Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
109/23.2T8AMR.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: INTERPRETAÇÃO DOS ARTICULADOS
SENTIDO NORMAL DA DECLARAÇÃO
LEITO DO CAMINHO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Aos articulados da acção, como a quaisquer documentos ou declarações, aplicam-se as regras da interpretação das declarações negociais – art.º 236º nº 1 ex vi art.º 295º do Código Civil. Valem com o sentido que um declaratário normal deva retirar das mesmas
II - Considerando os princípios que enformam o actual processo civil, decorrentes do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, a interpretação dos articulados, no caso da Petição Inicial, deve ter presente a máxima da prevalência do fundo sobre a forma, de molde a que importe o que é efectivamente pretendido pelas partes no processo, apesar das eventuais incorrecções formais.
III - Os direitos reais, sejam eles o direito de propriedade ou o mais limitado direito de servidão predial, incidem sobre coisas em sentido jurídico, tal como vêm definidas nos artºs 202º e segs. do Código Civil (CC).
IV - O caminho privado ou particular não é uma coisa em sentido jurídico, sobre a qual incidam direitos reais. Caberia, com muito esforço, na definição de prédio rústico (uma parte delimitada do solo), mas não é esse o sentido comum e jurídico da palavra, pois carece da indispensável autonomia para constituir uma unidade predial.
V - Assim, o leito dos caminhos particulares integra sempre o prédio onde se situam e a quem servem em exclusivo ou servem de acesso a prédio de terceiro, a favor de quem existe um direito de passagem (servidão predial de passagem) – art.º 1543º do CC.
VI - Reconhecendo-se que a redacção da petição é imperfeita, não deixa de dela constar, expressamente, que o caminho, a que chamam “estrada”, foi aberto pelos antecessores dos Autores no respectivo prédio e que o integra.
VII - Assim, o que se debate na presente acção e reconvenção é apenas se a faixa de terreno onde assenta o caminho (o leito), a que os Autores chamam “estrada”, integra o prédio pertencente aos Autores ou antes integra o prédio da Ré.
VIII - Não vemos articulada qualquer servidão de passagem, que sempre teria de incidir sobre prédio da Ré ou de terceiro, o que não se refere, nem explícita nem implicitamente, pelo contrário, sempre se reafirmando que o terreno íntegra o prédio dos Autores.
IX - Consequentemente os pedidos formulados pelos Autores deverão ser interpretados neste sentido, não se vislumbrando os assacados vícios de cumulação de causas de pedir incompatíveis e ininteligibilidade da causa de pedir.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
 
I – RELATÓRIO

AA e mulher, BB, casados no regime da comunhão geral de bens, instauraram acção declarativa, com processo comum, contra ”EMP01..., Lda.”, formulando os seguintes pedidos:

a) Ser declarado e reconhecido o direito de propriedade dos AA. sobre a estrada, cuja, em terra batida, começa na estrada nacional (EN ...05, km 47,600), com 3,62 m2 de largura e se prolonga por cerca de 48m de comprimento;
b) Ser a R. condenada a reconhecer tal direito;
c) Ser a R. condenada a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra o direito de propriedade dos AA, mormente, abster-se de fazer uso da referida estrada;
d)-Ser a R. condenada a restituir a estrada dos AA. à situação anterior às obras, ou seja, a retirar o muro de betão com cerca de 30 cm de largura, por 48 m de comprimento e 50 cm de altura; e
e) Ser a R. condenada nas custas e demais encargos legais.  em que foi celebrado, nos termos do art.º 257º do Código Civil”.

Alegaram na P.I.:
«1.º Os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio misto, sito na Av.ª ..., freguesia ..., concelho ..., o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...13 - ...: “(…) Casa de rés-do-chão e andar, para habitação, com ..., com 510m2; CAMPO ..., 4.200m2 (…)”,
2.º e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o n.º ...94 - ...: “(…) Casa de r/c e 1º andar para habitação com CC (…)” e rústica sob o n.º ...24 - ...: “(…) Cultura arvense de regadio, ramada, pomar de pessegueiros, 10 oliveiras, 5 castanheiros, 160 videiras em cordão (…).”.
3.º A qualidade de donos e legítimos proprietários do melhor identificado supra imóvel adveio aos aqui AA. por doação dos Pais do A. marido, DD e EE.
– Tudo melhor conforme documentos que ora se juntam sob os n.ºs 1, 2 e 3 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos e os devidos efeitos legais.

