Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4902/23.8T8BRG.G1
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
ATRIBUIÇÃO DE VIATURA AUTOMÓVEL PARA USO TOTAL
NATUREZA RETRIBUTIVA
SUPRESSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Concluindo-se que a atribuição da viatura automóvel para uso total (em serviço e na vida pessoal) remonta ao próprio acordo que vinculou profissionalmente o autor à ré – logo nesse momento foi atribuída ao autor uma viatura, para este utilizar também na sua vida particular, o que foi até essencial para ele aceitar a proposta de emprego – disponibilização de viatura essa que se verificou desde a admissão do autor e por cerca de onze anos, estamos perante uma prestação em espécie com carácter regular e periódico e um evidente valor patrimonial, que assume a natureza de retribuição.
II - Como assim, a retirada unilateral da viatura constitui uma redução, proibida, da retribuição, mesmo que existam Ordens de Serviço que prevejam que a utilização pessoal da viatura cessa sempre que pela Administração da empregadora seja deliberado nesse sentido.
III – O mero desgaste, preocupação, frustração, sem outros factos, concretos, que clarifiquem as eventuais repercussões negativas da atitude da ré para a pessoa do autor, v.g. para a sua saúde mental, não permitem aquilatar com um mínimo de objectividade e certeza qual o grau de danosidade dessas consequências para o autor, donde não são indemnizáveis a título de danos não patrimoniais.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

AA, com os demais sinais dos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Banco 1..., S.A., também nos autos melhor identificada, pedindo que, condenando esta, o Tribunal:

“a) declare que o direito à atribuição de uma viatura automóvel, para uso exclusivo do autor, pessoal e profissional, suportando o empregador todos os encargos, se encontra entre as condições remuneratórias acordadas entre o autor e a Banco 1..., para a sua admissão, e como tal integra a sua retribuição;
b) declare que o direito à atribuição de uma viatura automóvel para uso exclusivo do autor representava uma vantagem patrimonial, no valor mensal de 800,00 € (oitocentos euros);
c) declare que a decisão da ré de retirar ao autor a viatura automóvel (e deixar de suportar as inerentes despesas) que este utilizava, em exclusivo, para uso profissional e pessoal, constitui uma violação ao disposto no art. 129.º, n.º 1, al. d), do Cód. do Trabalho;
d) condene a ré a fornecer-lhe uma viatura automóvel, dentro da gama que lhe estava atribuída – de marca ... 1.5, para este utilizar em exclusivo, a nível profissional e pessoal, suportando a ré as inerentes despesas;
e) se condene a ré a disponibilizar um lugar de aparcamento para a viatura automóvel a ser atribuída ao autor, suportando aquela todas as despesas;
f) se condene a ré a pagar-lhe a quantia mensal de 800,00 € (oitocentos euros), desde de Novembro de 2017, até à data de atribuição de uma outra viatura automóvel.
Ou se profira uma condenação ilíquida, remetendo o apuramento do quantum devido a esse título para liquidação de sentença.
g) se condene a ré a pagar as aludidas quantias acrescidas dos juros de mora à taxa legal vencidos e vincendos e até integral pagamento;
h) se condene a ré a pagar ao autor o montante de 3.000,00 € (três mil euros), a título de danos não patrimoniais.”

Alegou para o efeito - em síntese, no essencial, já constante da decisão recorrida e a que se adere - que a 6.11.2006 foi admitido para trabalhar, sob a autoridade e direcção da Banco 1... – Instituição Financeira de Crédito, S.A. (Banco 1...), integrada, por fusão, na Banco 1..., S.A (Banco 1...), para desempenhar as funções inerentes à categoria de técnico comercial.
No âmbito das condições remuneratórias acordadas, foi-lhe atribuída uma viatura para uso profissional e pessoal (..., com a matrícula ..-CP-..), o que aliás o determinou a aceitar a proposta de trabalho da Banco 1....
Desde essa data, a viatura foi sempre utilizada exclusivamente pelo autor, quer a nível profissional, quer a nível pessoal, tendo a Banco 1... suportado todas as despesas de impostos, seguros, revisões e manutenções, gasolina, portagens, lavagens e parqueamento inerentes à utilização da referida viatura, inclusivamente nos períodos em que o autor não se encontrava ao serviço, nomeadamente nos dias de trabalho após o horário de trabalho, fins-de-semana, férias e feriados.
Tal atribuição gerou ao autor a convicção de que a viatura era um complemento dado pelo seu trabalho e como tal constituía parte do seu salário.
Entre Novembro de 2006 e Outubro de 2017, ao autor foram atribuídas as viaturas identificadas no art. 8.º da petição, as quais foram por ele usadas, exclusiva e ininterruptamente, quer na vida profissional, quer na vida pessoal, incluindo no gozo das licenças de parentalidade por causa dos seus filhos e nas suas ausências por doença.
A partir de meados de Maio de 2009 e até 2020 o autor esteve a trabalhar na Banco 1... e na EMP01..., S.A. ao abrigo de contratos de cedência, tendo transitado para as referidas sociedades sem prejuízo da antiguidade e demais retribuições pecuniárias, mantendo o direito de uso da viatura atribuída.
No âmbito dos referidos contratos de cedência foram-lhe ainda atribuídos, pelo menos, dois veículos novos identificados no art. 12.º da petição.
A ré continuou a suportar todas as despesas inerentes à utilização da viatura, nomeadamente, impostos, seguros, revisões e manutenções, pneus, lavagens, gasolina (cartão ... Frota), portagens (...), e um lugar de estacionamento pago, quer nos períodos em que o autor se encontrava de serviço, quer após o horário de trabalho, fins-de-semana, férias, feriados e demais momentos de lazer.
O autor contou sempre, desde o início do seu contrato de trabalho, com a viatura para fazer face aos seus compromissos familiares e demais actividades de lazer, pelo que no período de Novembro de 2006 a Outubro de 2017 nunca necessitou de um veículo automóvel a título particular.
No dia 27.10.2017, o Director de RH da Banco 1... enviou um e-mail ao autor, aludindo à “Política Corporativa de Viaturas de Serviço”, vigente no grupo Banco 1... e vertida na Ordem de Serviço nº ...17 da Banco 1... e na Ordem de Serviço nº ...17 da Banco 1..., informando que, por não integrar a categoria de colaboradores com as categorias/funções indicadas nos escalões abrangidos, deveria entregar a viatura até ../../2017.
No mesmo dia (27.10.2017), pelas 16h44m, o Director de RH da Banco 1... enviou um novo e-mail ao autor informando ainda que a ... e o cartão ... Frota deveriam ser entregues até ao dia ../../2017.
O autor teve então de adquirir, para efectuar as suas deslocações particulares, com recurso ao crédito, a viatura ... com a matrícula ..-TS-.., que importou um custo global de 27.501,03 €, ao qual acresce o custo das manutenções e outras despesas.
Atenta a utilização permanente e a título pessoal que o autor fazia do veículo que lhe estava atribuído, o mesmo traduzia-se num benefício económico (valor de retribuição em espécie) de 800,00 €.
Toda esta situação provocou desgaste no autor, pois desde ../../2017 que suportou um aumento de despesas decorrentes da necessidade de adquirir um veículo, com a consequente diminuição de rendimentos do agregado, e viu reduzida a sua qualidade de vida, o que lhe causou insatisfação, stress e intranquilidade.
O autor passou a estar limitado na mobilidade e interacção com os filhos, porque deixou de poder levá-los ao parque, à praia e a outras actividades lúdicas e de lazer, sem suportar custos, além disso a decisão da ré causou-lhe mágoa e frustração.

