Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
698/23.1T8MDL.G2
Relator: FERNANDA PROENÇA FERNANDES
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ENTREGA JUDICIAL DE BENS
PERICULUM IN MORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Sendo a requerente da presente providência cautelar uma sociedade que tem por objecto, entre outras, a actividade de locação financeira e o aluguer de veículos automóveis, o automóvel a apreender constitui um bem cujo significado se reduz ao seu valor económico, seja na vertente de bem transaccionável, seja de bem capaz de produzir um determinado rendimento enquanto bem locável.
II. Nesta medida, estão em causa, interesses meramente pecuniários, cuja lesão (emergente da perda do veículo ou da demora na sua recuperação) pode ser perfeitamente reparada mediante a prestação de uma indemnização em dinheiro.
III. Assim, a reparabilidade da lesão afere-se pela suficiência ou insuficiência do património do requerido ou pelo perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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I. Relatório.

Por meio do presente procedimento cautelar, intentado por EMP01... – Sociedade Financeira de Crédito, S.A., com número de identificação de pessoa colectiva ...15, contra a AA, titular do número de identificação civil ... e com residência na Rua ..., ..., ..., vem aquela requerer:

a) Que seja decretada a providência cautelar de entrega judicial do veículo de marca .... Modelo ... ..., com matrícula ..-QL-..; ou, subsidiariamente,
b) Que seja decretada a providência cautelar não especificada, para o mesmo efeito;
c) A inversão do contencioso.
Para o efeito, alegou, em síntese, que requerente e requerida celebraram, em 25.10.2019, um contrato de aluguer de longa duração a consumidor, referente a veículo automóvel, de marca .... Modelo ... ..., com matrícula ..-QL-.., no montante global de 27.722,51€ (vinte e sete mil, setecentos e vinte e dois euros e cinquenta e um cêntimos), pelo prazo de 48 (quarenta oito) meses, com opção de compra.
Por meio de tal negócio, a requerente obrigou-se a ceder, à requerida, o uso do aludido veículo, mediante o pagamento, por parte desta última, do correspondente aluguer.
Mais invoca que, decorrido o prazo convencionado, a requerida não entregou à requerente o veículo identificado, nem liquidou todos os montantes devidos, pelo que vedada se encontra a possibilidade de exercício, por parte de AA, da opção de compra acordada.
Considera, portanto, que se encontram preenchidos os pressupostos para o decretamento da providência cautelar destinada a obter a entrega do veículo com matrícula ..-QL-...
Ou caso assim se não entenda, providência cautelar não especificada, para o mesmo efeito, sempre sem citação da requerida.

Foi então proferido despacho liminar, com o seguinte dispositivo:

III. Decisão
“Em conformidade com o que antecede, decide-se indeferir liminarmente o presente procedimento cautelar.
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Valor do procedimento: 29.632,00€ (vinte e nove mil, seiscentos e trinta e dois euros) – artigos 296º e 304º, n.º 1 e 3, al d), todos do Código de Processo Civil.
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Custas pela requerente (artigo 539º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Notifique a requerente.
Oportunamente arquive.”
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Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a requerente.
Nessa sequência veio a ser proferida decisão sumária, pela ora relatora, em que se revogou a decisão recorrida, substituindo-se a mesma por outra que convida a requerente/apelante a, no prazo de 10 dias, apresentar novo requerimento inicial, no qual melhor factualizará a matéria respeitante ao periculum in mora, nos termos expostos na nessa decisão.
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Volvidos os autos à 1ª instância, foi dirigido convite à apelante nos termos determinados.

Em resposta a tal convite, e excedendo manifestamente o mesmo, veio a apelante apresentar nova petição inicial em que requereu:

a) que seja decretada, sem audiência prévia da requerida, a providência cautelar não especificada, com vista à entrega do veículo de marca .... Modelo ... ..., com matrícula ..-QL-..
b) a inversão do contencioso.

