos, pois, se o autor, já declarado insolvente quando propôs a presente ação, a podia propor sozinho, como o fez, considerando que peticiona a condenação da ré no pagamento de uma quantia, ainda que parte significativa dela se reporte a uma indemnização por danos não patrimoniais.
Nos termos do art.º 81.º do CIRE “a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência”.
Dispõe, por sua vez, o art.º 46.º do mesmo diploma que “a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo” (n.º1) e que “os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta” (n.º2).
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/01/2022, do Juiz Conselheiro João Cura Mariano, proc. 2443/21.7T8BRG.S1, in www.dgsi.pt “o efeito principal da declaração de insolvência, quanto ao devedor, verifica-se nos seus poderes de atuação no domínio patrimonial da sua esfera jurídica”.
E continua “o afastamento do insolvente da gestão dos bens havidos ou que de futuro lhe advenham é determinada pela finalidade imediata do instituto da insolvência que é o da satisfação dos direitos dos credores, através do património que os garantia. Estando o destino dos bens do insolvente funcionalizado aos interesses dos credores, em princípio, os poderes sobre esses bens não podem manter-se na sua livre disponibilidade, devendo o seu exercício ser entregue ao administrador da insolvência, cuja função é precisamente a de proceder à satisfação dos créditos sobre o insolvente, na medida do possível, através da liquidação do património garante do devedor. Daí que ocorra uma substituição do devedor insolvente pelo administrador no exercício dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes daquele património”.
Perante este regime legal não tem sido uniforme o entendimento jurisprudencial.
Se, como resulta dos Acórdãos já citados do Tribunal da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça, há quem entenda que quem está declarado insolvente não pode propor uma ação que vise a afirmação de um crédito ou o reconhecimento de um bem que integraria a massa insolvente, há também quem entenda o contrário.
Assumindo que a massa insolvente não é “um património estático formado no momento da declaração de insolvência, uma vez que pode vir a sofrer alterações ao longo do processo de insolvência, nela ingressando ou dela sendo retirados bens e direitos”, refere-se no Acórdão citado do Supremo Tribunal de Justiça que quando, em resultado a ação, possa vir a integrar aquela massa insolvente um outro bem, caberá ao administrador de insolvência o direito de propor a ação.
Como escreveu o Juiz Conselheiro João Cura Mariano “a massa insolvente, enquanto património autónomo adstrito à satisfação dos interesses dos credores, abrange não só os direitos sobre as coisas (propriedade, usufruto, etc.) mas também direitos de crédito e todos os outros direitos de cunho patrimonial (…), pelo que os direitos que se pretendem exercer na presente ação integram-se naquele património cujos poderes de gestão competem ao administrador em substituição do seu titular -  o devedor insolvente – nos termos dos artigo 81.º, n.º 1, e 55.º, n.º 1, b), do CIRE.
A igual resultado chegamos através de uma interpretação extensiva do disposto no artigo 85.º, n.º 3, do CIRE, que abranja as ações a propor após a insolvência no exercício dos direitos do devedor, ou de uma integração analógica dos efeitos da insolvência, presidida por uma coerência sistemática, tendo em consideração as soluções dos artigos 102.º e seguintes do CIRE”.
Defendendo o entendimento oposto (que consideramos existir de facto, apesar das diferentes situações em apreciação, pois que é divergente a sua respetiva fundamentação jurídica), temos a jurisprudência citada pelo autor recorrente: Acórdãos também do Supremo Tribunal de Justiça de 07/11/2017 e de 10/12/2019, dos Juízes Conselheiro José Rainho e Graça Amaral, procs. 497/14.1TBVLG.S1 e 5324/07.3TVLSB-A.L1.S1, respetivamente, ambos in www.dgsi.pt.
Começando por referir que a declaração de insolvência priva o insolvente dos seus poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, assume que tal privação não consubstancia uma incapacidade judiciária do insolvente, mas apenas uma indisponibilidade relativa (citando Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição, pág. 109 a 115), delimitada pelos seguintes vetores:
- pelos bens que integram a massa insolvente,
- pela proteção do interesse dos credores (salvaguardar da prática de atos do devedor que possam comprometer a satisfação dos respetivos créditos). 
E, conclui-se no referido Acórdão: “esta “substituição” legal automática do insolvente pelo administrador da insolvência e a natureza de execução universal do processo de insolvência (por forma a nele participarem todos os credores do devedor no resultado da liquidação do património do insolvente) justificam o regime estabelecido no artigo 85.º, n.º1, do CIRE (serem apensadas ao processo de insolvência todas as ações, intentadas contra o devedor ou mesmo contra terceiros, em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, desde que a decisão que nelas venha a ser proferida possa influenciar o valor da massa insolvente) e n.º2 (isto é, por efeito da lei, independentemente da apensação de ações e do acordo da parte contrária, o administrador da insolvência substitui o insolvente em todas as ações patrimoniais pendentes em que este seja autor ou réu).
Todavia, a extensão da substituição do insolvente pelo administrador não pode deixar de estar confinada à finalidade da realidade que serve: proteção do património do insolvente em função do interesse dos credores por forma a salvaguardar a satisfação dos respetivos créditos.