A ré - tendo-se realizado audiência de partes, malogrou-se, nessa sede, a conciliação - apresentou contestação, onde alegou, em suma, que a viatura que foi atribuída ao autor se destinava a uso profissional, sendo que à generalidade dos técnicos comerciais era atribuída viatura, atendendo às deslocações que tinham de realizar no exercício de funções nas vertentes comercial e administrativa.
Aquando da contratação do autor, já estava em vigor a Ordem de Serviço n.º 6/2003, sucedendo-lhe ainda as n.º 14/2009, n.º 12/2010, n.º 3/2011 e n.º 12/2015.
Ora, conforme consta do art. 4.º da 1.ª, do ponto 6.10 da 2.ª, do ponto 6.11 da 3.ª e da 4.ª e do ponto 7.12 da 5.ª, a utilização da viatura de afectação pessoal cessa, entre outros motivos, sempre que assim seja deliberado nesse sentido.
O autor também desempenhou na ré Banco 1... e no EMP01..., S.A., aquando da respectiva cedência, funções de natureza comercial, desta feita ligadas à actividade imobiliária, motivo pelo qual se mantinha a fundamentação para a atribuição e utilização de uma viatura de serviço.
A viatura nunca foi acordada ou disponibilizada como complemento salarial, sendo uma ferramenta de trabalho.
A Banco 1... não suportava despesas com “parques” ou estacionamento utilizados pelo autor a título pessoal, disponibilizava sim um lugar de estacionamento na imediação das suas instalações, para parqueamento da viatura e reembolsava eventuais custos com parqueamentos decorrentes do uso profissional da mesma.
A cessação da atribuição de viatura de serviço ao autor ficou a dever-se à alteração da política de atribuição de viaturas, de acordo com a Ordem de Serviço n.º ...17, de 11.07.2017, referente à “Política Corporativa de Viaturas de Serviço”, enquadrando a vigência à Banco 1... e às empresas do grupo Banco 1..., ficando actualizados os parâmetros até então existentes e a abrangência de aplicação do citado normativo, deixando de ser atribuídas viaturas de serviço aos Técnicos.
Com origem na citada norma corporativa, foi publicada pela Banco 1..., em 21.09.2017, a Ordem de Serviço n.º ...17 sobre “Politica Corporativa de Viaturas de Serviço”, e, como o autor não se enquadra em qualquer dos escalões de utilizadores previstos no ponto 4.3., teve de entregar da viatura de serviço.
A ré continua a assegurar aos seus trabalhadores as condições de mobilidade necessárias para que executem as suas funções. Para tal, confere-lhes a possibilidade de procederem ao aluguer de viaturas se tal for necessário, para deslocações em serviço, junto da empresa EMP02....
O autor foi notificado para entregar a viatura até ao dia ../../2017, mas como o contrato de locação da sua viatura só cessou a ../../2017, aquele manteve a mesma na sua posse e nas condições descritas até essa última data.
As viaturas de serviço que o autor utilizou sempre lhe foram atribuídas de forma precária e o uso que o mesmo possa ter feito delas, na sua vida privada, constituiu um acto de mera tolerância do empregador, e, portanto, uma mera liberalidade, não assumindo a sua atribuição e o seu uso carácter retributivo.

O autor veio apresentar resposta alegando, no exercício do contraditório, que as ordens de serviço citadas são todas posteriores à sua contratação, com excepção da n.º 6/2003, porém não só esta não foi emitida pela Banco 1..., como não existe deliberação por parte da Banco 1... para a sua aplicação.
Aquela não foi comunicada ao autor, nem foi aceite aquando da sua contratação pela Banco 1....

Prosseguindo os autos, realizou-se audiência de julgamento e, após, a proferiu-se sentença com o seguinte diapositivo:

Pelo exposto, o Tribunal julga a presente acção totalmente procedente, por provada e, consequentemente:
a) declara que o direito à atribuição de uma viatura automóvel ao autor, para seu uso exclusivo, quer pessoal quer profissional, sem qualquer limite, suportando o empregador todos os encargos para o efeito, se encontra entre as condições remuneratórias acordadas entre o autor e a Banco 1..., para a sua admissão, e como tal integra a sua retribuição;
b) declara que a decisão unilateral da ré de retirar ao autor a viatura automóvel (e inerentes despesas) que este utilizava, em exclusivo, para uso profissional e pessoal, constitui uma violação ao disposto no art. 129.º, n.º 1, al. d), do Cód. do Trabalho;
c) condena a ré a fornecer ao autor uma viatura automóvel, dentro da gama que lhe estava atribuída – de marca ... 1.5-, para este utilizar em exclusivo, a nível profissional e pessoal, sem qualquer limite, suportando a ré as despesas inerentes à sua manutenção e circulação;
d) condena a ré a disponibilizar um lugar de aparcamento para a viatura automóvel a ser atribuída ao autor, suportando aquela todas as despesas;
e) condena a ré a pagar ao autor o montante de 1.000,00 Eur. (mil euros), a título de danos não patrimoniais;
f) condena a ré a pagar ao autor as quantias correspondentes à retribuição em espécie constituída pela utilização pessoal do veículo automóvel que lhe estava atribuído e de que esteve privado desde ../../2017, até ao dia em que lhe fornecer outra viatura, cujo apuramento se relega para incidente de liquidação de sentença, acrescidos de juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da data do trânsito da decisão da respectiva liquidação.

Custas a cargo da ré, sendo que em relação à parte do pedido que se remete para liquidação, provisoriamente se condena igualmente a ré.
Quanto ao pedido de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial, são as custas a cargo do autor e da ré, na proporção do decaimento. Registe e notifique.”