Para o efeito, alegou, em síntese, que requerente e requerida celebraram, em 25-10-2019, um contrato de aluguer de longa duração a consumidor, referente a veículo automóvel, de marca .... Modelo ... ..., com matrícula ..-QL-.., no montante global de 27.722,51€ (vinte e sete mil, setecentos e vinte e dois euros e cinquenta e um cêntimos), pelo prazo de 48 (quarenta oito) meses, com opção de compra.
Por meio de tal negócio, a requerente obrigou-se a ceder, à requerida, o uso do aludido veículo, mediante o pagamento, por parte desta última, do correspondente aluguer.
Mais invocou que, decorrido o prazo convencionado, a requerida não entregou à requerente o veículo identificado, nem liquidou todos os montantes devidos, apesar das várias tentativas da apelante nesse sentido, pelo que vedada se encontra a possibilidade de exercício, por parte de AA, da opção de compra acordada. E que veio a saber que a requerida se encontra no estrangeiro tendo, provavelmente, levado consigo o veículo em causa, mostrando-se incontactável.
Considera, portanto, que se encontram preenchidos os pressupostos para o decretamento da providência cautelar destinada a obter a entrega do veículo com matrícula ..-QL-...
Apesar de ter excedido manifestamente o convite a si dirigido, entendeu o Mmo Sr. Juiz a quo, atendendo ao facto do réu não haver, ainda, sido citado, não se encontrando estabilizada da instância (cf. artigo 260º do CPC), admitir o articulado de aperfeiçoamento, o qual substituiu a petição inicialmente apresentada.

Mais foi proferida nova decisão, com o seguinte dispositivo:

“III. Decisão
Em conformidade com o que antecede, decide-se indeferir liminarmente o presente procedimento cautelar.
Valor do procedimento: 29.632,00€ (vinte e nove mil, seiscentos e trinta e dois euros) – artigos 296º e 304º, n.º 1 e 3, al d), todos do Código de Processo Civil.
Custas pela requerente (artigo 539º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Notifique a requerente.
Oportunamente arquive.”.
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Novamente irresignada, veio a requerente interpôr recurso desta decisão.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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A requerente/apelante, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“CONCLUSÕES

