Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3015/21.1T8VNF.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: COMODATO
USO DETERMINADO
RESTITUIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Não sendo estabelecido prazo certo, mas figurando-se a hipótese de empréstimo para uso determinado (prédio destinado à habitação para fins de instalação da casa de morada de família), a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio.
II - Tratando-se de comodato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o prédio, enquanto continuar a ter esse uso.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

T..., LDA intentou contra AA a presente acção declarativa, sob a forma comum, tendo pedido a condenação da Ré:
- A reconhecer à Autora o direito de propriedade sobre o prédio urbano identificado no artigo 2.º, da petição inicial;
- A restituir à Autora o prédio urbano qua ocupa, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava aquando da cessão gratuita e temporária;
- A pagar à Autora a quantia de € 1.050,00(mil e cinquenta euros), a titulo de indemnização por cada mês de ocupação abusiva, contados desde a data da sua citação até à data da entrega efetiva do prédio.
Para tanto, alegou, em síntese, que é dona e legítima proprietária do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...69/..., o qual adveio à sua titularidade através de escritura pública de compra e venda celebrada a 21.09.2012; para além disso, há mais de 20 anos, por si e antecessores, que pratica atos de posse sobre esse prédio, com o ânimo de dele ser proprietária, sem oposição de quem quer que seja; a Ré ocupou esse prédio por mera tolerância da Autora e, uma vez solicitada a sua entrega, recusou-se fazê-lo; por força da conduta da Ré, a Autora vê-se impedida de rentabilizar o imóvel.
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Citada, a Ré apresentou contestação (Refª: ...30 - a fls. 9 a 23), na qual, em súmula:

- Por um lado, alegou as exceções de ineptidão (por falta de alegação de factos essenciais à ação de reivindicação) e de ilegitimidade (por considerar que a Autora não podia propor a presente ação sem deliberação social que o autorizasse, atenta a qualidade de sócia que a Ré também tem na sociedade);
- Por outro lado, sustentou que o prédio foi objeto de um contrato de comodato para servir de habitação à Ré e ao legal representante da Autora, que viviam numa situação de união de facto, tendo correspondido à casa de morada de família (daqueles e das filhas) durante o período em que vigorou essa relação e tendo sido atribuída à contestante na sequência da separação. Nesse seguimento, mantendo-se persistente o fim do comodato no que toca à Ré, pugnou que não está obrigada à entrega do prédio, acrescentando que a presente ação é movida por “vingança” do legal representante da Autora, que se encontra separado da Ré, atuando com abuso de direito.
Formulou ainda reconvenção, tendo pedido:
a) Seja a Autora condenada a ver reconhecido a existência do comodato incidente sobre o imóvel nos autos, bem como que, pela existência de tal comodato, que constitui um contrato sem prazo e para uso de habitação familiar, não havendo obrigação de restituir o do prédio identificado, enquanto continuar a ter esse uso;
b) Seja a Autora condenada a abster-se de praticar qualquer ato que impeça ou dificulte a utilização do imóvel, por parte da Ré e Reconvinte enquanto casa de morada de família, inclusivamente das suas filhas.
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A Autora apresentou réplica à reconvenção (Ref.ª ...34 - fls. 37 a 42), tendo sustentado, em resumo, a inverificação das exceções de ineptidão e de ilegitimidade (por a presente acção não contender com a qualidade de sócia da Ré) e, bem assim, a improcedência da reconvenção, negando que o prédio reivindicado tenha constituído sempre a casa de morada de família da Ré e do legal representante da Autora, apenas admitindo que tal sucedeu nos últimos meses anteriores ao final da relação.
Para além disso, alegou que, ainda que se admita que tenha havido a celebração de um contrato de comodato, a Autora, enquanto comodante, pode exigir, a todo o tempo, a restituição do prédio.
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Dispensada a realização de audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, a 02.05.2022 (ref.ª ...09 - fls. 68 a 71/verso), no qual afirmou-se a validade e regularidade da instância, tendo-se desatendido as excepções de ineptidão e de ilegitimidade arguidas.
Fixou-se ainda o objeto do litígio e estabeleceram-se os temas da prova, em termos que não mereceram reclamação das partes (fls. 71/verso a 72).
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Procedeu-se à realização da audiência de julgamento nas sessões dos dias 02.11.2022 e 20.12.2022 (ref.ªs ...03 e ...09).
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Posteriormente, a Mm.ª Julgadora “a quo” proferiu sentença (ref.ª ...04 – fls. 143 a 154), nos termos da qual decidiu:

1.º- Julgar a ação parcialmente procedente, e, em consequência:
i) Condenou a Ré a reconhecer que a Autora é a titular do direito de propriedade sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...69, da freguesia ..., concelho ...; ii) Absolve-se a Ré do restante peticionado;
2.º- Julgar procedente a reconvenção e, em consequência, condenou a Autora:
i) A reconhecer a existência do contrato de comodato para uso de habitação familiar sobre o prédio identificado em 1.º/i);
ii) A abster-se de praticar qualquer ato que impeça ou dificulte a utilização desse imóvel por parte da Ré-Reconvinte enquanto casa de morada de família.
3.º- Julgar improcedente o pedido de condenação da Autora como litigante de má-fé.
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Inconformada com a sentença, dela interpôs recurso a Autora (ref.ª ...06 – fls. 155 a 175) tendo formulado, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«I. O presente Recurso versa sobre a Sentença proferida nos autos à margem identificados, parte que condenou a ora Recorrente a:
a. “i) A reconhecer a existência do contrato de comodato para uso de habitação familiar sobre o prédio identificado em 1.º/i);
b. ii) A abster-se de praticar qualquer ato que impeça ou dificulte a utilização desse imóvel por parte da Ré-Reconvinte enquanto casa de morada de família.”
II. Pela análise do teor da Sentença de que se recorre, a Meritíssima Juiz a quo tomou a sua decisão por ter considerado que estava perante um contrato que teria sido celebrado entre a Autora/Recorrente, e um casal, BB e Ré/Recorrida, de comodato com o fim de ser a casa de morada de família da Ré/Recorrida e deste seu companheiro,
III. Por sinal, companheiro esse que afinal é o gerente único e legal representante da Autora.
IV. Ora, em virtude de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, esta apreciação que suporta a Sentença não pode ser considerada válida, invalidando, assim, a decisão que ora se coloca em causa, no que a esse propósito diz respeito.
V. Com efeito, e porque se afigura de maior importância para o desfecho de todo o processo em si, é importante que se altere a matéria que a Meritíssima Juiz a quo considerou como Factos Provados, no seu ponto 12.), na medida em que a mesma não corresponde à factualidade real e que ficou assente em audiência de julgamento.
VI. Outrossim, deve ser dado como Provado o ponto c) dos Factos não Provados da Sentença, conforme se explanará.
VII. Na verdade, quando a Meritíssima Juiz explana na sua decisão que “o prédio continuar a servir esses interesses – casa de morada de família da Ré e das filhas –, manter-se-á a finalidade que presidiu à celebração do contrato de comodato, sendo lícito à Ré a recusa da sua restituição.”, aprecia, com o devido respeito, de forma incorrecta uma das questões primordiais desta acção, e que se prende com a eventual celebração de um contrato de comodato entre a Autora/Recorrente, e Ré/Recorrida.
VIII. Decretou a Sentença de que ora se recorre, que tal seria a conclusão a retirar dos depoimentos (atendendo a que contrato físico não existe), o que não pode estar mais longe da verdade, conforme os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, onde não só a própria Ré admite um cenário oposto, como admitir o que a Sentença decretou, sempre seria uma impossibilidade – o que é do conhecimento da própria Ré/Recorrente.
IX. Na verdade, toda a factualidade dos presentes autos resume-se a um conjunto de decisões singulares do gerente único e legal   representante da Autora/Recorrente – e seu Sócio maioritário, que à data das mesmas era companheiro da Ré/Recorrida,
X. Sendo que esta se pretende fazer valer dessa sua qualidade – de companheira desse legal representante da Autora/Recorrente – para se arrogar num inexistente direito de assumir que celebrou contratos com esta, o que não aconteceu e, convenhamos, não é juridicamente admissível.
XI. De toda a prova produzida, em momento algum a Ré/Recorrida logrou provar que celebrou contrato com quem quer que fosse, e muito menos com o seu próprio companheiro,
XII. Pelo que as conversas entre casais, com o devido respeito, não podem resultar em obrigações vinculísticas para uma qualquer sociedade da qual seja um dos elementos do casal representante legal.
XIII. E se um legal representante de uma qualquer sociedade tomar a decisão pessoal e singular – pois que é disso que se trata – daí não se pode extrapolar a aquisição de direitos por parte de cônjuges, companheiros ou mesmo herdeiros,
XIV. Sob pena de se estar a subverter toda a lógica legal da orgânica societária.
XV. No mesmo sentido, todas as decisões tomadas pelos gerentes de facto de uma qualquer sociedade, quando têm uma implicação sobre os seus familiares – mulher, filhos, pais – não resultam na criação de direitos nas esferas jurídicas desses,
XVI. Caso contrário sempre que um gerente decidisse pela utilização, ainda que abusiva, de determinados bens, e com isso colocasse em causa a propriedade ou o direito de uso e fruição dos mesmos, tornaria a vida societária impossível, diríamos até, ilegalizada por força das circunstâncias de risco que envolviam o património da sociedade.
XVII. De facto, e começando pelos considerandos procedimentais, ficou provado que o prédio em causa nos autos não possui licença de habitabilidade, conforme o depoimento da testemunha CC, pelo que nunca sobre tal prédio poderia incidir um direito atinente com habitação e uma casa de morada de família, comprovando assim que o uso que lhe era dado era o de uma mera tolerância de uso, por parte do legal representante e gerente único da Autora/Recorrente, e que afectava a Ré/Recorrida, pelo simples facto de ser sua companheira, e não por ter sido ela a celebrar um contrato com a Autora/Recorrente, nada mais, dando como provado o mencionado ponto c) dos Factos Não Provados.
XVIII. Outrossim, e contrariando a estatuição da Sentença de que o fim daquele contrato de comodato – a existir – seria o de servir de casa de morada de família, é a própria Ré/Recorrida quem declara, em sede de declarações de parte, que a sua vida, no que a habitação familiar dizia respeito, era repartida entre o imóvel objecto da presente acção, e uma outra habitação, essa sim, ainda hoje propriedade dela própria Ré/Recorrida
XIX. Ou seja, é a própria Ré/Recorrida em sede de audiência de julgamento quem demonstra claramente que nunca, em momento algum, existiu o momento de celebração de um contrato de comodato, contrariando a factualidade dada por Provada no ponto 12.) da Sentença, mas sim uma tolerância de uso, uso esse que foi acontecendo e de forma intermitente, mas sem pré-determinação nenhuma – sendo que o objectivo da aquisição, como ficou provado, até foi outro.
XX. E ainda que apenas usavam – ela, Ré/Recorrida e o legal representante da Autor/Recorrente – a casa objecto da presente acção para que a mesma não ficasse degradada, o que demonstra bem ser, não um qualquer contrato de comodato com a Ré/Recorrida, mas sim decisões singulares do gerente único e legal representante da Autora/Recorrente, por sinal companheiro da Ré/Recorrida à data desses factos,
XXI. O que demonstra que não existia contrato de comodato algum com a Ré/Recorrida,
XXII. Ficando claro e cristalino qual o fim que presidiu à utilização daquele bem, ou seja, uma decisão do gerente único e legal representante da Autora/Recorrente, por sinal companheiro da Ré/Recorrida à data desses factos, como fim declarado pela própria Ré/Recorrida de preservação de um bem – ou seja, manter um bem imóvel em bom estado para o vender, prosseguindo assim o escopo da Autora/Recorrente.
XXIII. No fundo, foi um verdadeiro acto de gestão para preservar um activo da Autora/Recorrente, e assim poder a Autora/Recorrente beneficiar na experada venda do imóvel,
XXIV. Pelo que, na condição de companheira do autor do acto, inevitavelmente a Ré/Recorrida beneficiou dessa circunstancia exclusivamente por ser a companheira     do referido gerente único       e legal representante da Autora/Recorrente,
XXV. E não por ter esta celebrado qualquer contrato com a Autora/Recorrente, como erradamente escreveu na sua Contestação – mas que esclareceu aquando das suas declarações em sede de Audiência de Julgamento, o que não pode ser afastado.
XXVI. Mas ainda que se considerasse que tivesse celebrado esse contrato, o fim declarado nunca poderia ser o de ser esta tida como casa de morada de família, conclusão que a Meritíssima Juiz a quo entendeu ser elementar, atendendo a que nunca, em momento algum, foi produzida prova nesse sentido.
XXVII. Considerar, como a sentença o fez, que existia um contrato de comodato e com o fim de destinação à casa de morada de família é algo que a Autora/Recorrente tem de discordar em absoluto, fruto da apreciação completamente diversa das declarações não só da própria Ré/recorrida, mas como das suas próprias testemunhas, logo sempre terão de ser depoimentos e declarações tidas, na óptica da Autora/Recorrente, como inilidíveis.
XXVIII. Como nunca poderia ser esta tida como casa de morada de família, conclusão que a Meritíssima Juiz a quo entendeu ser elementar para fundamentar a parte da Sentença de que se recorre,
XXIX.  E que a Autora/Recorrente tem de discordar em absoluto, fruto da apreciação completamente diversa das declarações não só da própria Ré/recorrida, mas como das suas próprias testemunhas, logo sempre terão de ser depoimentos e declarações tidas, na óptica da Autora/Recorrente, como inilidíveis.
XXX. Aliás, e atendendo às declarações da testemunha DD, a Ré e o legal representante da Autora sempre usufruíram de todos os imóveis propriedade da empresa, e não se pode considerar, por isso, que a Ré/Recorrida tenha celebrado um contrato de comodato relativamente a todos os bens da Autora/Recorrida, ou até mesmo que todos sejam considerados como habitação de morada de família, pelo que também aqui se conclui, sem margem para dúvida, que todas essas utilizações não tinham por base a celebração de um qualquer contrato entre a Autora/Recorrente e a Ré/Recorrida, mas sim decisões singulares do gerente único e legal representante da Autora/Recorrente.
XXXI. Como ficou claro, o uso deste imóvel de forma intermitente e transitória como habitação nunca foi o objectivo que presidiu, não só à aquisição de tal imóvel, como ficou provado, mas como também à permissão de uso que a Autora/Recorrente concedeu ao seu gerente único e sócio maioritário.
XXXII. Mais a mais, é de novo a própria Ré/Recorrida quem, nas suas declarações produzidas em sede de audiência de julgamento, atesta que a casa chegou a ser posta à venda, e por cerca de 600.000,00€ ou 700.000,00€,
XXXIII. Por tudo o sobredito, andou mal a Sentença ao declarar que, em primeiro lugar, existiu um contrato de Comodato entre a Autora/Recorrente e BB e a Ré/Recorrida, e, mais grave, deduzir consequentemente que esse contrato teve por fim a destinação desse prédio como casa de morada de família da Ré/Recorrida.
XXXIV. É claro e inequívoco que a utilização do prédio objecto foi uma de muitas decisões singulares do gerente único e legal   representante da Autora/Recorrente, sendo que a Ré/Recorrida beneficiava dessas decisões pelo simples facto de ser companheira desse gerente único, BB, e não por ter celebrado um qualquer contrato com a Autora/Recorrente.
XXXV. Para além de tudo o que foi esclarecido no que à prova testemunhal produzida em sede de audiência diz respeito, não podemos deixar de discordar de uma clara dualidade de critério da Meritíssima Juiz a quo no que à apreciação de provas disse respeito,
XXXVI. Na medida em que, por um lado, a Meritíssima Juiz considerou um documento junto aos autos, fls. 43, emitido pela Junta de Freguesia ..., como prova válida para atestar que o legal representante da Autora/Recorrente e a Ré/Recorrida mantinham uma relação de unidos de facto,
XXXVII. Mas desvalorizou por completo que esse mesmo documento, um atestado de uma Junta de Freguesia, uma entidade pública, a declarar que eles residem naquela freguesia, na ... – o que foi confirmado por vários depoimentos já transcritos – não teve qualquer valor para o Tribunal desconsiderar a classificação do imóvel objecto dos autos como a “casa de morada de família” da Ré/Recorrida.
XXXVIII. No nosso entender, andou mal nessa parte igualmente a Sentença.
XXXIX. Assim, deverá ter-se por Não Provado o ponto 12.) dos Factos Provados da Sentença,
XL. E deverá considerar-se por Provado o ponto c.) dos Factos Não Provados da Sentença.
XLI. Assim sendo, a douta Sentença recorrida não procedeu a uma correcta interpretação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, pelo que deverá ser substituída por decisão que que se coadune com a alteração da factualidade nos termos acima expostos,
XLII. E, consequentemente, absolva a Autora ora Recorrente de reconhecer a existência do contrato de comodato para uso de habitação familiar sobre prédio identificado nos autos, absolva a Autora de se abster de praticar qualquer ato que impeça ou dificulte a utilização desse imóvel por parte da Ré ora Recorrida enquanto casa de morada de família, e condena a Ré ora Recorrida a restituir à Autora o prédio urbano qua ocupa, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava aquando da cessão gratuita e temporária, e a pagar à Autora ora Recorrente a quantia peticionada a titulo de indemnização por cada mês de ocupação abusiva, contados desde a data da sua citação até à data da entrega efetiva do prédio.