Inconformada com esta decisão, dela veio a ré interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“1. O presente recurso vem interposto da douta sentença de Fls.  , que julgou totalmente procedente a acção, condenado a Recorrente nos termos que dela constam.
2. A Recorrente não se conforma com a douta sentença recorrida pois, salvo o devido respeito que é muito, a Meritíssima Juiz a quo errou no julgamento que fez.
3. A douta sentença recorrida representa uma condenação – sempre salvo o devido respeito – injusta, que decorre quer de uma errada fixação da matéria de facto quer de uma errada aplicação do direito aos factos provados.
4. Não obstante se reconhecer a profundidade da análise feita na douta sentença recorrida quanto à prova produzida, a Recorrente impugna a matéria de facto dada por provada, pois entende que há factos que foram julgados provados e não o deveriam ter sido e há um facto julgado não provado que deveria ter sido.
5. Os factos que a Recorrente impugna são os vertidos nos pontos 18., 19. e 20. dos factos provados.
6. O facto não provado em 2. deve, face à prova produzida, ser aditado aos factos provados.
7. A fundamentação dada pela douta sentença recorrida para prova dos factos 18., 19. e 20. assentou das declarações de parte do Autor e, especificamente quanto ao facto 20., também no depoimento da testemunha BB.
8. Sucede que se provou também o que consta dos factos 29 a 35, de onde, sinteticamente, decorre que desde 2003 vigoraram na Banco 1... sucessivas Ordens de Serviço, sendo a primeira a Ordem de Serviço 6/2003, que previam expressamente o que “A utilização da viatura de afectação pessoal cessa nas seguintes condições: (…) d) Sempre que seja deliberado nesse sentido.”
9. Sustentam a impugnação da matéria de facto os depoimentos da testemunha CC cujo depoimento ficou gravado no suporte do dia 29/01/2024, com início às 10:12 e fim às 10:53, aos minutos 20:37, aos minutos 15:42 e aos minutos 8:13, e de BB cujo depoimento se encontra gravado no suporte do dia 29/01/2024, com início às 10:54 e fim às 11:20, aos minutos 23:40 que acima se transcrevem e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
10. Ao contrário do que concluiu a douta sentença recorrida, a atribuição das viaturas de serviço, em concreto no que ao Recorrido diz respeito, não podia ter criado qualquer expectativa, menos ainda qualquer direito, na medida em que a sua atribuição podia cessar a todo o tempo, nos termos das OS que sucessivamente vigoraram na Banco 1....
11. A douta fundamentação da sentença recorrida, quanto aos factos em crise, não pode proceder.
12. Primeiro, porque se provou que as OS vigoraram efectivamente na Banco 1..., e à data da contratação do Recorrido pela Banco 1... vigorava a OS 6/2003, onde expressamente constava a possibilidade de cessação da atribuição da viatura. Se a OS estava em vigor na Banco 1... – e disponível na intranet como afirmado pela testemunha CC – é óbvio que o Recorrido dela tinha conhecimento.
13. O segmento da fundamentação com o seguinte afirmação: “(…) como não provou a ré ter existido qualquer deliberação para fazer ou continuar a sua aplicação na Banco 1... (..)” está em directa oposição ao facto 35 que tem a seguinte redacção: “35. As sociedades EMP03..., EMP04... e EMP05... foram objecto de fusão e deram origem, a 1 de Janeiro de 2005, à Banco 1..., tendo-se mantido os normativos que estavam em vigor, designadamente a referida Ordem de Serviço n.º 6/2003.”
14. Segundo, porque não houve qualquer estipulação contratual entre a Banco 1... e o Recorrido sentido da atribuição da viatura que afastasse o disposto nas OS.
15. Nem o depoimento da testemunha BB sustenta tal conclusão, pois, pelo contrário, como acima resulta da transcrição feita, a testemunha reconhece que nunca afastou a aplicação das Ordens de Serviço, para o que, de resto e como também reconheceu, não tinha poderes.
16. Da conjugação dos depoimentos transcritos com o teor dos Factos 29. a 35. resulta evidente, salvo o devido respeito, que não havia qualquer razão para o Recorrido criar qualquer expectativa quanto à viatura automóvel e, bem assim, que não houve qualquer estipulação contratual no sentido de afastar o disposto nas OS nem de assegurar a atribuição de qualquer viatura automóvel.
17. Devem, assim, eliminar-se dos factos provados os pontos 18., 19. e 20., o que aqui expressamente se requer.
18. E deve aditar-se aos factos provados o facto que consta do ponto 2. dos factos não provados.
19. A prova deste facto decorre do depoimento da testemunha CC gravado no suporte do dia 29/01/2024, com início às 10:12 e fim às 10:53, aos minutos 8:13 e 9:10 que acima se transcreve e aqui se dá por integralmente reproduzido.
20. O depoimento desta testemunha, ex-trabalhador da Banco 1..., já reformado, é inteiramente credível e coerente, razão pela qual, sempre salvo o devido respeito, a impressão que terá causado na Meritíssima Juiz a quo não é justificável.
21. Em suma, a Recorrente impugna a matéria de facto, com os fundamentos supra expostos, sustentando, nesta Apelação, que: 1) Devem eliminar-se dos factos provados os pontos 18., 19. e 20.; 2) Deve aditar-se aos factos provados o facto que consta do ponto 2. dos factos não provados.
22. As viaturas de serviço que o Recorrido utilizou sempre lhe foram atribuídas de forma precária e o uso que este possa ter feito na sua privada constituiu, como se disse, uma tolerância da Banco 1..., e, portanto, uma mera liberalidade.
23. Isso mesmo decorre da matéria de facto provada, ainda que não proceda a impugnação da matéria de facto deduzida nesta Apelação.
24. Atendendo aos factos provados sob os pontos 30 a 35 resulta evidente, salvo o devido respeito, que o uso privado da viatura de serviço sempre ocorreu num quadro contratual que permitia à Banco 1... fazer cessar a atribuição da viatura.
25. Ao contrário do que concluiu a Meritíssima Juiz a quo, que, recorde-se desconsiderou totalmente o facto 35 – ao ponto de invocar na fundamentação que: “(…) como não provou a ré ter existido qualquer deliberação para fazer ou continuar a sua aplicação na Banco 1... (..)” o que está em directa oposição com o facto 35 – a utilização da viatura de serviço na vida privada, que o Recorrido possa ter feito, sempre decorreu da tolerância da Banco 1... e, portanto, de forma precária.
26. Nunca, em momento algum, a Banco 1... assumiu com o Recorrido qualquer obrigação de lhe disponibilizar uma qualquer viatura de serviço para uso privado/pessoal, nem o Recorrido poderia ter criado essa expectativa – e, muito menos, adquirido esse direito – dado o quadro contratual estabelecido.
27. Tal utilização, não assume o carácter retributivo alegado pelo Recorrido.
28. No sentido do supra exposto, chama-se à colação o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 17/10/2007, disponível in www.dgsi.pt, o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 24/09/2008, disponível in www.dgsi.pt,
29. E, também, como muita relevância por tratar de caso em tudo semelhante ao dos autos, aqui se invoca o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 13.07.2020, processo n.º 9615/18.0T8LSB.L1, que se juntou como DOC. 12 da contestação.
30. E, ainda, também no mesmo sentido, seguiu a douta sentença proferida no processo n.º 2100/22...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo do Trabalho da Maia – Juiz ..., que se juntou como DOC. 13 da contestação.
31. No caso do Recorrido, a cessação da atribuição de viatura de serviço decorreu da alteração da política de atribuição de viaturas, de acordo com a Ordem de Serviço n.º ...17, de 11/07/2017, referente à “Politica Corporativa de Viaturas de Serviço”, enquadrando a vigência à Banco 1... e às Empresas do Grupo Banco 1..., ficando actualizados os parâmetros até então existentes e a abrangência de aplicação do citado normativo, deixando de ser atribuídas viaturas de serviço aos Técnicos, conforme e factos 39 a 43.
32. A cessação de atribuição de uma viatura de serviço ao Recorrido, ao contrário do decidido na douta sentença recorrida, afigura-se lícita.
33. A Recorrente não provocou ao Recorrido quaisquer danos, improcedendo também o pedido indemnizatório por danos não patrimoniais.
34. Ainda que assim não fosse – sem conceder -, o Recorrido não logrou provar quaisquer danos, limitando-se a provar que sofreu “mágoa e frustração”, pelo que, mesmo nesse caso – sempre sem conceder – nenhuma indemnização deverá ser arbitrada.
35. Deve a presente Apelação deve proceder, revogando-se a douta sentença recorrida, in totum, e absolvendo-se a Recorrente de todos os pedidos contra si formulados.
36.       Decidindo como decidiu a douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 96.º do Código do Trabalho de 2003 e nos artigos 129.º, n.º 1, alínea d) e 258.º, n.º 3 ambos do actual Código do Trabalho, e, ainda, o disposto no artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil.”

