Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
820/19.2T8FAF.G1
Relator: JORGE SANTOS
Descritores: AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
RECURSO SUBORDINADO
NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CONTRATO DE SEGURO
SOBRESSEGURO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O DL 214/97, de 16 de Agosto, estabeleceu um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel consagrando uma regulamentação expressa em matéria de sobresseguro.
II - Este regime especial não veio a ser derrogado ou alterado com a entrada em vigor do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
III - A regulamentação específica do DL nº 214/97 impondo a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, por forma a garantir a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total, não conflitua com as normas previstas no RJCS que integram o chamado princípio indemnizatório, nos termos do qual a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.
IV - Tal assim é, na medida em que, como já se antevia no preâmbulo do DL nº 214/97 "as consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual".
V - Ora, não podem as seguradoras opôr aos tomadores o valor real depois do sinistro ter ocorrido para evitarem sobreindemnizações, se antes de celebrarem o contrato nada fizeram para o apurar, como o que evitaria celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios), apesar de o poderem ter feito com facilidade, se tivessem actuado com um mínimo de diligência que a boa fé lhes impunha (art. 227º do CC).
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO (que se transcreve)

AA, solteiro, maior, residente na Rua ..., ..., ..., instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum contra EMP01..., S.A., com sede na Av. ..., ..., Lisboa, agora denominada EMP02..., S.A.
Alegou, para tanto, que: No dia 11/11/2018, pelas 09:00 horas, na freguesia ..., do concelho ..., na Estrada Nacional ...07, que liga os concelhos ... e ..., ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros da marca “...”, modelo ..., variante “...”, versão “...”, com a denominação comercial “...”, com a matrícula ..-PZ-.. (doravante designado PZ), propriedade do A. e conduzido por este; Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o A. conduzia o PZ no sentido de ... » ...; a velocidade moderada, cerca de 40km/h; dentro da sua faixa de rodagem; com cuidado, atento ao trânsito que se processava na via e cumprindo todas as regras estradais. Naquele local, dia e hora chovia intensamente e o piso estava molhado e escorregadio. Ao descrever uma curva à direita, o PZ entrou em derrapagem. O A. tentou imobilizar o veículo e recuperar o seu controlo, acionando os travões e compensando a direção no sentido contrário da derrapagem, porém, devido à chuva intensa e ao piso molhado e escorregadio, sem sucesso, tendo o PZ saído da sua faixa de rodagem e ido embater num muro de pedra existente no lado esquerdo da via, considerando o sentido de trânsito ... » ..., despenhando-se de seguida num talude existente no mesmo lado da via, onde finalmente se imobilizou num campo.
O PZ teve de ser arrastado e retirado do local onde se despenhou com recurso a meios mecânicos;
O A. imediatamente participou o sinistro à Ré, para quem tinha transferido a responsabilidade por danos próprios, em caso de choque, colisão e/ou capotamento, através da apólice de seguros n.º ...91;
Porém, volvidos quase 4 meses, em 28/02/2019, a Ré declinou a responsabilidade;
Em consequência do acidente e das diligências necessária à remoção do veículo do local onde se despenhou, o veículo do A. sofreu avultados danos em toda a sua estrutura e ao nível da pintura, chapa e mecânica, de modo que ficou paralisado e sem possibilidade de circular, situação em que ainda se encontra;
Sendo necessário para a sua reparação, despender a quantia de € 22.010,78, que exige da Ré;
Como supra se alegou, o A. tinha transferido para a Ré a responsabilidade por danos próprios, em caso de choque, colisão e/ou capotamento;
Porém, até à presente data, a Ré ainda não cumpriu a sua obrigação, isto é, não indemnizou o A. na quantia necessária para a reparação do PZ;
A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (art.º 804.º, n.º 1 do Código Civil);
O A. não tem capacidade financeira para suportar a reparação do PZ, uma vez que a mesma foi orçada em €22.010,78;
Necessitando o valor da indemnização para a reparação ou, então, para adquirir outro veículo;
Razão pela qual, desde a data do sinistro (11/11/2018), em virtude da mora da Ré, o PZ continua imobilizado e paralisado, sem possibilidade de circular, estando o A. privado das suas utilidades, uso e fruição;
O PZ era utilizado diariamente pelo A. para se deslocar para o seu local de trabalho, a repartições públicas, para fazer compras domésticas, visitar familiares e amigos, tal como noutras situações da sua vida particular, como passear durante os períodos de lazer e demais utilidades que lhe são inerentes;
E antes do acidente encontrava-se em perfeito estado de funcionamento, tendo, aliás, sido submetido a inspeção técnica periódica em 10/04/2018, sem nenhuma deficiência;
Pelo que o A. teve, ainda tem e continuará a ter (até ser indemnizado) necessidade de pedir veículo emprestados a familiares e amigos, os quais, de qualquer modo, não pode utilizar a seu bel-prazer, sendo que muitas vezes não se desloca aos locais pretendidos;
Assim, para ser indemnizado pelos danos decorrentes da mora da Ré, o A. reclama desta uma indemnização calculada à razão diária de €60,00 desde ../../2018 até à data do efetivo e integral pagamento da indemnização necessária à reparação dos danos do PZ, a qual, por ora e até à presente data, se computa em € 13.860,00;
Na data do sinistro, o PZ encontrava-se segurado na Ré mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...91, que cobria os danos decorrentes da sua circulação em caso de choque, colisão e/ou capotamento, sendo o A. tomador do seguro;
Pelo que a Ré é contratualmente responsável pelo pagamento da indemnização ao A.
Conclui formulando os seguintes pedidos:
a-) Condenação da ré a pagar ao A. a quantia de € 22.010,78, a título de danos patrimoniais sofridos no veículo ligeiro de passageiros da marca “...”, modelo ..., variante “...”, versão “...”, com a denominação comercial “...”, com a matrícula ..-PZ-..;
b-) Condenação da ré a indemnizar o A., a título de danos patrimoniais pela privação de uso, decorrentes da mora no cumprimento da obrigação, em montante calculado à razão diária de € 60,00 desde ../../2018, até efetivo e integral pagamento da quantia mencionada em a), a qual, por ora, se computa em € 13.860,00; e ainda;
c) Condenação da ré em custas e procuradoria.
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Regularmente citado, o réu contestou.
Impugnou a dinâmica do acidente alegado na PI, tendo referido que foi o autor quem, intencionalmente, deu causa ao acidente, pelo que, o sinistro dos autos se encontra excluído das coberturas contratadas.
Mais impugna os valores peticionados pelo autor quer para reparação do veículo quer pela privação do uso do mesmo.
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O autor respondeu às exceções invocadas, pugnando pela sua improcedência.
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Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e selecionados os temas da prova.
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Realizou-se a audiência final, que cumpriu todas as formalidades legais, conforme decorre da respetiva acta.
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Foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
- “Atento tudo o exposto e nos termos das disposições legais supra citadas, julgo a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, condeno a ré a pagar ao autor a quantia de € 15.129,83.
Absolvo a ré do demais peticionado.”

Inconformada com a sentença, dela veio recorrer a Ré formulando as seguintes conclusões:

I- Na douta sentença sob censura o julgador não se pronunciou sobre a matéria alegada pela Ré no artigo 110º da sua contestação, não a tendo dado como provada ou não provada.

II- O facto do ponto 110º da contestação da Ré constituía matéria carecida de prova, porque relevante para a decisão da causa e inserida nos temas da prova, pelo que se impunha que o julgador se tivesse pronunciado sobre esse facto, o que não ocorreu.

III- Sem prejuízo de se vir a entender que o facto do ponto 110º da contestação da Ré está contido no facto dado como provado no ponto 24 da matéria considerada assente na doutra sentença, por mera cautela, a Ré invoca a nulidade da douta sentença, por omissão de pronuncia, no que toca a esse ponto da contestação, o que faz nos termos do disposto no artigo 615º n.º 1 alínea d) do CPC.

IV- E, como tal, deve a douta sentença ser anulada, ordenando-se o envio dos autos ao Tribunal de Primeira Instância para que supra o apontado vício.