A Recorrente instaurou um procedimento cautelar contra a Recorrida, para que fosse proferida decisão judicial a ordenar a apreensão e a restituição imediata à Recorrente do veículo automóvel objeto dos autos.
Fundamentou a sua pretensão no seu direito de propriedade sobre o veículo, bem como no término do contrato firmado entre as partes, e, consequentemente, no direito da Recorrente à restituição imediata do referido veículo, designadamente atento o receio de que a Recorrida cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, e da inexistência, por sua vez, de qualquer prejuízo imputável à Recorrida que pudesse ser juridicamente atendível.
Peticionou que a providência cautelar fosse decretada como Providência Cautelar Comum, por se encontrarem alegados e demonstrados todos os requisitos para o efeito, e a Recorrente dispensada do ónus de propor a ação principal (inversão do contencioso).
Por decisão proferida em 03.04.2024, o Tribunal a quo indeferiu liminarmente a petição de procedimento cautelar, com fundamento na não verificação de um dos requisitos de que depende o decretamento de uma providência cautelar comum ou não especificada – o “periculum in mora”.
Porém, deveria ter sido outra a decisão proferida, pelo que se impõe a revogação da Decisão Recorrida e a sua substituição por outra, que seja justa e adequada à realidade jurídica em causa, ao regime que lhe é aplicável e, bem assim, à factualidade alegada e demonstrada nos presentes autos.
Resulta dos artigos 362.º, n.º 1 e 368.º, n.º 1 e 2 do CPC que, “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer uma providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado, a qual será decretada desde que se uma probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão, salvo se o prejuízo dela resultante para o requerido exceder consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”.
Sucede que, o Tribunal a quo colocou em causa um dos requisitos para o decretamento da providência cautelar comum – a demonstração do periculum in mora.
No entanto, foi alegado (e demonstrado) que a Recorrida, que entretanto passou a residir no estrangeiro, deixou de pagar os valores devidos à Recorrente, que deixou de responder às suas interpelações e contactos, que não manifestou a intenção de exercer a opção de compra do veículo, e que, não obstante tudo isso, permaneceu e permanece a usar ilegítima e abusivamente (porque já há muito que não dispõe de qualquer título para o efeito!) o veículo da Recorrente.
Foram igualmente alegados os receios justificados e os riscos advenientes desse comportamento da Recorrida para com a Recorrente, bem como os manifestos prejuízos causados diariamente à mesma com essa conduta, assim como também o facto de não assistir à Recorrida qualquer direito ou prejuízo (decorrente do decretamento da providência requerida) que possa ser juridicamente atendível.
Na verdade, de todos os factos alegados, resulta também indiciariamente demonstrado o justificado receio da não reparação do prejuízo (i.e., o efetivo pagamento de uma indemnização) por parte da Recorrida à Recorrente – quando a mesmo deixou, precisamente, de pagar os valores devidos ao abrigo do Contrato. deixou de responder a todas as tentativas de contacto e interpelações da Recorrente e encontra-se a residir no estrangeiro.
A jurisprudência não é unânime no que concerne aos factos que possam integrar o periculum in mora em situações como a dos autos existindo duas correntes jurusprudenciais: havendo quem defenda que a lesão em causa, sem outros factos adicionais que a acompanhem, não funda, por si só, uma lesão dificilmente reparável, teoria) e não ser demonstrada a incapacidade do seu pagamento pela Recorrida (desde logo porque a sua prova negativa é de muito difícil demonstração) e defendendo-se, por outro lado, que a lesão grave e de difícil reparação se pode reconduzir ‘apenas’ ao risco de perda do direito de propriedade sobre o bem locado, com todas as suas consequências.
No entanto, independentemente da corrente jurisprudencial adotada, a Recorrente alegou e provou todos os factos necessários ao decretamento da providência ora requerida.
Com efeito, não obstante a Recorrente ter alegado factos demonstrativos dos prejuízos causados na sua esfera com a demora na devolução do veículo, por parte da Recorrida, a verdade é que, segundo a primeira das duas posições da jurisprudência, a demonstração do periculum in mora basta-se com a concreta verificação da falta de restituição do veículo locado, uma vez findo o respetivo contrato.