Ou seja,
4.º Há mais de 20, 30 e 50 anos, que os AA. estão, por si e seus ante possuidores, na posse pública, pacífica e de boa-fé do atrás aludido prédio e dele retiram todas as utilidades e proveitos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
Efetivamente,
5.º No dia ../../1966, o Pai do A. marido deu entrada na (antiga) Direcção de Estradas do Distrito ..., (atual) Infraestruturas de Portugal, num Requerimento, cujo era um pedido para “Abrir uma serventia carral para acesso à s/ prop.”, sita na “EN ...05, km 47,610”.
– Tudo melhor conforme documento que ora se junta sob o n.º 4 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos e os devidos efeitos legais.
6.º Tal Requerimento (pedido) deu origem ao Diploma de Licença n.º ...33 de 02 de setembro de 1966.
7.º Diploma de Licença esse, então, para “(…) abrir uma serventia carral, mediante a condição de calcetar o leito da serventia desde a entrada da mesma até a aresta da berma rematando aqui com um ângulo de 45º o portão deverá ficar a abrir para dentro da propriedade. Não é permitido depositar materiais no terreno do Estado ao km 47,610 da E.N. n.º ...05
(…)
A construção será executada no alinhamento distando 6,50m metros do eixo da estrada
(…).”.
8.º e cuja Informação prestada pela Direcção de Estradas do Distrito ... foi:
“(…)
Especificação da obra: Abrir uma serventia carral
Situação: EN ...05 Km 47,610
Alinhamento da obra referido ao eixo da estrada:6,50m
Informação: Não vejo inconveniente na concessão desta licença
(…).”.
9.º Continuando com,
“(…)
Obras não especificadas e quaisquer outras informações: Pretende o requerente abrir uma serventia carral para acesso á sua propriedade situada à margem esquerda da EN ...05.
Condições a impor:
O Requerente é obrigado a calcetar o leito da serventia desde a entrada do mesmo até à aresta da berma rematando aqui com um ângulo de 45º. O portão deverá ficar a abrir para dentro da propriedade do Requerente. Não é permitido depositar materiais no terreno do Estado.
Nestas condições julgo,
Não haver inconveniente na concessão desta licença.
(…).”. – Tudo melhor conforme documento que ora se junta sob o n.º 5 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos e os devidos efeitos legais.
Assim sendo,
10.º Do melhor identificado supra prédio rústico n.º ...24 - ..., propriedade dos AA., lado nascente, faz então parte integrante uma estrada,
11.º cuja, em terra batida, começa na estrada nacional (EN ...05, km 47,610), com 3,62 m2 de largura,
12.º prolonga-se por cerca de 48m de cumprimento,
13.º e termina num portão, também propriedade dos AA.,
14.º sendo essa estrada e portão, respetivamente, acesso e entrada principais para o e do seu prédio rústico n.º ...24 – .... – Tudo melhor conforme documentos que ora se juntam sob os n.ºs 6 e 7 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos e os devidos efeitos legais.
Acontece que,
15.º Confronta tal estrada, por sua vez e de nascente também, com um terreno onde, recentemente, foi erguido um prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, para comércio (R/C) e habitação (1º andar), com área total de terreno de 3.050,0000m2, sito na Avenida ..., freguesia ..., concelho ... (...), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09 – ... e inscrito no respetivo artigo matricial n.º ...38 - ... (tendo tido a sua origem nos artigos urbano n.º ...39 e rústico n.º ...23),
– Tudo melhor conforme documentos que ora se juntam sob os n.ºs 8, 9 e 10 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos e os devidos efeitos legais.
16.º tendo o mesmo as confrontações seguintes, a saber: “(…) de norte, FF, sul, DD, nascente e poente com estrada (…).”
- Tudo melhor conforme documento que ora se juntou sob o n.º 8 e bem assim documento que ora se junta sob o n.º 11 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos e os devidos efeitos legais.
Não obstante,
17.º Exatamente desse lado, poente, efetuou a R. consideráveis obras de construção civil de aterro e terraplanagem para a construção de uma passagem e bem assim de um parque ou zona de estacionamento automóvel, alcatroado e a servir o prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, para comércio (R/C) e habitação (1º andar),
18.º que destruíram por completo a estrada em terra batida de 3,62 m2 de largura por 48m de cumprimento, lá existente, propriedade dos AA.,
19.º e fazendo-a, desta forma, parte integrante do prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, para comércio (R/C) e habitação (1º andar),
E mais ainda,
20.º Erguendo a R. um muro de betão com cerca de 30 cm de largura, por 48 m de cumprimento e 50 cm de altura.
– Tudo melhor conforme documentos que ora se juntam sob os n.ºs 12 a 25 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos e os devidos efeitos legais.
Ora,
21.º As obras que a R. executou na melhor descrita supra estrada ofendem o direito de propriedade dos AA.
Efetivamente,
22.º Desde que a mesma se iniciou, não mais conseguiram estes aceder nem entrar no que é seu, o prédio rústico n.º ...24 – ...,
Pelo que,
23.º A obra causa-lhes consideráveis prejuízos,
24.º prejuízos estes na contingência de serem, mais e maiores, pela integração do que é seu, a estrada de 3,62 m2 por 48m de cumprimento, no prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, para comércio (R/C) e habitação (1º andar), com área total de terreno de 3.050,0000m2, sito na Avenida ..., freguesia ..., concelho ... (...), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09 e inscrito no respetivo artigo matricial n.º ...38 (tendo tido a sua origem nos artigos urbano n.º ...39 e rústico n.º ...23),
E que,
25.º Pese embora as diversas interpelações efetuadas pelos AA. à R.,
26.º sempre a R., obstinadamente, se recusou a deixar de fazer.
Assim sendo,
27.º Está a R., sem qualquer título, ilegalmente e contra a vontade dos AA., a integrar o que é seu, a estrada, no prédio propriedade sua,
28.º a fazer seu, a tomar posse, a/da estrada que é dos AA.
29.º Estando, assim, de má fé na posse da mencionada estrada.».
*
A Ré apresentou contestação e deduziu reconvenção, concluindo que deve:

«1. Improceder a ação de processo comum que se contesta, com os devidos efeitos legais;
2. Ser julgada procedente por provada a reconvenção e, por consequência, declarar-se a Reconvinte dona a legítima possuidora do prédio urbano e da parcela de terreno identificados nos artigos 64º a 73º da reconvenção;
3. Condenar-se os AA. / Reconvindos a reconhecer a aqui Reconvinte / R. o direito de propriedade sobre o prédio e a parcela de terreno, que chama de estrada, em terra batida, em causa e de que os AA. se querem apropriar.
4. Condenar-se os AA. / Reconvindos a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra o direito de propriedade da Reconvinte, mormente, de fazer uso da referida estrada / parcela de terreno com 3,62 metros de largura por 48 metros de comprimento;»

