Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | ROSÁLIA CUNHA | ||
| Descritores: | ERRO MATERIAL ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 02/20/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, apenas lhe sendo lícito retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos 614º e ss do CPC II - O erro material retificável ao abrigo do nº 1 do art. 614º do CPC tem que “emergir do próprio texto da decisão, tem que se traduzir numa vontade declarada que, do texto da própria decisão, sem margem para dúvidas, se percebe não corresponder a mesma (a vontade declarada) à vontade real do juiz que proferiu a decisão”. III - Se foi reclamado um crédito sem menção de se encontrar garantido por penhor, o qual foi incluído na lista de créditos reconhecidos nos termos em que foi reclamado, lista essa que não foi impugnada e veio a ser homologada, a circunstância de existir um documento junto à reclamação de créditos que alude à existência de penhor, não integra erro material, na aceção do nº 1 do art. 614º do CPC, e não permite que a sentença já transitada em julgado possa ser retificada. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães: RELATÓRIO Nos presentes autos de reclamação de créditos, os quais correm por apenso ao processo em que foi declarada a insolvência da Sociedade EMP01..., Lda., foi proferida sentença, em 15.2.2018, já devidamente transitada em julgado, que homologou a lista de credores reconhecidos, constante de fls. 105 v a 107 dos autos, e efetuou a graduação de créditos relativamente às várias verbas apreendidas no processo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. * Em 1.3.2024 foi apresentado requerimento (ref. Citius 3567289) por:SOCIEDADE TURÍSTICA E HOTELEIRA ... S.A. EMP02... S.A., EMP03... S.A. EMP04... S.A. EMP05... S.A. SOCIEDADE TURÍSTICA E HOTELEIRA QUINTA ... LDA. EMP06... LDA. AA BB. Os requerentes alegaram, em síntese, que não foi referido na reclamação de créditos apresentada pela Banco 1... um penhor de 2 950 000,00 €, em moeda estrangeira, dado como garantia do crédito reclamado por essa entidade bancária. O penhor não foi apreendido pelo administrador da insolvência. Na lista de créditos reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência também não consta o referido penhor. Em consequência, a sentença que verificou e graduou os créditos não teve o mesmo em consideração. Esse penhor existe, conforme foi dado como provado na sentença proferida nos autos 1073/20...., no ponto 1080. Assim, consideram que existe um manifesto lapso na sentença que deverá ser corrigido. Com base nesta alegação peticionaram que: - se ordene a retificação oficiosa da "Lista de Créditos Reconhecidos e Graduados" à Banco 1... S.A. na Massa insolvente da SOCIEDADE AGRÍCOLA EMP01... LDA, devendo o administrador da insolvência realizar a apreensão junto da Banco 1... e incluir o penhor no valor € 2 950 000,00, acrescido do seu rendimento de mais de 22 anos, dado de garantia pela insolvente e deduzir o seu saldo na reclamação de créditos; - se determine a notificação do administrador da insolvência para apresentar a lista de credores retificada na qual constem os créditos da Banco 1... corretos, prosseguindo os autos os seus ulteriores termos processuais, abrindo-se apenas quanto a esses créditos o prazo de impugnação. Com o requerimento juntaram diversos documentos, arrolaram prova testemunhal e pediram a prestação de declarações de parte * Este requerimento foi apreciado por despacho proferido em 7.3.2024 (ref. Citius 39330894), o qual contém o seguinte dispositivo:“Pelo exposto, nos termos do artigo 613º nº 1, do CPC, esgotado que está o poder jurisdicional, indefere-se liminarmente o requerido.” * Os requerentes não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:“1. Consideram os requerentes que o despacho recorrido padece de uma deficiente análise dos factos e da respetiva subsunção dos mesmos no direito. Nomeadamente, por considerarem que que o poder jurisdicional do douto Tribunal não está esgotado, diferentemente do que considera o Tribunal a quo, face ao manifesto lapso material em que assenta a sentença de graduação e homologação de créditos e também por considerarem