SEM PRESCINDIR,

XLIII. Ainda que a decisão sobre a matéria de facto se mantenha inalterada, entende a Recorrente que o Julgador do Tribunal recorrido aplicou indevidamente o Direito à factualidade resultante dos autos quando decidiu absolver a Ré de restituir à Autora o prédio urbano qua ocupa, e que é propriedade da Autora.
XLIV.   não se conforma a Autora ora Recorrente com a decisão proferida pelo Tribunal recorrido uma vez que a expressão empregue no artigo 1137º nº 1 do Código Civil “uso determinado” deve ser interpretada no sentido de que a determinação do uso envolve a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo em consequência considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada mas antes de actos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, isto é, se for concedido por tempo indeterminado.
XLV. Portanto, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável.
XLVI. Em razão dessa nota de temporalidade, assumida como traço essencial do comodato, a Jurisprudência do Venerando Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que, quando a coisa é entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para uma determinada finalidade, não a utilização da coisa em si.
XLVII. Se emprestar uma vivenda para a realização de uma festa constitui comodato para uso determinado, já não constitui comodato para uso determinado o empréstimo da referida vivenda para habitação.
XLVIII. Por isso, não será ao abrigo do uso determinado da coisa que ficará impedido o comodante de exigir a restituição ad nutum nos termos do artigo 1137º nº 2 do Código Civil.
XLIX. O uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que não se pode considerar como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai durar, ou seja, um uso genérico e abstracto que pode subsistir indefinidamente, pois que, de contrário, se atingiria a própria noção do contrato dada pelo artigo 1129º do Código Civil, de que faz parte a obrigação de restituir a coisa entregue, o que revela o carácter temporal do uso.
L. Não será de aceitar um comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente e sem limites o gozo da coisa.
LI. Debruçando-nos sobre o caso em apreço, foi estabelecido com o legal representa da Autora e com a Ré um comodato, e não um direito de habitação (figura de tipo real e não obrigacional).
LII. Não agindo como titular do direito de propriedade ou do direito de habitação, a Ré deve ser considerada mera detentora ou possuidora precários, nos termos do artigo 1253.º, al. a) do Código Civil.
LIII. Não se pode olvidar que está em causa um contrato gratuito, entre uma pessoa colectiva com escopo lucrativo, e a Ré, mera detentora do imóvel, pelo que não se deve aceitar que a Recorrente, enquanto comodante, haja de permanecer vinculada por período de tempo indeterminado que pode ser o da própria vida da Ré enquanto comodatária (bastando a esta continuar a habitar no imóvel).
LIV. E é exactamente por a Autora ser uma pessoa colectiva, que pode ter interesses distintos dos interesses pessoais dos seus administradores, que não deve prevalecer o direito invocado pela Ré ora Recorrida quanto à atribuição da casa de morada de família, em relação à Autora ora Recorrente, pois esta não esteve, obviamente unida de facto com a Ré, nem sobre as relações encetadas entre Autora e Ré podem aplicar-se as regras dos artigos 1105.º e 1793.º, do Código Civil.
LV. Além disso, atendendo à natureza do contrato, não parece dever aceitar-se que um comodante que ceda a coisa ainda que sem ficar convencionado prazo certo, possa ficar numa situação substancialmente mais gravosa do que aquela em que ficaria se tivesse querido tirar proveito da coisa, arrendando-a por contrato de duração indeterminada, passível hoje de denúncia ad nutum.
LVI. De resto, num contrato intuitus personae e gratuito - como é o comodato – claramente que não se pretendeu que o comodante ficasse na contingência de não poder reaver a coisa dada em cómodo.
LVII. Face a esta obrigação de restituição que impende sobre o comodatário, torna-se, assim, evidente o carácter temporário do contrato, pois de outro modo, estar-se-ia a desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel.
LVIII. Até porque, no comodato, dois requisitos são necessários para caracterizar o uso determinado do empréstimo de prédio: a) que ele esteja expresso de modo bem claro; b) e, para evitar que em parte a situação se possa confundir com uma atitude de doação, que esse uso seja de duração limitada.
LIX. A Jurisprudência do Venerando Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que não se pode considerar como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai durar, ou seja, um uso genérico e abstracto que pode subsistir indefinidamente,
LX. Pois que, de contrário, se atingiria a própria noção do contrato dada pelo artigo 1129º do Código Civil, de que faz parte a obrigação de restituir a coisa entregue, o que revela o carácter temporal do uso.
LXI. Assim, quando a coisa é entregue para uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para uma determinada finalidade, e não a utilização da coisa em si mesma, como o mero empréstimo da casa para habitação.
LXII.    Não seve ser, por isso, à luz do uso determinado da coisa que o comodante ficaria impedido de exigir a restituição ad nutum nos termos do art.º 1137.º, n.º 2 do Código Civil.
LXIII. Assim, e ao contrário do entendimento do Juiz a quo, não deve ser admitido que o comodante não possa exigir a restituição da coisa no comodato de imóvel ainda que o mesmo esteja a ser utilizado para satisfação de uma necessidade permanente do comodatário: a de habitação.
LXIV. De outro modo, o comodante corre o risco de nunca recuperar a coisa comodatada, que é sua,
LXV. Ou, a aceitar-se o vertido na douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, o comodatário passa a beneficiar de um comodato vitalício e o comodante converte-se numa espécie de doador.
LXVI. Em suma, da essência do contrato de comodato resulta sempre para o comodatário um direito de uso temporalmente limitado,
LXVII. E o contrato de comodato em que não se estipulou prazo certo para a restituição da coisa, nem delimitou temporalmente o uso da coisa emprestada, considera-se como sendo um contrato de duração indeterminada, tendo o comodante direito a denunciar o contrato e a exigir, a todo o momento, a restituição da coisa, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 1137º, do Código Civil.
LXVIII. Resulta da matéria de facto dada como provada que a Autora é uma sociedade comercial por quotas, tendo por objeto social a construção civil e obras públicas, compra, venda e revenda de bens imóveis; que a finalidade da aquisição do prédio em causa, por parte da Autora, era destiná-lo à revenda, que, apesar das diligências efetuadas pela Autora, no sentido de a Ré proceder à desocupação e entrega do prédio em causa, a Ré não o fez, mantendo-se aí contra a vontade da Autora, e que a Ré está a fazer com que a Autora se veja impedida de levar a cabo o fim para o qual adquiriu o prédio que com a sua ocupação impede a Autora de o revender, e ainda que a Autora, de forma gratuita, entregou o prédio identificado a BB e à Ré para que servissem dele, para sua habitação e da filha(mais velha de ambos), com a obrigação de o restituírem.
LXIX. Para que houvesse lugar à aplicação do regime estabelecido no nº 1 do citado artigo 1137º, conforme entendeu o Julgador de 1º Instância, tornaria-se necessária a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer.
LXX. Ao não se ter estipulado prazo certo para a restituição da coisa emprestada, nem existindo aquela delimitação, o comodante, ora Recorrente, tem direito a exigir a todo o momento a restituição da coisa, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no nº 2 daquele mesmo artigo, que visa precisamente impedir, nestes casos, a perpetuação das relações obrigacionais de comodato.
LXXI. Deve portanto o Tribunal ad quem adoptar a interpretação mais consentânea, quer com o carácter temporário do contrato de comodato, quer com o princípio geral emanado do artigo 237º do Código Civil, segundo o qual, em caso de dúvida, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravoso para o disponente.
LXXII. Consequentemente, no caso em apreço, a Ré ora Recorrida, enquanto comodatária está obrigada a restituir a coisa logo que lhe tenha sido exigida pela autora ora Recorrente enquanto comodante, extinguindo-se o comodato anteriormente celebrado.
LXXIII. Pelo que, deverá a Sentença proferida em 1º Instância ser revogada, por violação dos artigos 1.º a 4º da Lei n.º 7/2001, de 11.05, e artigos 237º, 1105.º, 1129º, 1137º e 1793º do Código Civil
LXXIV. E deverá ser substituída por outra que, além de condenar a Recorrida a reconhecer que a Recorrente é a titular do direito de propriedade sobre o prédio descrito nos autos, condene a Recorrida a restituir à Recorrente o prédio urbano qua ocupa, identificado nos autos, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava aquando da cessão gratuita e temporária, e a pagar à Recorrente a quantia peticionada a título de indemnização por cada mês de ocupação abusiva, contados desde a data da sua citação até à data da entrega efetiva do prédio.
Termos em que, e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via dele, ser revogada a Sentença recorrida e, em consequência: I – Ser a matéria de facto alterada nos termos expostos e, em consequência, ser a Ré/Recorrida condenada nos exactos termos do peticionado em sede de petição inicial, a saber:
- A restituir à Autora o prédio urbano qua ocupa, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava aquando da cessão gratuita e temporária;
- A pagar à Autora a quantia de € 1.050,00 (mil e cinquenta euros), a título de indemnização por cada mês de ocupação abusiva, contados desde a data da sua citação até à data da entrega efetiva do prédio.
E ser a Autora Recorrida absolvida dos pedidos contra si formulados:
i) A reconhecer a existência do contrato de comodato para uso de habitação familiar sobre o prédio identificado em 1.º/i);
ii) A abster-se de praticar qualquer ato que impeça ou dificulte a utilização desse imóvel por parte da Ré-Reconvinte enquanto casa de morada de família.

