Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | PAULO CORREIRA SERAFIM | ||
Descritores: | DECISÃO ADMINISTRATIVA FUNDAMENTAÇÃO DESCRIÇÃO DOS FACTOS ELEMENTO SUBJECTIVO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 10/17/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I - Como sucede com o direito penal, também no domínio contraordenacional inexiste punibilidade sem culpa do agente (dolo ou negligência), sem que sobre este se possa realizar um juízo de censurabilidade pela atitude interna adotada face à realização do facto típico. II – Nos termos prescritos no art. 58º, nº1, al. b), do RGCO, a decisão administrativa condenatória deve conter, entre o mais, “a descrição dos factos imputados”. A imputação dos factos, de todos eles, sejam os que sustentam a conduta típica objetiva sejam os que se reportam à culpa do infrator (atuação a título de dolo ou negligência), deve ser operada de modo preciso e concreto, não bastando a alegação genérica, conclusiva ou meramente reprodutora de conceitos jurídicos, porquanto só dessa forma se asseguram as garantias mínimas de defesa constitucionalmente consagradas (art. 32º, nº10 da Constituição da República Portuguesa). III – Não obstante a imposição de fundamentação que se deve dirigir à decisão administrativa condenatória – convolada em “acusação” no caso de recurso de impugnação judicial (art. 62º, nº1, do RGCO) –, o grau e amplitude dessa fundamentação não tem de corresponder necessariamente ao reclamado para a decisão penal, admitindo-se uma menor exigência para aquela, que seja mais concisa, menos intensa, atendendo ao caráter sumário e expedito que preside ao procedimento por contraordenação na fase administrativa, à sua não incidência na liberdade das pessoas e à assaz mitigada ressonância ético-social da contra-ordenação comparativamente ao crime. IV - Encontrando-se imputada à arguida a prática de uma contra-ordenação prevista conjugadamente na alínea a) do n.º 2 do artigo 38º e na alínea d) do nº1 do artigo 15º, ambos do DL 124/2006, de 28.06, conjugado com o n.º 2 do artigo 163º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, punível nos termos do nº1 do art. 38º daquele primeiro diploma legal, a menção factual na decisão administrativa condenatória de que «a) A arguida não agiu com a prudência e cuidado que lhe eram exigíveis e de que era capaz para cumprir as suas obrigações legais. b) Embora soubesse que sobre si recaía essa obrigação legal, não previu o resultado da sua conduta ilícita ou mostrou-se indiferente à produção do mesmo.(…) e) Assim, quanto à culpa, reputa-se a conduta da arguida como negligente, uma vez que deveria ter atuado com o cuidado necessário, pois tinha que ter providenciado pela gestão de combustíveis naquele troço de linha de distribuição de energia elétrica em média tensão, de modo a evitar a ocorrência de possíveis incêndios rurais, que seriam prejudiciais para si e demais população.», satisfaz a exigência legal de descrição dos factos concernentes ao elemento subjetivo da infração contraordenacional em apreço, imputada a título de negligência, mormente porque de outras asserções fácticas constantes da decisão exsuda que essa negligência assumiu a forma inconsciente. V – A inclusão na decisão administrativa dos factos atinentes à culpa da arguida noutro segmento que não o referente à factualidade apurada, sendo imprecisa e pouco adequada do ponto de vista lógico-sistemático da decisão, não deve ser equiparada a uma autêntica carência de alegação de facto, considerando o proeminente princípio da descoberta da verdade material que subjaz à prolação de qualquer decisão, tanto mais que a arguida, através da impugnação judicial que deduziu, revelou perfeita compreensão dos factos que lhe foram imputados na decisão administrativa e do título a que o foram, o que igualmente demonstra que a fundamentação da decisão foi suficiente para permitir o exercício do direito de defesa e, portanto, que a mesma observou as exigências do art. 58º, nº 1 do RGCO. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães: I – RELATÓRIO: I.1 - Por decisão administrativa proferida no dia 25/10/2021 pelo Ministério da Administração Interna – Comando Territorial de ... da Guarda Nacional Republicana – Secção SEPNA, foi aplicada à arguida “E..., S.A.” a coima de €1.600,00, pela prática de uma contra-ordenação prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 38º, conjugado com o n.º 2 do artigo 163º da Lei n.º71/2018, de 31 de dezembro, punível nos termos do nº1 do art. 38º (conforme decisão junta a fls. 63 e ss.). Interposto pela arguida recurso de impugnação judicial daquela decisão administrativa, no âmbito do Processo nº 483/21...., do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Competência Genérica ..., no dia 07/11/2022, pela Exma. Juíza foi proferida sentença com o seguinte dispositivo – depósito no mesmo dia (referências ...90 e ...01, respetivamente): «Pelo exposto, o Tribunal julga procedente o presente recurso e, em consequência decide revogar a decisão proferida pelo Comando Territorial da GNR de ..., Seção SEPNA, no processo de contra-ordenação nº...19, que condenara E..., S.A, pela prática da contra-ordenação prevista nos prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 38º, conjugado com o n.º 2 do artigo 163º da Lei n.º71/2018, de 31 de dezembro, punível nos termos do nº1 do art. 38º.» I.2 - Inconformado com tal decisão, interpôs recurso o Ministério Público (MP), que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...31): “1. A Secção SEPNA do Comando Territorial de ... decidiu condenar a arguida E..., S.A. (agora designada E..., S.A.), na coima de € 1.600,00, pela prática de uma contra-ordenação prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 38.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 163.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro e punível nos termos do n.º 1 do artigo 38.º 2. A arguida E..., S.A. impugnou judicialmente aquela decisão administrativa. 3. O Tribunal a quo proferiu decisão, por despacho, considerando que a decisão administrativa não cumpre os requisitos formais previstos no artigo 58.º, n.º 1 do RGCO, designadamente na descrição dos factos no que ao elemento subjectivo concerne, concluindo, em consequência, que a decisão administrativa padece de nulidade ao não incluir factos que permitam estabelecer a imputação subjetiva da contra-ordenação à ora arguida/recorrente. 