que sempre tem interesse em agir e como tal, são parte legitima na presente demanda. II. O princípio da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão, à semelhança do que acontece com a generalidade dos princípios, não tem natureza absoluta. Os "erros materiais" podem ser corrigidos a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento das partes, enquanto o processo, em caso de recurso, não subir. Se nenhuma das partes recorrer, e mesmo que a sentença, acórdão ou despacho transite em julgado, a retificação dos "erros materiais" pode ser realizada, a todo o tempo, mesmo após o respetivo trânsito em julgado, oficiosamente ou a requerimento das partes. IV. No caso dos autos, depois de declarada a insolvência da "SOCIEDADE AGRICOLA EMP01... LDA." nos presentes autos, transitada a 3 de novembro de 2015, a Banco 1... S.A., atempadamente, RECLAMOU CRÉDITOS. V. Nomeando para o efeito, na reclamação, quatro contratos que estariam em incumprimento, Foram graduados e homologados conforme reclamado, por sentença de graduação e homologação de créditos, proferida em fevereiro de 2018. VI. Não vem referido na reclamação um PENHOR de 2 milhões e 950 mil euros, em moeda estrangeira, conforme consta dos documentos que instruíram a reclamação e que foi dado de garantia para o crédito reclamado, como mais, o rendimento e os juros legais. Esse valor global está em "falta" na Reclamação de Créditos da Banco 1..., como também da sentença que os homologou e graduou. VII. De resto, tal penhor, resulta dado como provado na sentença proferida à margem dos autos 1073/20.... no ponto 1080 - da factualidade dada como provada "Em relação ao crédito (contrato de mútuo) de € 4 500 000,00, pata além da fiança, foram dados como penhor o equipamento industrial no valor de € 1 200 000,00 e uma aplicação financeira em moeda estrangeira de € 2 950 000,00," VIII. A elaboração da sentença (sem qualquer impugnação não forma caso julgado) padeceu de um erro manifesto, patente e evidente, ao não incluir o penhor acima referido, porquanto o mesmo constar das peças do processo para que a decisão remete. IX. Esta omissão em que incorreu o julgador ao não considerar, na sentença de verificação e graduação de créditos, o penhor no valor de C 2 950 000,00, que resulta dos documentos dos quais a Banco 1... instruiu a sua reclamação de créditos, é ostensiva, evidente, manifesta, de modo a poder ser detetável por qualquer observador externo médio que procedesse à leitura dessa sentença e do documento para o qual remete , de forma a deixar intocado o caso julgado material que cobre essa sentença, X. Mal andou o douto Tribunal ao ter considerado que o peticionado "configura antes uma alteração do decidido" pois que, pelo acima exposto e, salvo melhor opinião, configura antes um erro material que pode e deve ser retificado. XI. Por outra banda, "o processo de insolvência é um processo de execução universal o qual, visa a satisfação dos credores com a consequente liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores... ", e assim sendo, a apreensão do penhor, sempre visa a satisfação dos credores. A decisão ora recorrida viola a finalidade a que se destina o processo de insolvência, o que evidencia o erro em que assenta. XII. Não obstante os argumentos acima aduzidos, este é um caso em que se tem de permitir impugnação diferida da sentença de graduação e homologação de créditos, também por terem sido alegados factos de conhecimento oficioso, que os requerentes podem alegar em qualquer fase da causa (art. 660.º n. 2, 2a parte do cpc, ex. vi art. 17.º do CIRE). XIII. Como resulta do artigo 130.0 do CIRE, existe um desvio ao efeito preclusivo de falta de impugnação dos créditos reconhecidos e graduados, quando assente em erro manifesto a sentença. Sendo que, por erro manifesto, deve ter-se, seguramente, também a não inclusão de um penhor que era evidente dos documentos que instruiu a reclamação de créditos da Banco 1... nos presentes autos. XIV. Este "erro manifesto" tem latitude e elasticidade para conferir ao juiz, o poder dever de analisar a lista elaborada em cumprimento do art.0 129. 0, n. Os 1 a 3, e não a homologar ao abrigo do n. 3 do art. 130.