V- Para a hipótese de se vir a entender que, ao invés de ter ocorrido a falada omissão de pronuncia, o Tribunal proferiu decisão sobre o facto do ponto 110 da contestação da Ré, dando-o como não provado, entende a Ré que, nesse caso, incorreu o julgador em erro na apreciação da prova.

VI- E, prevenindo essa hipótese, a Ré impugna, por considerar incorretamente julgado, a decisão proferida quanto ao facto do ponto 110º da contestação da sua contestação, ou seja Art. 110º “Sendo que, por esse valor era possível adquirir no mercado de usados um veículo igual ao PZ.”

VII- Resulta do teor do relatório da perícia colegial realizada na presente ação, cujo relatório foi junto a estes autos no dia 02/10/2020, coma ref citius 10555040, mais precisamente da resposta ao quesito 4º formulado pela Ré, que, à data do sinistro e pelo preço de 12.000,00€, era possível adquirir no mercado de usados um veículo igual ao PZ.

VIII- Tal facto foi, também confirmado pelos Srs Peritos nos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento, gravados no sistema Habilus no dia 02/05/2023, entre as 10h43m11h01m, com a designação “ 10:43 - 11:01 - Perito: BB”, nas passagens dos minutos 9m29s e seguintes, acima transcritas.

IX- Assim, tendo em conta o teor do relatório pericial junto a estes autos no dia 02/10/2020, coma ref citius 10555040 e ainda o sentido dos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pelos Srs Peritos, gravadas no sistema Habilus no dia 02/05/2023, entre as 10h43m11h01m, com a designação “ 10:43 - 11:01 - Perito: BB”, nas passagens dos minutos 9m29s e seguintes, acima transcritas, impunha-se que tivesse sido dado como provado que “ à data do sinistro e pelo valor de 12.000,00€ era possível adquirir no mercado de usados um veículo igual ao PZ.”

X- Em qualquer caso, tendo em conta os elementos de prova acima mencionados e os poderes conferidos ao Tribunal da Relação pela Regra do artigo 662.º do CPC, sempre se imporia que fosse ser aditado à matéria de facto assente o seguinte facto:
“ à data do sinistro e pelo valor de 12.000,00€ era possível adquirir no mercado de usados um veículo igual ao PZ.”

XI- por aplicação das regras do contrato de seguro e as dos artigos 49º, 128º e 132º do DL 72/2008, nunca poderia a responsabilidade da Ré exceder o montante dos prejuízos alegadamente sofridos, isto é, 12.000€, abatidos do valor dos salvados (5.000,00) e da franquia (500,00€), devendo ser o contrato reduzido nesses termos, o que se requer.

XII- a tal não obstam as regras do DL 214/97, de 16 de agosto.

XIII- Não ficou provado nos autos que a Ré tenha incumprido o seu dever de desvalorizar o capital inicial do contrato de seguro, tanto mais que na apólice está prevista uma tabela de desvalorização (cfr Doc 1 junto com a contestação), o que impede que o Tribunal conclua quer pela verificação da previsão do artigo 3º do DL 214/97.

XIV- Assim, em face do exposto e nos termos da norma do artigo 128º da LCS, deve ser reduzida a eventual prestação da Ré ao valor correspondente ao efetivo dano, independentemente do capital garantido (sem prejuízo, obviamente, de nunca poder ser ultrapassado).

XV- Atendendo ao que ao que dispõe os artigos 49.º n.º 2, 128.º, 131.º, 132.º e 134.º do RJCS, aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de abril, não se pode, razoavelmente, imputar ao segurador a obrigação de confirmar a adequação do capital garantido pela apólice ao efetivo valor comercial do bem a segurar.

XVI- Do mesmo passo que não se pode afirmar que, só porque o prémio de seguro foi calculado tendo por base um valor superior àquele que deve ser atendido para efeitos de indemnizatórios, só aquele, ainda que superior ao dano, deve ser atendido.

XVII- Tendo em conta o disposto nos artigos 128º e n.º 2 do artigo 132.º do RJCS a Lei não impõe à seguradora o pagamento do capital estabelecido só porque o prémio que cobrou foi fixado em consonância com o seu valor, antes prevendo a restituição dos sobreprémios em caso de sobrevalorização desse capital.

XVIII- O entendimento de que cabe à seguradora confirmar o se o valor do capital a garantir é ou não ajustado, põem em causa a regra do artigo 49º n.º 2 do RJCS, a qual atribuiu ao tomador a responsabilidade exclusiva na sua determinação.

XIX- Ademais, esse entendimento retiraria qualquer razão de ser às normas que regem o sub e o sobresseguro, destinadas, precisamente a resolver as situações, perfeitamente normais numa relação de seguro, em que, por uma multiplicidade de razões, o capital seguro não tem exata correspondência com o valor do bem.

XX- Por fim, se a norma do n.º 2 do artigo 49.º do RJCS atribui ao tomador a responsabildiade pela indicação do capital seguro, parece mais razoável concluir-se que só a este – e não ao segurador - caberia o dever de realizar as diligências necessárias à devia avaliação do bem a segurar.

XXI- Tão pouco se pode entender que, no caso, foi convencionada entre as partes uma prestação em caso de sinistro e, mesmo que assim fosse, a parte final do n.º 1 do artigo 131º do RJCS impede a fixação convencional de um montante indemnizatório que seja “manifestamente infundado”.

XXII- No caso, existe uma gritante discrepância entre o valor do capital seguro e o do bem garantido, de mais de 8.000,00€.

XXIII- Assim, sempre se teria de considerar infundado o valor indemnizatório convencionado pelas partes, com a inerente aplicação irrestrita do princípio indemnizatório.

XXIV- Face ao exposto, tendo-se provado que, à data do sinistro, o veículo PZ valia 12.000,00€, era esse o valor a atender para efeitos indemnizatórios (o que ficará reforçado se vier a ser dado como provado o facto alegado pela Ré no artigo 110.º da sua contestação, ainda que, porventura, não seja essencial para tal solução).

XXV- Como tal, deve ser revogada a douta sentença, condenando-se a Ré a pagar ao Autor, pelos danos sofridos pelo veículo, a quantia de não mais de 6 500,00€ (correspondentes à diferença entre o valor do automóvel, de 12.000€, e o dos seus salvados, de €5.000, deduzido, ainda, da franquia de 500,00).

XXVI- A douta sentença violou as normas dos artigos 49º n.º 2, 128.º, 132º do RJCS.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença sob censura e decidindo-se antes nos moldes apontados, como é de inteira e liminar JUSTIÇA.
*
Houve contra-alegações, nelas se pugnando pela improcedência do recurso e foi requerida pelo Autor a ampliação do âmbito do recurso, para o que formula as seguintes conclusões:

a) O Autor discorda da decisão proferida quanto às seguintes questões:
– A dedução do valor do salvado para efeitos da indemnização do lesado;
II – A privação do uso do veículo;

b) Pelo que devem as mesmas ser objeto de reapreciação, por este Venerando Tribunal da Relação, nos termos do artigo 636.º do CPC;

c) Relativamente à primeira questão - A dedução do valor do salvado, importa atender à matéria de facto dos pontos 25., 27.º e 28.º, dada como provada;

d) Ora, o Tribunal “a quo” decidiu que o Autor tinha direito ao pagamento da quantia constante no contrato, descontado o valor dos salvados (indicado no ponto 25.) e da franquia, realizando a seguinte operação matemática: €20.629,83 – 5.000,00 – 500,00 = €15.129,83;

e) Como resulta da sentença, o veículo não seria de reparar atenta a onerosidade ou o custo da sua reparação ser superior ao valor do veículo;

f) Ante a privação do bem - perda total do veículo, e do uso ou aproveitamento útil que lhe era dado pelo Autor, essa depreciação do valor da indemnização é errada;

g) Pois, na indemnização por perda total do veículo deve sempre compreender ou atender ao valor necessário a repor a utilidade que o veículo permitia ao seu titular. Sendo que no caso dos autos o veículo tinha grande utilidade para o Autor, aliás como resulta da matéria de facto provada sob o ponto.