Alegou para tanto e em síntese, que desde há mais de 01, 05, 10, 15, 20, 30, 40, 50 e mais anos, ininterruptamente, têm sido o Lote de Terreno para construção urbana, a casa de rés-do-chão, para comércio e andar, para habitação, com logradouro, e por consequência, a parcela que os AA. / reconvindos apelidam de “estrada”, em terra batida, retidos e fruídos pela Reconvinte e seus antepossuidores, à vista de toda a gente e com o conhecimento da generalidade dos vizinhos, inclusive dos Reconvindos, e sem oposição de ninguém, convencidos de que exerciam e exercem direito próprio, de propriedade, e ignorando, desde sempre, que lesavam qualquer direito alheio, desde sempre sobre este prédio (inicialmente constituído por lote de terreno para construção urbana e mais tarde, após a construção levada a cabo no ano de 1967 por GG e HH, por casa de rés-do-chão, para comércio e andar, para habitação, com logradouro) agindo a Reconvinte e os seus antepossuidores como seus únicos donos e legítimos possuidores, que na realidade são.
 (…) Além disso, convictos do seu direito de propriedade sobre a estrada em terra batida / parcela ou faixa de terreno em questão, os antecessores da Reconvinte colocaram, junto à estrada ..., ..., um portão em chapa de ferro, por onde entravam e saíam não só os proprietários e usuários da moradia, mas também por onde entravam e saíam os clientes do café que os antecessores da Reconvinte no rés-do-chão da moradia abriram e durante muitos anos exploraram, portão, esse, perfeitamente visível nas fotos que se juntam sob os documentos 7, 8 e 11, ainda recentemente existente – cfr. docs. 12, 13 e 14 – que os antecessores da reconvinte diariamente abriam e fechavam e que constitui sempre o único acesso a partir da estrada nacional para o prédio da Reconvinte e dos seus antecessores – cfr. docs. 7, 8 , 11, 12, 13 e 14, tendo igualmente colocado pilaretes e muro, encimado por grades de ferro, iguais em ambos os lados da entrada, tal como o portão, e tendo pintado ambas as laterais da entrada da mesma tinta e mesma cor verde com que pintaram a casa de rés-do-chão e andar, conforme melhor se poderá verificar pelas fotos juntas e referentes a anos distintos - vejam-se doc. 2, 3, 3-A, 4, 5, 7, 8, 11, 12, 13 e 14.
Ora, se a entrada e a parcela / estrada de terra batida não fosse da R. e dos antepossuidores proprietários, por certo que os AA. não permitiram aquelas evidências.
*
Os Autores replicaram, sendo que, relativamente à matéria da reconvenção, reafirmaram, como já haviam alegado, que são os Autores/reconvindos e não a Ré/reconvinte, os donos e legítimos proprietários da estrada em terra batida que começa na estrada nacional (EN ...05, km 47,610), com 3,62 m2 de largura, que se prolonga-se por cerca de 48m de cumprimento e termina num portão, a qual faz parte integrante do prédio misto, sito na Av.ª ..., freguesia ..., concelho ..., o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...13 – ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o n.º ...94 - ...: “(…) Casa de r/c e 1º andar para habitação com CC (…)” e rústica sob o n.º ...24 – ..., estando na sua posse pública, pacífica e de boa-fé, por si e seus antepossuidores, se não antes, pelo menos desde ../../1966, ou seja, há mais de 20, 30 e 50 anos, – Cfr. documentos juntos sob os n.ºs 4 e 5 com a PI e que aqui igualmente se dão por integralmente reproduzidos para todos e os devidos efeitos legais.
A R., Reconvinte integrou o que é dos AA., Reconvindos (a estrada de 3,62 m2 por 48m de cumprimento), no prédio em propriedade total com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, para comércio (R/C) e habitação (1º andar), com área total de terreno de 3.050,0000m2, sito na Avenida ..., freguesia ..., concelho ... (...), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09 e inscrito no respectivo artigo matricial n.º ...38 (tendo tido a sua origem nos artigos urbano n.º ...39 e rústico n.º ...23).
*
Findos os articulados, foi proferido o seguinte despacho:
 Alegam os Autores que, depois de ter sido requerida e obtida licença, foi aberta uma serventia carral para acesso ao prédio que identifica no art. 1º da petição inicial, situado na margem esquerda da EN ...05.
Concluem sustentando que a estrada (serventia carral) faz, então, parte integrante do prédio, sendo em terra batida, começando na EN ...05, com 3,62 m2 de largura, prolongando-se por cerca de 48 metros e terminando num portão, também propriedade dos Autores.
Os Autores não identificaram o prédio que é atravessado pela serventia carral, desde o ponto em que se inicia junto à EN ...05 e até ao portão do prédio identificado no art. 1º da petição inicial.
Os Autores não juntaram o requerimento a que aludem no art. 5º da petição inicial (o doc.4 que juntaram, além de estar praticamente ilegível, não é um requerimento).
Assim, e ao abrigo do disposto no art. 590º, n.ºs 2, al. b), e 4, do CPC, convida-se os Autores a, no prazo de 10 dias, mediante a junção de novo articulado, aperfeiçoarem a petição inicial, suprindo as insuficiências na concretização da matéria de facto apontadas, e a juntarem o requerimento a que aludem no art. 5º da petição inicial.
*
Os Autores vieram apresentar nova P.I., nos seguintes termos:
1.º Os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio misto, sito na Av.ª ..., freguesia ..., concelho ..., o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...13 - ...: “(…) Casa de rés-do-chão e andar, para habitação, com ..., com 510m2; CAMPO ..., 4.200m2 (…)”,
2.º e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o n.º ...94 - ...: “(…) Casa de r/c e 1º andar para habitação com CC (…)” e rústica sob o n.º ...24 - ...: “(…) Cultura arvense de regadio, ramada, pomar de pessegueiros, 10 oliveiras, 5 castanheiros, 160 videiras em cordão (…).”.
3.º A qualidade de donos e legítimos proprietários do melhor identificado supra imóvel adveio aos aqui AA. por doação dos Pais do A. marido, DD e EE. – Tudo melhor conforme documentos que ora se juntam sob os n.ºs 1, 2 e 3 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos e os devidos efeitos legais. Ou seja,