ASSIM SE FARÁ, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!».
*
Contra-alegou a recorrida AA, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida (ref.ª ...34  - fls. 176 e ss.).
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (ref.ª ...78).
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II. Delimitação do objeto do recurso              

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do(a) recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:               
No caso, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:         
i. Da impugnação da decisão da matéria de facto;
ii. Da qualificação jurídica do contrato;
iii. Se a Ré é detentora de um direito que legitime o uso da coisa e a sua não restituição imediata à Autora.
*
III. Fundamentos

i) A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
- Oriundos da petição inicial:
1. A Autora é uma sociedade comercial por quotas, tendo por objeto social a construção civil e obras públicas, compra, venda e revenda de bens imóveis, urbanizações e empreendimentos imobiliários e hoteleiros, gestão, administração e arrendamento de imóveis, projetos de arquitetura, urbanismo e engenharia, importação e exportação (artigo 1.º).
2. A aquisição do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...69/... encontra-se inscrita a favor da Autora pela Ap. ...43 de 2012/09/21 (parte do artigo 2.º).
3. Por escritura pública outorgada no dia 21.09.2012, no Cartório Notarial ..., situado na rua ..., ..., o Banco 1..., SA (ali representada por EE), declarou vender à Autora (ali representado por BB), que declarou aceitar, pelo preço de oitenta mil euros, o prédio urbano composto de parcela de terreno para construção urbana, sito no lugar ... ou Quinta ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...69/freguesia ..., inscrito ma respetiva matriz sob o artigo ...68 (artigo 3.º).
4. Foram efetuadas obras sobre a construção implantada no prédio aludido em 2., após a aquisição mencionada em 3. (parte do artigo 4.º).
5. A finalidade da aquisição do prédio em causa, por parte da Autora, era destiná-lo à revenda (artigo 5.º).
6. A Ré ocupa o imóvel (parte do artigo 10.º).
7. Apesar das diligências efetuadas pela Autora, no sentido de a Ré proceder à desocupação e entrega do prédio em causa, a mesma não o fez, mantendo-se aí contra a vontade da Autora (artigo 12.º).
8. A Ré está a fazer com que a Autora se veja impedida de levar a cabo o fim para o qual adquiriu o prédio (artigo 18.º).
9. A ocupação do prédio pela Ré impede que a Autora de dar ao prédio identificado em 2. o destino mencionado em 5. (artigo 18.º)
- Oriundos da contestação:
10. A Ré é sócia da Autora (parte do artigo 9.º).
11. A Ré e BB (sócio e gerente da Autora) tiveram um relacionamento, em regime de união de facto, durante cerca de 17 anos, fruto do qual nasceram duas filhas (parte dos artigos 4.º e 6.º).
12. A Autora, de forma gratuita, entregou o prédio identificado a BB e à Ré para que servissem dele, para sua habitação e da filha (mais velha de ambos), com a obrigação de o restituírem (parte dos artigos 37.º e 89º).
13. Após a realização das obras mencionadas em 4., o prédio identificado em 2. foi habitado, primeiro, pelo ex-casal formado por BB e pela Ré e pela filha mais velha e, após a separação, em novembro de 2019, continua a ser habitado apenas pela Ré e pelas filhas (parte dos artigos 23.º, 41.º e 100.º).
*
ii) - E deu como não provados os seguintes factos:
- Oriundos da petição inicial:
a. O imóvel identificado em 2. foi adquirido durante a sua construção, tendo sido a Autora quem realizou as obras mencionadas em 4. (parte do artigo 4.º).
b. A Autora, por si e antecessores, há mais de 20 (vinte) anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, com a convicção de exercer um direito próprio, praticou os atos referidos em a. (artigo 7.º).
c. A Autor autorizou a Ré, por mera tolerância, a ocupar o imóvel mencionado em 2..
d. O valor de renda do prédio identificado em 2. é, no momento atual, nunca inferior a 1.050,00 € (artigo 20.º).
- Oriundos da contestação:
e. O relacionamento entre a Ré e BB foi superior ao lapso de tempo referido em 11. (parte do artigo 6.º).
*
V. Fundamentação de direito.

1. – Da impugnação da decisão da matéria de facto.
1.1. Em sede de recurso, a apelante/A. impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o/a recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no artigo 640º do CPC, no qual se dispõe:

1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».
Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que a recorrente indica quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redacção que deve ser dada quanto à factualidade que entende estar mal julgada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua óptica o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que fazem assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação e localização, pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o triplo ónus de impugnação estabelecido no citado art. 640º. 
*
1.2. Por referência às suas conclusões, extrai-se que a A./recorrente pretende:
i) - A alteração da resposta positiva para negativa do ponto 12 da matéria de facto provada da decisão recorrida;
ii) - A alteração da resposta negativa para positiva da alínea c) da matéria de facto não provada da decisão recorrida.
Os pontos impugnados apresentam o seguinte teor:
“12. A Autora, de forma gratuita, entregou o prédio identificado a BB e à Ré para que servissem dele, para sua habitação e da filha (mais velha de ambos), com a obrigação de o restituírem (parte dos artigos 37.º e 89º)”.
“c. A Autor autorizou a Ré, por mera tolerância, a ocupar o imóvel mencionado em 2.”.
Cumpre, pois, analisar das razões de discordância invocadas pela apelante e se as mesmas se apresentam de molde a alterar a facticidade impugnada, nos termos por si invocados.
Antes, porém, de iniciarmos a nossa análise sobre se a discussão probatória fundamentadora da decisão corresponde, ou não, à prova realmente obtida, importa deixar consignadas duas breves considerações:
i) - Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à audição integral da gravação dos depoimentos (declarações de parte da Ré e das testemunhas) invocadas na apelação e dos que serviram de fundamento à motivação da sentença recorrida, não nos tendo restringido aos trechos parcelares e/ou truncados (de tais depoimentos) invocados na apelação como justificadores da impugnação da matéria de facto; para além disso, foram analisados todos os documentos carreados aos autos.
ii) - No caso vertente, após a audição integral de tais depoimentos prestados e análise de toda a prova documental produzida, desde já podemos adiantar ser de sufragar, na íntegra, a valoração/apreciação explicitada pelo Tribunal recorrido, o qual – contrariamente ao propugnado pela recorrente –, em obediência ao estatuído no art. 607º, n.º 4 do CPC, fez uma análise crítica objetiva, articulada e racional da globalidade da prova produzida, que se mostra condizente com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, logrando alcançar nos termos do n.º 5 do citado normativo uma convicção quanto aos factos em discussão que se nos afigura adequada, lógica e plausível, em termos que (como melhor explicitaremos) nos merece adesão praticamente total.
*
1.3. Dito isto, vejamos então, circunstanciadamente, os factos impugnados.