28. e que aqui se dá por reproduzida, e essa perda da vantagem ou utilidade, deve ser compensada;

h) Neste sentido o legislador salvaguardou, expressamente, a necessidade de a indemnização por perda total reparar os efectivos danos que no caso concreto se coloquem, remetendo, de modo inequívoco, para a aplicação do regime do artº 562º do CC, mormente no caso de rejeição, pelo lesado, da Proposta Razoável feita pela seguradora;

i) E nas situações de perda total do veículo, não se deve deduzir ao valor indemnizatório do dano real o valor do salvado, porque a quantia assim obtida, após essa dedução, desvirtuaria o fim da indemnização apurada: valor necessário a repor as utilidades proporcionadas pelo veículo, correspondente ao efectivo custo de substituição;

j) Pelo que, a indemnização deve reconstruir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento danoso (artº 562º do CC) À luz das regras dos artºs 562º e 566º do CC, sempre o autor teria direito a que a sua indemnização correspondesse ao valor fixado no contrato pelo veículo, sem qualquer dedução do valor do salvado;

k) Tanto mais que, o lesado, não é obrigado a aceitar a proposta indemnizatória da seguradora (que no caso, nem existiu), podendo rejeitá-la, ou seja, o lesado não está vinculado à aceitação de uma qualquer proposta, logo, a sua indemnização terá de ser em atenção ao valor integral contratualizado para aquele veículo que foi declarado como de perda total;

l) E, impor a dedução de €5.000,00 ao valor de €20.629,83, calculado como valor necessário e devido ao lesado, para repor as utilidades proporcionadas pelo veículo, equivale a frustrar aquela finalidade indemnizatória: não se lhe está a atribuir o valor correspondente ao dano real apurado, mas quantia bastante inferior;

m) Assim, o Autor/lesado sempre teria direito ao valor de €20.629,83;

n) Relativamente à segunda questão – Privação do uso do veículo, importa ter em consideração a matéria de facto provada sob os pontos 28., 29., 34., 35., 38. e 47., da fundamentação da sentença, que aqui se dão por reproduzidos para os devidos efeitos legais;

o) O Autor não concorda nem aceita a posição do Tribunal “a quo”, porquanto, como melhor resulta do peticionado nesta matéria, o pedido quanto à privação do uso, foi feita tendo em atenção o dano resultante para o Autor em virtude do incumprimento do contrato por parte da Ré, ou seja, esta desde a data do sinistro que entrou em mora, ao não assumir a sua obrigação contratual de assumir o pagamento da reparação do veículo, a que estava obrigada, sabendo-se que o Autor não tinha condições económicas para proceder à reparação;

p) Com efeito, a privação do uso de veículo constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o proprietário fica impedido do exercício dos respectivos direitos de uso, fruição e disposição, bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem com tal fundamento, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava;

q) Esta impossibilidade de utilização e perda de utilidades inerentes, mostram-se suficientemente demonstradas nos factos provados sob os pontos 28.º e 29.º da fundamentação da sentença. Pois, o Autor enquanto proprietário do veículo danificado ficou privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, com violação do respetivo direito de propriedade, e essa privação, representa o valor de €51,00/dia, como provado sob o artigo 47.º da matéria de facto provada;

r) Pelo que, sem prejuízo da fixação desse valor a atribuir ao Autor desde a data do acidente até ao pagamento da indemnização que lhe é devida, sempre e em última ratio, o Tribunal podia e devia, por ser legitimo, o recorrer à equidade para fixar a respetiva compensação;

s) Pois constitui dano indemnizável toda a perda, prejuízo ou desvantagem resultante da ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, cabendo ao lesante reparar todos os prejuízos causados ao lesado que merecerem a tutela do direito de modo a colocá-lo na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão, querendo significar, no que ao caso sub iudice respeita, que o período de privação do uso do veículo sinistrado, que não seja imputável ao lesado, deve ser suportado por quem estava obrigado à reparação dos danos emergentes do acidente;

t) Assim, entende-se, face à matéria provada, que o Autor ficou privado do veículo durante todo o tempo que se iniciou na data do acidente e que ainda se mantém, por não ter sido ressarcido de qualquer valor que é devido pela R., ou seja, a privação perdurará até ao pagamento efectivo da indemnização a que tem direito;

u) Sendo que o valor em causa deve sempre ser tido em conta por referência ao dado como provado sob o artigo 47.º, ou seja, de €51,00/dia;

v) Perante a decisão formulada na sentença, o Tribunal “a quo”, violou além do mais o disposto nos artigos 562.º. 564.º, 566.º, 798.º, 804.º, 1305.º do Código Civil.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Excias doutamente suprirão, deverá improceder o recurso de Apelação interposto, apreciando-se subsidiariamente as questões suscitadas pelo apelado, fazendo V. EXªs, a costumada JUSTIÇA.
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Houve resposta a esta ampliação do objecto do recurso, nela se pugnando pela sua inadmissibilidade legal.
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Pelo Tribunal a quo foi proferido o seguinte despacho:
- “Antes de mais, equacionando-se a possibilidade de a situação descrita sob o título “ampliação do objeto do recurso” constituir um recurso subordinado, e podendo a mesma ser convolada em conformidade, decide-se, a fim de se evitar que seja proferida uma decisão surpresa, conceder às partes o prazo de dez dias para, querendo, se pronunciarem sobre esta questão.
Notifique.”
*
Na sequência desse despacho, o Autor pronunciou-se no sentido de manter a requerida ampliação nos precisos termos em que a formulou.
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Por sua vez, a Ré pugnou pela inadmissibilidade legal da convolação da ampliação em recurso subordinado.
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O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a nulidade invocada na apelação, concuindo pela sua não verificação e, após, admitiu o recurso, não se pronunciando, no entanto, sobre a admissibilidade da pretendida ampliação do objecto do recurso.
*
Colhidos os vitos legais, cumpre decidir.
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II - OBJECTO DO RECURSO

A - Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando notar que, em todo o caso, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.

B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, cumpre apreciar:
- Da ampliação do âmbito do recurso;
 - Da nulidade por omissão de pronúncia;
- Da impugnação da matéria de facto;
- e se, em consequência e em qualquer caso deve ser revogada a sentença recorrida, nos termos pugnados na apelação.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1.1- Factos provados:

1.º) No dia 11/11/2018, pelas 09:00 horas, o veículo ligeiro de passageiros, da marca “...”, modelo ..., variante “...”, versão “...”, com a denominação comercial “...”, com a matrícula ..-PZ-.. (doravante designado PZ), propriedade do A., era conduzido por este na freguesia ... do concelho ..., na Estrada Nacional ...07, que liga os concelhos ... e ....

2.º) O autor seguia a cerca de 40km/h.

3.º) Dentro da sua faixa de rodagem.

4.º) Com cuidado, atento ao trânsito que se processava na via.

5.º) Naquele local, dia e hora chovia intensamente e o piso estava molhado e escorregadio.

6.º) Ao descrever uma curva à direita, o PZ entrou em derrapagem.

7.º) O A. tentou imobilizar o veículo e recuperar o seu controlo, acionando os travões e compensando a direção no sentido contrário ao da derrapagem, mas devido à chuva intensa e ao piso molhado e escorregadio não o conseguiu fazer.

8.º) Tendo o PZ saído da sua faixa de rodagem e ido embater num muro de pedra existente no lado esquerdo da via, considerando o sentido de trânsito ... » ..., a cerca de 29km/h.

9.º) Depois do embate, o PZ ficou imobilizado parcialmente sobre um muro situado do lado esquerdo da via, atento o sentido ....

10.º) O PZ ficou parado numa posição quase perpendicular em relação ao eixo da via na qual circulava anteriormente.

11.º) O PZ teve de ser arrastado e retirado do local onde se despenhou com recurso a meios mecânicos.

12.º) Aquando do seu reboque, o PZ encontrava-se imobilizado no local ainda com parte da sua traseira sobre a via e para trás do muro sobre o qual ficou parado.

13.º) O local referido em 6º configura uma curva à direita, atento o sentido ....

14.º) Essa curva desenhava um ângulo de cerca de 90º, configurando uma curva fechada e de má visibilidade.

15.º) Nesse local, a via comporta duas hemi-faixas de rodagem, destinadas à circulação em sentidos opostos entre si.

16.º) Nesse local a via não tem qualquer inclinação, seja ela perpendicular ou transversal, sendo totalmente plana.