4. Como dispõe o normativo vertido no artigo 58.º, n.º 1 do RGCO “A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) a identificação dos arguidos; b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) a coima e as sanções acessórias.”. 5. Os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória contraordenacional visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efetivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Por isso as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos”. 6. A lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, porém, a jurisprudência tem entendido que não se impõe uma fundamentação com o rigor e a exigência que se impõe no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, por várias razões. 7. A lei prescreve que a decisão que aplica a coima deve conter a descrição dos factos imputados, com as provas obtidas, no entanto, diversamente do que sucede com a sentença criminal, o artigo 58.º, n.º 1 do RGCO não exige a indicação dos factos provados e não provados na decisão administrativa condenatória. 8. A decisão administrativa não padece de qualquer nulidade, antes tendo indicado correctamente a atuação, ao nível da negligência, com que a arguida atuou. 9. Com efeito, a autoridade administrativa enunciou os factos que considerava provados num segmento autónomo denominado “Factos provados” e pronunciou-se expressamente sobre o nexo de imputação subjectiva noutro segmento autónomo denominado “Da culpa do agente”. 10. Neste último segmento da decisão, a autoridade administrativa afastou a imputação dos factos a título de dolo e fez constar o seguinte: “a) A arguida não agiu com a prudência e cuidado que lhe eram exigíveis e de que era capaz para cumprir as suas obrigações legais. b) Embora soubesse que sobre si recaía essa obrigação legal, não previu o resultado da sua conduta ilícita ou mostrou-se indiferente à produção do mesmo. c) Não se descortina qualquer facto provado e relevante que retire a censurabilidade à infração por si praticada. d) A ignorância da lei não aproveita a arguida, só afasta a culpa, o dolo ou a negligência, quando desculpável, o que não sucede no presente caso. e) Assim, quanto à culpa, reputa-se a conduta da Arguida como negligente, uma vez que deveria ter atuado com o cuidado necessário, pois tinha que ter providenciado pela gestão de combustíveis naquele troço da linha de distribuição de energia elétrica em média tensão, de modo a evitar a ocorrência de possíveis incêndios rurais, que seriam prejudiciais para si e demais população.”. 11. Resulta assim evidente que a decisão administrativa contém todos os elementos de facto e de direito, conforme estipula o artigo 58.º, n.º 1 do RGCO, fazendo uma clara alusão à atuação negligente da arguida. 12. Tendo a arguida, através da impugnação judicial que deduziu, revelado perfeito entendimento dos factos que lhe foram imputados na decisão administrativa e do título a que o foram, fica demonstrado que a fundamentação da decisão foi suficiente para permitir o exercício do direito de defesa e que a mesma observou as exigências do artigo 58.º, n.º 1 do RGCOC. 13. Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho do Tribunal a quo, ora recorrido, porquanto a decisão administrativa não padece de qualquer nulidade nem de qualquer outro vício, devendo, em consequência os autos prosseguirem a sua normal tramitação, sendo ordenada a prolação de decisão que conheça do mérito da impugnação judicial apresentada pela Arguida. Pelo que dando procedência ao recurso, revogando o despacho recorrido farão Vossas Excelências Justiça.” Na primeira instância, a arguida, notificada do despacho de admissão do recurso formulado pelo MP, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que defende a manutenção da decisão recorrida (referência ...46). Formulou as seguintes conclusões: “I - Face à ausência dos factos constantes da decisão administrativa em apreço nos autos, suscetíveis de integrar o elemento subjetivo, como elemento indispensável à natureza e integração de um ilícito contraordenacional, a mesma é nula (desde logo por violação do disposto na al. a) do nº1 do art. 374º do CPP aplicável ex vi art. 41º do RGCO), devendo ter como consequência única a absolvição da Recorrida. II - A natureza tendencialmente simplificada e com menor cariz formal do procedimento contraordenacional não pode traduzir-se numa justificação para a não descrição de modo inteligível do elemento subjetivo da concreta contraordenação em foco. III - Não é a afirmação, em sede de direito, de uma alegada negligência, que resolve a disfunção nas precedentes e subsequentes considerações sobre a alegada falta de dever de cuidado, da diligência devida com vista à recolha da informação que evitaria a prática da infração. IV - A matéria relativa ao elemento subjetivo do ilícito terá de incluir-se na decisão administrativa pois só assim seria garantido o exercício efetivo do direito de defesa – que de resto é constitucionalmente consagrado – o que não sucedeu no caso em apreço. V - Não é tolerável a ambiguidade em que, neste domínio, incorre a decisão administrativa, inexistindo a devida segurança (na vertente factual) de se estar perante uma imputação ao nível subjetivo e respetivo título. VI - Não se descrevendo na decisão administrativa o elemento subjetivo, sempre se imporia, por falta de tipicidade, a absolvição da Recorrida. VII - Tal omissão (constituindo violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 58.º do RGCOC – determina, por aplicação da al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, ex vi do art. 41.º do primeiro dos referidos diplomas), conduz à nulidade da decisão administrativa que, sendo de conhecimento oficioso, igualmente demarca a inutilização dos termos posteriores do processo no que à ora Recorrida concerne (cf. art.º 122.º do C.P. Penal, supletivamente aplicável). VIII - No que respeita à consequência processual da nulidade da decisão administrativa deverá ter como consequência única a absolvição da Recorrida e não o reenvio do processo para que o Tribunal a quo se pronuncie quanto ao mérito da decisão administrativa, ou, tão pouco, o reenvio do processo à autoridade administrativa. IX - A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão – sem o que nem pode ser considerada decisão tanto no sentido processual como material – tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva, sendo o que dispõe o artigo 41.