Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
121648/23.3YIPRT.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: AECOP
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
RECONVENÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/22/2025
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, de valor não superior a metade da alçada da Relação, não admite reconvenção.
II – O principio da adequação formal não pode ser utilizado para alterar genericamente um instituto jurídico ou o quadro legal relativo à tramitação de uma forma de processo, introduzindo uma alteração que apenas o legislador poderia introduzir.
III – Contudo, não sendo admissível a reconvenção, deve ser permitido ao réu invocar a compensação como exceção até ao limite do crédito do autor, apenas para impedir o efeito jurídico deste crédito. É que em tal situação, a invocação da compensação circunscreve-se ao exercício do direito de defesa.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - Relatório

EMP01..., Unipessoal Lda., apresentou requerimento de injunção contra AA reclamando o pagamento de 2.939,36€.
O Requerido deduziu oposição com reconvenção, invocando defeitos e falta de conclusão da obra, peticionando, além do mais, a condenação do reconvindo no pagamento da quantia que se vier a liquidar em execução de sentença como adequada para a conclusão da obra e eliminação dos defeitos, a realizar por terceiro, bem como o pagamento de sanção pecuniária compulsória nunca inferior a 50,00€, por cada dia de atraso no cumprimento que venha a ser decidido.

O Tribunal a quo, sobre a dedução de reconvenção, proferiu o seguinte despacho:
«Compulsados os autos, constata-se que na douta oposição ao procedimento de injunção foi deduzida reconvenção e respetivo pedido reconvencional (cfr. arts. 51.º e segs. daquele articulado).
Ora, tem sido entendimento maioritário na doutrina civilista que não é admissível a dedução de pedido reconvencional nas Acções Especiais para Cumprimento de Obrigações Pecuniárias, porquanto a lei prevê apenas dois articulados ( cfr. art. 1º do DL 269/98, de 1 de Setembro), visando-se, assim, criar um processo simples e expedito.
Neste sentido vide “Algumas Notas sobre os Decretos Lei nºs 269/98 e 274/97”, Centro de Estudos Judiciários, Área Cível, da responsabilidade do Dr. Carlos Gil, págs. 9, no qual faz diversas citações a este propósito.
Sobre a inadmissibilidade da reconvenção, cfr. Ac. T.R.L., datado de 05-07-2018; Ac. T.R.G., datado de 10-07-2019, Ac. T.R.G., datado de 17-12-2018, Ac. do T.R.P., datado de 13-03-2023.
Assim sendo, e uma vez que o pedido reconvencional nesta sede não é admissível, declaro não escritos os factos invocados na douta reconvenção».
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Inconformado com a decisão que não admitiu o pedido reconvencional por si formulado com o fundamento de que a reconvenção não é admissível nas ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias, veio o réu interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

1. O presente recurso versa matéria de Direito.
2. O despacho proferido identificado supra padece de falta, ou pelo menos, insuficiência de fundamentação, em violação da disciplina do n.º 1 do art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa e do art.º 154.º do C.P.C., o que deve ser declarado, com as legais consequências.
Sem prescindir,
3. O Tribunal levou a cabo, no despacho recorrido, ao decidir pela inadmissibilidade de reconvenção em processos como o dos autos, errada interpretação e aplicação da Lei e do Direito.
4. Nos termos dos artigos 6.º nº 1 e 547º do CPC - considerando que cabe ao Juiz atender às especificidades do caso concreto e por sua vez, mediante os poderes de gestão processual e de adequação formal que lhe são conferidos, tramitar de uma forma justa a discussão, evitando que sejam levados a cabo atos processuais inúteis - impõe-se uma apreciação conjunta e singular de todos os aspetos do litígio que separa as partes, com vista a uma resposta justa e definitiva da causa.
5. In casu impunha-se que o Tribunal, fazendo uso dos seus poderes de adequação formal e de gestão processual, ajustasse a tramitação dos autos à dedução do pedido reconvencional, com vista a permitir uma solução justa do litígio evitando-se assim a instauração de outra ação.
6. Ao assim não decidir, o Tribunal escudou-se de apreciar a matéria controvertida nos autos, negando ao recorrente o direito de ver a sua posição apreciada neste âmbito, violando o dever de gestão processual e o princípio da adequação formal (artigos 6.º e 547º do CPC, bem como a disciplina dos artigos 10.º, n.º 2 do DL 62/2013 e art.º 37.º, n.º 2 do CPC.)
7. Feita uma ponderação da relação custo-benefício, à luz de uma análise global dos princípios estruturantes do processo civil e do regime da injunção, em particular – artigo 37.º, ex vi artigo 266.º, n.º 3 do C.P.C., e, em concreto, com os princípios de economia processual e celeridade, deve ser admitida a reconvenção no âmbito dos presentes autos.
8. Pelo que, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que admita a reconvenção deduzida, o que se requer, com as legais consequências.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - Delimitação do objeto do recurso