17.º) Tendo em conta o mesmo sentido de marcha, o local onde o PZ se imobilizou situava-se já no fim da curva à direita, em zona onde a via passava a desenhar uma reta.

18.º) Antes do embate, os pneumáticos de que era dotado o PZ encontravam-se em boas condições de conservação, com as respetivas ranhuras com dimensões superiores às mínimas estabelecidas na Lei, propiciando uma excelente aderência ao pavimento.

19.º) O PZ era dotado de vários equipamentos destinados a assegurar a estabilidade e segurança na condução, entre eles sistema de travagem anti-bloqueio (ABS), controlo de tração (TCS), assistente de travagem (BA), travões de disco, sendo estes ventilados à frente e sistema de suspensão independente.

20.º) O autor não chamou ao local qualquer agente da autoridade.

Danos

21.º) O veículo PZ sofreu danos em toda a sua estrutura e ao nível da pintura, chapa e mecânica, sobretudo na sua dianteira e zona inferior.

22.º) O PZ ficou paralisado e sem possibilidade de circular, situação em que ainda se encontra.

23.º) Sendo necessário para a sua reparação, despender a quantia de € 22.010,78.

24.º) Em 11/11/2018, o valor comercial do PZ era de 12 mil euros.

25.º) O valor dos salvados era de € 5.000,00.

26.º) Na data de 12/06/2020, o valor dos salvados era de € 6.210,00.

27.º) O PZ foi submetido a inspeção técnica periódica, em 10/04/2018, não apresentando qualquer anomalia.

28.º) O PZ era utilizado diariamente pelo A. para se deslocar para o seu local de trabalho, a repartições públicas, para fazer compras domésticas, visitar familiares e amigos, tal como noutras situações da sua vida particular, como passear durante os períodos de lazer e demais utilidades que lhe são inerentes;

29.º) O autor tem vindo a pedir veículos emprestados a familiares e amigos.

30.º) À data do acidente o autor era sócio das seguintes empresas, com as seguintes participações:
• EMP03...-COMERCIO DE PEÇAS PARA AUTOMOVEIS, LDA, com uma quota de 33,50% no capital social de 20.,000€ dessa empresa;
• EMP04... - ALUGUER DE VIATURAS, LDA, com uma quota de 33% no capital social de 51.000€ dessa empresa;
• EMP05..., LDA., com uma quota de 33% no capital social de 10.000€ dessa empresa;
• EMP06... - COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, LDA., com uma quota de 33% no capital social de 20.000€ dessa empresa;
• EMP07..., LDA. com uma quota de 33% no capital social de 20.000€ dessa empresa.

31.º) O autor apenas recebia rendimentos da firma EMP05..., LDA.

32.º) Na data do acidente o autor era ainda o titular da totalidade do capital social da empresa “EMP08..., Unipessoal, Lda”,

33.º) Esta sociedade era proprietária dos seguintes veículos:
• ..., com a matrícula ..-OF-.., com a propriedade registada a favor dessa empresa desde ../../2014.
• ..., com a matrícula ..-VE-.., com a propriedade registada a favor dessa empresa desde ../../2018.
• ..., com a matrícula ..-RZ-.. com a propriedade registada a favor dessa empresa desde ../../2018.

34.º) O A. participou o sinistro à Ré, para quem tinha transferido a responsabilidade por danos próprios, em caso de choque, colisão e/ou capotamento, através da apólice de seguros n.º ...91 (cfr. docs. ... e ... da contestação, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais).

35.º) Em 28/02/2019, a Ré declinou a responsabilidade.

36.º) Aquando da celebração da apólice e com referência à data de início da sua vigência (18/08/2016) o autor indicou como capital seguro o de € 29.083,47, sendo € 26.483,47 para o veículo e € 2.600 para extras, correspondentes ao designado pack ....

37.º) Acordaram as partes que o capital do seguro sofreria, desde o início da vigência da apólice, uma desvalorização mensal e anual, de acordo com a tabela de desvalorização acordada e constante das condições particulares da apólice.

38.º) Em 11/11/2018, o capital seguro para a cobertura de “choque, colisão e capotamento” no caso de verificação desse risco era de € 20.629,83.

39.º) Ficou estabelecido na apólice que, em caso de sinistro garantido pela cobertura de “choque, colisão ou capotamento”, seria sempre devida pelo A uma franquia, no valor de € 500,00 (quinhentos euros) a abater à eventual indemnização.

40.º) Segundo o art. 40º n.º 1 alínea b) das Condições Gerais da Apólice, ficaram excluídos da garantia de todas as coberturas da apólice de seguro os “Danos causados intencionalmente pelo Tomador do Seguro, Segurado, pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis ou às quais tenham confiado a guarda ou utilização do veículo seguro”

41.º) De acordo com o artigo 40º n.º 2 alínea d) das Condições Gerais da Apólice ficaram excluídos da garantia de todas as coberturas da apólice de seguro os “Lucros cessantes ou perdas de benefícios ou, resultados advindos ao Tomador do Seguro ou ao Segurado em virtude de privação de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumo naturais;”

42.º) O veículo PZ teve a sua primeira matrícula no ano de 2011.

43.º) Foi importado da Alemanha para Portugal.

44.º) O veículo PZ foi usado, ao longo dos anos e antes da sua importação, para serviço de táxi.

45.º) A versão deste veículo era a 450 (Taxi Versao Internacional), baseado no modelo ... do ... e não ....

46.º) O autor declarou, junto do perito da ré, por escrito, o seguinte: “no dia 11-11-2018 cerca das 9.00 horas, conduzia o veículo ... E..0 ..-PZ-.. no sentido ..., onde me deslocava para tomar café. A dada altura em efetuava uma curva à direita, provavelmente devido a chuva forte e intensa, perdi o controlo do veículo este fugiu de traseira e fui em frente e foi embater no muro do outro lado da via, o veículo ficou imobilizado no respetivo muro. Do acidente não fiquei ferido, não chamei a autoridade e desconheço testemunhas. O veículo foi oferecido pelo meu pai”.

47.º) O aluguer de uma viatura com as caraterísticas do PZ custa cerca de € 51,00 por dia.

1.2. Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:

a) No dia, hora e local referidos em 1º a 9º dos factos provados, o autor conduziu o PZ, propositada e intencionalmente, de forma a embater contra um muro;

b) Sempre com o condutor/autor em perfeito controlo desse veículo e visando a produção de danos no PZ, para que fossem, de seguida. reclamados da Ré, tendo em vista obter a correspondente indemnização.

c) O custo da reparação dos danos do PZ ascende à quantia de € 24,660.15.

d) Aquando da celebração do contrato de seguro referido em 34º dos factos provados, o autor indicou à Ré que o PZ era um automóvel de marca ..., modelo ....

e) O autor sabia que o PZ não era a versão “...” do ... ..., mas sim a classic, com adaptação para táxi.

f) E o autor sabia ainda que a versão Classic e, ainda mais, a versão táxi, tinha um valor muito inferior ao da versão ... que ficou a constar na apólice.
*
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Da ampliação do objecto do recurso