º do RGCOC sobre o “direito subsidiário”, que determina a aplicação, devidamente adaptada, dos preceitos reguladores do processo criminal. X - A decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contraordenação) e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias. XI - Se procurarmos estabelecer o paralelo com o que se verifica ao nível do processo criminal forçoso é reconhecer que uma acusação infundada – por omissa quanto a uma narração completa e suficiente dos factos (e que, em tese, não obstante poderia até ultrapassar o previsto no artigo 311.º do CPP) – mais tarde, na fase de julgamento, só poderia conduzir à absolvição. XII - Na falta de descrição de todos os elementos do ilícito típico o tribunal não seria possível que o Tribunal se socorresse dos institutos consagrados nos artigos 358.º/359.º do CPP para transformar em crime aquilo que, à luz da acusação/pronúncia, o não era, nem o é (orientação esta que resultou reforçada com a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador n.º 1/2015). XIII - Dada a natureza sancionatória do processo por contraordenação, não se descortina razão válida para que idêntica orientação não seja seguida no âmbito do mesmo, sendo certo que a questão não pode, ao nível das consequências, ser encarada como o que se passa com os vícios, situando-se, antes, a montante de um vício, produzindo uma consequência definitiva (no caso, a absolvição). XIV - No caso dos vertido constata-se inexistir entre a matéria dada como provada, na decisão administrativa, a narração de factualidade concretizadora do tipo subjetivo da contraordenação imputada à “E...” e, de acordo com a citada jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nunca agora seria possível acrescentar novos factos relativos ao elemento subjetivo, porquanto tal significaria alterar substancialmente os factos constantes daquela decisão. XV - Assim, face à total ausência dos factos constantes da decisão administrativa, suscetíveis de integrar o elemento subjetivo, como elemento indispensável à natureza e integração de um ilícito contraordenacional, não restará senão concluir que a mesma é nula, nenhuma censura merece a sentença recorrida, devendo manter-se nos seus exatos termos.” III.3 - Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, remetendo para as alegações do recurso, sustenta a procedência deste (referência ...36). Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP, não foi apresentada resposta. Após redistribuição dos autos, por jubilação da Exma. Desembargadora a quem foram inicialmente distribuídos, efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir. * II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR): É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, CPP)[1], ex vi dos arts. 41º e 74º, nº4, ambos do RGCO. Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa lucidar concernem aos seguintes itens: A) Da (in)existência na decisão administrativa condenatória da factualidade atinente ao elemento subjetivo da contra-ordenação imputada à arguida; B) Em caso de ocorrência dessa omissão, qual a sua consequência jurídica. * III – APRECIAÇÃO: III.1 – Teor da sentença recorrida: «“E..., S.A.” (anteriormente designada E..., S.A.) interpôs recurso da decisão do Comando Territorial de ... da GNR – Seção SEPNA, que a condenou na coima de €1.600,00, pela prática de uma contra-ordenação prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 38º, conjugado com o n.º 2 do artigo 163º da Lei n.º71/2018, de 31 de dezembro, punível nos termos do nº1 do art. 38º, invocando designadamente a não verificação do elemento objetivo e subjetivo; erro na apreciação da matéria de facto e de direito e impugnou os factos. * Admitido o recurso foi proferido despacho a considerar desnecessária a realização da audiência de julgamento porque importava conhecer de questão prévia (designadamente falta do elemento subjetivo), a fim de se evitar a prática de atos inúteis. * Notificados a Magistrada do Ministério Público e a arguida para se pronunciarem, no prazo de 10 dias, se se opõem a que, nos termos do disposto no art. 64.º n.º 2 do Regime Geral das Contra-Ordenações, o presente recurso seja decidido mediante despacho, veio a arguida por requerimento de 10.01.2022 opor-se que a decisão seja proferida por despacho, sem a realização do julgamento e a Digna Magistrada do Ministério Público, por promoção de 13.01.2022, promoveu não se opor a que a decisão nos presentes autos seja decidida através de simples despacho. * Realizou-se a audiência de julgamento.* Questão prejudicial e prévia da nulidade da decisão por falta do elemento subjetivo: Na verdade, percorrendo a decisão em crise, verifica-se que em lado algum se encontram descritos factos imputados à ora arguida/recorrente, que permitam atribuir-lhe a prática da infração citada, ou qualquer outra – cfr. “Dos Factos Imputados ao Arguido”, ou seja, dela não constam, com efeito, os factos que permitam estabelecer a imputação subjetiva da contra-ordenação à ora arguida/recorrente, apenas se concluindo aquando “da determinação da coima”, que atuou de forma negligente sem concretizar os factos provados, em que se baseou para retirar tal conclusão. Tal conduz, inapelavelmente, à nulidade daquela decisão, por via dos art.ºs 58.º, n.º 1, al. a), do R.G.C.O., e 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do C.P. Penal, estes supletivamente aplicáveis, nulidade essa que, sendo de conhecimento oficioso arrasta também a inutilização dos termos posteriores do processo no que à ora arguida/recorrente concerne (cf. art.º 122.º do C.P.Penal, supletivamente aplicável). Assim sendo, é imperioso que constem dos factos imputados ao arguido/recorrente na decisão administrativa, as “ocorrências da vida real”, quaisquer eventos materiais e concretos, mas também relativos ao mundo imaterial (anímico, volitivo, intelectual), uma vez que é esta globalidade que constitui os fundamentos de facto da decisão. Para que sejam asseguradas à arguida/recorrente as garantias mínimas do direito de defesa é essencial que o mesmo seja conhecedor de toda a factualidade que lhe é imputada e que seja suscetível de integrar a prática de um ilícito contra-ordenacional – nesse sentido vide Ac. do STJ, de 10.01.2007 e de 29.01.2007, e do TRE de 08.05.2012, todos in www.dgsi.pt. A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão – sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material – tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta, quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva, sendo que o artigo 41º do RGCO, a propósito do direito subsidiário manda aplicar devidamente adaptados os preceitos reguladores do processo criminal. Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima e que não contenha os elementos que a lei impõe é nula, por aplicação do disposto no art. 374º, nº1, al. a) do CPP, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso, o que decorre da redação do art. 379º, nº2 do C.P.P. quando consagra que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso” – nesse sentido vide entre outros, os Acs. do STJ de 31.05.2001, de 08.11.2001 e de 14.05.2003, todos publicados no Boletim Interno do STJ, nºs. 51, 55 e 71, respetivamente e ainda do STJ o Ac. de 02.02.2005, in CJ, tomo I, p. 188. Ora, analisando agora o caso sub judice, verifica-se que na decisão administrativa condenatória, nenhum facto é imputado à arguida que permita concluir pela imputação subjetiva do ilícito contra-ordenacional, a título de dolo ou de negligência, tal como é exigido no nº1 do artigo 8º do RGCO. Por outro lado, como é referido no Ac. do TRC de 04.10.2006, in www.dgsi.pt: “no processo de impugnação judicial de decisão da autoridade administrativa que impôs uma coima, o juiz pode apurar novos factos sem vinculação ao texto da decisão impugnada, apenas com o limite de não poder alterar substancialmente os factos constantes dessa decisão”. Refere-se ainda no Ac. do TRL de 31.10.2019, in www.dgsi.pt: I - A decisão administrativa, deve obedecer a um limite apropriado no que concerne quer à descrição, que há-de ser concreta e precisa, dos factos praticados que objetivamente integrem a contraordenação em causa na sua vertente objetiva ou material, quer à natureza dolosa ou negligente da atuação a que aqueles factos se reconduzem na sua vertente subjetiva ou culposa; II -Ou seja, a imputação de factos tem de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento contra-ordenacional, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar, e deve, além disso, conter os elementos do tipo subjetivo do ilícito contra-ordenacional e tendo de conter os elementos mínimos exigíveis a uma acusação; III - Estando em falta, na Decisão Administrativa, a narração de factualidade concretizadora do tipo subjetivo da contra-ordenação que é imputada ao arguido, esse hiato, à luz da jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015), não pode ser integrada em julgamento, ou neste caso no recurso de contraordenação interposto para o Tribunal de 1ª instância e logo na sua decisão final, mesmo com recurso ao disposto no art. 358º do CPP; IV - Por conseguinte, será seguro concluir que a decisão administrativa que foi exarada nos autos já era nula, porque omissa em factos concretizadores do tipo subjetivo contraordenacional imputado, e pela qual condenou, o Recorrente e não esquecendo aqui que neste tipo de processos, como atrás se exarou esta reveste a natureza de uma “acusação”. E nula será a sentença recorrida que padece do vício atrás referido, pois “acrescentou” entre o mais os elementos subjetivos que entendeu, e que omissos completamente estavam na decisão administrativa e nem sequer tendo procedido a qualquer comunicação ao abrigo quer do disposto no artigo 358º ou 359º do C.P.P. V - De facto na primeira omitiu-se a referência obrigatória no elenco dos no tocante aos elementos subjetivos, e na sentença ora recorrida, acrescentaram-se, sem mais, aqueles elementos subjetivos, e outros factos, diga-se, e a seu bel prazer, quando tal lhe estava claramente vedado, e nem sequer tendo feito qualquer comunicação nos termos do artigo 358º do C.P.P., a qual no entanto também não seria legalmente admissível, sendo questão que não pode ser revertida por qualquer outro modo legal, ou seja com a sanação de tal nulidade, sob pena de se ignorar o Ac. de fixação de Jurisprudência 1/2015 e tendo como consequência a absolvição do arguido. No caso dos presentes autos, falta, entre o indicado como provado no tocante aos factos imputados ao arguido, na Decisão Administrativa, a narração de factualidade concretizadora do tipo subjetivo da contra-ordenação lhe imputada, falta essa que, à luz da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, não pode ser integrada em julgamento, ou neste caso no recurso de contraordenação interposto para o Tribunal de 1ª instância e logo na sua decisão final, mesmo com recurso ao disposto no artº 358º do CPP. Assim, não é possível agora, acrescentar novos factos relativos ao elemento subjetivo, porquanto tal significaria alterar substancialmente os factos constantes daquela decisão. Ora, face à insuficiência, ou melhor dizendo total ausência dos factos constantes da decisão administrativa, suscetíveis de integrar o elemento subjetivo, como elemento indispensável à natureza e integração de um ilícito contra-ordenacional, não resta senão concluir que a mesma é nula, por violação do disposto na al. a) do nº1 do art. 374º do CPP aplicável ex vi art. 41º do RGCO. Assim a referida decisão administrativa é nula, porque omissa em factos concretizadores do tipo subjetivo contraordenacional imputado à Recorrente. Face à conclusão que antecede, fica prejudicado o conhecimento das outras questões suscitadas pela sociedade arguida/recorrente. * II - DECISÃO:Pelo exposto, o Tribunal julga procedente o presente recurso e, em consequência decide revogar a decisão proferida pelo Comando Territorial da GNR de ..., Seção SEPNA, no processo de contra-ordenação nº...19, que condenara E..., S.A, pela prática da contra-ordenação prevista nos prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 38º, conjugado com o n.