Não oferece contestação que:
a) - A Autora é uma sociedade comercial por quotas, tendo por objeto social a construção civil e obras públicas, compra, venda e revenda de bens imóveis, urbanizações e empreendimentos imobiliários e hoteleiros, gestão, administração e arrendamento de imóveis, projetos de arquitetura, urbanismo e engenharia, importação e exportação (ponto 1 dos factos provados);
b) - Por escritura pública outorgada no dia 21.09.2012, no Cartório Notarial ..., o Banco 1..., SA declarou vender à Autora (ali representado por BB), que declarou aceitar, pelo preço de oitenta mil euros, o prédio urbano composto de parcela de terreno para construção urbana, sito no lugar ... ou Quinta ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...69/freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...68 (ponto 3 dos factos provados);
- A aquisição desse prédio urbano encontra-se inscrita a favor da Autora pela Ap. ...43 de 2012/09/21 (ponto 2 dos factos provados);
- Após a mencionada aquisição foram efetuadas obras sobre a construção implantada no referido prédio (ponto 4 dos factos provados);
- A finalidade da aquisição do prédio em causa, por parte da Autora, era destiná-lo à revenda (ponto 5 dos factos provados);
- A Ré é sócia da Autora (ponto 10 dos factos provados);
- A Ré e BB (sócio e gerente da Autora) tiveram um relacionamento, em regime de união de facto, durante cerca de 17 anos, fruto do qual nasceram duas filhas (ponto 11 dos factos provados);
- Após a realização das mencionadas obras, o identificado prédio urbano foi habitado, primeiro, pelo ex-casal formado por BB e pela Ré e pela filha mais velha e, após a separação, em novembro de 2019, continua a ser habitado apenas pela Ré e pelas filhas (ponto 13 dos factos provados);
- A Ré ocupa o imóvel (ponto 6 dos factos provados).
Feita esta enunciação fáctica que não merece controvérsia, não podemos deixar de ter presente que a sociedade autora tem como gerente único e legal representante o BB, sendo que a forma de obrigar a sociedade se faz com a intervenção de um gerente; como sócios, além do referido BB, sócio maioritário, são-no também a ora recorrida AA e a filha de ambos, FF.
Serve isto para dizer que, ao contrário do propugnado pela recorrente, não são irrelevantes as “decisões singulares do gerente único e legal representante da Autora/Recorrente – e seu Sócio maioritário, que à data das mesmas era companheiro da Ré/Recorrida”, posto estas vincularem a referida sociedade.
Tão pouco resulta dos autos tratar-se de (meras) conversas entre casais, que alegadamente serviriam para gerar obrigações vinculísticas para a sociedade. Sendo o BB o gerente único da sociedade autora e tomando decisões em prol dessa sociedade, que a vinculam, nomeadamente quando toma decisões sobre o uso, disponibilidade ou cedência de certos e determinados bens que compõem o seu património, não pode a sociedade pretender desobrigar-se dessas obrigações contratuais sob o pretexto de estar em causa uma decisão com reflexos familiares. Assumindo a veste de representante legal da autora nas decisões que toma, não pode posteriormente alijar-se dessa qualidade a fim de pretender ver desonerada a sociedade das obrigações contratuais validamente assumidas. Sem embargo da eventual responsabilidade societária, isso é questão que terá de ser dirimida entre a sociedade e o seu gerente pelos actos por este praticados em nome daquela, o que exorbita o âmbito destes autos.
No caso é indiscutível que, após a aquisição do prédio urbano pela sociedade autora e a feitura de algumas obras, o prédio passou a ser habitado, primeiro, pelo ex-casal formado por BB e pela Ré e pela filha mais velha e, após a separação do casal, ocorrida em novembro de 2019, continua a ser habitado apenas pela Ré e pelas filhas.
Essa decisão de habitar o prédio urbano em causa partiu do gerente e legal representante da autora, BB, o qual, à data, vivia em união de facto com a ré, tendo determinado que ali seria estabelecida a habitação/residência do casal, bem como da filha (mais velha de ambos).
Essa facticidade foi confirmada, em sede de declarações de parte prestadas em audiência de julgamento, pela Ré, a qual declarou, entre o mais, que a sua residência coincide com esse prédio desde 2014/2015, onde reside com as filhas, sendo que o ex-companheiro também ali residiu.
Explicitou a existência de um acordo celebrado com a A., representada pelo seu legal representante BB, no sentido do prédio ser usado para habitação pelos membros da união de facto e das filhas, sem qualquer prazo e sem qualquer contrapartida monetária, e que o pedido de restituição do prédio por parte da Autora apenas surgiu após a cessação da situação de união de facto e dos litígios judiciais entretanto surgidos.
Rejeitou residir na ... referindo, sim, ser, juntamente com a filha mais velha, titular de um prédio pequeno sito nesse lugar, o qual não está habitado.
Em sentido convergente depôs a testemunha FF, filha da ré e de BB, que à data da audiência de julgamento contava 19 anos.
Esclareceu que os seus pais viveram juntos mais de 20 anos, tendo o pai saído de casa no final do ano de 2019.
Esclareceu que, primeiro, residiram em casa dos avós, na ..., ..., e, posteriormente, há cerca de 6 (seis) anos, provavelmente em 2014/2015, quando a testemunha tinha 13 anos, passaram a residir na casa sita em ..., dela fazendo a partir de então uma utilização diária, sendo aí que residem e recebem amigos.
Diversamente do aduzido pela recorrente, o facto de o prédio em causa não possuir licença de habitabilidade não é impedimento a que o mesmo tenha sido cedido, temporária e gratuitamente, ao casal formado pelo BB e Ré, para que estes dele se servissem, para sua habitação e da filha (mais velha de ambos).
Tanto assim é que, no tocante ao facto de o prédio reunir condições de habitabilidade, não oferece dúvidas que, após a realização de obras, o identificado prédio foi, efectivamente, habitado, primeiro, pelo ex-casal formado por BB e pela Ré e pela filha mais velha e, após a separação do casal, em novembro de 2019, continuou a ser habitado apenas pela Ré e pelas filhas.
Portanto, o invocado circunstancialismo (falta de licença de habitabilidade) não é impeditivo da celebração do contrato de comodato. Mas ainda que obstasse, esse facto por si nenhum reflexo teria na impugnação da decisão da matéria de facto, mas sim (eventualmente) na impugnação da matéria de direito.
Por outro lado, da prova produzida resultou inequívoco que o BB e a Ré tinham ali instalada a sua “habitação familiar” desde 2014/2015, inexistindo qualquer elemento probatório produzido nos autos que aponte no sentido de que essa “habitação familiar” “era repartida entre o imóvel objecto da presente acção, e uma outra habitação, essa sim, ainda hoje propriedade dela própria Ré/Recorrida”.
Embora o propósito inicial da aquisição do prédio pela A. tenha sido destiná-lo à revenda (ponto 5 dos factos provados), foi salientado o facto de, ulteriomente, ter sido destinado para habitação dos dois sócios da sociedade e da filha (mais velha de ambos).
Por referência ao depoimento da testemunha DD, cunhada da Ré, nada indicou de prestável no sentido de infirmar a matéria factual objeto dos pontos impugnados.
Salientou, aliás, que o BB e a Ré viveram em união de facto, sendo que esse relacionamento findou em novembro de 2019.
Inicialmente residiram na ..., com os sogros da testemunha, tendo-se mudado para o prédio objeto dos autos em 2014, pertença da autora – o BB e a Ré sempre usufruíram de todos os imóveis da sociedade –, o qual passou a constituir a casa de morada de família do casal, onde residiam, recebiam amigos e a correspondência.
Acresce que o facto do imóvel ter sido colocado à venda – segundo a Ré, o anúncio de venda foi uma prospeção –, também não invalida nem infirma a facticidade objeto do ponto 12 dos factos provados.
 No tocante à declaração da Junta de Freguesia ..., de ..., cuja cópia consta de fls. 43, no qual se atesta que a Ré vive em união de facto com BB desde 2002, e onde, depois de se proceder à sua identificação, se diz que aquela reside na Rua ..., ..., a recorrida, confrontada com essa declaração, explicitou a motivação da obtenção dessa declaração – porque o BB dizia que não tinha vivido com ela em união de facto –, tendo salientado que até 2014 residiram, de facto, em ..., e, desde então, no prédio identificado nos autos, facto este unanimemente corroborado pela demais prova testemunhal produzida nos autos (e que corresponde ao ponto 13 dos factos provados). 
É, por isso, de subscrever a afirmação aduzida na motivação da sentença recorrida quando nela se refere não ter sido apurado que a ré resida na freguesia ... desde os anos 2014/2015 até à atualidade, bem como a explicação para que, no referido atestado, conste a referência a ... deve-se, provavelmente, ao facto de o casal ter chegado a ter ali estabelecida a sua residência, conforme esclarecido pela filha FF.
Serve isto para dizer que é manifestamente infundado o argumento que a recorrente pretende retirar da dita declaração da Junta de Freguesia ....
Para terminar, e a fim de responder às objeções suscitadas pela A./recorrente quanto à valoração da prova produzida, permitimos socorrer-nos da motivação da sentença recorrida na parte em que a Mm.ª Juíza “a quo” escreveu:
Considerando o tempo pelo qual se protrai a utilização do prédio, tendo em conta a destinação que lhe tem sido dada, e ponderando ainda que as obras realizadas no imóvel destinaram-se a melhorar as condições de habitabilidade, entende-se que a articulação destes factos permite inferir a existência de um acordo entre a Autora e o seu gerente e a Ré, de forma a que o utilizassem de modo gratuito para servir de morada à família que então formavam (família que era composta, de início, por BB, pela Ré e pela filha mais velha de ambos, mais tarde aumentada com o nascimento de uma segunda filha).
Desde logo tendo em atenção a natureza consensual do acordo, a tal não obsta o facto referido pela testemunha GG de que não conhece nenhuma deliberação social e/ou contrato (escrito) sobre o empréstimo do prédio.
Acresce que, sendo a Autora, ao tempo da aquisição do prédio e do início da habitação, detida pelos membros da ex-união de facto, e sendo os dois administradores da mesma (veja-se que a Ré apenas deixou de ser representante da Autora quando esta foi transformada de sociedade anónima para sociedade por quotas, o que foi levado a registo a 23.12.2019 – cfr. certidão permanente de fls. 127 a 130), é plausível, à luz das regras da experiência comum, que não tivesse havido uma preocupação de formalizar a cedência do prédio, porque os interessados–que vinculavam a sociedade e que dela eram sócios – estavam de acordo na constituição dessa situação jurídica.
Todavia, isso não significa que a raiz dessa habitação tenha configurado uma situação de mera tolerância, atento o caráter de permanência associado à utilização que lhe foi dada”.