Em sede de contra-alegações, vem o Autor requerer a ampliação do objecto de recurso, alegando para o efeito, em síntese, que:
a) Discorda da decisão proferida quanto às seguintes questões:
– A dedução do valor do salvado para efeitos da indemnização do lesado;
– A privação do uso do veículo;
Pugna, assim, que devem as mesmas ser objecto de reapreciação, por este Tribunal da Relação, nos termos do artigo 636.º do CPC.
Como se faz referência no relatório supra, a Recorrente opôs-se a esta ampliação, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, tendo, nessa sequência, sido concedida às partes, pelo Tribunal recorrido, a possibilidade de se pronunciarem, inclusive, relativamente a eventual convolação da ampliação em recurso subordinado, o que fizeram.
Vejamos.
Dispõe o Artigo 636º do Código de Processo Civil - Ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido – que, no caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a titulo subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
Sobre esta matéria, afirma José Augusto Pais de Amaral (cfr. “Direito Processual Civil”, Almedina 2015, 2º Edição, pág. 420) que “Trata-se dos casos em que, tendo a ação ou a defesa diversos fundamentos, a parte obteve decisão favorável, embora tenha decaído quanto a algum desses fundamentos.
Tendo-lhe sido favorável a decisão, não pode interpor recurso, embora não tenha conseguido vencimento em algum dos fundamentos por si invocados.
Comentando tal norma, A. Abrantes Geraldes ensina que “Trata-se de um preceito que foi aditado pelo Dec.-Lei n.° 39/95, de 15 de Fevereiro. Visou clarificar uma dúvida que anteriormente se suscitava a respeito da natureza dos meios que deveriam ser acionados em situações em que, apesar de a decisão ser favorável à parte vencedora, não tivessem sido acolhidos todos ou alguns dos fundamentos de facto ou de direito invocados.
Como já se disse aquando da anotação feita ao art. 680.°, em tais circunstâncias, a parte não tem legitimidade para recorrer, uma vez que não é vencida quando se estabelece o confronto entre a decisão e o pedido ou as excepções. No entanto, não lhe é de todo indiferente a decisão proferida pelo tribunal a quo se acaso as questões suscitadas pelo recorrente vierem a ser acolhidas pelo tribunal ad quem. (…) 4. Outra das possibilidades de ampliação do âmbito do recurso respeita à matéria de facto considerada provada ou não provada que pode relevar para a defesa dos interesses do recorrido caso sejam acolhidos os argumentos de facto ou de direito apresentados pelo recorrente para sustentar o seu recurso contra a decisão proferida. Com efeito, apesar de a parte ter conseguido vencimento na acção, pode ter interesse em acautelar-se contra a eventual procedência das questões suscitadas pelo recorrente. Modificada a decisão da matéria de facto, pode continuar a beneficiar do resultado favorável que na primeira decisão foi declarado, apesar de eventualmente serem acolhidos os argumentos apresentados pelo recorrente.”
E prossegue o mesmo Autor, afirmando que “em tais circunstâncias a parte não tem legitimidade para interpor recurso (nem autónomo, nem subordinado), uma vez que, estabelecido o confronto entre a decisão e a ação ou a defesa, não é vencida. Apesar disso, tendo em vista a manutenção do resultado expresso através da decisão recorrida, pode não ser de todo indiferente para si o modo como o tribunal a quo fundamentou a decisão, se acaso vierem a ser acolhidos pelo tribunal ad quem questões suscitadas pelo recorrente. Ora, se porventura fosse vedada ao recorrido a possibilidade de promover a ampliação do objeto do recurso, poderia ver-se definitivamente prejudicado pela resposta que o tribunal ad quem viesse a dar às questões suscitadas pelo recorrente, num momento em que já não teria capacidade para reagir. (…) É verdade que o mais importante para a parte que deduz uma pretensão ou que na ação exerce o direito de defesa é o resultado final condensado na conclusão da sentença, e não os fundamentos que à mesma conduziram. Não sendo impugnada a decisão que tenha acolhido a pretensão da parte vencedora, com os efeitos delimitados pelo caso julgado assim formado, é para si indiferente a eventual rejeição de algum ou mesmo de todos os fundamentos que tenha invocado para sustentar a sua posição, tal como lhe é indiferente alguma nulidade da decisão proferida.
Porém, o quadro modifica-se quando a parte vencida interpõe recurso da decisão. Nesta eventualidade, pode não ser indiferente para a contraparte parte vencedora (ou parcialmente vencedora) a resposta que o tribunal a quo tenha dado aos fundamentos de facto ou de direito por si invocados ou o facto de ocorrer alguma nulidade decisória. Na verdade, se acaso o tribunal ad quem reconhecer razão aos fundamentos invocados no recurso interposto pela parte vencida pode revelar-se importante para a defesa dos interesses do recorrido que sejam acolhidas no âmbito do mesmo recurso os fundamentos que oportunamente esgrimiu e que foram objeto de resposta desfavorável por parte do tribunal a quo. É esta a função e a utilidade da ampliação do objeto do recurso.” – Cfr. “Recursos em Processo Civil – Novo regime, Almedina, 2ª Edição, pág. 97; e “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5º Edição, Almedina, pág. 122ºss.
Neste sentido, entre outros, decidiu-se no Ac. da RP, de 26-04.2021, proc. nº 8512/17.0T8VNG.P1 (num caso em que ambas as partes saíram vencidas, a Ré interpôs recurso principal e a Autora veio em contra-alegações requerer a ampliação do objecto do recurso com vista à alteração da matéria de facto), pela inadmissibilidade da ampliação do objecto do recurso, tecendo-se as seguintes considerações, com as quais concordamos:
- “Com o devido respeito, em nosso julgamento, a Autora/Apelada confunde a ampliação do âmbito do recurso e os fins a que o dito expediente processual está adstrito em função do previsto no artigo 636º, n.ºs 1 e 2, do CPC com os fins do recurso (autónomo ou subordinado) que a parte, tendo ficado (total ou parcialmente) vencida no acto decisório, tem, obrigatoriamente, que interpor para, como pretende, ainda que de forma ínvia, a Apelada, ver alterada a decisão proferida em 1ª instância, naturalmente apenas na parte em que a mesma lhe foi desfavorável e em que ficou vencida. Com efeito, no caso dos presentes autos, sendo indiscutivelmente ambas as partes, no confronto com o conteúdo da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, partes vencidas (…), qualquer uma delas só pode reverter a parte daquela decisão que lhe é desfavorável interpondo tempestivamente recurso autónomo (ou subordinado) desse acto decisório, como, aliás, fez a Ré/Apelante.
De facto, em nosso ver, está vedado à parte vencida na decisão (vencimento que se colhe por comparação entre a pretensão deduzida e o resultado final expresso no acto decisório concreto) alcançar aquele fim (alteração/revogação da sentença na parte que lhe é desfavorável) através da ampliação do objecto do recurso formulado em sede de contraalegações, pois que tal resultado só é viável através do tempestivo recurso a interpor por essa mesma parte.
De facto, se analisarmos com algum pormenor as hipóteses contempladas no artigo 636º do actual CPC (e que antes estavam previstas nos mesmos termos no artigo 684º-A, do anterior Código), facilmente se alcança que o objectivo da ampliação do objecto do recurso não pode ser aquele que a Autora/Apelada através dele pretende alcançar, qual seja a alteração do acto decisório na parte em que o mesmo se lhe apresenta como desfavorável, ou seja, em termos concretos, decretar-se agora nesta instância, em sentido oposto ao sentenciado em 1ª instância, a procedência total da acção por si instaurada contra a Ré.
Se não, vejamos.
Desde logo, na hipótese contemplada no n.º 1 do artigo 636º, do CPC o que está em equação é o conhecimento pelo Tribunal ad quem de um dos vários fundamentos invocados na acção, abrindo-se, neste restrito âmbito, à parte vencedora a possibilidade de nas suas alegações ao recurso do recorrente requerer àquele Tribunal, ainda que a título subsidiário, que conheça de algum daqueles fundamentos por si invocados e não conhecido pelo Tribunal de 1ª instância, prevenindo a necessidade da sua apreciação, ou seja, se o recurso interposto pela parte contrária dever vingar e, nesta outra hipótese, poder ainda a sua pretensão ser acolhida à luz daquele outro fundamento por si invocado e não conhecido.
(…) Por seu turno, a previsão do n.º 2 do mesmo artigo contempla duas sub-hipóteses distintas. (…) A segunda mostra-se prevista no mesmo n.º 2 (2ª parte) e traduz-se na possibilidade dada ao recorrido, parte vencedora na decisão de 1ª instância, de, na respectiva alegação e a título subsidiário (em caso de procedência do recurso interposto pelo recorrente), impugnar a decisão proferida sobre pontos da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a eventualidade de triunfar a questão suscitada por este último.
(…) Ora, sendo assim, como é bom de ver, não só a Autora/Apelante não obteve vencimento na acção, pois que, ainda que em parte, a acção por si interposta foi julgada improcedente, como, ainda, o seu objectivo não é apenas o de continuar a beneficiar do mesmo resultado que obteve na sentença de 1ª instância, mas antes, de forma diametralmente oposta, como se referiu ab initio, reverter/alterar esse resultado, passando de uma procedência parcial da acção para, através da deduzida ampliação do objecto do processo, uma procedência total da acção, resultado este que não lhe foi atribuído na sentença de 1ª instância e que a mesma não «atacou» por via de recurso – como devia, se dela discordava - nessa parte.”