4.º Há mais de 20, 30 e 50 anos, que os AA. estão, por si e seus ante possuidores, na posse pública, pacífica e de boa-fé do atrás aludido prédio e dele retiram todas as utilidades e proveitos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém. Pois que,
5.º Por ter intenção de proceder ao loteamento do imóvel sua propriedade, sendo que para o efeito um acesso (abertura) à (de/para a) Estrada Nacional seria necessário, no dia ../../1966, o Pai do A. marido deu entrada na (antiga) Direcção de Estradas do Distrito ..., (atual) Infraestruturas de Portugal, num Requerimento, cujo era um pedido para “Abrir uma serventia carral para acesso à s/ prop.”, sita na “EN ...05, km 47,610”. – Tudo melhor conforme documento que ora se junta sob o n.º 4 (Livro de Registo de Requerimento n.º ...00 de ../../.... – “... da S. .A. – Mod. 305”) e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos e os devidos efeitos legais.
6.º Tal Requerimento (pedido) deu origem ao Diploma de Licença n.º ...33 de 02 de setembro de 1966.
7.º Diploma de Licença esse, então, para “(…) abrir uma serventia carral, mediante a condição de calcetar o leito da serventia desde a entrada da mesma até a aresta da berma rematando aqui com um ângulo de 45º o portão deverá ficar a abrir para dentro da propriedade. Não é permitido depositar materiais no terreno do Estado ao km 47,610 da E.N. n.º ...05
(…)
A construção será executada no alinhamento distando 6,50m metros do eixo da estrada
(…).”.
8.º e cuja Informação prestada pela Direcção de Estradas do Distrito ... foi:
“(…)
Especificação da obra: Abrir uma serventia carral
Situação: EN ...05 Km 47,610
Alinhamento da obra referido ao eixo da estrada:6,50m
Informação: Não vejo inconveniente na concessão desta licença
(…).”.
9.º Continuando com,
“(…)
Obras não especificadas e quaisquer outras informações: Pretende o requerente abrir uma serventia carral para acesso á sua propriedade situada à margem esquerda da EN ...05.
Condições a impor:
O Requerente é obrigado a calcetar o leito da serventia desde a entrada do mesmo até à aresta da berma rematando aqui com um ângulo de 45º. O portão deverá ficar a abrir para dentro da propriedade do Requerente. Não é permitido depositar materiais no terreno do Estado.
Nestas condições julgo,
Não haver inconveniente na concessão desta licença.
(…).”.
– Tudo melhor conforme documento que ora se junta sob o n.º 5 e que aqui se dá por
integralmente reproduzido para todos e os devidos efeitos legais.
Nessa sequência,
10.º Do melhor identificado supra prédio rústico n.º ...24 - ..., propriedade dos AA., lado nascente, passou a fazer então parte integrante uma estrada,
11.º cuja, em terra batida, começava na estrada nacional (EN ...05, km 47,610), com 3,62 m2 de largura,
12.º e se prolongava por cerca de 48m de cumprimento.
13.º Por questões administrativas entretanto levantadas pela Câmara Municipal ..., a pretendida operação de loteamento não avançou,
14.º o que fez com que então o Pai do A. marido se visse forçado a, no melhor identificado supra prédio rústico n.º ...24 – ..., colocar portões,
15.º um, no inicio/entrada - estrada nacional (EN ...05, km 47,610), e
16.º o outro, no fim dos 48m de cumprimento.
17.º sendo essa estrada e portões, respetivamente, acesso e entrada principais para o e do seu prédio rústico n.º ...24 – ....
– Tudo melhor conforme documentos que ora se juntam sob os n.ºs 6 e 7 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos e os devidos efeitos legais.
Acontece que,
18.º Confronta tal estrada, por sua vez e de nascente também, com um terreno onde, recentemente, foi erguido um prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, para comércio (R/C) e habitação (1º andar), com área total de terreno de 3.050,0000m2, sito na Avenida ..., freguesia ..., concelho ... (...), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09 – ... e inscrito no respetivo artigo matricial n.º ...38 - ... (tendo tido a sua origem nos artigos urbano n.º ...39 e rústico n.º ...23), – Tudo melhor conforme documentos que ora se juntam sob os n.ºs 8, 9 e 10 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos e os devidos efeitos legais.
19.º tendo o mesmo as confrontações seguintes, a saber: “(…) de norte, FF, sul, DD, nascente e poente com estrada (…).”–– Tudo melhor conforme documento que ora se juntou sob o n.º 8 e bem assim documento que ora se junta sob o n.º 11 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos e os devidos efeitos legais.
Não obstante,
20.º Exatamente desse lado, poente, efetuou a R. consideráveis obras de construção civil de aterro e terraplanagem para a construção de uma passagem e bem assim de um parque ou zona de estacionamento automóvel, alcatroado e a servir o prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, para comércio (R/C) e habitação (1º andar),
21.º que destruíram por completo a estrada em terra batida de 3,62 m2 de largura por 48m de cumprimento, lá existente, propriedade dos AA.,
22.º e fazendo-a, desta forma, parte integrante do prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, para comércio (R/C) e habitação (1º andar),
E mais ainda,
23.º Erguendo a R. um muro de betão com cerca de 30 cm de largura, por 48 m de comprimento e 50 cm de altura. – Tudo melhor conforme documentos que ora se juntam sob os n.ºs 12 a 25 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos e os devidos efeitos legais.
Ora,
24.º As obras que a R. executou na melhor descrita supra estrada ofendem o direito de propriedade dos AA.
Efetivamente,
25.º Desde que a mesma se iniciou, não mais conseguiram estes aceder nem entrar no que é seu, o prédio rústico n.º ...24 – ...,
Pelo que,
26.º A obra causa-lhes consideráveis prejuízos,
27.º prejuízos estes na contingência de serem, mais e maiores, pela integração do que é seu, a estrada de 3,62 m2 por 48m de cumprimento, no prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, para comércio (R/C) e habitação (1º andar), com área total de terreno de 3.050,0000m2, sito na Avenida ..., freguesia ..., concelho ... (...), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09 e inscrito no respetivo artigo matricial n.º ...38 (tendo tido a sua origem nos artigos urbano n.º ...39 e rústico n.º ...23), E que,