Também a segunda posição da jurisprudência – i.e., que para que possa comprovar a verificação do periculum in mora, a Recorrente encontrava-se obrigada a alegar e provar factos concretos consubstanciados na existência de um risco sério consubstanciado na falta de meios económicos da Recorrida se encontra verificada.
De facto, atendendo à matéria de facto alegada e demonstrada, é manifesto que se verifica, na esfera da Recorrente, um receio justificado de que a Recorrida não tenha capacidades económicas para proceder ao pagamento da indemnização que é devida àquela em função da utilização e possível perda do veículo, porquanto esta nem sequer logrou em pagar à Recorrente todos os montantes devidos ao abrigo do contrato celebrado entre as partes.
Ademais, existe ainda o risco de, com o facto de o veículo se encontrar em circulação, poder a Recorrente, como sua única proprietária, vir a ser responsabilizada pelo risco em qualquer acidente do qual resulte responsabilidade civil.
Para além disso, o facto de a Recorrida ter passado a estar totalmente incontactável faz a Recorrente temer que a mesma pretenda proceder à “alienação” do veículo a um terceiro no estrangeiro – como, infelizmente, não raras vezes tem acontecido, em situações em que os próprios locatários forjam documentos, como se se tratasse de documentos emitidos pela Requerente, para depois “venderem” os veículos e obterem para si um proveito ilícito à custa da Requerente.
Acresce que, estando a Recorrida a residir no estrangeiro, a Recorrente depara-se, desde logo, com a impossibilidade de poder vir a requerer a penhora de rendimentos que sejam auferidos por esta fora de Portugal (ou até de eventuais créditos) – o que se traduz na impossibilidade de ver o ser prejuízo ressarcido.
E não podendo a Recorrente dispor do veículo, que é da sua única e exclusiva propriedade, para dele tirar proveito, quer seja com a celebração de um novo contrato de locação quer seja com a venda do mesmo, fica impossibilitada de obter um ressarcimento adequado e célere do seu evidente prejuízo que, com o passar do tempo, tende, inevitavelmente, a acumular-se.
Por conseguinte, mesmo que se entenda que incumbia à Recorrente a demonstração do periculum in mora – o que apenas por mero dever de patrocínio se admite –, a verdade é que esta alegou e provou todos os factos necessários à verificação deste pressuposto.
Estando os procedimentos cautelares sujeitos a despacho liminar do Juiz, tal despacho, sendo de indeferimento da petição, deve assentar num dos fundamentos legais que permitem ao Tribunal essa rejeição, sendo que, de harmonia com o disposto no art.º 590º do CPC, “a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560º.”.
Encontrando-se alegados e demonstrados os pressupostos de que depende o procedimento cautelar comum, nomeadamente o periculum in mora, e sempre salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não poderia ter decidido pelo indeferimento liminar do Requerimento Inicial, devendo, ao invés, e caso permanecesse com dúvidas quanto ao alegado – o que, novamente, apenas por mero dever de patrocínio se admite – deveria ter dado oportunidade à Recorrente de o provar através da inquirição das testemunhas por si indicadas.
Termos em que a Sentença recorrida deverá ser substituída por outra que considere alegados os factos indispensáveis à demonstração de todos os requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar comum requerida, nomeadamente o periculum in mora, e, caso o considere necessário, designe data para a produção da prova testemunhal oferecida pela Recorrente.
*****
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deverão ser admitidas e ser dado provimento às presentes Alegações de recurso, devendo, em consequência, ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e, nessa sequência ser substituída por outra que considere alegados os factos indispensáveis à demonstração de todos os requisitos de que depende o decretamento do procedimento cautelar comum requerido, nomeadamente o periculum in mora, com vista à apreensão e restituição do veículo à Requerente e, caso o considere necessário, designe data para a produção da prova testemunhal oferecida pela Recorrente.
Tudo com as devidas consequências, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA! ”.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.             