Revemo-nos, por inteiro, nessas judiciosas asserções, que secundamos e reiteramos.
Assim sendo, é de manter inalterado o julgamento efectuado pelo Tribunal “a quo”, no que concerne ao ponto 12 da matéria de facto provada e à alínea c) dos factos não provados.
Em suma, não se evidenciando dos autos qualquer elemento idóneo que possa abalar a livre convicção do tribunal recorrido quanto aos fundamentos da decisão sobre a matéria de facto, resta concluir pela total improcedência da pretensão da recorrente, mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
*
2. – Da reapreciação da matéria de direito.
2.1. Da qualificação jurídica do contrato.
Após afirmar que a acção, à qual está ainda acoplado um pedido de natureza indemnizatória, consubstancia uma acção de reivindicação, tal como definida no art. 1311º, n.º 1, do Código Civil (CC) e que, reconhecido o direito de propriedade, a restituição do imóvel reivindicado “só pode ser recusada desde que se prove a existência de um direito real ou obrigacional, que legitime o uso da coisa”, a sentença ora censurada caracterizou a relação estabelecida entre A., aqui apelante, e o seu legal representante e a Ré, aqui apelada, como subsumível a um contrato de comodato, sem prazo, mas com uso ou destino determinado: para que servisse de habitação ao ex-casal composto pelo legal representante da Autora e pela Ré e respetiva família (da qual faziam parte os ex-membros da união de facto e a filha mais velha de ambos).
Escreveu-se ali:
(…) a natureza temporária do contrato de comodato ocorre na situação sub judice, uma vez que o prédio não foi comodatado, simplesmente, para habitação da Ré e do gerente da Autora; antes, o prédio foi objeto do contrato de comodato para servir de habitação da família composta por aqueles e pela filha de ambos, constituindo a sua casa de morada de família (onde também passou a morar a outra filha do casal entretanto nascida).
Pelo que, até à data em que o prédio continuar a servir esses interesses – casa de morada de família da Ré e das filhas –, manter-se-á a finalidade que presidiu à celebração do contrato de comodato, sendo lícito à Ré a recusa da sua restituição.
Deste modo, improcede tanto o pedido de entrega do prédio reivindicado como o pedido de natureza indemnizatória formulado pela Autora, posto que este tinha como pressuposto a ocupação abusiva do mesmo”.
A recorrente insurge-se não só quanto à qualificação jurídica do contrato feito na sentença recorrida – pugnando pela não demonstração da existência de um contrato de comodato celebrado entre a autora e a Ré/Recorrida –, mas também da subsunção jurídica que nela foi levada a efeito, , aduzindo, em resumo e em conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que não se pode considerar como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai durar, ou seja, um uso genérico e abstracto que pode subsistir indefinidamente, como seja o mero empréstimo da casa para habitação, sob pena de o comodatário passar a beneficiar de um comodato vitalício e o comodante converte-se numa espécie de doador; logo, o contrato de comodato em que não se estipulou prazo certo para a restituição da coisa, nem delimitou temporalmente o uso da coisa emprestada, considera-se como sendo um contrato de duração indeterminada, tendo o comodante direito a denunciar o contrato e a exigir, a todo o momento, a restituição da coisa, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 1137º do CC.
Vejamos como decidir.
É incontroverso que a acção, donde emerge a apelação, corresponde a uma ação de reivindicação de prédio urbano, utilizado para habitação. Esta acção caracteriza-se pelo reconhecimento do direito de propriedade e pela consequente restituição da coisa (art. 1311.º, n.º 1, do CC).
Reconhecido o direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada desde que se prove a existência de um direito real ou obrigacional, que legitime o uso da coisa.
No caso vertente, sem qualquer oposição, encontra-se reconhecido o direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado a favor da Recorrente.
A controvérsia jurídica, como se especificou, reside, por um lado, na qualificação jurídica do contrato celebrado quanto à cedência do prédio urbano, e, por outro, quanto à questão da restituição do imóvel, impondo-se conhecer por ora da primeira questão.
O art. 1129.º do C. CC define o comodato como o “contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
O referido contrato está sujeito à disciplina dos arts. 1130º a 1141º do mesmo diploma legal.
Com o comodato, o comodatário adquire um direito pessoal de gozo sobre a cosia que é objeto deste negócio[1].
Trata-se de um contrato que, por só se concluir validamente com a entrega da coisa ao comodatário, reveste a natureza de um contrato real quoad constitutionem.
Caracteriza-se por ser um contrato gratuito. Dada esta caraterística, fundamental, “(…) não há, por conseguinte, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou o correspectivo da atribuição efectuada pelo comodante (…) Se, em troca do uso da coisa, o contraente, que a recebe, promete alguma prestação, o contrato deixa de ser comodato e passa a ser de arrendamento, de aluguer ou um contrato atípico, consoante os casos[2].
Só cria obrigações para o comodatário (art. 1135.º do CC). Pode suceder, no entanto, que venham a surgir obrigações a cargo do comodante, pelo que o comodato é tido em regra como um contrato bilateral imperfeito ou não sinalagmático; não há, de facto, uma relação de interdependência e reciprocidade entre as obrigações do comodatário e as do comodante.
A gratuidade do comodato não impede a possibilidade de o comodante impor certos encargos ao comodatário, sem natureza correspetiva (cláusulas modais); por ex., pagar o IMI ou outros relativos ao prédio.
Trata-se de um contrato consensual, na medida em que o Código não faz qualquer exigência quanto à forma do comodato (art. 219º do CC), exceptuando a necessidade da entrega da coisa, dado o carácter real do contrato.
Reveste também as características da temporalidade, na medida em que não se tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso genérico ou de duração incerta. O uso concedido ao comodatário é, por natureza, temporário e o tempo pode ser fixado no contrato e também decorrer do fim previsto. A lei não impõe limite máximo nem mínimo, exceptuando o que provenha do direito temporário do comodante[3].
Embora a lei não estabeleça um limite à duração do uso da coisa, a verdade é que tem de considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, pois de outro modo e como sublinham Pires de Lima e Antunes Varela[4], a atribuição de um uso muito prolongado reconduz o comodato à doação indireta e, tratando-se da atribuição de um uso por toda a vida do comodatário, ao direito de habitação
A entrega da coisa ao comodatário tem por fim o uso desta, em que há uma simples atribuição do uso da coisa, para todos os fins lícitos ou alguns deles, dentro da função normal das coisas da mesma natureza [art. 1131º do CC] e não, em princípio, da atribuição do direito de fruição [art. 1132º do CC][5].
Não sendo um contrato translativo da propriedade e não agindo como titular do direito de propriedade ou do direito de habitação, o comodatário só tem a qualidade de detentor ou possuidor precário do bem dado em comodato, nos termos do disposto no art. 1253º, al. a), do CC, estando obrigado, nos termos do art. 1135º, al. h), do CC, a «restituir a coisa findo o contrato».
O comodante deve abster-se de praticar actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, mas não sendo obrigado a assegurar-lhe esse uso (art. 1133º, n.º 1, do CC).
Por último, trata-se de um contrato em geral celebrado no interesse do comodatário, porquanto a coisa é dada para cómodo de quem a recebe.
No caso concreto mostra-se provado que a Autora entregou, de forma gratuita, o reivindicado prédio a BB e à Ré para que servissem dele, para sua habitação e da filha (mais velha de ambos), com a obrigação de o restituírem, sendo que o prédio foi habitado, primeiro, pelo ex-casal formado por BB e pela Ré e pela filha mais velha e, após a separação, em novembro de 2019, continua a ser habitado apenas pela Ré e pelas filhas.
Em face da facticidade apurada não suscita qualquer reparo a qualificação jurídica do contrato dos autos como comodato, uma vez que estão reunidos os elementos característicos desta figura típica, identificada, como vimos, no art. 1129º do CC[6].
Na verdade, provada, como vem, a expressa autorização para passar a viver no prédio urbano, o que é o mesmo que dizer que houve entrega do prédio com tal finalidade, com a obrigação de futura restituição, crê-se que estão presentes os elementos que integram o contrato de comodato.
Não se está perante uma situação de simples tolerância revelada por mera atitude de passividade da A./Recorrente face a uma intromissão da Ré (ou do ex-casal formado por BB e pela Ré) no gozo no prédio urbano para sua habitação, de um acto unilateral desta que a A. se tenha limitado a suportar, não impedindo ou impedindo, mas também não autorizando nem reconhecendo.
Não se manifestam comportamentos de tolerância de que a Ré (ou o dito ex-casal) se tenha apenas aproveitado, de natureza não contratual, que, como previsto no art. 1253º, al. b) do CC, geram a figura de simples detenção ou posse precária.
Longe disso, a Autora autorizou a ocupação do prédio urbano e cedeu o gozo do mesmo a BB e à Ré para que servissem dele, para sua habitação e da filha (mais velha de ambos), consentindo que fosse utilizado para o fim aludido.
Não se apresenta uma mera situação de passividade perante uma actuação de outrem, deparando-se sim com uma posição activa, a encerrar uma declaração negocial, que se resolve na entrega da coisa para proporcionar o respectivo gozo. A vinculação jurídica à cedência do gozo do prédio urbano integrável na figura do contrato de comodato resulta evidente.
Dizer, por último, que as objeções colocadas pela A./recorrente quanto à qualificação do contrato feita na sentença recorrida tinham (seguramente) como pressuposto a procedência da impugnação da decisão da matéria de facto, condição esta que se tem por inverificada.
Termos em que improcede este fundamento da apelação.
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2.2. Da (i)legitimidade da recusa de restituição do prédio por parte da Ré/recorrida.
A controvérsia jurídica, como se especificou, reside essencialmente na questão da restituição do imóvel.
Deste modo, importa aferir se existe algum direito real ou direito obrigacional que legitime o uso do prédio pela Recorrida e, nesse caso, justificar a recusa da restituição, como se decidiu na sentença recorrida, ou, caso contrário, determinar a restituição do prédio, dando assim procedência total à acção de reivindicação, como pugnado pela recorrente.