O autor respondeu(....)
...

Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exm.a Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.

Tal parecer não mereceu qualquer resposta.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enunciam-se então as questões que cumpre apreciar:

- Impugnação da matéria de facto;
- Se a utilização da viatura pelo autor na sua vida pessoal tem natureza retributiva;
- Se estão verificados os pressupostos para aatribuição ao autor de uma indemnização por danos não patrimoniais.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos provados, e não provados, que constam da decisão recorrida são os seguintes:

a) Factos Provados
Os factos provados, com interesse para a decisão a proferir, são os seguintes:
1. A ../../2006 o autor foi admitido, para desempenhar as funções inerentes à categoria de técnico comercial, sob a ordem, autoridade e direcção da sociedade “Banco 1... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” (Banco 1...).
2. Para o desempenho das aludidas funções foi-lhe atribuída uma viatura, de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-CP-...
3. Desde essa data, a viatura foi sempre utilizada exclusivamente pelo autor, suportando a Banco 1... todas as despesas inerentes à circulação dela, sejam os impostos, os seguros, as revisões e manutenções, o combustível, as portagens, as lavagens, bem como assegurava a Banco 1... ao autor um lugar de aparcamento para a viatura próximo das suas instalações.
4. O referido em 3. sucedia, inclusivamente, nos períodos em que o autor não se encontrava ao serviço, nomeadamente, nos dias normais de trabalho após o horário de trabalho, aos fins-de-semana, nas férias e nos feriados.
5. Entre Novembro de 2006 e Outubro de 2017, ao autor foram atribuídas as seguintes viaturas:
- o ..., com a matrícula ..-CP-.., desde Novembro de 2006 até ../../2010);
- o ... 1.5, com a matricula ..-JA-.., desde ../../2010 a Abril de 2014);
- o ... 1.5, com a matrícula ..-OP-.., de Abril de 2014 a Janeiro a 2018.
6. Nos aludidos períodos de tempo, o autor utilizou as viaturas referidas, de forma exclusiva e ininterrupta, quer na vida profissional, quer na vida pessoal, sem limites.
7. Incluindo no gozo das licenças de parentalidade dos seus dois filhos, DD (nascido em 2008) e EE ( nascido em 2014) e nas suas ausências por doença.
8. A partir de meados de Maio de 2009 e até 2020 o autor esteve a trabalhar na “Banco 1..., S.A” (Banco 1...) e na “EMP01..., S.A.”, ao abrigo de sucessivos contratos de cedência celebrados com a Banco 1..., mormente a 05 de Maio de 2009; ../../2013; 28 de Outubro de 2014.
9. O autor transitou para as referidas sociedades, sem prejuízo da antiguidade reportada a ../../2006, mantendo o uso exclusivo da viatura que lhe havia sido atribuída (à data o ... de matrícula ..-CP-.., e depois os ... de matrícula ..-JA-.. e ..-OP-..), e que continuou a utilizar como sempre fizera na Banco 1....
10. Tendo a Banco 1... continuado a liquidar a retribuição e demais complementos auferidos pelo autor, nomeadamente remuneração complementar, isenção do horário de trabalho, subsídio infantil, diuturnidades.
11. Bem como continuou a Banco 1... a suportar todas as despesas inerentes à utilização e manutenção das aludidas viaturas.
12. Nomeadamente, os impostos, os seguros, as revisões e manutenções, os pneus, lavagens, o combustível através da atribuição de um cartão ... Frota, portagens através da atribuição de um identificador da ..., bem como continuou a Banco 1... a assegurar um lugar de aparcamento para a viatura.
13. Actualmente o autor detém a categoria de Técnico de grau III.
14. Desde ../../2006 que o autor contava com essas viaturas para fazer face aos seus compromissos pessoais, familiares e demais actividades de lazer.
15. Quando o autor se encontrava privado da utilização das referidas viaturas, por questões inerentes à manutenção das mesmas ou por outro motivo, era-lhe disponibilizada uma viatura de substituição, para seu uso exclusivo, sem qualquer custo.
16. Mantendo o autor o direito ao lugar de estacionamento e correndo os encargos de manutenção ou reparação da viatura substituída por conta do empregador, assim como as despesas com gasolina, inspecção periódica ou lavagens.
17. Sendo tais despesas reembolsadas pela Banco 1... ou pelas sociedades a quem o autor foi cedido.
18. A atribuição que foi efectuada ao autor desde Novembro de 2006, gerou-lhe a convicção de que a disponibilização da viatura era um complemento atribuído pelo seu trabalho e como tal constituía parte do seu salário.
19. Mesmo após os contratos de cedência referidos em 8., por manter o autor direito ao uso exclusivo das viaturas, tal continuou a gerar-lhe a convicção de que a disponibilização delas, para uso profissional e pessoal, era um complemento atribuído pelo seu trabalho e como tal constituía parte do seu salário.
20. A referida atribuição da(s) viatura(s) foi essencial para que o autor aceitasse celebrar o contrato de trabalho com a Banco 1... em 2006.
21. A 27 de Outubro de 2017, pelas 11h44m, o Director de Recursos Humanos da ré enviou um e-mail ao autor com o seguinte teor:
«Bom dia, Como é do seu conhecimento, no âmbito da atual “Politica Corporativa de Viaturas de Serviço”, vigente no Grupo Banco 1... e vertida na Ordem de Serviço nº ...17 da Banco 1... e na Ordem de Serviço nº ...17 da Banco 1..., foram definidas as regras no que respeita à aquisição, composição e gestão do parque de viaturas de serviço da Banco 1... e das Empresas do Grupo do Perímetro Doméstico, bem como à atribuição e cessação do respetivo uso, não estando previsto no ponto 4.3. dos normativos a disponibilização de viaturas de serviço a colaboradores com as categorias/funções não indicadas nos quatro escalões. Assim, deverá proceder ao cumprimento dos termos fixados nos normativos em vigor. Para o efeito, informamos que a viatura poderá ser entregue a partir do dia 31, após contacto do EMP06... Compras e Serviços Partilhados, para assegurar os procedimentos logísticos necessários à recolha da viatura.».
22. No mesmo dia, pelas 16h44m, o Director de Recursos Humanos da ré enviou um novo e-mail ao autor com o seguinte teor: «No seguimento da comunicação hoje efectuada, quanto à devolução da viatura, informamos que a ... e o Cartão de Combustível Frota deverão ser entregues ao DGF – Departamento de Gestão de Fornecedores, até ao próximo dia 31 de Outubro.».
23. Após a cessação da atribuição de viatura, o autor fez a aquisição, a título particular, de um veículo automóvel, para efectuar as suas deslocações pessoais.
24. Para tal, recorreu ao crédito, adquirindo em leasing o ..., com a matrícula ..-TS-.., que importou um custo global de 27.501,03 Eur. (vinte e sete euros, quinhentos e um euros e três cêntimos), ao qual acresce o custo das respectivas manutenções e outras despesas.
25. Por força da cessação da atribuição da viatura, o autor viu o seu orçamento familiar afectado, por ter de suportar o encargo com a aquisição de um veículo e de suportar as inerentes despesas de manutenção e circulação.
26. Por força disso, o autor sentiu-se desgastado e preocupado mormente com a redução do valor disponível do orçamento familiar, bem como sentiu mágoa e frustração ante a decisão unilateral da ré.
27. A “Banco 1... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” foi integrada a 31.12.2020, por fusão, na “Banco 1..., S.A.”.
28. Em 2006 era atribuída à generalidade dos técnicos comerciais uma viatura, atendendo às deslocações que tinham de realizar para o exercício da sua actividade.
29. Na ordem interna de organização das sociedades do grupo da ré Banco 1..., vigoraram os seguintes normativos: a Ordem de Serviço 6/2003, a Ordem de Serviço ...09, a Ordem de Serviço ...10, a Ordem de Serviço 3/2011 e a Ordem de Serviço ...15.
30. Segundo o art. 4.º da Ordem de Serviço 6/2003, que vigorava aquando da contratação do autor, “A utilização da viatura de afectação pessoal cessa nas seguintes condições: (…) d) Sempre que seja deliberado nesse sentido.”
31. E, como consta do ponto 6.10 da Ordem de Serviço n.º ...09, “A utilização da viatura de afectação pessoal cessa nas seguintes condições: (…) d) Sempre que seja deliberado nesse sentido.”
32. Como consta do ponto 6.11 da Ordem de Serviço n.º ...10, “A utilização da viatura de afectação pessoal cessa nas seguintes condições: (…) d) Sempre que seja deliberado nesse sentido.”
33. Como consta do ponto 6.11 da Ordem de Serviço n.º 3/2011, “A utilização da viatura de afectação pessoal cessa nas seguintes condições: (…) d) Sempre que seja deliberado nesse sentido.”.
34. Como consta do ponto 7.12 da Ordem de Serviço n.º ...15, “A utilização da viatura de afetação pessoal cessa nas seguintes situações: (…) d) Sempre que seja deliberado nesse sentido, nomeadamente no caso de cessação do exercício das funções que justificaram a sua atribuição.”.
35. As sociedades EMP03..., EMP04... e EMP05... foram objecto de fusão e deram origem, a 1 de Janeiro de 2005, à Banco 1..., tendo-se mantido os normativos que estavam em vigor, designadamente a referida Ordem de Serviço n.º 6/2003.
36. Quer na Banco 1..., quer na Banco 1... e na “EMP01..., S.A.”, nestas ao abrigo dos contratos de cedência referidos, o autor exerceu sempre funções de natureza comercial, desta feita ligadas à actividade imobiliária.
37. No contrato de cedência celebrado a ../../2013 entre a Banco 1..., a Banco 1... e o “EMP01..., S.A.”, o autor é cedido a estas sociedades a tempo parcial, em acumulação com as funções desempenhadas na Banco 1..., e que continuou a desempenhar.
38. Mantendo-se a viatura atribuída, para uso em todas as deslocações que o autor tinha de realizar.
39. Por deliberação da Comissão Executiva da ré Banco 1... de 10.05.2017, foram aprovadas um conjunto de medidas associadas às viaturas de serviço da Banco 1... e das empresas do grupo Banco 1..., sediadas em território nacional.
40. Na sequência do que foi emitida a Ordem de Serviço n.º ...17, de 11.07.2017, referente à “Politica Corporativa de Viaturas de Serviço”, com a actualização dos parâmetros até então existentes, deixando de ser atribuídas viaturas de serviço aos Técnicos.
41. Com origem nesta Ordem de Serviço n.º ...17 da Banco 1..., foi ainda publicada pela Banco 1..., em 21.09.2017, a Ordem de Serviço n.º ...17 sobre “Politica Corporativa de Viaturas de Serviço”.
42. O autor não se enquadra em qualquer dos escalões de utilizadores previstos no ponto 4.3. da referida “Politica Corporativa de Viaturas de Serviço”.
43. Em 27.07.2017, o Director de Recursos Humanos da ré remeteu para os Directores da organização – entre os quais o Director do autor, Sr. Dr. FF - um e-mail sobre o aluguer de viaturas para deslocações em serviço.
44. Sempre que se mostra necessária uma deslocação em serviço, é disponibilizada a opção de aluguer de viatura junto da empresa EMP02....
45. A ré notificou o autor para proceder à entrega da viatura a partir do dia ../../2017, mas como o contrato de locação respectivo só cessou a ../../2017, aquele manteve a viatura de serviço até esta última data.