28.º Pese embora as diversas interpelações efetuadas pelos AA. à R.,
29.º sempre a R., obstinadamente, se recusou a deixar de fazer. Assim sendo,
30.º Está a R., sem qualquer título, ilegalmente e contra a vontade dos AA., a integrar o que é seu, a estrada, no prédio propriedade sua,
31.º a fazer seu, a tomar posse, a/da estrada que é dos AA.
32.º Estando, assim, de má fé na posse da mencionada estrada.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Ex.a mui doutamente suprirá,
Requerem,
a) Ser declarado e reconhecido o direito de propriedade dos AA. sobre a estrada, cuja, em terra batida, começa na estrada nacional (EN ...05, km 47,600), com 3,62 m2 de largura e se prolonga por cerca de 48m de cumprimento;
b) Ser a R. condenada a reconhecer tal direito;
c) Ser a R. condenada a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra o direito de propriedade dos AA, mormente, abster-se de fazer uso da referida estrada;
d)-Ser a R. condenada a restituir a estrada dos AA. à situação anterior às obras, ou seja, a retirar o muro de betão com cerca de 30 cm de largura, por 48 m de cumprimento e 50 cm de altura; e
e) Ser a R. condenada nas custas e demais encargos legais.
*
Na audiência prévia, ainda não esclarecida, a Mmª Sra. Juiz a quo prolatou o seguinte despacho:
– «Foi efectuado um convite ao aperfeiçoamento da petição inicial por despacho de 24/10/2023, ao qual a autora veio, através de requerimento junto aos autos em 03/11/2023, responder. Contudo o Tribunal continua sem perceber, face ao alegado pelos Autores, em que prédio se situa o caminho em causa. Assim deverão os Autores esclarecer se o caminho integra o prédio rústico ou se lhe serve apenas de acesso (sendo que afirmam ambas as possibilidades no seu articulado); no caso de integrar o prédio rústico, deverão indicar em que preciso local do prédio se situa o caminho
*
 Foi apresentada nova P.I. em que se esclarece que (…) “19.º A melhor descrita supra Entrada e Estrada, confrontava de nascente, com uma “(…) Casa de rés-do-chão, para comércio e andar, para habitação e logradouro. (…)” onde, recentemente, foi erguido então um prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, para comércio (R/C) e habitação (1º andar), com área total de terreno de 3.050,0000m2, sito na Avenida ..., freguesia ..., concelho ... (...), inscrito no respectivo artigo matricial n.º ...38 - ... (tendo tido a sua origem nos artigos urbano n.º ...39 e rústico n.º ...23).
O restante, talvez por incompreensão da questão jurídica, nada clarificou.
*
Novamente convocada a audiência preliminar, nela foi exarado o seguinte despacho:
– «Na petição inicial (a inicial e a aperfeiçoada) os Autores alegam que “a estrada” integra o prédio identificado nos art.s 1º e 2º desse articulado e alegam também que a “estrada” serve de acesso ao e para o prédio.
Terminam pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre essa “estrada”.
Afigura-se-nos que os Autores alegam causas de pedir incompatíveis – ou o caminho em causa integra o prédio ou lhe serve de acesso, sendo que num caso ou noutro o pedido deve ser o do reconhecimento do direito de propriedade ou o reconhecimento de outro direito real (servidão de passagem).
Assim, notifique as partes para exercerem o contraditório sobre uma eventual ineptidão da petição inicial.»
*
Os Autores exerceram o contraditório alegando: “22.º Nenhum outro direito pretendem os AA. ver reconhecido (não alegaram/não pediram) que não o da (sua) propriedade sobre tal Estrada. 23.º Devendo, pois, improceder a eventual ineptidão da petição inicial”.
*
No Despacho Saneador conheceu-se oficiosamente da nulidade do processado, por ineptidão da P.I., nos seguintes termos:
– «(…)
Como já se escreveu no despacho de 4 de Abril de 2024 e sobre o qual os Autores já exerceram o contraditório, os Autores alegam que “a estrada” integra o prédio identificado nos art.s 1º e 2º desse articulado e alegam também que a “estrada” serve de acesso ao e para o prédio.
Terminam pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre essa “estrada”.
Afigura-se-nos que os Autores alegam causas de pedir incompatíveis – ou o caminho em causa integra o prédio ou lhe serve de acesso, sendo que num caso ou noutro o pedido deve ser o do reconhecimento do direito de propriedade (sobre o prédio integrando o caminho e não apenas sobre o caminho a que os Autores chamam “estrada”) ou o reconhecimento de outro direito real (servidão de passagem).
O que os Autores não podem é alegar uma coisa e outra porque, ao fazê-lo, alegam causas de pedir incompatíveis e geradoras da ineptidão da petição inicial, sendo um caso de manifesta inviabilidade da acção.
Nos termos do disposto no mesmo art. 186º, n.º 2, al. a), do CPC, a causa de pedir é também ininteligível, sendo ininteligível o pensamento dos Autores.
Nos termos do n.º 3 do art. 186.º do CPC, se o vício consistir na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir e o réu contestar a acção, a nulidade considerar-se-á suprida quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial. Exige-se, assim, para afastar a procedência da excepção de ineptidão da petição inicial, que, além da dedução da contestação, o réu tenha interpretado convenientemente a petição inicial, aqui entendida como pretensão processualizada integrada pelo pedido e causa de pedir. No caso dos autos, os Réus contestaram e não demonstraram compreender o alcance da petição inicial porque se defendem alegando que os prédios foram adquiridos ao mesmo dono e que não ficou prevista qualquer servidão de passagem. Esta defesa não tem qualquer correspondência com os factos alegados nem com o pedido formulado na petição inicial.
A ineptidão da petição inicial constitui nulidade absoluta, afectando todo o processo, de conhecimento oficioso, e conduzindo à absolvição da instância no despacho saneador (arts. 278º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. b), e 578.º do CPC).