º 2 do artigo 163º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, punível nos termos do nº1 do art. 38º. * Sem custas, artigos 93º e nº3 a contrario e 94º, nº4, ambos do RGCO.»III.2 – Conhecimento das concretas questões suscitadas pelo recurso: III.2.1 – Da alegada falta de descrição dos factos concernentes ao elemento subjetivo da contraordenação imputada à arguida: Prescreve o artigo 1º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (doravante abreviadamente designado RGCO): “Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”. Estatui o art. 8º, nº1 do RGCO que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”. Ressuma incontroverso da conjugação dos sobreditos preceitos legais que para que um facto constitua contra-ordenação há de ser culposo – para além de típico e ilícito. Assim, como equivalentemente sucede como o direito penal, também no domínio contraordenacional inexiste punibilidade sem culpa do agente (dolo ou negligência), sem que sobre este se possa realizar um juízo de censurabilidade. O conceito de dolo é fornecido pelo art. 14º do Código Penal (CP) - aplicável por remissão do art. 32º do RGCO -, nos seguintes termos: “1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar. 2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. 3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.” No nº1 prevê-se o dolo direto ou de 1º grau, no nº2 o dolo necessário ou de 2º grau e no nº3 o dolo eventual. No dolo direto o agente pratica o facto típico com a intenção, o fito de o realizar. O agente atua com dolo necessário quando resolve executar determinada conduta, consciente de que ao fazê-lo irá inevitavelmente, de modo causal, cometer o facto típico punível, e ainda assim não se abstém de praticar aqueloutro comportamento. Ocorre dolo eventual quando o agente decide cometer certa conduta prevendo a possibilidade de dela decorrer, como consequência, o facto legalmente punível, não se coibindo de levar a cabo tal atuação. Quanto ao conceito de negligência rege o art. 15º do CP (ex vi do art. 32º do RGCO): “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.” No citado preceito legal prevêem-se duas formas de negligência: a consciente, descrita na alínea a), e a inconsciente, definida na alínea b). Comum a ambas é a existência da violação de um dever objetivo de cuidado ou diligência daí advindo um resultado típico que possa ser objetivamente imputado, sob um prisma de «causalidade adequada», à conduta descuidada do agente. É a omissão desse dever de cuidado quando o agente se encontrava em condições objetivas e pessoais de o cumprir, como estava obrigado, que estriba a culpa do agente e justifica a censurabilidade da conduta. A diferença consubstancia-se na circunstância de que enquanto na primeira forma (consciente) o agente prevê a possibilidade de ocorrência do facto tipificado como contra-ordenação – que não deseja que aconteça –, mas confia que o mesmo não sucederá, quando as circunstâncias concretas com que se deparava e as regras da experiência comum impunham que não tivesse confiado, na segunda forma (inconsciente) o agente nem prevê a hipótese da ocorrência do facto, mas devia tê-la conjeturado, pois que a conduta levada a cabo é, habitualmente e em concreto, geradora daquele risco, exigindo a adoção de cuidado por banda de quem a adota de modo a obstar à concretização do resultado que a norma pretende evitar. Como se menciona no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.09.2014, Processo 150/12.0EACBR.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Orlando Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt, «I. A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa. II. O tipo objetivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objetivo de cuidado; a possibilidade objetiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado. III. A violação pelo agente do cuidado objetivamente devido é concretizada com apelo ás capacidades da sua observância pelo «homem médio». IV. A não observância do cuidado objetivamente devido não torna perfeito, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo. V. Para que exista culpa negligente, com preenchimento do tipo-de-culpa, necessário é ainda que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado. VI. Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta.» No mesmo sentido, se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.05.2015, Processo nº 266/11.0TAVFR.P1, disponível em www.dgsi.pt: «II. A realização do tipo legal de crime negligente só pode censurar-se ao agente na medida em que este tenha omitido aqueles deveres de diligência a que, segundo as circunstancias e os seus conhecimento e capacidades pessoais, era obrigado, e que em consequência disso, não previu - como podia - aquela realização do crime, ou tendo-a previsto, confiou em que ela não teria lugar. III. O atuar negligente analisa-se em três elementos associados entre si: a causação do resultado, a lesão ao dever de cuidado objetiva e a imputação objetiva do resultado baseado no erro de conduta, orientada no sentido da finalidade protetiva das normas de cuidado. IV. O dever de cuidado interno traduz-se na obrigação de representar o perigo, e o dever de cuidado externo no dever de atuar de acordo com uma conduta que permita evitar a produção da ofensa do bem jurídico. V. O cuidado a ser tomado depende das exigências que numa análise ex ante da situação perigosa, se devem fazer a uma pessoa prudente e conscienciosa, situada na posição concreta do agente.» Como se adverte no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.05.2015, Processo nº 3793/09.6TDLSB.L1-9, disponível em www.dgsi.pt, «(…) segundo os ensinamentos do prof. Eduardo Correia, as disposições do Código Penal referentes á culpa, mostram que, pelo menos em princípio, não é necessário nem correto recorrer-se ao pensamento da responsabilidade objectiva ou pelo evento. O juízo de censura em que se estrutura a culpa não se esgota numa relação objectiva do facto com o agente sob a forma de dolo ou negligência, mas supõe sempre a possibilidade de se exigir do agente outro comportamento.» Dito isto, cumpre chamar à colação o disposto no art. 58º, nº1, al. b), do RGCO, referente à decisão administrativa condenatória, onde se prescreve que “A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: (…) b) a descrição dos factos imputados (…)” Urge concluir que sendo o Direito das Contra-Ordenações um direito sancionatório de caráter punitivo e em que o princípio da culpa, como sucede também no Direito Penal, se assume como um dos princípios basilares, encontrando-se consagrado, entre outras disposições, no supramencionado art. 8º, nº1 do RGCO, donde decorre que para existir culpabilidade do agente no cometimento de um facto é necessário que o mesmo lhe possa ser assacado a título de dolo ou negligência, imperioso se torna apurar a que