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC -, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca à apreciação deste Tribunal é a de saber se estão alegados todos os pressupostos de que depende o decretamento da requerida providência cautelar comum, em específico, o periculum in mora.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do relatório supra.
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IV. Do objecto do recurso.            

1. Delimitada que está, sob o n.º II, a questão a decidir, é o momento de a apreciar.
O artigo 362.º, n.º 1, do CPC, dispõe que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.
Por outro lado, nos termos do artigo 368.º, n.º 1, do mesmo Código, “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”, a não ser que o prejuízo para o requerido, resultante do seu deferimento, exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar (n.º 2).

Assim, nos termos deste artigo 368.º são requisitos cumulativos para decretar uma providência cautelar:

I - a probabilidade séria da existência do direito que se pretende acautelar (fumus boni iuris);
II - mostrar-se suficientemente fundado o receio da sua lesão (grave e dificilmente reparável) (periculum in mora);
III - o prejuízo dela resultante não exceder consideravelmente o dano que se pretenda evitar (numa dimensão de adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito).

Como se diz no Ac. da Relação de Lisboa de 13.05.2021, relator Jorge Leal, in www.dgsi.pt “a existência de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito constitui requisito comum às medidas cautelares atípicas.
Tal receio tanto se pode manifestar antes de proposta a ação como na sua pendência. Em qualquer dos casos, pode o requerente solicitar a adoção da medida que julgue mais adequada a acautelar o efeito útil que pretenda ver satisfeito ou reconhecido através do processo principal.
A finalidade específica das providências cautelares é precisamente a de evitar a lesão grave e dificilmente reparável proveniente da demora na tutela da situação jurídica, isto é, obviar ao periculum in mora.
A este respeito, no que concerne à apreensão de automóveis no âmbito de providências cautelares não especificadas, em situações idênticas à invocada nestes autos (garantir a restituição do automóvel pelo locatário, uma vez cessado o contrato), podem descortinar-se, no essencial, duas posições.
A primeira delas defende que os interesses do locador do automóvel têm natureza exclusivamente patrimonial, pelo que a sua violação pode ser ressarcida, se não por reconstituição natural, pelo menos por meio do pagamento de uma indemnização pecuniária (artigos 566.º, 1044.º e 1045.º do Código Civil). Assim, o requerente/locador deve alegar e provar existir fundado receio de que não conseguirá obter do locatário/requerido a reparação da lesão do seu direito, designadamente, por exemplo, dada a insuficiência do património deste ou o perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial. Para tal não chegará a simples invocação e prova de que o requerido deixou de pagar as rendas e/ou se furta a restituir o veículo e que o mesmo se degrada com o tempo e o uso (cfr., v.g., acórdão da Relação do Porto, 27.11.2003, processo 0335609; ac. da Rel. de Lisboa, 30.3.2004, 10813/2003-7; Porto, 21.12.2004, 0426453; Lisboa, 14.4.2005, 3047/2005-8; Porto, 08.11.2005, 0524432; Lisboa, 04.7.2006, 5235/06-2; Porto, 19.4.2007, 0731622; Lisboa, 08.01.2008, 7956/2007-1; Porto, 11.9.2008, 0736163; Lisboa, 23.4.2009, 5937/08.6TBOER.L1-2; Lisboa, 08.10.2009, 3432/08.2TBTVD-A-L1-8; Coimbra, 28.4.2010, 319/10.2TBPBL.C1; Coimbra, 07.9.2010, 713/09.1T2AND.C1; Coimbra, 19.10.2010, 358/10.3T2ILH.C1; Lisboa, 10.02.2011, 5638/10.5TBOER.L1-6; Lisboa, 15.12.2011, processo 746/11.8TVLSB-A.L1-2, subscrito pelo ora relator e pelo Exm.º 2.º adjunto; Coimbra, 13.11.2012, 460/12.7T2ILH.C1; Coimbra, 01.10.2013, 589/13.4T2AVR.C1; Guimarães, 15.10.2013, 716/13.1TBFAF.G1; Porto, 26.01.2016, 7401/15.8T8VNG.P1).
Dando eco a esta corrente jurisprudencial veja-se, na doutrina, Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, ob. cit., p. 146, nota 391.