Decidindo-se
 « Pelo exposto:
- declara-se a ineptidão da petição inicial, por cumulação de causas de pedir incompatíveis e ininteligibilidade da causa de pedir;
- declara-se a nulidade de todo o processo; e
- absolve-se a Ré da instância.
Custas pelos Autores (art. 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC).».
*
Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso, que instruíram com as pertinentes alegações, em que formulam as seguintes conclusões:

«1.ª Nos termos do disposto no artigo 186º do CPC: “1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. 2. Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir (…). 3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.”;
2.ª A causa de pedir traduz-se no facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido (cfr. Antunes Varela; J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil; 2.ª Ed., Coimbra Editora, p. 245), pelo que, sob pena de ineptidão, não bastará uma indicação vaga ou genérica dos factos com base nos quais o autor sustenta a sua pretensão;
3.ª Ao autor ou demandante não bastará, assim, formular um pedido, devendo sempre indicar a causa de pedir, traduzida nos concretos factos jurídicos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer, o que passa pela narração de concretos acontecimentos da vida que são suscetíveis de redução a um núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas materiais de direito substantivo (cfr., Lebre de Freitas; Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à luz do Código revisto; Coimbra Editora, 1996, pp. 54 a 57);
4.ª O autor encontra-se, pois, obrigado a expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação (cfr. art. 552.º, n.º 1, al. d), do CPC);
5.ª A indicação da causa de pedir está perfeitamente conexionada com o princípio do dispositivo, consagrado no n.º 1 do artigo 5.º do CPC, onde se prescreve que, “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”. “Intimamente ligada ao princípio dispositivo, a causa de pedir exerce uma «função individualizadora do pedido e de conformação do objeto do processo»; ao apreciar o pedido, o tribunal não pode basear a sua decisão de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (artºs 608º e 609º), sob pena de nulidade da sentença por excesso de pronúncia (artº 615º, al. d) )” (assim, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida; Direito Processual Civil, vol. II, 2.ª Ed., Almedina, 2015, p. 71);
6.ª O nosso direito adjetivo adota, quanto à causa de pedir, a chamada “teoria da substanciação”, perante a qual pode a “causa de pedir” constitui o ato ou facto jurídico, simples ou complexo, de que deriva o direito que se invoca ou no qual assenta o direito invocado pelo autor e que este se propõe fazer valer – cfr. artº 581º nº4 do CPC;
7.ª Tem-se em vista não o facto jurídico abstrato, tal como a lei o configura, mas sim, um certo facto jurídico material, concreto, conciso e preciso, cujos contornos se enquadram na definição legal;
8.ª A causa de pedir é, pois, o facto material apontado pelo autor e produtor de efeitos jurídicos e, não, a qualificação jurídica que este lhe emprestou ou a valoração que o mesmo entendeu dar-lhe;
9.ª A ideia primordial no que concerne à figura da ineptidão da petição inicial, é a de impedir o prosseguimento duma ação, à partida, viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, que mostre, desde logo, não ser possível um correto, coerente e unitário ato de julgamento (cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, ed. AAFDL, Vol. 3º, p. 47).
10.ª Secundariamente – na perspetiva das partes – o instituto da ineptidão da petição inicial permite o cabal conhecimento, por banda do réu, das razões fácticas que alicerçam o pedido do autor para, assim, poder exercer cabalmente o contraditório;
11.ª Por isso, se compreende o estatuído no nº 3 do artº 186º do CPC;
12.ª A dificuldade reside em manter uma linha de separação entre a ineptidão da petição, vício formal, e a inviabilidade ou improcedência, questão de mérito ou substancial;
13.ª Importa ter presente que, os factos que podem enformar os articulados se podem integrar em três espécies, a saber: - Factos essenciais ou estruturantes, aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção. - Factos complementares, que concretizam a causa de pedir ou a exceção complexa. - Factos instrumentais, probatórios ou acessórios, que indiciam os factos essenciais e/ou complementares;
14.ª Apenas a falta dos factos essenciais na petição inicial determina a inviabilidade da ação por ineptidão daquela;
15.ª Já os factos complementares são indispensáveis à sua procedência, não contendendo a sua falta com aquele vício, mas com a questão de mérito a dilucidar a final (cfr., Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., p. 70);
16.ª Assim, em regra, se se formula um pedido com fundamento em facto aduzido e inteligível, mas que não pode ser subsumido no normativo invocado, o caso será de improcedência e não de ineptidão da petição;
17.ª O que interessa, no ponto de vista da apreciação da causa de pedir é que o ato ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição. “Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta. Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente…quando…sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga” (assim, Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 2º vol., pp. 364 e 371);
18.ª A jurisprudência tem vindo a defender, uniformemente, que a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa de pedir, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, a petição de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a procedência ou a atendibilidade do pedido;
19.ª Por outro lado, petição prolixa não é o mesmo que petição inepta e causa de pedir obscura, imprecisa ou inadequada não é o mesmo que causa de pedir inexistente ou ininteligível;
20.ª No fundo, só existe falta de causa de pedir quando o autor não indica o “facto genético” ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 12-03-1974, in BMJ 235º, p. 310, de 26-02-1992, proc.º 082001, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-06-1985, in BMJ 348.º, p. 479 e de 01-10-1991, in BMJ 410.º, p. 893);
21.ª Do n.º 3 do artigo 186.º do CPC decorre que, em caso de invocação pelo réu da falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, tal invocação não será atendível se se concluir que ele, não obstante as deficiências invocadas, percebeu o feito que o demandante introduziu em juízo, estando consciente das consequências que o autor dele pretende retirar;
22.ª Visa-se com a figura da ineptidão da petição inicial, como decorre deste preceito, também garantir o adequado exercício do contraditório da outra parte, “possibilitando que se defenda do ataque, por excepção ou por impugnação, reportada aos factos alegados na petição, idóneos para germinarem o direito invocado e pretendido” (assim, o Ac. do STJ de 28-05-2002, proc.º 02B1457);