título é feita a imputação da conduta ilícita ao arguido para que este possa ser condenado pela sua prática. Donde, a imputação dos factos, todos eles, sejam os que sustentam a conduta típica objetiva sejam os que se reportam à culpa do infrator (atuação a título de dolo ou negligência), deve ser operada de modo preciso e concreto, não bastando a alegação genérica, conclusiva ou meramente reprodutora de conceitos jurídicos (nomeadamente os que constam da norma incriminadora). Só dessa forma se asseguram as garantias mínimas de defesa constitucionalmente impostas (art. 32º, nº10 da Constituição da República Portuguesa), na medida em que sem o conhecimento pelo arguido dos concretos factos imputados poderá ser colocada em crise a avaliação a operar pelos destinatários da decisão e demais membros comunitários sobre a justiça da condenação, o inerente direito ao recurso e, em última instância, a salvaguarda do ne bis in idem. Com o entendimento por nós acolhido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.11.2008, Processo 08P2804, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 29.05.2023, Processo nº 485/22.4T9BRC.G2 (em que o aqui Relator foi 1º Adjunto), e de 24.10.2022, Processo 49/22.2T8ALJ.G1 (em que foi Relator o aqui 2º Adjunto), os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26.03.2008, Processo nº 0810356 e de 09.11.2022, Processo nº 1004/22.8T9AVR.P1, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.11.2020, Processo nº 351/19.0T8MBR.C1, e de 10.05.2023, Processo nº 181/22.2T9SCD.C1, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.10.2019, Processo nº 344/19.8T9MFR-L1.9, e os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 27.03.2012, Processo nº 1167/11.8TBOLH.E1, e de 05.05.2015, Processo nº 150/14.6TBLGS.E1, todos acessíveis em www.dgsi.pt. Ademais, como sagazmente se observa no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.06.2023, Processo nº 459/22.5T8OLH.E1, acessível em www.dgsi.pt, «A imputação subjetiva deve constar expressamente da decisão administrativa, não só porque não é indiferente o grau de culpa determinante da conduta, mas, acima de tudo, porque desse mesmo grau depende a determinação da própria coima aplicável, cuja variação, v. g. no caso das contraordenações ambientais, pode ser extremamente onerosa para o responsável. Com efeito, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência.» Volvendo ao caso vertente. Na decisão administrativa alvo de recurso de impugnação judicial, a arguida “E..., S.A.” foi condenada na coima de €1.600,00, pela prática de uma contra-ordenação prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 38º do DL 124/2006, de 28.06, conjugado com o n.º 2 do artigo 163º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, punível nos termos do nº1 do art. 38º daquele primeiro diploma legal (fls. 63 e ss. dos autos).[2] Preceitua o art. 38º do DL 124/2006, na parte que ora importa: “1 - As infrações ao disposto no presente decreto-lei constituem contraordenações puníveis com coima, de (euro) 140 a (euro) 5000, no caso de pessoa singular, e de (euro) 1500 a (euro) 60 000, no caso de pessoas coletivas, nos termos previstos nos números seguintes. 2 - Constituem contraordenações: (…) b) A infração ao disposto nos n.ºs 1, 2, 9, 10, 12, 13 e 14 do artigo 15.º; (…) 4 - A tentativa e a negligência são puníveis” No caso, foi considerada na decisão administrativa a infração ao disposto no art. 15º, nº1, al. d), que, sob a epígrafe «redes secundárias de faixas de gestão de combustível», reza assim: “1 - Nos espaços florestais previamente definidos nos PMDFCI é obrigatório que a entidade responsável: (…) d) Pelas linhas de distribuição de energia elétrica em média tensão providencie a gestão de combustível numa faixa correspondente à projeção vertical dos cabos condutores exteriores acrescidos de uma faixa de largura não inferior a 7 m para cada um dos lados;” Nos termos do art. 163º da Lei 71/2018, de 31.12 (Lei do Orçamento 2019): “1 – Em 2019, independentemente da existência de Plano Municipal de Defesa da Floresta contra Incêndios (PMDFCI) aprovado: (…) c) Os trabalhos definidos no nº1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 124/2006, de 28 de junho, na sua redação atual, devem decorrer até 31 de maio. (…) 2 – Durante o ano de 2019, as coimas a que se refere o artigo 38º do Decreto-Lei nº 124/2006, de28 de junho, na sua redação atual, são aumentadas para o dobro”. Ao nível da factualidade objetiva apurada, descreve-se na decisão administrativa que (na parte que releva): “1. Em 13 de agosto de 2019, pelas 14:45, na Estrada ..., freguesia ..., concelho ..., foi alvo de fiscalização o imóvel referenciado no auto de notícia por contraordenação, tendo sido verificado a falta de gestão de combustíveis junto das estruturas elétricas de média tensão; 2. A Arguida é concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica de média tensão que passa pela Estrada ..., freguesia ..., concelho ..., coordenadas 41º58..../08º36....; 3. Foi assim apurado que nas linhas de energia de elétrica de média tensão não foi providenciada a gestão dos combustíveis, numa faixa correspondente à projeção vertical dos cabos condutores exteriores, acrescidos de uma faixa de 7 metros para cada um dos lados: 4. A parcela em causa encontra-se inserida em espaço rural, com continuidade florestal e próxima de um aglomerado populacional. (…) 7. O Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios (PMDFCI) do Município ... encontra-se aprovado pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, desde 15/01/2019, para um período de vigência de nove anos; 8. O Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios (PMDFCI) do Município ... tem um plano de ação que contempla o período de 2018 a 2027; 9. Consultado o PMDFCI, via portal do município, foi apurado que o mesmo prevê ações de limpeza no total de 8 hectares, cabendo à Arguida a responsabilidade de manutenção das linhas elétricas de média tensão no concelho ..., no qual se encontra abrangido o local da infração; 10. O local mencionado nos autos encontra-se definido segundo o PMDFCI de ..., como área de risco de perigosidade alta de incêndio; 11. A Arguida após ter conhecimento dos factos, adjudicou obra para execução de trabalho, no que concerne à gestão dos combustíveis no local da infração, tendo os referidos trabalhos sido dados como concluídos