b) Factos Não Provados

Com interesse para a decisão, resultaram não provados os seguintes factos:
1. A atribuição ao autor da(s) viatura(s) referida(s), destinou-se apenas ao uso profissional, em deslocações de serviço.
2. A utilização que o autor fez, na sua vida pessoal e familiar, das diversas viaturas que lhe foram sendo disponibilizadas, resultou da mera tolerância do seu empregador.
3. No período de Novembro de 2006 a Outubro de 2017, o autor nunca necessitou de um veículo automóvel a título particular.
4. O uso da viatura nas condições descritas equivalia a um complemento mensal de valor não inferior a 800,00 Eur. (oitocentos euros).
5. Em consequência da decisão da ré, com a cessação de atribuição de viatura, o autor viu alterada a sua rotina familiar, pois passou a estar limitado em termos de mobilidade, deslocações e interacção com os filhos.”

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

- Da impugnação da matéria de facto:
(....)    
Assim e concluindo, inexiste prova que determine a pretendida alteração da matéria de facto.
           
- Da natureza retributiva da utilização da viatura pelo autor na sua vida pessoal:
Contendendo com a questão supra enunciada, na decisão recorrida discorreu-se, entre o mais, nos termos seguintes:
Importa assim saber se a utilização das viaturas automóveis atribuídas ao autor pela Banco 1... ou por empresas do grupo Banco 1..., a quem o autor esteve cedido, nos moldes em que o foram, com aqueles a suportar todas as despesas inerentes às mesmas, consubstancia ou não retribuição do autor, no âmbito do contrato de trabalho, isto é, se deve ser considerada uma componente da retribuição e se, consequentemente, a retirada do veículo viola o princípio da irredutibilidade da retribuição.
Atendendo à data de admissão do autor na Banco 1..., vigorava o Código do Trabalho de 2003, no entanto, a utilização das viaturas por parte do autor, nos moldes descritos, perpetuou-se até Novembro de 2017, e por isso, com a vigência do Código do Trabalho de 2009, pelo que importa desde já mencionar os preceitos que definiam e definem o conceito de “retribuição”.
Dispunha então o art. 249.º do Código do Trabalho de 2003, sobre a retribuição, o seguinte:
«1 - Só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho. 2 - Na contrapartida do trabalho inclui-se a retribuição base e todas as prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie. 3 - Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador. 4 - A qualificação de certa prestação como retribuição, nos termos dos n.ºs 1 e 2, determina a aplicação dos regimes de garantia e de tutela dos créditos retributivos previstos neste Código.”