23.ª Também conduz à ineptidão da petição inicial, a ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir. “A petição inicial é inepta por ininteligibilidade quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24-04-2012, Pº 2281/11.5TBGMR.G1, rel. EVA ALMEIDA);
24.ª Do dever de gestão processual, consagrado no artigo 6.º do CPC, decorre que: “1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. 2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo”;
25.ª Por seu turno, estatui o artº 590º do CPC que: “1 - Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º. 2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a: a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes; c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador. 3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa. 4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”;
26.ª Decorre destes normativos que não há que suprir a falta de pressupostos processuais nem de aperfeiçoar a petição inicial no caso de faltar ou de ser ininteligível o pedido/causa de pedir, pois, a nulidade decorrente da ineptidão não é suprível (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05-07-2006, pº 0632391, rel. DEOLINDA VARÃO).
27.ª Assim, a falta ou a ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir não são passíveis de suprimento, pelo que, também não terá lugar, se se verificarem tal falta ou ininteligibilidade, a prolação de despacho de aperfeiçoamento, o qual se compreenderá apenas nos casos em que o pedido ou a causa de pedir são meramente deficientes, mas encontram-se presentes, ou, nos casos em que se compreende o litígio interposto, quer em termos da pretensão solicitada ao Tribunal, quer em termos da razão em que a mesma assenta;
28.ª Perante uma situação de ineptidão da petição inicial, não há que convidar o autor a corrigi-la, tal como não tem lugar a convocação dos normativos do artigo 265.º (respeitante à alteração do pedido e da causa de pedir na falta de acordo), do artigo 410.º (relativo ao objeto da instrução da causa) ou do artigo 547.º (atinente à adequação formal do processado) do CPC;
29.ª E ao invés do mencionado pelo Tribunal recorrido não se alcança que a PI dos AA., Apelantes seja inepta “(…) por cumulação de causas de pedir incompatíveis e ininteligibilidade da causa de pedir (…)”;
30.ª Se bem se atentar, os AA.; Apelantes invocaram que “(…) Na E.N. n.º ...05, concelho ..., no sentido das freguesias ... (nascente) – ... (poente), ou seja, na via (faixa de rodagem) da direita atento o sentido de marcha, na freguesia ..., ao km 47,610 existe, uma Entrada de 3,62 m2 de largura no imóvel, à data, propriedade do Pai do A. marido, DD, que se encontra inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o n.º ...24 - ...: “(…) Cultura arvense de regadio, ramada, pomar de pessegueiros, 10 oliveiras, 5 castanheiros, 160 videiras em cordão (…).”, cuja foi requerida abrir no dia ../../1966, pelo mesmo DD que, na (antiga) Direcção de Estradas do Distrito ..., (atual) Infraestruturas de Portugal, fez um Requerimento/Pedido para “Abrir uma serventia carral para acesso à s/ prop.”, sita na “EN ...05, km 47,610 (…)” e bem assim que “(…) Foi então aberta a melhor descrita supra Entrada de 3,62 m2 de largura no imóvel, à data, propriedade do Pai do A. marido, que se encontra inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o n.º ...24 – ... e bem assim feita também uma Estrada, sentido sul – norte, em terra batida, que se prolonga por cerca de 48m de cumprimento, com portões, um, no início (na Entrada) - EN ...05, km 47,610 e o outro, no fim (na Estrada em terra batida) dos 48m de cumprimento, sendo essa Entrada e Estrada, acesso principal para o e do imóvel, à data, propriedade do Pai do A. marido e que se encontra inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o n.º ...24 – .... (…)” e ainda que “(…) Por questões administrativas entretanto levantadas pela Câmara Municipal ..., a pretendida operação de loteamento não avançou, mas a Entrada, na E.N. n.º ...05, sentido nascente –poente de 3,62 m2 de largura com uma Estrada, sentido sul – norte, em terra batida, que se prolonga por cerca de 48m de cumprimento, no imóvel, à data, propriedade do Pai do A. marido e que se encontra inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o n.º ...24 – ..., sim desde essa data. (…)”;
31.ª Terminaram requerendo que “(…) a) Ser declarado e reconhecido o direito de propriedade dos AA. sobre a Estrada, cuja, em terra batida, começa na estrada nacional (EN ...05, km 47,600), com 3,62 m2 de largura e se prolonga por cerca de 48m de cumprimento; b) Ser a R. condenada a reconhecer tal direito; c) Ser a R. condenada a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra o direito de propriedade dos AA, mormente, abster-se de fazer uso da referida Estrada; d) Ser a R. condenada a restituir a Estrada dos AA. à situação anterior às obras, ou seja, a retirar o muro de betão com cerca de 30 cm de largura, por 48 m de cumprimento e 50 cm de altura; e (…)”;
32.ª Como decorre das considerações acima expendidas, para existir um idóneo objeto de uma ação mostra-se necessária a indicação e a inteligibilidade da causa de pedir e do correspondente pedido, bem como, a necessidade de existir um nexo lógico formal não excludente entre aqueles dois termos da pretensão, por forma a permitir um pronunciamento de mérito positivo ou negativo;
33.ª E reapreciando o conteúdo da petição inicial, verifica-se que a descrição factual efetuada pelos AA., Apelantes em tal articulado contém um substrato factual, atinente aos factos essenciais, dedicado ao pedido formulado, pretensão e fundamento em que aquele assenta, que se mostram inteligíveis;
34.ª A exposição dos factos que fundamentam a pretensão dos AA., Apelantes encontra-se, como decorre do exposto, presente e, a mesma, nada tem de ininteligível, sendo percetível suficientemente a correspondente alegação;
35.ª A alegação produzida na petição inicial não é confusa, obscura ou padece de ambiguidade inultrapassável;
36.ª Conclui-se, pois, que a PI apresentada não sofre do vício de ineptidão, porque a causa de pedir se encontra presente e a mesma não é ininteligível (cfr. artigo 186.º, n.º 2, al. a) do CPC); e
37.ª Ao assim não entender, violou o Tribunal '"a quo", entre outros, o disposto nos artigos 5, n.º 1, 186, 552, n.º 1, al. d), 581, n.º 4, 608, 609 e 615, al. d) todos do CPC.
Termos em que e nos mais de direito,
Deve o despacho saneador ora recorrido ser revogado e em consequência declarando que a petição inicial não é inepta e determinado o prosseguimento dos autos, com a prática dos trâmites que, em conformidade, lhe couberem, fazendo-se assim a acostumada, JUSTIÇA .».
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
O recurso foi admitido na 1ª instância, como apelação a subir de imediato, em separado e com efeito devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal, o recurso foi admitido nos termos em que o havia sido na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