em 21/10/2019.” Observa-se no item relativo à “Fundamentação” de facto a ausência de factualidade concernente ao elemento subjetivo da infração contraordenacional. Todavia, no ponto 7 do item “Enquadramento Legal”, após uma despropositada invocação do art. 5º do RGCO, refere-se «Significa que para que exista culpabilidade do agente no cometimento dos factos imputados, é necessário que os mesmos lhe possam ser “arguidos” a título de negligência ou dolo, o que não é o caso.». Esta exclusão, como ressuma do contexto global da decisão recorrida e infra se explanará, reporta-se unicamente a uma atuação dolosa da Arguida. Mais adiante, agora no segmento “Determinação da Coima”, ponto “2. Da Culpa do Agente”, consta da decisão administrativa condenatória: «a) A arguida não agiu com a prudência e cuidado que lhe eram exigíveis e de que era capaz para cumprir as suas obrigações legais. b) Embora soubesse que sobre si recaía essa obrigação legal, não previu o resultado da sua conduta ilícita ou mostrou-se indiferente à produção do mesmo. (…) e) Assim, quanto à culpa, reputa-se a conduta da arguida como negligente, uma vez que deveria ter atuado com o cuidado necessário, pois tinha que ter providenciado pela gestão de combustíveis naquele troço de linha de distribuição de energia elétrica em média tensão, de modo a evitar a ocorrência de possíveis incêndios rurais, que seriam prejudiciais para si e demais população.» O caráter negligente atribuído à conduta da arguida é acentuado no item “Da Conclusão” onde se aduz: «Face aos elementos aqui expostos, consideram-se provados os factos descritos, a título de negligência, do Auto de Notícia, nos termos constantes do art. 58º do RGCO e nº4 do art. 38º do D-Lei nº 124/2006, de 28 de junho, porquanto a Arguida não procedeu com o cuidado a que estava obrigada.» Aqui chegados, cumpre ter presente que apesar da supramencionada exigência de fundamentação que se deve dirigir à decisão administrativa condenatória – convolada em “acusação” no caso de recurso de impugnação judicial (art. 62º, nº1, do RGCO) –, também se tem entendido que o grau e amplitude dessa fundamentação não tem de corresponder necessariamente ao reclamado para a decisão penal. Conforme tem sido profusamente considerado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, a decisão condenatória em matéria contraordenacional, apresentando alguma homologia com a sentença condenatória em processo penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, incluindo ao nível da fundamentação sobre a decisão da matéria de facto, se bem que mais concisa, menos intensa, por menos exigente, atendendo ao caráter sumário e expedito que preside ao procedimento por contraordenação na fase administrativa, à sua não incidência na liberdade das pessoas e à assaz mitigada ressonância ético-social da contra-ordenação comparativamente ao crime – cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21.12.2006, Processo 6P3201, de 29.01.2017, Processo nº 06P3202, do Tribunal da Relação de Guimarães de 24.09.2007, Processo nº 1403/07-1, do Tribunal da Relação de Coimbra de 21.09.2011, Processo nº 4428/10.0T2AGD.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Basta notar que, distintamente do que sucede na sentença condenatória (art. 374º, nº2, do CPP), a lei não exige que da decisão administrativa condenatória constem formalmente os factos provados ou não provados, satisfazendo-se com a descrição dos factos imputados (o que até consente a remissão dos mesmos para o auto de notícia, se dali resultarem escorreitos, concretizados) – cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24.10.2022, Processo nº 49/22.2T8ALJ.G1, disponível em www.dgsi.pt. Por conseguinte, o que verdadeiramente importa para que a fundamentação da decisão administrativa cumpra cabalmente a sua função é que da mesma se possam apreender as razões de facto e de direito que, no entendimento do decisor, conferem arrimo à condenação, de modo a que seja possibilitado ao arguido formular um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, uma vez na fase judicial do processo, permitir ao tribunal conhecer o processo lógico da formação da decisão administrativa. Como pertinentemente se aduz no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.01.2019, Processo nº 257/18.0T8SRT.C1, disponível em www.dgsi.pt, «A decisão administrativa não é uma sentença, nem tem que obedecer ao formalismo da sentença penal. É entendimento pacífico que na fase administrativa do processo de contra-ordenação, caracterizada pela celeridade e simplicidade processual, o dever de fundamentação tem uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal, comportando a decisão administrativa um modo sumário de fundamentar, desde que permita ao coimado perceber o que se decidiu e por que razão assim se decidiu.» No caso em apreço, da globalidade da fundamentação exposta na decisão administrativa, ainda que de modo não exemplar, admite-se, exsuda, de modo suficiente e idóneo, a factualidade provada suscetível de preencher o elemento subjetivo do tipo de contraordenação imputada à arguida, na forma de negligência. Com efeito, consta da decisão impugnada que a arguida estava consciente da obrigação legal que sobre si recaía de, enquanto concessionária de uma rede de distribuição de energia elétrica de média fusão, proceder à gestão de combustíveis numa faixa correspondente à proteção vertical dos cabos condutores exteriores, acrescidos de uma faixa de 7 metros para cada um dos lados, e não procedeu com a prudência e o cuidado devido, abstendo-se no circunstancialismo de tempo e lugar ali descritos, de executar a manutenção das linhas elétricas em causa, de modo a evitar a ocorrência de possíveis incêndios rurais e os potenciais danos daí decorrentes para o meio ambiente e pessoas que residem na proximidade. Donde, é insofismável que está invocada in casu a violação de um dever objetivo de cuidado e que a conduta omissiva da arguida se inclui no âmbito de proteção da norma, porquanto a previsão legal visa precisamente evitar a criação ou inadmissível potenciação do risco de ocorrência de incêndios florestais derivados de atos humanos descuidados, levianos. Por outro lado, integra o elenco da factualidade descrita na decisão administrativa a circunstância de a sociedade arguida não ter previsto que da sua conduta ilícita resultasse o resultado que a norma