Relativamente à restituição da coisa entregue em comodato, o art. 1137º do CC determina:

1. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação.
2. Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.
3. É aplicável à manutenção e restituição da coisa emprestada o disposto no art. 1043º”.

Do normativo citado resultam três situações[7]:
- se for convencionado um prazo certo de duração do contrato, a restituição só é devida decorrido esse prazo, independentemente de interpelação do comodatário pelo comodante. Como é usual nas obrigações de prazo certo, o vencimento não carece de interpelação (art. 805º, n.º 2, al. a) e 1137º, n.º 1, do CC). O contrato caduca automaticamente ou ope legis;
- não tendo estipulado prazo certo, mas se a coisa foi emprestada para um uso determinado, o comodatário deve restituí-la assim que o uso finde. Logo que termine o uso, o contrato caduca, não sendo necessário que o comodante interpele o comodatário. Esta situação, porém, pressupõe que as partes não tenham ajustado prazo de vigência, pois o termo do uso da coisa, como causa de caducidade, funciona como alternativa à primeira situação, em que se convencionou um prazo certo para a duração do contrato. A caducidade é automática, opera ope legis, não carecendo de declaração a enviar ao comodatário, como resulta do art. 1137.º, n.º 1, in fine;
- não tendo sido convencionado prazo para a restituição nem resultando do acordo o uso determinado a que a coisa se destina, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida (n.º 2 do art. 1137.º do CC).
Neste último caso, em que não foi estabelecido prazo certo e também não se podendo figurar a hipótese de empréstimo para uso determinado, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato.
Trata-se do chamado “comodato precário” em que a obrigação de restituição do comodatário surge por força de uma manifestação arbitrária da vontade do comodante[8]. O comodatário incorrerá em responsabilidade civil pelo incumprimento, ficando obrigado a restituir a coisa logo que lhe seja exigida e extinguindo-se o comodato.
Coloca-se, no caso sub júdice, a questão de saber se se trata de uma hipótese subsumível ao n.º 1 ou ao n.º 2 do art. 1137.º. Na ausência de estipulação de prazo certo ou de finalidade estrita, nos termos do n.º 2 do art. 1137.º o comodante pode, em qualquer altura, por termo à relação contratual, pelo que nessa hipótese a acção de reivindicação procede.
Não estando provado que algum prazo certo haja sido convencionado para o uso da coisa comodada, importará centrar a nossa atenção se o comodato foi (ou não) constituído com afectação da coisa para uso determinado, o mesmo é dizer para utilização específica.
Em consonância com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça[9], dir-se-á que «no empréstimo “para uso determinado”, a determinação do uso, contém, ela mesma, a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não sendo de considerar como determinado o uso de certa coisa se não se souber - nos casos em que o uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada, mas de actos genéricos de execução continuada - por quanto tempo vai durar, caso em que se haverá como facultado por tempo indeterminado. Deste modo, o uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável».
Nos termos do Acórdão do STJ de 26/11/2020 (relatora Graça Trigo), in www.dgsi.pt., para que haja lugar à aplicação do regime estabelecido no n.º 1 do citado  art. 1137º do CC necessário se torna a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, pelo que, não se estipulando prazo certo para a restituição da coisa emprestada, nem existindo aquela delimitação, o comodante tem direito a exigir a todo o momento a restituição da coisa, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 daquele mesmo artigo, que visa precisamente impedir, nestes casos, a perpetuação das relações obrigacionais de comodato.    
Com efeito, quando a coisa é entregue para uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para uma determinada finalidade, e não a utilização da coisa em si mesma. Emprestar a vivenda para a realização de uma festa constitui comodato para uso determinado, mas não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo da referida vivenda para habitação. Não seria, por isso, à luz do uso determinado da coisa que o comodante ficaria impedido de exigir a restituição ad nutum nos termos do art. 1137.º, n.º 2. Daí que no comodato sejam necessários dois requisitos para caracterizar o uso determinado do empréstimo da coisa: 1.º que ele esteja expresso de modo claro; 2.º que esse uso seja de duração limitada (para evitar que em parte a situação se possa confundir com uma atitude de doação). O uso só é determinado quando se delimita temporalmente a necessidade que o comodatário visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai perdurar. Um uso genérico e abstrato suscetível de subsistir indefinidamente atingiria a própria noção de comodato plasmada no art. 1129.º, que integra a obrigação de restituir e, assim, revela o carácter temporário do uso[10].
A propósito do limite temporal do direito de uso inerente ao contrato de comodato, Rodrigues Bastos[11] entendia ter de «considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de se desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel (…). Um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indirecta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar toda a vida da outra parte, o comodato caracterizar-se-ia em direito de uso e habitação».
Regista-se, porém, uma recente corrente no Supremo Tribunal de Justiça que, não descurando o concreto circunstancialismo, tem vindo a adoptar uma interpretação das normas que comporte a protecção familiar. Tutelam-se situações em que, não obstante faltar um prazo certo, a cedência do prédio tem um uso determinado e específico, consistente no da habitação efectiva do casal em termos de ser considerada a casa de morada de família, de modo a incorporar a protecção familiar, sobretudo dos filhos[12].
Isto porque, entende-se, a necessidade da proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação[13].
Quanto à questão em apreço – de o empréstimo ou comodato do imóvel ter sido para uso determinado – respondeu a sentença impugnada em sentido afirmativo, pugnando a recorrente por resposta de sinal contrário, o que legitimaria a restituição do prédio à reivindicante, mercê da denúncia do contrato, nos termos e para os fins do disposto no art. 1137º, n.º 2, do CC.
Pois bem, como bem aduziu a Mm.ª Juíza “a quo”, na análise da questão em apreço não podemos deixar de ter presente algumas regras atinentes ao regime jurídico da união de facto.
Isto porque, está provado, o ex-casal composto pela Ré e BB (sócio e gerente da Autora) tiveram um relacionamento, em regime de união de facto, durante cerca de 17 anos, fruto do qual nasceram duas filhas, sendo que o prédio reivindicado foi habitado, primeiro, pelo ex-casal formado por BB e pela Ré e pela filha mais velha e, após a separação, em novembro de 2019, continua a ser habitado apenas pela Ré e pelas filhas (pontos 11 e 13 dos factos provados).
Segundo a noção dada pelo art. 1.º, n.º 2, da Lei n.º 7/2001, de 11.05, na redacção introduzida pela Lei n.º 23/2010, de 30.08, a “união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.
As pessoas vivem em comunhão de leito, mesa e habitação, como se fossem casadas, apenas com a diferença de que não o são, pois não estão ligadas pelo vínculo formal do casamento.
A circunstância de viverem como se fossem casadas cria uma aparência externa de casamento, em que terceiros podem confiar, o que explica alguns dos efeitos atribuídos à união de facto[14].
As pessoas que vivem em união de facto protegida têm direito a protecção da casa de morada de família, nos termos estabelecidos por essa lei (art. 3.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 7/2001).
Prevendo sobre a protecção da casa de morada da família em caso de ruptura, o art. 4.º prescreve que o “disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil é aplicável, com as necessárias adaptações, em caso de ruptura da união de facto”.
Assim, se a casa de morada de família pertencer em compropriedade a ambos os membros da união de facto, qualquer deles pode pedir ao tribunal que lhe dê de arrendamento a casa, verificadas as condições e nos termos prescritos naquele preceito legal; do mesmo modo, se a casa for propriedade de um dos membros da relação, pode o outro fazer pedido idêntico (art. 1793º do CC).
Se os membros da união de facto viviam em casa tomada de arrendamento, o citado art. 4º manda aplicar, com as necessárias adaptações, o art. 1105º do CC. Assim, podem os dois acordar em que o arrendamento se transmita ao não arrendatário ou, se o arrendamento tinha sido feito pelos dois, se concentre a favor de um deles (art. 1105, n.º 1). Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta as circunstâncias referidas no art. 1105, n.º 2.
Por fim, dizer que a casa de morada da família é a sede da vida familiar, o local de cumprimento da obrigação de comunhão de habitação, em suma o espaço privilegiado de realização da comunhão conjugal[15].
Posto isto dir-se-á que, estando apurado que, pelo menos desde os anos 2014/2015, BB e a Ré estabeleceram a residência comum no prédio reivindicado, ali convivendo quer entre si (fruto do seu relacionamento emocional) quer com as suas filhas (sendo que uma nasceu posteriormente ao início dessa residência), é de secundar a afirmação contida na sentença recorrida quando nela se dá conta de que era nesse local que, até à data da ruptura, estava instalada a casa de morada de família dos membros da união de facto que a formavam.
Mais se subscreve a asserção de que, “[n]ão obstante BB (ex-unido) ser o gerente da Autora, a disputa que há quanto ao prédio é entre a sociedade (proprietária do prédio) e a Ré, mas não com vista à utilização da casa de morada de família. O conflito situa-se entre a proprietária do prédio e a ocupante (e não entre os ex-conviventes sobre quem deve permanecer na casa de morada de família).
Assim, a questão que se coloca é a de saber, fruto de o prédio reivindicado corresponder à casa de morada de família que se mantém a ser utilizada pela Ré (sem que seja conhecida oposição do ex-convivente quanto à sua fruição nessa qualidade), se existe uma proteção acrescida a favor da comodatária”.
Com atinência com o caso dos autos, no Ac. do STJ de 05/06/2018 (relator Olindo Geraldes) disponível em www.dgsi.pt., decidiu-se o seguinte:
 “I. Se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio.
II. Tratando-se de comodato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso.
III. A necessidade da proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação.
IV. Continuando a servir-se do prédio, por efeito do contrato de comodato, o comodatário possui título legítimo para a ocupação do prédio”.
No caso apreciado no aludido acórdão estava em causa um diferendo em que um dos autores, sucedendo na posição de um dos comodantes, entretanto falecido, pretendia que a ré, de quem se divorciara, restituísse a habitação na qual residia ao abrigo do acordo celebrado entre o autor e a ré quanto ao destino da casa de morada de família. 
Já no Ac. do STJ de 09/04/2019 (relatora Maria Olinda Garcia), acessível em www.dgsi.pt., explicitou-se a seguinte fundamentação:
“(…) o acordo que as partes celebraram reveste as notas típicas do contrato de comodato, tal como o art.1129º do CC o define. Tratou-se de um acordo através do qual o autor entregou à ré um imóvel, para que ela se servisse de tal bem (aí vivendo com os filhos menores do casal), de forma gratuita.
Trata-se de um contrato que é temporário [por definição, e porque o art.1135º, h) impõe a obrigação de restituição no final do contrato], mas as partes não têm necessariamente que convencionar um determinado termo. A duração do contrato pode corresponder à duração do uso específico para o qual o bem foi comodatado”.
Neste último caso estava em causa um contrato de comodato celebrado entre as partes, na constância do matrimónio, para que a ré deixasse a casa de morada de família, na qual o autor continuou a viver, para ir habitar, juntamente com os filhos do casal, no imóvel objecto do comodato; o tribunal entendeu resultar do acordo celebrado que o contrato duraria até à maioridade dos filhos comuns.