No Código do Trabalho de 2009, o conceito de retribuição consta do art. 258.º, sob a epígrafe, Princípios gerais sobre a retribuição, que dispõe o seguinte:
“1 - Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho. 2 - A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie. 3 - Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador. 4 - À prestação qualificada como retribuição é aplicável o correspondente regime de garantias previsto neste Código.”
Analisados os preceitos é fácil concluir que o conceito de “retribuição” se manteve inalterado no âmbito dos dois diplomas.
A retribuição é assim a contrapartida pelo trabalho prestado pelo trabalhador, que compreende retribuição base e outras prestações, desde que regulares e periódicas, pagas directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie; presumindo-se retribuição qualquer prestação feita pelo empregador ao trabalhador.
A retribuição é um direito do trabalhador que decorre do próprio contrato pois é no contrato de trabalho que se acorda o respectivo valor, a forma como é paga e as prestações que a possam constituir. A retribuição é também um dever do empregador – cfr. art. 127.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho, ficando assim excluídas do conceito de retribuição todas as prestações que os empregadores façam com animus donandi.
Como melhor elucida Monteiro Fernandes, reportando-se ao actual art. 258.º, a noção legal de retribuição consiste no conjunto de valores (pecuniários ou não) que o empregador está obrigado a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da actividade por ele desempenhada (ou, mais rigorosamente, da disponibilidade da força de trabalho por ele oferecida). – no seu “Direito do Trabalho”, 14.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 479.
Assim, esta noção de retribuição abrange quer a retribuição base, isto é, “aquela que, nos termos do contrato ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, corresponde ao exercício da actividade desempenhada pelo trabalhador de acordo com o período normal de trabalho que tenha sido definido”, quer todas as demais prestações que tenham carácter regular e periódico, feitas directa ou indirectamente, em dinheiro ou espécie, quer seja por força da lei, quer por imposição de instrumento de regulamentação colectiva ou, ainda, decorrente de prática da empresa, também elas correspondendo ao direito do trabalhador como contrapartida do seu trabalho.
Sucede que, a lei não diz quando deve considerar-se que uma prestação é regular e periódica, nem estabelece um critério para calcular um valor médio.
Com a expressão “regular”, a lei refere-se a uma prestação não arbitrária, que segue uma regra permanente, sendo, pois, constante. E ao exigir o carácter “periódico” para que a prestação se integre na retribuição, a lei considera que ela deve ser paga em períodos certos no tempo ou aproximadamente certos, de forma a inserir-se na própria ideia de periodicidade típica do contrato de trabalho e das necessidades recíprocas dos contraentes. - cfr. o acórdão do STJ de 13.01.93, na CJ/STJ, Ano I, Tomo I, pág. 226; e o acórdão da Relação de Lisboa de 08.11.2006, este disponível em www.dgsi.pt.
Sucede ainda que, o entendimento da jurisprudência divergiu, quanto a saber quando deve considerar-se, atentos os pagamentos efectuados ao longo de um ano, que determinada prestação é regular e periódica.
O acórdão do STJ de 1.10.2015, que fixou a interpretação da cláusula 12.ª do Regulamento de Remunerações, Reformas e Garantias Sociais, integrado no AE entre a “EMP07..., S.A.” e o SNPVAC, para chegar a essa interpretação acabou por estabelecer um critério orientador que permite aferir o que é e o que não é regular e periódico, em concreto ali escreveu-se que: “considerar-se regular e periódica e, consequentemente, passível de integrar o conceito de retribuição, para os efeitos em causa, a atribuição patrimonial cujo pagamento ocorre todos os meses de atividade do ano”. Há luz deste critério, que vem sendo seguido pela jurisprudência, segundo cremos quase unanimemente, considera-se regular e periódica uma prestação pecuniária que seja paga ao trabalhador pelo menos onze meses no período de um ano de trabalho.
No que se refere à qualificação do direito ao uso de veículo automóvel, no âmbito do contrato de trabalho, tem a jurisprudência entendido que “o uso de veículo automóvel atribuído ao trabalhador pelo empregador tem ou não natureza retributiva (…) conforme se prove que o empregador ficou vinculado a efectuar essa prestação ou a referida atribuição configura um acto de mera tolerância” (cfr. o acórdão de 5.03.1997, em CJSTJ, Ano V, tomo I, pág. 290, e, ainda, os acórdãos do STJ de 20.02.2002, Processo nº 1963/2001, de 15.10.2003, Processo nº 281/2003, de 19.10.2004, Processo nº 2601/2004, de 21.04.2010, Processo nº 2951/04.4TTLSB.S1, e de 27.05.2010, Processo n.º 684/07.9TTSTB.S1) – cfr. acórdão do STJ de 30.04.2014 in www.dgsi.pt.
Os tribunais superiores já se pronunciaram múltiplas vezes quanto à questão de saber se a atribuição de veículo automóvel, atendendo às circunstâncias concretas de cada caso, integra a retribuição do trabalhador ou é um mero instrumento de trabalho e a sua utilização pessoal apenas decorre de tolerância, um acto de liberalidade, da entidade empregadora, sendo patente que a distinção entre uma situação e outra assenta num entendimento convergente. Ilustra-o, em termos elucidativos, o acórdão da Relação do Porto de 17.09.2012 [Processo n.º 749/10.0TTPRT.P1, em www.dgsi.pt], em cuja fundamentação se observa que “sendo a retribuição a contrapartida da actividade prestada pelo trabalhador em sede de contrato individual de trabalho, ela é paga normalmente em numerário. Tal não impede que uma parte da retribuição, pelo menos, não possa ser paga em espécie, como sucede com a atribuição de alimentos, refeições, ou o uso de viaturas. Porém, a utilização de um veículo automóvel da empresa, com todos os custos a cargo desta, tanto pode configurar um mero instrumento de trabalho, porque é usada durante e por causa da prestação laboral, como pode configurar uma parcela da retribuição do trabalhador, quando o empregador autoriza o trabalhador a usar o veículo irrestritamente, para além do horário normal de trabalho, maxime, em fins de semana, feriados e férias. Nesta situação, evitando o trabalhador de adquirir viatura própria para se deslocar de e para o trabalho e em toda a sua vida pessoal e familiar, o empregador confere-lhe uma vantagem patrimonial, suscetível de avaliação em numerário, que integra a designada retribuição em espécie, como se tem entendido [9]”, depois constando na correspondente nota de rodapé: “(Cfr. Júlio Manuel Vieira Gomes, in Direito do Trabalho, volume I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, págs. 775 a 777, Bernardo da Gama Lobo Xavier, com a colaboração de P. Furtado Martins, A. Nunes de Carvalho, Joana Vasconcelos e Tatiana Guerra de Almeida, in Manual de Direito do Trabalho, Verbo, 2011, pág. 550 e Maria do Rosário Palma Ramalho in Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 2006, págs. 551 e 552, nota 657. Na jurisprudência, cfr. in www.dgsi.pt os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de: 2006-02-09, Processo 05B4187; 2006-03-22, Processo 05S3729; 2008-06-18, Processo 07S4480; 2009-11-04, Processo 4/08.5TTAVR.C1.S1, 2011-01-12, Processo 1104/08.7TTSTB.E1.S1 e ).”