º do CIRE. O conceito deve ser interpretado de forma ampla. XV. Em qualquer fase do processo de insolvência, enquanto o mesmo decorrer, sempre está na disponibilidade do juiz e é seu poder/dever aferir de questões que não pode deixar de conhecer, como é o caso do erro manifesto da lista de credores apresentados pelo A.I. no processo de insolvência, porquanto esta questão ter repercussões intrínsecas a todo o processo de insolvência e este ainda não ter findo. XVI. A sentença de homologação lavrou no mesmo erro, acentuando ainda mais a injustiça dos presentes autos e que se está a refletir extra processualmente. Que só pelo presente poderá ser atenuada, se procedente. XVII. Só a correção oficiosa do crédito da Banco 1..., na Lista de Créditos Reconhecidos e Graduados na insolvência da EMP01..., que por ter lavrado em erro manifesto na sua constituição, permite repor um pouco da justiça contra a insolvente. XVIII. A manutenção deste erro manifesto, suscetível de afetar direitos dos credores, os princípios do contraditório e da igualdade substancial das partes, é uma omissão de acto que a lei prescreve como suscetível de produzir nulidade efetiva do processado por, sem dúvida, influir no exame e na decisão da causa (artigo 195. 0 do CPC). XIX. Sendo de conhecimento oficioso, por o tribunal não estar isentado de proceder ao controlo da lista de credores e podendo para tal atender a todos os elementos constantes do processo ou proceder à sua indagação oficiosa, a questão que envolve o requerido também pode ser alegada em qualquer fase da reclamação de créditos até ao término do processo de insolvência. XX. Os requerentes também têm legitimidade ativa para o presente incidente da instância, diferentemente do que nos diz o despacho recorrido. XXL. Eram fiadores da insolvente nos créditos reclamados pela Banco 1... nos presentes autos e a legitimidade dos requerentes está assegurada, conforme dispõe o artigo 637,0 do Cód. Civil que nos diz: "Além dos meios de defesa que lhe são próprios, o fiador tem o direito de opor ao credor aqueles que competem ao devedor, " Sendo o devedor parte legitima, com a possibilidade da utilização deste meio de defesa, sempre têm de ser permitido aos requerentes a utilização do mesmo, sendo parte legitima. XXIII. Assim, face ao acima exposto deve o despacho recorrido ser revogado, julgando-se procedente a pretensão dos requerentes, da correção oficiosa da lista de créditos reconhecidos e graduados à Banco 1... nos presentes autos, com a respetiva apreensão de todas as garantias constantes dos documentos que instruíram a reclamação de créditos.” Terminaram pedindo que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, seja ordenada a retificação oficiosa da "Lista de Créditos Reconhecidos e Graduados" à Banco 1... S.A. na Massa insolvente da SOCIEDADE AGRÍCOLA EMP01... LDA., devendo o administrador da insolvência realizar a apreensão junto da Banco 1.... e incluir o penhor no valor € 2 950 000,00, acrescido do seu rendimento de mais de 22 anos, dado de garantia pela insolvente e ainda deduzir ao seu saldo na reclamação de créditos. * Não foram apresentadas contra-alegações.* O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.* Foram colhidos os vistos legais.OBJETO DO RECURSO Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso. Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras. Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes. Neste enquadramento, a questão relevante a decidir consiste em saber se a alteração da sentença de verificação e graduação de créditos, já transitada em julgado, pretendida pelos recorrentes, pode ter lugar, por integrar um erro material, passível de correção, ou se, pelo contrário, extravasa tal conceito e, consequentemente, se encontra vedada por via do esgotamento do poder jurisdicional. De referir que a legitimidade dos requerentes não integra uma questão a decidir no recurso. Com efeito, embora a decisão recorrida na sua fundamentação faça alusão à sua falta de legitimidade, não foi com esse fundamento que indeferiu a pretensão manifestada pelos mesmos, mas unicamente com base na circunstância de a sentença estar transitada e a alteração pretendida não constituir