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:

a) se a decisão padece de falta de fundamentação;
b) se no âmbito das ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias de valor inferior a metade da alçada da Relação, é admissível reconvenção.
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III - Fundamentação

Os factos a considerar são os que resultam do relatório supra.

a) Da falta de fundamentação da decisão.
Invoca o recorrente a falta de fundamentação da decisão, pretendendo que tal seja declarado, com as legais consequências.
A consequência da falta de fundamentação é a nulidade da decisão, como previsto no art. 615.º, nº1, al. b) do CPC, que estipula que «é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».
Quanto ao vício de falta de fundamentação, ensina o Prof. Alberto dos Reis[1], que “uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas”, conformemente a nulidade por falta de fundamentação só ocorre quando há “ausência total de fundamentos de direito e de facto”, sendo certo que “o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”.
Para que a sentença esteja eivada deste vício de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
Tendo presente estas noções, cremos que a decisão de que se recorre não enferma da nulidade que lhe é apontada, visto que nela se mostram devidamente explicados os fundamentos em que assenta, sendo clara a indicação da lei e a interpretação dela feita no sentido de a reconvenção não ser admissível nas ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias.
Improcede, nesta parte, a apelação.

b) (In)Admissibilidade da reconvenção nas ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias.
Considerou a sentença recorrida que a forma de processo das ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias é incompatível com a dedução de reconvenção.
Deste entendimento discorda o recorrente considerando que o juiz deveria fazer uso dos poderes de adequação formal e de gestão processual, ajustando a tramitação dos autos à dedução do pedido reconvencional.
Apreciemos.
Em causa está uma ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, de valor não superior a metade da alçada da Relação, regime a que é aplicável o DL 269/98, de 1/09.
De acordo com o respetivo regime processual, esta forma de processo apenas admite dois articulados (art. 3º e 4º).
A existência de apenas dois articulados liga-se ao caracter simplificado da ação, opção clara do legislador, como resulta do preambulo do diploma cujo enfoque se centra na pretensão de um modelo de ação célere e simplificado.
A simplificação processual corresponde, pois, a um específico objetivo processual a que o legislador quis atribuir um tratamento célere.
Porque assim, podemos afirmar que a lei, intencionalmente, veda a dedução de pedido reconvencional nesta espécie de processos, pois que, a tramitação especial a observar, prevendo tão só dois articulados, é incompatível com a dedução de reconvenção, que exige que a tramitação da causa permita a réplica, para que o reconvindo possa deduzir a sua defesa.
Acompanhamos, neste sentido, os fundamentos avançados por Rui Pinto:
“São, pelo menos, duas as razões pelas quais esta ação especial não admite reconvenção. Por um lado, a reconvenção “pede” um articulado de resposta, o que o regime especial afasta; por outro lado, a reconvenção postula um pedido de condenação do autor ou, pelo menos, de reconhecimento do direito do devedor, o que está fora do escopo da ação especial: formar título executivo contra o devedor, nos termos do artigo 2º do Anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de setembro”.[2]
Em suma, nestes casos, os princípios da simplicidade e celeridade processual, reportados à natureza dos litígios para que estes procedimentos foram criados, prevalece sobre o princípio da economia processual que justificaria a admissibilidade em geral do pedido reconvencional.[3]
Dito isto, cumprirá averiguar se à luz do art. 547.º do CPC a reconvenção poderia admitir-se com recurso ao princípio da adequação formal, adaptando-se a tramitação processual adequada às especificidades da causa.
Não cremos que seja admissível.
Seguimos a este propósito o entendimento de Manuel Eduardo Bianchi Sampaio, que considera que a utilização do princípio da adequação formal para admitir a reconvenção nas formas de processo em que não é admissível não se afigura indicada. E explica que o princípio da adequação formal destina-se a ser aplicado em situações específicas que, pelas suas excecionais particularidades, impõem a adoção de uma solução diversa da que foi prevista pelo legislador. Trata-se de um princípio de utilização pontual, para uma determinada situação concreta, que não pode ser utilizado para alterar genericamente um instituto jurídico ou o quadro legal relativo à tramitação de uma forma de processo, introduzindo uma alteração que apenas o legislador poderia introduzir[4].
Sufragamos, de igual modo, o acórdão da Relação de Coimbra de 14 de outubro de 2014[5], citado pelo autor, de que o princípio da adequação formal, consagrado no artigo 547.º do Código de Processo Civil, não transforma o juiz em legislador.
E aderindo à conclusão extraída pelo autor concordamos que “(..) a razão para a existência de formas de processo que não admitem reconvenção é a sua maior simplicidade e celeridade. Era isto que justificava o processo sumaríssimo e é isto que justifica atualmente o procedimento de injunção e a ação declarativa comum do processo laboral. Esta maior simplicidade e celeridade é garantida através da limitação do objeto do processo e de uma tramitação menos exigente. Admitir a possibilidade de o réu deduzir reconvenção para formular um pedido que emerge de um facto que serve de fundamento à ação ou à defesa punha em causa irremediavelmente esta maior simplicidade e celeridade.”[6]