Também o acórdão da Relação do Porto, de 24.01.2018 in www.dgsi.pt, a propósito desta concreta questão, decidiu que “Tem natureza de retribuição em espécie a atribuição ao trabalhador de um ligeiro de passageiros para o seu uso exclusivo, na atividade profissional, que este também usava na sua vida privada, 24 horas por dia, feriados, folgas semanais, férias e qualquer outra ausência ao serviço, com conhecimento e aceitação da entidade patronal, suportando esta todos os encargos de manutenção, combustível, seguros e impostos”.
Por último, importa referir o sumário do supra citado acórdão do STJ de 30.04.2014 [Processo n.º 714/11.00TTPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt], onde se lê: «1. Tendo-se provado que o empregador distribuiu ao trabalhador um veículo ligeiro de passageiros para seu uso exclusivo, ficando todos os encargos, manutenção, seguros, portagens e combustível a cargo daquela e que o trabalhador utilizava a viatura para uso exclusivo, nas deslocações da residência para o local de trabalho, nos fins-de-semana e férias, para efeitos pessoais, a mencionada atribuição de veículo automóvel assume natureza retributiva, estando o empregador vinculado a efectuar, com carácter de obrigatoriedade, essa prestação. 2. Tratando-se de uma prestação em espécie com carácter regular e periódico e um evidente valor patrimonial, que assume natureza de retribuição, beneficia, por isso, da garantia de irredutibilidade, prevista nos artigos 21.º, n.º 1, alínea c), da LCT, 122.º, alínea d), do Código do Trabalho de 2003 e 129.º, alínea d), do Código do Trabalho de 2009. 3. Presumindo-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador, competia ao empregador provar que o uso de veículo automóvel atribuído ao trabalhador se tratava de mera liberalidade ou de um acto de mera tolerância, ónus que não se mostra cumprido.».
A defesa da ré funda-se, precisamente, no entendimento de que a utilização que o autor fez das viaturas, que lhe foram sucessivamente atribuídas de 2006 a 2017, fora do horário e dos dias de trabalho – folgas, fins-de-semana, feriados e férias - com o inerente pagamento de todas as despesas por parte da Banco 1... ou da ré, assentava numa mera tolerância do empregador, feita com espírito animus donandi, não fazendo parte da retribuição devida àquele, podendo por isso ser retirado a todo o tempo.
Sucede que, da factualidade dada como provada, nomeadamente sob os pontos 1 a 12, 14 a 20 e 38 resulta que, nas condições de admissão do autor em Novembro de 2006, constava que este teria direito à atribuição e uso de uma viatura automóvel, de certa gama – marca e modelo - com cobertura das despesas inerentes à sua circulação e manutenção pela Banco 1..., sem quaisquer limites.
É certo que essa atribuição visava também assegurar o eficaz desempenho das funções comerciais do autor, razão pela qual a ré insistiu no seu articulado em denominar o veículo atribuído de “viatura de serviço”, que são viaturas que existem para que o trabalhador possa exercer as suas concretas funções, porém, a atribuição das viaturas foi também configurada como um direito a uma viatura, com um valor patrimonial específico, a serem utilizadas pelo autor de forma exclusiva, também nas suas deslocações pessoais em dias normais de trabalho, mas antes ou após o termo do respectivo horário de trabalho, aos fins-de-semana, nas folgas, nos feriados e nas férias.
Acresce ainda que, a Banco 1... atribuiu ao autor um cartão ... Frota, para que fosse assegurado o abastecimento de combustível, bem como lhe forneceu um identificador da ..., para liquidação de portagens, ambos sem limites.
Era também a Banco 1... quem suportava as despesas com o seguro, as de manutenção dos veículos automóveis atribuídos, nomeadamente revisões, inspecções e pneus, incluindo as feitas com veículos de substituição, temporários, cujo valor reembolsava ao autor. Tudo comportamentos que não se afiguram compatíveis com a figura da mera tolerância.
Na verdade, ficou demonstrado que estes comportamentos repetidos, reiterada e ininterruptamente, ao longo de cerca de 11 anos, só ocorriam, porque a utilização das viaturas, nos moldes definidos e com o pagamento de todas as despesas inerentes às mesmas, configurava uma prestação patrimonial a que o autor tinha direito, representando uma inequívoca vantagem patrimonial que com ele foi acordada aquando da contratação, sendo uma das suas condições, configurando uma parte da sua retribuição, razão pela qual a Banco 1... manteve os pagamentos ao longo destes anos.
No entanto, saliente-se que nem sequer competia ao autor provar essa atribuição, atenta a existência de uma presunção a seu favor – cfr. art. 258.º, n.º 3 do CT/09. Na verdade, e dada a dificuldade que por vezes pode ocorrer em qualificar o que é ou não retribuição, o legislador estabeleceu uma presunção: “integra a retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador.”.
No caso, tratando-se de uma inequívoca prestação da Banco 1... (ou da ré ou de empresas do grupo Banco 1..., a quem o autor esteve cedido), era a ré quem tinha de ilidir o carácter retributivo desta prestação, nos termos gerais do art. 350.º, n.º 2 do Código Civil. Tratando-se de uma presunção “juris tantum”, compete ao empregador, provar que as prestações pecuniárias percebidas pelo trabalhador não revestem carácter de retribuição; aos trabalhadores basta provar que recebem as prestações pecuniárias ou em espécie.
Ora, a ré não o logrou fazer, antes pelo contrário, o que resulta provado é que as viaturas foram atribuídas ao autor, para sua utilização total e irrestrita, com o pagamento de todas as despesas pelo empregador, incluindo aos fins de semana, nos feriados, folgas e férias, períodos em que o empregador continuava a suportar todos os encargos, designadamente relativos à manutenção e circulação das viaturas, mormente os seguro, as portagens, o combustível, as idas à oficina, os pneus, etc, o que torna essa prestação com carácter de obrigatoriedade.
Face a tais factos, conclui-se pelo carácter vinculativo da atribuição do uso de veículo, para fins pessoais e profissionais, e a natureza de retribuição desta.
Sendo uma prestação em espécie, com carácter regular e periódico e com valor patrimonial, assume, pois, natureza de retribuição ou configura uma componente da retribuição do autor que lhe é devida, com as inerentes consequências ao nível da sua irredutibilidade, atento ao disposto no art. 129.º, n.º 1, al. d). do Código do Trabalho.”