um erro manifesto, enquadrável nas situações em que o art. 614º do CPC permite a alteração de uma decisão já transitada em julgado. FUNDAMENTAÇÃO FUNDAMENTOS DE FACTO Os factos a considerar são os que se encontram descritos no relatório e resultam do iter processual. FUNDAMENTOS DE DIREITO Como se disse, a questão relevante a decidir consiste em saber se a alteração da sentença de verificação e graduação de créditos, já transitada em julgado, pretendida pelos recorrentes, pode ter lugar, por integrar um erro material, passível de correção, ou se, pelo contrário, extravasa tal conceito e, consequentemente, se encontra vedada por via do esgotamento do poder jurisdicional. Dispõe o art. 613º, nº 1, do CPC (diploma ao qual se referem as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem), que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Esta norma é aplicável aos despachos, com as necessárias adaptações, por força do estatuído no nº 3 do art. 613º. O princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias. Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão” (Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 174). Como já referia Alberto dos Reis em anotação ao anterior art. 666º, correspondente ao atual 613º, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática. “Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se lògicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se. A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão” (Alberto dos Reis in CPC Anotado, Vol. V, pág. 127). Portanto, da extinção do poder jurisdicional decorre esta consequência irrecusável: o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada (cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 17.4.2012, Relator Henrique Antunes, in www.dgsi.pt). Prolatada a decisão, e ressalvados os casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades, por força do esgotamento do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade de essa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, apenas sendo possível obter a sua alteração através de recurso que dela venha ser interposto. Como tal, podemos afirmar que da “extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in CPC Anotado, 2ª ed., Vol. I, pág. 762). A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto, no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão. Se o tribunal, em desrespeito do comando ínsito no art. 613º, nº 1 (e fora dos ressalvados casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades) proferir outra decisão que incida sobre a mesma matéria que já foi anteriormente apreciada, a nova decisão padece do vício de ineficácia por ter sido proferida em momento e circunstâncias em que o aludido poder jurisdicional já se tinha esgotado. O princípio do esgotamento do poder jurisdicional admite as limitações enunciadas no nº 2 do art. 613º, o qual prescreve que é lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes. No caso importa analisar a limitação atinente à retificação de erros materiais, prevista no art. 614º o qual estatui que: 1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. 2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação. 3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo. Conforme nos dá nota de forma esclarecedora Alberto dos Reis (in CPC Anotado, Vol. V, pág. 130), “importa distinguir cuidadosamente o erro material do erro de julgamento. O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz, logo a seguir, se convença de que errou, não pode emendar o erro.” Em sentido idêntico, afirma Lucas Ferreira (in Direito Processual Civil, Vol. II, pág. 377) que o “erro de cálculo ou de escrita (lapsus calami) deve emergir do próprio contexto da sentença ou das peças do processo para que ela remeta”, sendo também retificáveis, “para além desses erros, quaisquer outras inexatidões que tenham na sua génese a expressão na sentença de uma vontade (declarada) não correspondente à vontade (real) do juiz prolator. Erros materiais que, por isso, não se confundem com erros de julgamento”. De forma alinhada com este entendimento referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (in CPC Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 615), citando um acórdão da Relação de Guimarães, de 22.11.2018, P 56/18, que “[o] erro material só pode ser retificado se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto; é preciso que, ao ler o texto, se veja que há erro e logo se entenda o que se queria dizer.” De relembrar que as regras da interpretação dos negócios jurídicos constantes dos arts. 236º e ss do CC são aplicáveis à interpretação das sentenças enquanto atos jurídicos, por força do disposto no artº 295º do CC. Sendo as decisões judiciais atos formais, amplamente regulamentados pela lei de processo, tem de se lhes aplicar a regra fundamental constante do nº 2 do art. 238º do CC segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso Assim, e em jeito de conclusão, podemos afirmar que “o erro material tem que emergir do próprio texto da decisão, tem que se traduzir numa vontade declarada que, do texto da própria decisão, sem margem para dúvidas, se percebe não corresponder a mesma (a vontade declarada) à vontade real do juiz que proferiu a decisão” (Acórdão do STJ, de 13.7.2021, P 380/19.4T8OLH-D.E1.S1 in www.dgsi.pt, com sublinhado nosso). Como nos dá conta o acórdão do STJ, de 10.2.2022 (P 529/17.1T8AVV-A.G1.S1 in www.dgsi.pt), a posição “de que é o próprio contexto da sentença que vai fornecer a demonstração necessária do erro material, é sufragada em arestos vários do STJ, Assim, inter alios: Ac. STJ de 26.11.2015: “não pode ser qualificada como rectificação uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorrecção material se não detectava da leitura do respectivo texto”. Ac. do STJ de 22/11/2018: escreveu-se ali que “…é preciso que, ao ler o texto logo se veja que há erro e logo se entenda o que o interessado queria dizer.” Posição que foi igualmente afirmada no recente aresto deste Supremo Tribunal, de 13.07.2021 (...) assim sumariado: “I- Existe erro material quando o juiz escreve coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou do despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. II - Erro material este que tem de emergir do próprio texto da decisão, ou seja, é o próprio texto da decisão que há-de permitir ver e perceber que a vontade declarada não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão.” Transpondo estas considerações para o caso concreto, resulta, em nosso entender, e com o devido respeito por opinião contrária, que do texto da sentença de verificação e graduação de créditos não resulta a existência de qualquer lapso manifesto na aceção do art. 614º, nº 1 e de acordo com a noção que supra delineámos. O lapso que os requerentes referem é exterior à sentença e resulta de na reclamação de créditos apresentada pela Banco 1... não ter sido referida a existência do penhor. Debrucemo-nos mais detidamente sobre esta situação. Em primeiro lugar, sintomático de que o lapso não é manifesto, no sentido de ostensivo, evidente, visível e imediatamente apreensível pela mera leitura da decisão, é a circunstância de os requerentes terem tido a necessidade de apresentar um requerimento com 34 páginas para explicar a existência desse lapso, além de terem junto diversos documentos, arrolado prova testemunhal e pedido a prestação de declarações de parte. Ou seja, para justificarem o lapso em questão, recorreram a vários elementos externos à decisão, o que, por si só, significa que o lapso não decorre da própria decisão. Na verdade, o que sucedeu no caso em apreço foi que a Banco 1... reclamou créditos que detinha sobre a sociedade insolvente e mencionou várias garantias de que tais créditos beneficiavam, mas não mencionou a existência do penhor de aplicações financeiras em moeda estrangeira no valor de 2 950 000,00 € constituído por BB, AA e BB. Este penhor é apenas mencionado nos documentos 24 a 43. Consequentemente, na lista de créditos reconhecidos não consta a existência do penhor de aplicações financeiras em moeda estrangeira. Por sua vez, a sentença homologou a lista de créditos reconhecidos que foi apresentada e não teve em conta o penhor de aplicações financeiras em moeda estrangeira visto que o mesmo não constava nem da reclamação apresentada, nem da lista de credores reconhecidos