 O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos apelantes, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC). 
As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que assim se sintetizam:
–  Se a Petição inicial é inepta por cumulação de causas de pedir incompatíveis e ininteligibilidade da causa de pedir.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A factualidade que interessa à apreciação do presente recurso reconduz-se essencialmente ao teor da P.I. e documentos para que remete, e ao que mais consta do relatório supra, que aqui se dá por reproduzido.

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

Nos termos do art.º 186 do CPC a ineptidão da petição inicial torna nulo todo o processado.

Esclarece o nº 2 do citado normativo que a petição é inepta:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

No caso, os vícios assacados à P.I. são, pelo menos, cumulação de causas de pedir incompatíveis e ininteligibilidade da causa de pedir.
No entendimento da Mmª Sra. Juiz “a quo” “ou o caminho em causa integra o prédio ou lhe serve de acesso, sendo que num caso ou noutro o pedido deve ser o do reconhecimento do direito de propriedade (sobre o prédio integrando o caminho e não apenas sobre o caminho a que os Autores chamam “estrada”) ou o reconhecimento de outro direito real (servidão de passagem). O que os Autores não podem é alegar uma coisa e outra porque, ao fazê-lo, alegam causas de pedir incompatíveis e geradoras da ineptidão da petição inicial, sendo um caso de manifesta inviabilidade da acção”.
Apreciando.
A causa de pedir é ininteligível quando não sejam compreensíveis os fundamentos fácticos da acção em que se estriba a pretensão jurídica formulada pelo autor.
A necessidade de formulação da causa de pedir em termos inteligíveis é imposta como condição de defesa do réu, pois é necessário que este tenha conhecimento dos factos fundamentadores da pretensão do autor para exercer o direito de defesa.
Assim, a petição inicial é inepta, por ininteligibilidade, quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos, que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir [[1]].
Note-se que, no caso em apreço, a Ré entendeu perfeitamente a P.I. e não arguiu a sua ininteligibilidade, visando apenas obter para si o efeito jurídico oposto à pretensão dos Autores.
As causas de pedir são substancialmente incompatíveis quando uma e outra se excluam mutuamente e não tenham sido formuladas numa relação de subsidiariedade, o mesmo sucedendo com os pedidos.
Há contradição entre a causa de pedir e o pedido quando não existe entre eles o mesmo nexo lógico que entre as premissas de um silogismo e a sua conclusão.
Não gera a ineptidão da petição inicial a circunstância de a alegada causa de pedir, conexionada logicamente com o pedido, não ser bastante para alicerçar este, pois o que então se coloca é um problema de improcedência (cfr. entre muitos outros, os Acs. do S.T.J de 7/7/88 in BMJ 379º-592 e de 14/3/90 in A.J. 2º.-90; o Ac. do TRE de 7-4-83 in BMJ 328º.- 656)” e Ac do TCAS de 24-2-2005, proc. 06656/02, in www.dgsi.pt.
Esta circunstância tem importantes reflexos no processo: a ineptidão, sendo uma excepção dilatória (art. 577º, al. b), gera a absolvição da instância (art. 278º, nº1, al. b)), isto é, um julgamento formal da lide, não vedando a instauração de outra acção sobre o mesmo objecto (art. 278º, nº1), já o juízo de inconcludência ou de manifesta improcedência da acção precipita uma decisão sobre o mérito da causa, determinando a absolvição do pedido e a formação de caso julgado material dentro dos factos que constituem a causa de pedir (arts. 5º, nº1, 580º, 581º, 619º e 620º) (cf. Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 207 e ss)”.
No caso em apreço, antes de mais, cumpre salientar que aos articulados da acção, como a quaisquer documentos ou declarações, se aplicam as regras da interpretação das declarações negociais. Assim, as declarações deles constantes valem com o sentido que um declaratário normal deva retirar das mesmas [art.º 236º nº 1 ex vi art.º 295º do Código Civil (CC)].
Como se refere no acórdão desta Relação 16-01-2020[[2]]: “Segundo jurisprudência pacífica tal interpretação deve ter presente a máxima da prevalência do fundo sobre a forma de molde a que importe o que é efectivamente pretendido pelas partes no processo apesar das eventuais incorrecções formais”.
Neste sentido vide Ac. do S.T.A. de 27/04/2016 (Francisco Rothes), in www.dgsi.pt, onde se lê: “(…) os rigores formalistas na interpretação das peças processuais estão hoje vedados pelos princípios do moderno processo civil e bem assim pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (cfr. art. 20.º da CRP), motivo por que o tribunal deve extrair do pedido que lhe é feito o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, indagando da sua real pretensão.”[[3]]
Assim, se perante o alegado na petição inicial há dúvidas quanto à concreta pretensão formulada pelos Autores, ou ao real conteúdo da respectiva pretensão, e, “recorrendo às regras interpretativas da declaração judicial, se extrai implícita uma outra pretensão petitória não expressamente ali formulada, pode o tribunal levá-la em conta, extraindo os efeitos jurídicos correspondentes, sem dessa forma violar o princípio do pedido”[[4]].
No caso em apreço, decorre da Petição Inicial, sem grande esforço interpretativo, que os Autores alegam que um caminho particular (que descrevem e denominam “estrada”), integra o respectivo prédio, ou seja, o leito desse caminho é terreno que integra o prédio de que se arrogam proprietários.
A este propósito, afigura-se-nos útil à compreensão da questão citar um pequeno excerto, do acórdão que relatamos em 28-02-2019[[5]] (e noutros, porque o erro é recorrente):
– Os direitos reais, sejam eles o direito de propriedade ou o mais limitado direito de servidão predial, incidem sobre coisas em sentido jurídico, tal como vêm definidas nos artºs 202º e segs. do Código Civil (CC).
«O caminho privado ou particular não é uma coisa em sentido jurídico, sobre a qual incidam direitos reais. Caberia, com muito esforço, na definição de prédio rústico (uma parte delimitada do solo), mas não é esse o sentido comum e jurídico da palavra, pois carece da indispensável autonomia para constituir uma unidade predial.
Assim, o leito dos caminhos particulares integra sempre o prédio onde se situam e a quem servem em exclusivo ou servem de acesso a prédio de terceiro, a favor de quem existe um direito de passagem (servidão predial de passagem) – art.º 1543º do CC.
A ter a autora o invocado direito de propriedade sobre o leito do tal caminho/acesso ou tracto de terreno em questão, ele teria de estar integrado no seu prédio, ser terreno dele e, francamente, não é bem assim que vem alegado nem peticionado (…”bem como do caminho várias vezes referido que lhes dá acesso”).
Atribuiu-se uma autonomia ao caminho, que ele manifestamente não possui para ser objecto de um direito real.»
No caso em apreço a situação, algo similar no que tange ao pedido, é bem distinta no que tange à causa de pedir.
Efectivamente, reconhecendo-se que a redacção da petição é imperfeita, não deixa de dela constar expressamente, que o caminho, a que chamam “estrada” foi aberto pelos seus antecessores no respectivo prédio (...0... Do melhor identificado supra prédio rústico n.º ...24 - ..., propriedade dos AA., lado nascente, faz então parte integrante uma estrada, 11.º cuja, em terra batida, começa na estrada nacional (EN ...05, km 47,610), com 3,62 m2 de largura, 12.º prolonga-se por cerca de 48m de cumprimento, 13.º e termina num portão, também propriedade dos AA.)
O que, aliás, melhor clarificam na réplica, ao alegarem:
5.º São os AA., Reconvindos donos e legítimos proprietários da estrada em terra batida que começa na estrada nacional (EN ...05, km 47,610), com 3,62 m2 de largura, que se prolonga-se por cerca de 48m de cumprimento e termina num portão,
6.º cuja, faz parte integrante do prédio misto, sito na Av.ª ..., freguesia ..., concelho ..., o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...13 – ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o n.º ...94 - ...: “(…) Casa de r/c e 1º andar para habitação com CC (…)” e rústica sob o n.º ...24 - ...:
7.º estando na sua posse pública, pacífica e de boa-fé, por si e seus antepossuidores, se não antes, pelo menos desde ../../1966, ou seja, há mais de 20, 30 e 50 anos, – Cfr. documentos juntos sob os n.ºs 4 e 5 com a PI e que aqui igualmente se dão por integralmente reproduzidos para todos e os devidos efeitos legais.
Assim, o que se debate na presente acção e reconvenção é apenas se a faixa de terreno onde assenta o caminho (o leito), a que os Autores chamam “estrada”, integra o prédio dos Autores ou antes integra o prédio da Ré.
Não vemos articulada qualquer servidão de passagem, que sempre teria de incidir sobre prédio da Ré ou de terceiro, o que não se refere, nem explícita nem implicitamente, pelo contrário, sempre se reafirmando que o terreno íntegra o prédio dos Autores.
Os pedidos formulados pelos Autores deverão ser interpretados neste sentido, ou seja:
a) Ser declarado e reconhecido o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio descrito nos art.ºs 1º e 2º da P.I. do qual faz parte integrante “a estrada”, em terra batida, que começa na estrada nacional (EN ...05, km 47,600), com 3,62 m2 de largura e se prolonga por cerca de 48m de comprimento;
b) Ser a R. condenada a reconhecer tal direito;
c) Ser a R. condenada a abster-se da prática de quaisquer actos que atentem contra o direito de propriedade dos AA, mormente, abster-se de fazer uso da referida “estrada”;
d)-Ser a R. condenada a restituir a “estrada” dos AA. à situação anterior às obras, ou seja, a retirar o muro de betão com cerca de 30 cm de largura, por 48 m de comprimento e 50 cm de altura;
Assim, entendemos nós que não se verificam os assacados vícios de cumulação de causas de pedir incompatíveis e ininteligibilidade da causa de pedir, sendo que sobre tais conceitos abstractos e o vício de ineptidão, nada mais é necessário acrescentar, visto que quer o despacho saneador recorrido, quer as alegações deste recurso, deles já fizeram abundante explanação e o que no caso faltava era descer ao caso concreto, interpretando o texto da P.I. e a real pretensão dos Autores.
Concluímos que a Petição Inicial padece de algumas deficiências, mas não é inepta.
*
 Pelo exposto, na procedência das conclusões dos apelantes, impõe-se revogar a decisão recorrida.

V - DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos para apreciação do mérito da acção.
Custas pela apelada.
Guimarães, 07-11-2024

Eva Almeida                 
Raquel G. C. Batista Tavares
Alexandra Rolim Mendes 


[1] Alberto dos Reis, in Comentário ao C.P.C., Vol. 2º, pág. 364
[2] Ac. do TRG de 16-01-2020 (Margarida Fernandes) proc. 5533/18.0T8GMR.G1
[3] Acórdão citado.
[4] Ac. do STJ de 29-9-2022 (605/17.0T8PVZ.P1.S1)
[5] Inédito (processo 461/17.9T8GMR.G1)