Consequentemente, a inibição processual que afeta o insolvente não é extensível às matérias de natureza pessoal, às patrimoniais estranhas à massa insolvente, bem como as que relacionadas com o património insolvente visem a valorização ou o aumento do mesmo”.
Quid iuris, considerando o objeto da presente ação?
Este Tribunal não tem dúvidas, mesmo considerando as premissas defendidas nesta última jurisprudência, que assiste razão ao Juiz Conselheiro João Cura Mariano quando defende que, integrando a massa insolvente todos os créditos existentes e futuros, qualquer ação que vise o reconhecimento de um crédito, estando o credor insolvente, terá de ser proposta pelo administrador de insolvência e não pelo insolvente.
É que, se a afirmação de uma situação de indisponibilidade relativa se norteia pelos bens que integram a massa insolvente – que inclui créditos futuros – e pela proteção dos interesses dos credores, não vemos como possa discutir-se se determinada pretensão indemnizatória deve ser computada nesta ou naquela quantia sem que os interesses dos credores sejam acautelados e, portanto, dependente apenas da vontade do insolvente.
Note-se que existem apenas dois caminhos: ou o insolvente pode propor sozinho a ação e, assim, não existe qualquer intervenção do administrador de insolvência ou dos credores, podendo livremente dispor do objeto da ação (por exemplo, transigindo) ou não pode, por estar em causa a tal indisponibilidade relativa que resulta da declaração da sua insolvência, e o direito de propor a ação é apenas do administrador de insolvência.
Estando em causa a fixação de uma indemnização – que tem, assim, o potencial e aumentar o património da massa insolvente – não temos qualquer dúvida que a proteção do interesse dos credores exige que se considere existir uma situação de indisponibilidade relativa para o insolvente para propor a ação que visa a condenação do devedor no seu pagamento.
É, aqui, irrelevante que esteja em causa, em grande medida (embora não apenas) uma indemnização por danos não patrimoniais. É que se o dano invocado é de natureza não patrimonial, o interesse desta ação é, apenas, patrimonial (e poderia não ser, por exemplo, se visasse uma reparação escrita ou outra forma de tutela).
 A partir do momento em que o insolvente exige apenas uma indemnização em dinheiro para ressarcimento dos seus danos não patrimoniais, a proteção do interesse dos seus credores, ainda que esteja em causa o aumento do património da massa insolvente, exige sempre que o ato de propositura da ação seja praticado pelo administrador de insolvência, que o substitui para todos os efeitos patrimoniais. O mesmo acontece quando está em causa a exigência do insolvente relativa à restituição da quantia de 150,01 euros que alega ser sua e que lhe foi retirada pelo réu instituição bancária.
Ou seja, este Tribunal da Relação discorda desta última jurisprudência apenas na conclusão extraída da respetiva fundamentação jurídica, pois que, contrariamente ao que aí se defende, em todas as situações em que se discutam interesses patrimoniais (que envolvam bens não isentos de penhora), a ação terá de ser proposta pelo administrador de insolvência, ainda que esteja em causa apenas o aumento do património da massa insolvente, só desta forma se acautelando os interesses dos credores.
Concluímos, pois, que a presente ação teria de ter sido proposta pelo administrador de insolvência e não foi.
 A questão que se coloca agora é a de saber se pode, agora, substituir-se o autor pelo administrador de insolvência ou se, pelo contrário, a constatação da existência desta indisponibilidade relativa do autor provoca a absolvição do réu da instância.
Não temos dúvidas que, numa situação como a presente, em que o autor estava já declarado insolvente quando foi proposta a ação e se conclui que não a podia propor, o que está em causa é, de facto, a sua ilegitimidade para a propor.
Não podendo livremente dispor deste bem futuro – que integra a massa insolvente – e, pertencendo o interesse da demanda ao administrador de insolvência -, o autor é parte ilegítima para a propositura da ação, tal como a configurou, o que determina, como acima se disse, a absolvição do réu da instância. 
Cumpre, pois, confirmar o despacho proferido mas, reconhecendo a ilegitimidade do autor, revoga-se o mesmo na parte em que declarou suspensa a instância, absolvendo desta o réu.

Sumário:

1 – A ação destinada à restituição de quantia de que se afirma ser titular e à fixação de uma indemnização por danos não patrimoniais não pode ser proposta por pessoa singular declarada insolvente, na pendência do processo de insolvência.
2 – Estando em causa uma situação de indisponibilidade relativa, o credor insolvente é parte ilegítima para a propositura daquela ação.
3 – Tal ilegitimidade conduz à absolvição do réu da instância e não pode ser suprida pela intervenção do administrador de insolvência e a suspensão da instância tendo em vista o suprimento de uma qualquer situação de incapacidade.

IV – DECISÃO:

Pelo exposto, acordam as Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto, reconhecendo a ilegitimidade do autor insolvente para a propositura desta ação, mas, em consequência desta, absolve-se o réu da instância, revogando-se o segmento da decisão que determinou a sua suspensão.
Custas da ação e do recurso pelo autor, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
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Guimarães, 29/05/2024
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)