juntas aos autos. Portanto, o lapso está na reclamação e não na lista de créditos ou na sentença que a homologou. Acresce que, contrariamente ao que os recorrentes defendem, nenhum declaratório médio lendo a sentença e os documentos para os quais remete e que são apenas a lista de créditos reconhecidos, veria imediatamente que há nela um erro. O erro só se deteta lendo todos os documentos anexos à reclamação de créditos. Do explanado decorre que não há nenhum lapso na sentença, muito menos um lapso evidente enquadrável no art. 614º, nº 1, do CPC. O lapso invocado tem a ver com os termos em que os créditos da Banco 1... foram reclamados. Ora, tendo a sentença transitado em julgado e estando esgotado o poder jurisdicional, o alegado lapso não pode ser agora corrigido, pois tal implicaria uma alteração do anteriormente decidido e, inclusivamente, a reabertura parcial da tramitação da reclamação de créditos, pois os próprios recorrentes pedem que seja ordenada a retificação oficiosa da "Lista de Créditos Reconhecidos e Graduados" à Banco 1... S.A. na Massa insolvente da SOCIEDADE AGRÍCOLA EMP01... LDA, devendo o administrador da insolvência realizar a apreensão junto da Banco 1.... e incluir o penhor no valor € 2 950 000,00, acrescido do seu rendimento de mais de 22 anos, dado de garantia pela insolvente e ainda deduzir ao seu saldo na reclamação de créditos. Tal não é legalmente possível, como já explanámos. As considerações feitas pelos recorrentes no sentido de que o processo de insolvência ainda não findou e o penhor deve ser apreendido não têm qualquer relevância jurídica no que concerne à possibilidade de retificar a sentença de graduação de créditos por existência de erro manifesto enquadrável no nº 1 do art. 614º, sendo matéria que extravasa em absoluto o âmbito do objeto do recurso, não havendo que emitir pronúncia sobre a mesma. Também não tem sustentação jurídica a argumentação de que, face ao princípio do inquisitório que vigora no processo de insolvência, se tem de permitir uma impugnação diferida da sentença de graduação de créditos, pois tal forma de impugnação não se encontra prevista na lei e não decorre do princípio do inquisitório previsto no art. 11º do CIRE, o qual em nada bule com o esgotamento do poder jurisdicional e o trânsito em julgado das decisões, limitando-se a permitir que a decisão do juiz se possa fundar em factos que não tenham sido alegados pelas partes. O invocado art. 130º, nº 3, do CIRE, que permite que, apesar da lista de créditos não ser impugnada, a mesma não seja homologada pelo juiz por conter um erro manifesto, também não tem aplicação depois de a sentença ter sido proferida e ter transitado em julgado. Se a sentença homologou a lista, apesar da mesma conter um erro manifesto, tal é fundamento de recurso da sentença homologatória por violação do disposto no art. 130º, nº 3, do CIRE. Porém, se, não obstante a existência de lapso manifesto na lista, o juiz não o detetou e a homologou e não foi interposto recurso dessa decisão, a mesma transitou em julgado e tornou-se imutável, só podendo ser modificada nos casos previstos nos arts. 613º ess, como já supra explicámos e analisámos de forma detalhada quanto ao nº 1 do art. 614º. E, por assim ser, ao contrário do que os recorrentes propugnam, não é possível ao juiz, enquanto o processo de insolvência decorrer, aferir de questões relativas ao erro manifesto da lista de credores por ser uma questão com repercussões intrínsecas. O juiz encontra-se limitado pelo princípio do esgotamento do poder jurisdicional, consagrado no art. 613º, o qual apenas sofre as limitações constantes dos arts. 614º e ss. Deste modo, falece a argumentação dos recorrentes, pelo que improcede o recurso, sendo de manter a decisão recorrida. * Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.Tendo o recurso sido julgado improcedente, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada. DECISÃO Pelo exposto, acordam as juízas deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida. Custas da apelação pelos recorrentes. Notifique. * Guimarães, 20.2.2025 (Relatora) Rosália Cunha (1º/ª Adjunto/a) Maria Gorete Morais (2º/ª Adjunto/a) Maria João Marques Pinto de Matos |