Entendemos, contudo, que nas formas de processo em que não é admissível reconvenção deve ser permitido ao réu invocar a compensação como exceção até ao limite do crédito do autor, apenas para impedir o efeito jurídico deste crédito. Em tal situação, a invocação da compensação circunscreve-se ainda ao exercício do direito de defesa.

Fazemos notar, aliás, que o que tem sido objeto de controvérsia na doutrina e jurisprudência é a possibilidade de ser deduzida reconvenção nestas ações especiais assente na invocação de compensação de créditos, atenta a natureza extintiva desta exceção perentória (são estas as situações assinaladas pelo recorrente, decisões que respeitam a reconvenções nas quais é peticionada a compensação de créditos).
Na situação dos autos, o pedido reconvencional deduzido pelo réu fundamenta-se no cumprimento defeituoso do contrato de empreitada que imputa à autora, com pedido de eliminação dos defeitos e conclusão da obra, a efetuar por terceiro.
Dada a sua natureza, que não funciona por via de exceção, a reconvenção não pode ser admitida.
De concluir, pois, pela inadmissibilidade da reconvenção.
*
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, assim confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente (artigo 527.º, nº, 1 do Código de Processo Civil).
Guimarães, 22 de Maio de 2025

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes* (declaração de voto)
2º - Adj. - Des. Paula Ribas

*Declaração de voto:
Concordo com a decisão, por não estar em causa nos autos a invocação de compensação.
Estando em causa a invocação da compensação, continuo a seguir o entendimento que melhor expus no acórdão que relatei no processo 3954/21.0T8BRG-A.G1, disponível in www.dgsi.pt, para onde remeto.
Fernanda Proença Fernandes


[1] In “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, páginas 139 e 140.
[2] In A Problemática da dedução da Compensação no Código de Processo Civil de 2013, disponível em https://www.academia.edu/35539814/A_problematica_da_compensacao,
[3] Neste sentido, Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Ação e Execução, 7.ª edição, Coimbra: Almedina (2020), pag. 132:
[4] In A compensação nas formas de processo em que não é admissível reconvenção», Julgar Online, maio de 2019, pag. 9
[5] Proferido no proc. nº 507/10.1T2AVR-C.C1, e acessível em www.dgsi.pt.
[6] Ob. Cit. pag. 11.