Por fim, no Ac. do STJ de 04/02/2021 (relator Manuel Capelo), in www.dgsi.pt., sumariou-se o seguinte:

I - Se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio.
II - No contrato de comodato sem prazo, mas que tenha por fim o uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso porque a necessidade da proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação.
III - Quando tenham sido celebrados entre o comodante e a comodatária dois comodatos tendo por objecto dois imóveis destinados a habitação, tendo a comodatária residência num deles, o destino dos imóveis não importa para se obter protecção dos interesses familiares relativamente àquele em que não se tenha residência permanente”.
Embora o circunstancialismo fáctico objeto dos dois primeiros arestos citados não seja integralmente coincidente com o verificado no caso dos autos, a verdade é que – como aduziu a Mmª Juíza “a quo” –  não deixa de ter pontos de conexão. Com efeito – socorrendo-nos mais uma vez da judiciosa fundamentação da sentença recorrida –, não obstante «nesta ação as partes não tenham sido unidas por um casamento entretanto dissolvido por divórcio, também aqui existe um contrato de comodato celebrado sobre um prédio destinado à habitação para fins de instalação da casa de morada de família. Essa casa de morada de família respeitava ao ex-casal formado pela Ré e pelo legal representante da Autora, que viviam numa situação de união de facto, em economia comum, com as filhas.
A necessidade do prédio para esses fins – habitação da Ré e da respetiva família (suas filhas) – persiste, muito embora a cessação da coabitação entre os membros da ex-união de facto entretanto ocorrida.
Ora, a permanência dessa necessidade habitacional para fins familiares impede a imediata restituição do prédio, em face do que preceitua o artigo 1137.º/1, do CCiv (que difere o dever de entrega da coisa objeto do comodato para o momento em que finde o uso determinado para que foi emprestada)».
E, mais adiante, quando nela se refere que «(…) a natureza temporária do contrato de comodato ocorre na situação sub judice, uma vez que o prédio não foi comodatado, simplesmente, para habitação da Ré e do gerente da Autora; antes, o prédio foi objeto do contrato de comodato para servir de habitação da família composta por aqueles e pela filha de ambos, constituindo a sua casa de morada de família (onde também passou a morar a outra filha do casal entretanto nascida).
Pelo que, até à data em que o prédio continuar a servir esses interesses – casa de morada de família da Ré e das filhas –, manter-se-á a finalidade que presidiu à celebração do contrato de comodato, sendo lícito à Ré a recusa da sua restituição».
Por conseguinte, tratando-se, no caso, de contrato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o prédio identificado, enquanto continuar a ter esse uso, atento o disposto no art. 1137.º, n.º 1, do CC.
A estes pertinentes argumentos aduzidos na sentença recorrida permitimo-nos acrescentar a circunstância de a Autora/recorrente, proprietária do imóvel dos autos, ser, no comodato em apreço, a comodante (e não terceiro adquirente do imóvel), pelo que está vinculada à observância do contrato livremente celebrado[16]. Sendo o comodatário titular de um direito pessoal de gozo, com a posição de mero detentor ou possuidor precário do imóvel comodado, a invocação desse título é legítima relativamente ao comodante, de acordo com o regime legal do contrato de comodato[17].
Dispondo a recorrida do direito de continuar a servir-se do prédio, por efeito do contrato de comodato, que se mantém em vigor, a mesma possui, assim, título legítimo para a ocupação do prédio.
Nesta conformidade, não obstante o reconhecimento do direito de propriedade, é lícito recusar a restituição do prédio, por efeito da existência do contrato de comodato, que favorece a ocupante, nomeadamente nos termos do n.º 2 do art. 1311.º do CC[18].
A autora mostra-se, pois, vinculada ao comodato, em termos de não poder proceder o pedido de reivindicação.
Nesta conformidade, o recurso terá de improceder, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
*
As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
*
VI. DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo da Autora/recorrente (art. 527.º do CPC).
*
Guimarães, 21 de setembro de 2023

Alcides Rodrigues (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Ana Cristina A. O. Duarte (2º adjunta)


[1] Cfr. José Andrade Mesquita, Direitos Pessoais de Gozo, Almedina, 1999, p. 46.
[2] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed. Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1986, p. 661.
[3] Cfr. A. Santos Justo, Manual de Contratos Civis, Vertentes Romana e Portuguesa, Petrony, 2017, p. 334.
[4] Cfr. Código Civil (…), Vol. II, p. 675.
[5] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil (…), Vol. II, p. 662.
[6] Para a caracterização do comodato não é suficiente a existência de uma mera situação de tolerância, mas já preenche a figura do comodato a ocupação de um prédio, a título gratuito, com autorização do seu proprietário [cfr. Ac. do STJ de 6/05/1982 (relator Abel Campos), com sumário disponível in www.dgsi.pt.].
[7] Cfr. Neste sentido, Pedro Romano Martinez, Da cessação do contrato, 3ª ed., Almedina, 2017, pp. 337/338.
[8] Cfr. Acórdão do STJ de 2/06/2020 (relator Fernando Samões), Revista n.º 1580/14.9TBVNG.P1.S1, ECLI:PT:STJ:2020:3355.16.1T8AVR.P1.S1; Acs. do STJ de 21/03/2019 (relatora Maria do Rosário Morgado), de 05.06.2018 (relator Olindo Geraldes); de 1/03/2012 (relator Pires da Rosa), de 15/12/2011 (relator Salazar Casanova) e de 16/11/2010 (relator Alves Velho), todos publicados em www.dgsi.pt.; Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, 13.ª ed., Almedina, pp. 377/378; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, (…), pp. 675/676, José Andrade Mesquita, obra citada, p. 48/49; António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, XII – contratos em especial (2.ª parte), Almedina 2018, p. 167 e A. Santos Justo, Manual de Contratos Civis, (…), pp. 348/349.
[9] Cfr. Acs. do STJ de 16/11/2010 (relator Alves Velho), de 21/03/2019 (relatora Maria do Rosário Morgado), de 26/11/2020 (relatora Graça Trigo) e de 9/12/2021 (relatora Rosa Tching), todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Acs do STJ de 15/12/2011 (relator Salazar Casanova) de 21/03/2019 (relatora Maria do Rosário Morgado) e de 14/12/2021 (relatora Maria João Tomé), in www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Notas ao Código Civil, Vol. IV, 1995, Rei dos Livros, p. 250.
[12] Cfr., a título exemplificativo, os Acs. do STJ de 05/06/2018 (relator Olindo Geraldes), de 09/04/2019 (relatora Maria Olinda Garcia) e de 04/02/2021 (relator Manuel Capelo), todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[13] Cfr. Salter Cid, A Proteção da Casa de Morada de Família no Direito Português, 1996, p. 229.
[14] Cfr. Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, Almedina, 2020, p. 337.
[15] Cfr. Jorge Duarte Pinheiro, O direito da Família Contemporâneo, 7ª ed. Gestlegal, 2020, p. 551.
[16] Isto porque, a contrário, entende-se que um comodato celebrado entre os proprietários de um imóvel e terceiros não vincula futuros adquirentes do mesmo imóvel. Vale a regra de que, fora dos casos especialmente previstos na lei, os contratos não têm eficácia perante terceiros (n.º 2 do art. 406º do Código Civil), vinculando apenas as respectivas partes [cfr. Ac. do STJ de 22/09/2016 (relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt.].
Nas palavras de José Andrade Mesquita, o “comodatário deixa de poder gozar a coisa se o comodante transmitir o direito com base no qual celebrou o contrato, uma vez que nada obriga o terceiro a respeitar a vinculação assumida pelo comodante, valendo o princípio geral do art. 406º, n.º 2”, do CC (cfr., obra citada, pp. 50 e 165).
[17] Cfr. Ac. do STJ de 30/03/2017 (relator Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt.
[18] A fim de repelir a reivindicação, como referem Pires de Lima e Antunes Varela, o demandado pode contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade ao autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real), que lhe confira a posse ou a detenção legitime o uso da coisa (cfr. Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed. Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1987, p. 116).