Tal posição não é, porém, consensual. Parte significativa da jurisprudência defende que o direito que, no essencial, o locador/requerente pretende acautelar é o seu direito de propriedade, o direito ao uso, fruição e disposição de um bem que lhe pertence, o automóvel, direito esse que não é relevantemente reparado mediante o pagamento de uma indemnização; e a conduta relapsa do locatário/requerido bastará para dar como suficientemente indiciado o sério risco de esse direito ser irremediavelmente violado (cfr., v.g., Relação do Porto, 30.10.2003, 0334866; Porto, 06.5.2004, 043252; Porto, 11.11.2004, 0434300; Évora, 08.3.2007, 94/07-3; Évora, 24.4.2008, 820/08-3; Porto, 18.6.2008, 0833386; Porto, 24.9.2009, 4481/09.9TBMAI.P1; Évora, 21.10.2009, 1105/09.8TBOER.E1; Évora, 14.4.2010, 46/10.0TBABF.E1; Lisboa, 12.10.2010, 5549/09-7; Lisboa, 18.11.2010, 339/10.7TBSSB.L1-8; Lisboa, 26.02.2015, 1617/14.1T8SNT.L1-6; Porto, 20.4.2017, 575/17.5T8VNG.P1; Lisboa, 06.7.2017, 978/17.5T8CSC.L1-2; Porto, 07.01.2019, 903/17.3T8VNG.P1).
Também releva a tese defendida no acórdão da Relação de Coimbra, de 28.11.2018, processo 3440/17.2T8LRA.C1, no qual se realçou que, sendo o direito a acautelar o da restituição da coisa locada ao locador, constituiria periculum in mora relevante o fundado receio de dissipação ou ocultação do veículo a restituir, por parte do locatário.
Conforme se disse, a decretação da providência cautelar (não especificada) pressupõe a existência de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito. Só esta justifica a urgente, provisória e por vezes não contraditada intromissão do tribunal na esfera jurídica do requerido, correndo-se o risco de se praticar um ato posteriormente qualificado de injustificado (artigos 363.º, 366.º, 374.º n.º 1 do Código de Processo Civil).
Apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil reparação.
Quanto aos prejuízos materiais, “o critério deve ser bem mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva” (cfr. Abrantes Geraldes, Temas da reforma do processo civil, III volume, 2.ª edição, Almedina, páginas 84 e 85.). Relativamente a este último tipo de danos, deverão ser ponderadas “as condições económicas do requerente e do requerido e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados” (Abrantes Geraldes, citado, pág. 85).
A requerente é uma sociedade que tem por objeto, entre outras, a atividade de locação financeira e o aluguer de veículos automóveis. Assim, o automóvel a apreender constitui um bem cujo significado se reduz ao seu valor económico, seja na vertente de bem transacionável, seja de bem capaz de produzir um determinado rendimento enquanto bem locável. Estão em causa, assim, interesses meramente pecuniários, cuja lesão (emergente da perda do veículo ou da demora na sua recuperação) pode ser perfeitamente reparada mediante a prestação de uma indemnização em dinheiro (art.º 566.º do Código Civil).
Note-se que a circunstância de o veículo perder valor ao longo do tempo, seja pela perda de “modernidade” das suas características, seja pelo seu desgaste, é fator normal, que necessariamente é tido em consideração pela locadora na fixação das contrapartidas pecuniárias que cobra aos locatários, nomeadamente na avaliação do valor residual do veículo para efeitos de exercício da opção de compra pelo locatário.
Assim, a reparabilidade da lesão afere-se pela suficiência ou insuficiência do património do requerido ou pelo perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial (art.º 601.º do Código Civil).
Ainda que se considere que o direito que há que garantir é o direito à restituição da viatura locada, a antecipada restituição só se justificaria se se indiciasse fundado receio de extravio, de destruição ou de séria danificação da mesma.”.
Entendemos assim, como já foi afirmado pela ora relatora na decisão sumária previamente proferida, que a reparabilidade da lesão afere-se pela suficiência ou insuficiência do património do requerido ou pelo perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial (art.º 601.º do Código Civil).
A apelante, na sua nova petição inicial, e quanto ao periculum in mora, veio alegar que a requerida não liquidou a última prestação do aluguer do veículo identificado nos autos, mesmo após interpelação e não procedeu ao pagamento do valor para a sua aquisição nem devolveu o veículo; a requerida deslocou-se para o estrangeiro, (provavelmente) acompanhada desse mesmo veículo, encontrando-se incontactável; e os efeitos do decurso do tempo em sede de desvalorização do veículo.
Ora, os factos alegados, mais uma vez, são insuficientes para se dar como assente a ocorrência de fundado receio de que a lesão do direito invocado pela requerente será dificilmente reparável.