Do exposto resulta que a ampliação do objecto de recurso pode ser requerida pela parte vencedora, que não dispõe de legitimidade para interpor recurso principal ou subordinado, e que pretenda acautelar-se contra a eventual procedência das questões suscitadas pelo recorrente (parte vencida).
No caso vertente, o Autor pretende ver alterada a decisão de direito na parte em que a mesma foi decida em sentido contrario ao por si alegado na petição inicial, alteração essa que é susceptivel de alterar a decisão condenatória proferida.
Com efeito, é manifesto que a matéria de direito que o Autor pretende ver aqui reapreciada foi decidida em sentido contrário ao por si alegado. Ou seja, a decisão proferida quanto àquela concreta matéria foi decidida contra a versão e interesses do Autor e, como tal, quanto a esta decisão o Autor saiu vencido.
O Autor não é, assim, parte vencedora, antes tendo sido vencido na acção e podia interpor recurso da decisão. Porém, com a ampliação do objecto do recurso, pretende o Autor que seja alterada parte da sentença que lhe é desfavorável, ou seja pretende reverter aquela parte da decisão que lhe e desfavorável. Assim, para esse efeito, deveria o Autor ter interposto recurso autónomo (ou subordinado) desse acto decisório, não lhe sendo lícito lançar mão da ampliação do objecto do recurso, à luz do citado art. 636º do CPC.
Por outro lado, entendemos que a ampliação em apreço não pode ser convolada em recurso subordinado.
Veja-se o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo: 9805/18.5T8LRS.L1-2, de 07-04-2022:
- “Enuncia Abrantes Geraldes [3] não poder confundir-se o recurso subordinado com a ampliação do objecto do recurso. Concretiza que, “para além de serem diferentes os objectivos que se pretendem alcançar com um e com outro instrumento processual, são diversas as circunstâncias que os motivam, já que o recurso subordinado implica que a parte ficou vencida em relação ao resultado declarado na sentença, ao passo que a ampliação do objecto do processo pressupõe apenas que não foi acolhido o fundamento (ou fundamentos) invocado pela parte para sustentar a decisão que, apesar disso, lhe foi favorável (…)”.
Desta forma, acrescenta que “a diversidade de pressupostos e de objectivos leva a que não possam qualificar-se como recurso subordinado as alegações complementares que o recorrido apresente ao abrigo do art. 636º (ampliação do objecto do recurso). Uma tal intervenção não poderá superar o caso julgado que se tenha formado relativamente à decisão que não foi objecto de oportuna reacção que apenas poderia traduzir-se na interposição de recurso autónomo ou de recurso subordinado”.
Sobre esta temática e no mesmo sentido, veja-se o considerado no Acórdão da Relação de Lisboa, de 7.02.2019, Processo nº. 19391/15.2T8LSB.L1-2, in www.dgsi.pt: (…) “Há que destrinçar claramente  o recurso subordinado (a que alude o citado artigo 633.º), o qual implica que a parte ficou vencida em relação ao resultado declarado na sentença, da ampliação do objeto do recurso prevista no artigo 636.º do CPC, que pressupõe apenas que o fundamento ou fundamentos invocados para escorar a decisão favorável não foram acolhidos. A diversidade de pressupostos e de finalidades leva a que não se possam ser qualificadas como recurso subordinado as alegações complementares apresentadas ao abrigo do mencionado artigo 636.º”.
Assim, subscrevendo-se, e citando-se, o entendimento de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa [4], acrescenta-se não dever-se “estabelecer-se qualquer confusão entre o recurso subordinado e a ampliação do objeto do recurso a que se reporta o art. 636º. No recurso subordinado, a parte é vencida quanto ao resultado da ação (ou seja, quanto a um pedido ou a um segmento do pedido), ao passo que nas situações reguladas no art. 636º releva a não aceitação de algum dos fundamentos de facto ou de direito que sustentavam a pretensão ou a defesa, ou a verificação de alguma nulidade decisória que não tenha interferido (ainda) no resultado final.”
No caso vertente, tal como se afirma também no citado aresto, não se pode qualificar como recurso subordinado o pedido de ampliação do objecto de recurso, uma vez que, desde logo, tal convolação colocaria em causa o caso julgado que se formou relativamente a decisão que não foi objecto de oportuna impugnação recursiva.
Além disso, outros obstáculos se nos colocam que, em nosso ver, impedem ou obstam à pretendida convolação da ampliação do objecto do recurso em recurso subordinado. É o caso da inaproveitabilidade do acto objeto de convolação, por não reunir os requisitos específicos exigidos para o acto para o qual seria convolado, ou por implicar o agravamento da posição processual da parte contrária aquela a quem a convolação aproveitaria. Com efeito, se o meio processual erroneamente utilizado determinou uma diminuição das garantias da contraparte, a sua convolação deve ter-se por inadmissível.
Ora, no caso vertente, a Ré, para responder a essa ampliação da parte contrária (aqui Autor) dispôs apenas do prazo de 15 dias – previsto para a resposta à ampliação (nº 8 do art. 638º do CPC), e não de 30 dias, como teria direito se o meio utilizado tivesse sido o de recurso, autónomo ou subordinado (cfr art. 638º, nº 1, 5 e 7 do CPC).
Decorre, assim, que o meio processual erroneamente utilizado pelo Autor determinou uma diminuição das garantias da contraparte, pelo que a sua convolação deve ter-se por inadmissível, atento o disposto no artigo 193º, nº 2, do CPC, já que representaria uma violação do princípio da igualdade das partes, consagrado no artigo 4º do CPC, e com tutela constitucional, de harmonia com o disposto no art. 13º, nº 1, e 20º, nº 4, da Constituição da Republica Portuguesa.
Neste sentido, num caso semelhante, se entendeu no Acórdão da RC de 12.07.2022, proc. 601/20.0T8CNT.C1:  
- (…) “E tendo ficado vencido, não quanto a outro fundamento, mas no tocante a parte do seu pedido indemnizatório, o que estava indicado era que impugnasse a decisão da 1.ª instância através de recurso autónomo independente – dado que a causa tem valor superior à da alçada do tribunal da 1.ª instância e a decisão deste é-lhe desfavorável em valor superior a metade dessa alçada – ou através do recurso subordinado (art.ºs 44.º, n.º 1 da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, 631.º e 633.º n.º 1, do CPC).
A conclusão a tirar é, assim, que o autor, porque não é parte vencedora, errou patentemente quanto ao meio processual adequado para impugnar a sentença, na parte em que ela lhe é desfavorável. A consequência desse erro é, em princípio, a convolação, por determinação oficiosa, do meio processual impróprio no meio processual adequado, solução que surge claramente ordenada por uma ideia de máximo aproveitamento dos actos processuais, (art.º 193.º, n.º 3, do CPC)[4].  Diz-se em princípio, dado que aquela convolação está naturalmente sujeita a limites, uma vez que é necessário que a ela não obstem quaisquer outras circunstâncias, de que se destacam, desde logo, três: a extinção por caducidade do direito de praticar o ato convolado e a inaproveitabilidade do ato objeto de convolação, por não reunir os requisitos específicos exigidos para o acto para o qual seria convolado, ou por implicar o agravamento da posição processual da parte contrária aquela a quem a convolação aproveitaria. Se, realmente, o meio processual erroneamente utilizado determinou uma diminuição das garantias da contraparte, a sua convolação deve ter-se por inadmissível[5].
No caso, o autor procedeu à ampliação do recurso na sua alegação de resposta ao recurso dos réus, pelo que é patente a extinção, por caducidade do direito de impugnar a decisão por recurso autónomo independente (art.ºs 247.º, nº 1, 248.º, nº 1 e 638.º, n.º 1, do CPC). Não assim, quanto ao recurso subordinado (art.º 633.º n.º 2 e 638.º, n.º 5, do CPC). Simplesmente os apelantes apenas dispuseram do prazo de 15 dias para responder ao requerimento de ampliação, ao passo que, se tivesse sido interposto recurso subordinado, disporiam, para lhe responder – dado que nele se impugna a decisão da matéria facto - do prazo de 40 dias (art.ºs 638.º n.ºs, 5 a 8, do CPC). Do que decorre que o aproveitamento do acto praticado, através da convolação do meio processual utilizado – ampliação do objeto do recurso – para o meio adequado – recurso subordinado - determinaria um agravamento da posição processual dos apelantes, dado que importaria uma patente diminuição das suas garantias. Dito doutro modo: a correção do erro do apelado sobre o meio processual adequado a levar ao tribunal ad quem a apreciação de parte do seu pedido no qual sucumbiu, não é, na espécie sujeita, admissível, uma vez que o direito ao recurso autónomo independente foi atingido pela caducidade e a convolação do requerimento de ampliação do objeto do recurso para recurso subordinado importaria uma diminuição das garantias processuais dos apelantes.”
Pelo exposto, decide-se não admitir a ampliação do objecto do recurso, nem a sua convolação em recurso subordinado.
*
Da nulidade da sentença