contraordenacional pretende evitar – cfr. al. a) do ponto 2 do item “Determinação da Coima”. É certo que, de modo confuso, erróneo, invoca-se na mesma alínea, em alternativa, a hipótese de a arguida se ter mostrado indiferente à produção do resultado a evitar, o que permitiria, numa análise mais superficial, considerar que teria previsto a possibilidade da sua ocorrência. No primeiro caso, estaríamos perante a figura da negligência inconsciente, no segundo, perante uma situação de dolo eventual, uma vez que a indiferença do agente face à previsão de possibilidade de ocorrência do facto, conformando-se com a sua concretização, é o que distingue esta modalidade do dolo da negligência consciente, em que o infrator também representa a possibilidade de a sua conduta integrar o facto típico, mas não se conforma com tal evento. Ora, ressuma expresso do texto da decisão recorrida que a autoridade administrativa não considerou, de modo algum, que a arguida tivesse omitido dolosamente o dever de cuidado que sobre ela impendia. Acresce que, consta da factualidade imputada que «a arguida após ter conhecimento dos factos, adjudicou obra para execução de trabalho, no que concerne à gestão dos combustíveis no local da infração, tendo os referidos trabalhos sido dados como concluídos em 21/10/2019.»; logo, se a sociedade arguida mal se apercebeu que se encontrava em falta quanto ao cumprimento da imposição legal de gestão de combustíveis nas proximidades da rede de distribuição de energia elétrica que explorava, avançou para a realização da manutenção omitida, então é porque à data da prática da infração não tinha previsto que fosse necessário executar a predita manutenção. Não previu, mas devia ter previsto, dado que também se apurou que era capaz de ter agido com a prudência e o cuidado que as circunstâncias lhe exigiam. Assim sendo, é possível formular um juízo de censura inerente à conduta omissiva da arguida. É quanto basta para a imputação subjetiva da contraordenação à arguida, a título de negligência inconsciente. O que fica dito não obsta a que consideremos que a inclusão na decisão dos factos atinente à culpa da arguida noutro segmento que não o referente à factualidade apurada se revela pouco adequado do ponto de vista lógico-sistemático da decisão. Contudo, considerando o proeminente princípio da descoberta da verdade material que subjaz à prolação de qualquer decisão, cremos que àquela mera imprecisão não se pode fazer corresponder uma autêntica carência de alegação de facto. Revemo-nos, pois, no expendido no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.01.2022, Processo nº 231/21.0T8SSSB.E1, disponível in www.dgsi.pt: «I - É de um rigor excessivo (e sem qualquer justificação legal) afirmar um vício omissivo apenas porque determinado elemento da decisão condenatória em contra-ordenação não se encontra descrito no ponto da fundamentação de facto, sendo apenas descrito mais à frente num ponto posterior ao juízo subsuntivo. II - Importa nuclearmente é que a “descrição dos factos imputados” (art.º 58.º, n.º 1, b) do RGCO) conste da decisão condenatória, havendo que desconsiderar o seu arrumo sistemático dentro daquela, desde que a “descrição factual que consta da decisão de aplicação de coima seja suficiente para permitir ao arguido aperceber-se dos factos que lhe são imputados e poder, como base nessa percepção, defender-se adequadamente.» Pois bem: no caso sub judice, a sociedade arguida, através da impugnação judicial que deduziu (fls. 73 e ss./certidão com referência ...52), revelou perfeita compreensão dos factos que lhe foram imputados na decisão administrativa e do título a que o foram, o que igualmente demonstra que a fundamentação da decisão foi suficiente para permitir o exercício do direito de defesa e, portanto, que a mesma observou as exigências do art. 58º, nº 1 do RGCO. Conclui-se, assim, que a decisão administrativa impugnada, não sendo modelar, exemplar, na descrição factual do elemento subjectivo, contém, no entanto, a descrição factual – objectiva e subjetiva – bastante para preencher o tipo objectivo e subjectivo da contraordenação nela imputada. Destarte, urge conceder razão ao recorrente Ministério Público e determinar a revogação da sentença recorrida, porquanto a decisão administrativa não padece da nulidade que ali lhe é apontada (nos termos conjugados dos arts. 374º, nº2 e 379º, nº1, al. a), ambos do CPP, ex vi do art. 41º do RGCO). Consequentemente, devem os autos prosseguir em primeira instância para apreciação do mérito do recurso de impugnação judicial deduzido pela arguida. * IV - DISPOSITIVO: Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o douto recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar a douta sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos em primeira instância para apreciação do mérito do recurso de impugnação judicial deduzido pela arguida. Sem tributação (art. 92º, nº1, do RGCO e arts. 513º, nº1 e 514º, nº1, a contrario, ambos do CPP). * Guimarães, 17 de outubro de 2023, Paulo Correia Serafim (Relator) [assinatura eletrónica] António Teixeira (1ºAdjunto) [assinatura eletrónica] Paulo Almeida Cunha (2º Adjunto) [assinatura eletrónica] (Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP) [1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que mantém atualidade. [2] O artigo 38º do DL 124/2006, de 28.06 foi, entretanto, revogado pelo DL 82/2021, de 13.10 [art. 80º, al. c)], que entrou em vigor em 01.01.2022, mantendo-se, contudo, no caso, vigente aquele diploma legal no que tange às contra-ordenações e respetivas coimas ali previstas até ao ano de 2024, por força do regime transitório estabelecido no art. 79º, nºs 1 e 4, onde se estipula: “1 - Os planos municipais de defesa da floresta contra incêndios em vigor produzem efeitos até 31 de dezembro de 2024, sendo substituídos pelos programas de execução municipal previstos no presente decreto-lei. 4 - Enquanto se mantiverem em vigor os planos municipais de defesa da floresta contra incêndios, nos termos dos n.ºs 1 e 2, são aplicáveis as disposições do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de junho, na sua redação atual, relativas aos deveres de gestão de combustível na rede secundária de faixas de gestão de combustível e às contraordenações respetivas, sem prejuízo da aplicação das normas da secção iii do capítulo iv do presente decreto-lei.” |