Com efeito, a conduta da requerida, no sentido de não ter liquidado o valor da última prestação acordada, não ter procedido ao pagamento do valor para aquisição do veículo cedido, nem mesmo à sua devolução, é susceptível de consubstanciar um incumprimento contratual, mas não é, por si só, revelador de qualquer perigo de lesão grave e dificilmente reparável do direito da apelante. A não disponibilização do veículo à requerente, se for considerada ilícita, acarretaria prejuízos facilmente contabilizáveis e ressarcíveis em termos pecuniários, sendo certo que nada foi alegado nem se indiciou no sentido de a requerida não ter condições económicas para os suportar.
Note-se, aliás, como se afirma na decisão apelada, que, não obstante a associação efectuada pela requerente no seu articulado (nomeadamente, no facto 78.) o mero incumprimento por parte requerida do acordado com a requerente em nada é revelador da situação económica e patrimonial daquela, pelo que as conclusões tecidas pela apelante nesta matéria surgem desprovidas de suporte factual.
Para além disso, a deslocação da requerida para o estrangeiro (que na 1ª petição inicial surgia como uma possibilidade e agora como uma certeza), “provavelmente” acompanhada do veículo cuja restituição se pretende (cfr facto 53.) e a circunstância de a mesma se encontrar incontactável, como se afirma na decisão apelada, pese embora possam ser reveladoras de uma intenção da requerida em não pretender cumprir o acordado, o facto é que nada sugerem sobre um eventual propósito de dissipação do património, sendo que, nesta parte, o alegado pela apelante assenta num receio meramente subjectivo, desprovido de suporte factual concreto que o sustente.
Por outro lado, como se afirma no Ac. da Relação do Porto, de 19.04.2007 (Rel. Fernando Baptista), disponível in www.dgsi.pt, assentar o destino da providência apenas no risco de desgaste do veículo é insuficiente, pois que este “é inerente ao gozo próprio da locação, tendo como contrapartida o pagamento das rendas, sendo que a falta da atempada entrega não privará, só por si, a locadora de receber a correspondente compensação monetária, de modo que, salvo melhor opinião, haverá que demonstrar um risco superior ao normal, «impondo-se, assim, a alegação de que conduta do locatário torna impossível ou muito difícil o ressarcimento dos prejuízos pela locadora, em consequência da demora da entrega do veículo»” .
Sendo que, como se afirma no Ac. da Relação de Coimbra de 01.10.2013, relatora Albertina Pedroso, disponível em www.dgsi.pt. e citado na decisão apelada  “a mera alegação de que um veículo automóvel é um bem de fácil e rápida deterioração e desvalorização, e de que se a requerente tiver de aguardar pelo desfecho da acção declarativa, corre o risco de esta já não ter qualquer utilidade ou efeito prático, por entretanto a viatura já ter perdido integralmente o seu valor e a sua possibilidade de utilização, não preenche o referido requisito”.
A tal acresce que nada resulta alegado no sentido do uso negligente do veículo, da sua anormal deterioração, do mesmo modo que nada se alega quanto à falta de meios para pagar, por parte da requerida.
E o demais articulado assenta em juízos conclusivos (cfr. factos 44, 46, 52 e 73, por exemplo) e receios abstractos (cfr. factos 67 e 68) que são, pela sua própria natureza, insusceptíveis de ser subsumidos ao preenchimento dos pressupostos a que se aludiu supra.
Assim, a requerente /apelante não alegou (para depois demonstrar indiciariamente) um fundado receio de que não conseguirá obter da requerida a reparação da lesão do seu direito, designadamente por insuficiência do património desta última ou o perigo de desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial, sendo que, ainda que se considerasse que o direito a garantir é, em primeira linha, o direito à restituição da viatura locada, esta restituição só se justificaria se se indiciar fundado receio de extravio, de destruição ou de séria danificação e também quanto a tal não foram articulados factos.
Improcede, pois, a apelação.
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V. Decisão.

Perante o exposto, acordam os Juízes desta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a apelação totalmente improcedente, em consequência do que confirmam a decisão recorrida.
Custas da apelação, pela apelante.
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Guimarães, 29 de Maio de 2024

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
José Manuel Flores
Conceição Sampaio

(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)