Alega a Recorrente que na sentença sob censura o julgador não se pronunciou sobre a matéria alegada pela Ré no artigo 110º da sua contestação, não a tendo dado como provada ou não provada; que o facto do ponto 110º da contestação da Ré constituía matéria carecida de prova, porque relevante para a decisão da causa e inserida nos temas da prova, pelo que se impunha que o julgador se tivesse pronunciado sobre esse facto, o que não ocorreu; e que sem prejuízo de se vir a entender que o facto do ponto 110º da contestação da Ré está contido no facto dado como provado no ponto 24 da matéria considerada assente na doutra sentença, por mera cautela, a Ré invoca a nulidade da douta sentença, por omissão de pronuncia, no que toca a esse ponto da contestação, o que faz nos termos do disposto no artigo 615º n.º 1 alínea d) do CPC.
Vejamos então se a sentença se encontra ferida da alegada nulidade, a qual se verifica quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (cfr art. 615º, nº 1, al. d) do CPC.

Dispõe o art. 615º, nº 1, do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; (sublinhado nosso)
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018 in www.dgsi.pt).
No caso vertente, para fundamentar a nulidade invocada, a Recorrente alega, em síntese, que o tribunal a quo não se pronunciou sobre a matéria factual alegada no ponto 110ª da sua Contestação.
Ora, o vício da sentença decorrente da omissão de pronúncia relaciona-se com o dispositivo do art. 608º do C.P.C., designadamente, com o seu nº 2, que estabelece as questões que devem ser conhecidas na sentença, havendo, assim, de por ele ser integrado.
Desta conjugação de normativos resulta que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.
Importa, porém, não confundir questões com factos, argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 9.2.2012, segundo o qual “a nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (...), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.
Assim, a falta de tratamento de questões suscitadas pelas partes integra-se na alínea  d) do nº 1 do citado artigo 615º do CPC.
Tecidos estes considerandos, vamos ao caso.
Com base na factualidade considerada na sentença, não se vislumbra qualquer omissão de pronúncia do tribunal sobre as questões que devesse apreciar.
Em consequência, improcede a invocada nulidade da sentença.
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Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Prevenindo a hipótese de se vir a entender que, ao invés de ter ocorrido a falada omissão de pronuncia, o Tribunal proferiu decisão sobre o facto do ponto 110º da contestação da Ré, dando-o como não provado, entende a Ré que, nesse caso, incorreu o julgador em erro na apreciação da prova. E prevenindo essa hipótese, a Ré impugna, por considerar incorretamente julgado, a decisão proferida quanto ao facto do ponto 110º da contestação da sua contestação, ou seja Art. 110º “Sendo que, por esse valor era possível adquirir no mercado de usados um veículo igual ao PZ.”
Funda essa impugnação no teor do relatório da perícia colegial realizada na presente ação, cujo relatório foi junto a estes autos no dia 02/10/2020, e nos esclarecimentos prestados em audiência pelos Srs Peritos gravados no sistema Habilus no dia 02/05/2023, entre as 10h43m11h01m, com a designação “ 10:43 - 11:01 - Perito: BB”, nas passagens dos minutos 9m29s e seguintes, acima transcritas.
Pugna assim a Recorrente que seja considerado provado o seguinte facto:
- “à data do sinistro e pelo valor de 12.000,00€ era possível adquirir no mercado de usados um veículo igual ao PZ.”
Vejamos.
Afigura-se-nos que o referido facto 110º (da contestação) está integralmente contido no facto provado n.º 24.
Com efeito, constando do elenco dos factos provados que em 11/11/2018, o valor comercial do PZ era de 12 mil euros – facto n.º 24, entendemos que nele cabe a conclusão que por esse valor (12 mil euros) era possível adquirir no mercado de usados um veículo igual ao PZ.
De resto, como bem assiná-la o Tribunal a quo, no despacho proferido sobre a alegada nulidade da sentença, é essa a definição de valor comercial de um veículo – valor pelo qual o mesmo pode ser adquirido no mercado (neste caso de veículos usados).
Assim sendo, mostra-se redundante incluir um novo facto no elenco dos factos provados nos termos requeridos, razão pela qual somos a concluir pela inutilidade da apreciação do facto aqui objecto de impugnação, atento o disposto no art. 608º, nº 2, do CPC.
Nestes termos, improcede a impugnação da matéria de facto.
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Da subsunção jurídica da sentença