Concordamos.

A recorrente afirma que “(…) não houve qualquer estipulação contratual entre a Banco 1... e o Recorrido no sentido da atribuição da viatura que afastasse o disposto nas OS.”, mas, com o devido respeito, não tem razão.

Interpretada conjugadamente e em termos hábeis a matéria de facto pertinente – pontos 1. a 12., e 14. a 20., e muito particularmente a factualidade constante deste último número, impõe-se concluir que a atribuição da viatura automóvel para uso total (em serviço e na vida pessoal) remonta ao próprio acordo que vinculou profissionalmente o autor à ré – logo nesse momento foi atribuída ao autor uma viatura, para este utilizar também na sua vida particular, o que foi até essencial para ele aceitar a proposta de emprego.
O que está em causa é pois e antes do mais o cumprimento do acordado, tal como estabelece o art. 406.º n.º 1do CC.

E contra isto não vale esgrimir com a existência das OS ou com a falta de autorização da Administração da ré para ser concedida ao autor tal benesse.

Quanto às OS não deixam se ser pertinentes algumas das observações que o recorrido fez na resposta ao recurso:
As Ordens de Serviço nºs ...09, ...10, ...11 e ...15 foram todas emitidas pela Banco 1... mas são ulteriores à contratação do A. em Novembro de 2006, apenas sendo anterior a Ordem de serviço n.º 6/2003, a qual no seu artigo 6.º ressalva que “situações específicas serão objecto de tratamento casuístico” – cf. doc. junto pela ré com a contestação sob o n.º 1 – OS 6/2003 -, a que se reportam os números 29 e 30 dos factos provados.
De qualquer forma, entendemos que o acordado especificamente em sede de contrato de trabalho afasta a regra, genérica, prevista nas Ordens de Serviço (o que sai até reforçado em razão da citada ressalva).
Relativamente à (eventual) falta de autorização da Administração da ré para que os identificados GG e BB tivessem, alegadamente, oferecido ao autor condições diversas das estabelecidas pela Administração (na medida em que a atribuição de viatura automóvel para uso total tout court/como integrando a retribuição, contrariava o regime constante das Ordens de Serviço identificadas, as quais foram emitidas pela Administração da ré e suas antecessoras), mesmo que se verificasse sempre seria inoponível ao autor, sendo questão cuja relevância sempre haveria de cingir-se ao âmbito das relações entre a ré e os ditos GG e BB.

Mas mesmo que, e sem conceder, se entenda ser de aplicar aqui o regime previsto nas mencionadas OS, revemo-nos no voto de vencido que, estando em causa uma situação semelhante, lavrou a Sra. Desembargadora HH: “Com efeito, a atribuição de veículo para uso pessoal (com todas as outras vantagens envolvidas na atribuição) foi satisfeita regular e periodicamente durante cerca de 14 anos, o que torna muito evidente o seu carácter de "contrapartida" a cargo do empregador, no âmbito da execução do contrato de trabalho, não sendo a meu ver suficiente para indiciar que se trate de uma liberalidade o facto de a ordem de serviço que a R. invoca para a atribuição do veículo prever a sua retirada unilateral.
Sendo reconhecida natureza contratual ao regulamento interno com este conteúdo, as condições nele estabelecidas integram o contrato de trabalho de cada trabalhador abrangido e, se o contrato de trabalho não pode contrariar regras imperativas – art.º 3.º, n.º 4 do CT -, não poderia a ordem de serviço prever que o empregador retirasse, ou diminuísse, a contrapartida retributiva que nela foi convencionada.
Acresce que os factos não revelam terem sido divulgadas aos trabalhadores as ordens de serviço que preveem a possibilidade de o benefício ser retirado por deliberação do empregador, o que seria necessário para presumir a aceitação destes às condições nelas estabelecidas (art.º 104.º do CT de 2009 e 95.º do CT de 2003).
Assim, a meu ver, e salvo melhor opinião, esta retribuição em espécie passou a fazer parte da retribuição do A. e, como tal, está abrangida pelo princípio da irredutibilidade – artigos 129º, nº 1, al. d) e 258º, nº 4, do CT – sendo ilícita a sua retirada unilateral pela R., ainda que prevista na invocada ordem de serviço.[1]

Em suma, estamos perante uma prestação em espécie com carácter regular e periódico e um evidente valor patrimonial, que assume natureza de retribuição nos termos dos artigos 249.º do CT2003 e 258º do CT2009[2].

Como assim, a retirada unilateral da viatura constitui uma redução, proibida, da retribuição – cf. art. 129.º/1 d) do CT.

Assim e nesta parte, não merece censura a decisão recorrida.

- Da indemnização por danos não patrimoniais:
Sustenta a recorrente, em suma, que o recorrido não logrou provar quaisquer danos – que aquela lhe tenha provocado -, limitando-se a provar que sofreu “mágoa e frustração”, pelo que nenhuma indemnização deverá ser arbitrada.

Dispõe o art. 323.º, n.º 1, do CT que “A parte que faltar culposamente ao cumprimento dos seus deveres é responsável pelo prejuízo causado à contraparte.

Por outro lado, o art. 496.º do CC, cuja epígrafe é Danos não patrimoniais, prevê no seu n.º 1 que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”

Do que dissemos supra resulta já que a actuação da ré é ilícita e bem assim censurável.

Vejamos então os danos sofridos pelo autor.
E quanto a estes com eventual relevância apenas descortinamos os provados sob os números 25 e 25 (25. Por força da cessação da atribuição da viatura, o autor viu o seu orçamento familiar afectado, por ter de suportar o encargo com a aquisição de um veículo e de suportar as inerentes despesas de manutenção e circulação. 26. Por força disso, o autor sentiu-se desgastado e preocupado mormente com a redução do valor disponível do orçamento familiar, bem como sentiu mágoa e frustração ante a decisão unilateral da ré.), factualidade que, salvo melhor opinião, é insuficiente para se concluir que os danos não patrimoniais atingem um grau de gravidade que justifica a tutela do direito.

O desgaste, preocupação, frustração, sem outros factos, concretos, que clarifiquem as eventuais repercussões negativas da atitude da ré para a pessoa do autor, v.g. para a sua saúde mental, não permitem aquilatar com um mínimo de objectividade e certeza qual o grau de danosidade dessas consequências para o autor.

Ainda recentemente o Supremo Tribunal de Justiça sintetizou que “VI- Nos termos do art. 496º, do Código Civil, são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, norma da qual resulta ser exigível um quadro de gravidade qualificada, que vá para além dos incómodos e desconforto psicológico normalmente inerentes a determinada situação da vida.[3]

Discordamos, por isso, da decisão de condenação em indemnização por danos não patrimoniais, não obstante reconhecermos a parcimónia na fixação do seu valor.

V - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a decisão recorrida na parte em que condena a ré a pagar ao autor o montante de € 1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais;
Confirmar, no mais, a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente e do recorrido, na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.
Guimarães, 03 de Dezembro de 2024

Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor



[1] Ac. RL de 06-11-2024, Proc. 14734/23.8T8LSB.L1-4, Sérgio Almeida, www.dgsi.pt
[2] Cf. Ac. STJ de 21-04-2010, Proc. 2951/04.4TTLSB.S1, Pinto Hespanhol,  www.dgsi.pt
[3] Ac. STJ de 17881/21.7T8LSB.L2.S1, de 22-05-2024, Mário Belo Morgado, www.dgsi.pt