O Tribunal a quo decidiu, em termos de mérito, julgar a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 15.129,83.
Insurge-se a Recorrente/Ré quanto ao assim decidido, alegando que por aplicação das regras do contrato de seguro e as dos artigos 49º, 128º e 132º do DL 72/2008, nunca poderia a responsabilidade da Ré exceder o montante dos prejuízos alegadamente sofridos, isto é, 12.000€, abatidos do valor dos salvados (5.00,00) e da franquia (500,00€), devendo ser o contrato reduzido nesses termos, o que se requer.
Para tanto alega que não ficou provado nos autos que a Ré tenha incumprido o seu dever de desvalorizar o capital inicial do contrato de seguro, tanto mais que na apólice está prevista uma tabela de desvalorização (cfr Doc 1 junto com a contestação), o que impede que o Tribunal conclua quer pela verificação da previsão do artigo 3º do DL 214/97; que em face do exposto e nos termos da norma do artigo 128º da LCS, deve ser reduzida a eventual prestação da Ré ao valor correspondente ao efectivo dano, independentemente do capital garantido (sem prejuízo, obviamente, de nunca poder ser ultrapassado); que atendendo ao que ao que dispõe os artigos 49.º n.º 2, 128.º, 131.º, 132.º e 134.º do RJCS, aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de abril, não se pode, razoavelmente, imputar ao segurador a obrigação de confirmar a adequação do capital garantido pela apólice ao efetivo valor comercial do bem a segurar; que tendo em conta o disposto nos artigos 128º e n.º 2 do artigo 132.º do RJCS a Lei não impõe à seguradora o pagamento do capital estabelecido só porque o prémio que cobrou foi fixado em consonância com o seu valor, antes prevendo a restituição dos sobreprémios em caso de sobrevalorização desse capital; que o entendimento de que cabe à seguradora confirmar se o valor do capital a garantir é ou não ajustado, põem em causa a regra do artigo 49º n.º 2 do RJCS, a qual atribuiu ao tomador a responsabilidade exclusiva na sua determinação.
Conclui a Recorrente que tendo-se provado que, à data do sinistro, o veículo PZ valia 12.000,00€, era esse o valor a atender para efeitos indemnizatórios, devendo ser revogada a sentença, condenando-se a Ré a pagar ao Autor, pelos danos sofridos pelo veículo, a quantia de não mais de 6 500,00€ (correspondentes à diferença entre o valor do automóvel, de 12.000€, e o dos seus salvados, de €5.000, deduzido, ainda, da franquia de 500,00).
Vejamos o que diz a sentença recorrida:
- “Do contrato de seguro
O contrato de seguro define-se pela convenção através da qual uma seguradora se obriga a proporcionar a outrem, a segurança de pessoas ou bens, relativamente a determinados riscos, mediante o pagamento de uma contraprestação chamada “prémio”. Mediante o pagamento de uma retribuição, a seguradora obriga-se a assumir determinado risco e, caso ele ocorra, a satisfazer, ao segurado ou a um terceiro, uma indemnização pelo prejuízo ou um montante previamente estipulado
O contrato de seguro é, assim, constituído por elementos fundamentais de natureza subjetiva e objetiva. Com efeito, o contrato é celebrado entre determinados sujeitos – o segurador e o tomador do seguro.
O segurador deve ser um profissional que lida, em moldes científicos, com os grandes números.
O tomador do seguro, por seu lado, é a pessoa que celebra, com o segurador, o contrato de seguro.
Pode ser uma pessoa singular ou coletiva.
Como se disse, o contrato é celebrado entre o segurador e o tomador do seguro, relativamente a um certo risco. Esse risco pode reportar-se à esfera do próprio tomador ou de terceiro. Por esse motivo, no âmbito deste contrato pode ser necessário falar de uma outra figura – o segurado. Esta é a pessoa em cuja esfera se buscam os danos.
O contrato de seguro possui determinados pressupostos: a existência de um risco, ou seja, a possibilidade de ocorrência de evento futuro gerador de perdas no património próprio ou alheio e a existência de um interesse, isto é, uma relação económica entre o sujeito do risco e os bens ou pessoas que beneficiam da cobertura do seguro.
O contrato de seguro caracteriza-se ainda por possuir um determinado conteúdo típico, onde se destacam as obrigações recíprocas das partes contratantes: o segurador, que assume a cobertura do risco, tem o dever fundamental de liquidar o sinistro, realizando a prestação convencionada em caso de verificação, total ou parcial, dos eventos compreendidos no risco coberto pelo contrato. E o tomador do seguro tem o dever fundamental de pagar o prémio, realizando a prestação pecuniária convencionada que representa a contrapartida daquela cobertura.
A Lei do Contrato de Seguro (LCS) classifica os contratos de seguro em duas categorias: seguros de danos (arts. 123º a 174º) e seguros de pessoas (arts. 175º a 217º).
Os seguros de danos têm por finalidade a cobertura de riscos relativos a coisas, bens imateriais, créditos e outros direitos patrimoniais. Os seguros de pessoas têm por finalidade a cobertura de riscos relativos à vida, saúde e integridade física de uma pessoa ou grupo de pessoas.
No caso dos autos, dúvidas não restam de que, no dia no dia 18/08/2016, o autor celebrou com a Ré um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatória com cobertura complementar de danos próprios, titulado pela apólice n.º ...91, relativo ao veículo “...”, modelo ..., variante “...”, versão “...”, com a denominação comercial “...”, com a matrícula ..-PZ-...
Esse contrato inclui a cobertura de danos próprios decorrentes de choque, colisão e/ou capotamento.
Aquando da celebração da apólice e com referência à data de início da sua vigência (18/08/2016) o autor indicou como capital seguro o de 29.083,47€, sendo 26.483,47€ para o veículo e 2.600€ para extras, correspondentes ao designado pack ....
Acordaram as partes que o capital do seguro sofreria, desde o início da vigência da apólice, uma desvalorização mensal e anual, de acordo com a tabela de desvalorização acordada e constante das condições particulares da apólice.
Em 11/11/2018, o capital seguro para a cobertura de “choque, colisão e capotamento” no caso de verificação desse risco era de € 20.629,83.
Ficou estabelecido na apólice que, em caso de sinistro garantido pela cobertura de “choque, colisão ou capotamento”, seria sempre devida pelo A uma franquia, no valor de 500,00€ (quinhentos euros) a abater à eventual indemnização.
Segundo o art. 40º n.º 1 alínea b) das Condições Gerais da Apólice, ficaram excluídos da garantia de todas as coberturas da apólice de seguro os “Danos causados intencionalmente pelo Tomador do Seguro, Segurado, pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis ou às quais tenham confiado a guarda ou utilização do veículo seguro”
De acordo com o artigo 40º n.º 2 alínea d) das Condições Gerais da Apólice ficaram excluídos da garantia de todas as coberturas da apólice de seguro os “Lucros cessantes ou perdas de benefícios ou, resultados advindos ao Tomador do Seguro ou ao Segurado em virtude de privação de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumo naturais”.
Indicadas as cláusulas principais deste contrato, nomeadamente as que importam para a decisão da causa, cumpre agora analisar se se verificou algum dos riscos previstos no contrato ou se, pelo contrário, ocorre alguma situação de exclusão da responsabilidade da ré.
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Da verificação do risco
No caso dos autos, o autor alega que foi interveniente num acidente de viação.
Alega que se despistou e que o PZ foi embater num muro.
Por seu lado, a ré alega que o PZ foi conduzido, propositada e intencionalmente, de forma a embater contra um muro, sempre com o condutor em perfeito controlo desse veículo e tendo em vista a produção nesse veículo de danos, para que fossem, de seguida reclamados da Ré, tendo em vista obter a correspondente indemnização.
Como tem sido entendimento pacífico da jurisprudência, o direito do segurado à reparação com base em contrato de seguro de danos próprios não depende apenas da prova dos danos, mas, ainda, da prova de que esses danos foram causados por um dos riscos cobertos pelo seguro, ou seja, da ocorrência do sinistro alegado e do nexo causal entre esse sinistro e os danos.
Na verdade, é sobre o segurado que incumbe o ónus da prova da dinâmica do acidente que dá causa ao acionamento do seguro.
Celebrado entre as partes contrato de seguro de danos próprios e alegado concreto sinistro, ao segurado incumbe o ónus da prova das alegadas ocorrências concretas, em conformidade com as situações descritas nas cláusulas de cobertura do risco do contrato, que determinariam o pagamento da indemnização, ou seja, a prova do sinistro, dos danos e do nexo de causalidade entre o concreto sinistro alegado e esses danos, como factos constitutivos do seu direito de indemnização (n.º 1, do art. 342º, do Código Civil), competindo à seguradora o ónus da alegação e da prova dos factos ou circunstâncias que sejam suscetíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos aparentem ou excludentes do risco, a título de factos impeditivos, conducentes à exclusão da sua responsabilidade (n.º 2 de tal artigo) (Ac. TRP, de 07/10/2019, proc. n.º 4239/17.1T8OAZ.P1, Relatora: EUGÉNIA CUNHA).
O direito do segurado à reparação com base em contrato de seguro de danos próprios não depende apenas da prova dos danos, mas, ainda, da prova de que esses danos foram causados por um dos riscos cobertos pelo seguro, ou seja, da ocorrência do sinistro alegado e do nexo causal entre esse sinistro e os danos.
O ónus de prova destes factos, enquanto elementos constitutivos do direito indemnizatório reclamado, cabe, à luz da regra prevista no artigo 342º, n.º 1, do Cód. Civil, ao arrogado credor/segurado, ao passo que, demonstrados aqueles factos constitutivos, cabe já à seguradora, à luz do n.º 2 do mesmo preceito legal, demonstrar a existência de uma eventual causa de exclusão da sua responsabilidade (Ac. TRP, de 21/02/2022, proc. n.º 3162/18.7T8VFR.P1, Relator: JORGE SEABRA).
Celebrado entre as partes contrato de seguro de danos próprios e alegado concreto sinistro, ao segurado incumbe o ónus da prova das alegadas ocorrências concretas, em conformidade com as situações descritas nas cláusulas de cobertura do risco do contrato, que determinariam o pagamento da indemnização, ou seja, a prova do sinistro, dos danos e do nexo de causalidade entre o concreto sinistro alegado e esses danos, como factos constitutivos do seu direito de indemnização, competindo à seguradora o ónus da alegação e da prova dos factos ou circunstâncias que sejam suscetíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos aparentem ou excludentes do risco, a título de factos impeditivos e que podem conduzir à exclusão da sua responsabilidade. (Ac. TRP, de 16/12/2020, proc. n.º 2270/17.6T8STS.P1, Relator: CARLOS PORTELA).
No caso dos autos, ficou demonstrado que no dia 11/11/2018, pelas 09:00 horas, o veículo ligeiro de passageiros da marca “...”, modelo ..., variante “...”, versão “...”, com a denominação comercial “...”, com a matrícula ..-PZ-.., propriedade do A., era conduzido por este na freguesia ... do concelho ..., na Estrada Nacional ...07, que liga os concelhos ... e ....
O autor seguia a cerca de 40km/h, dentro da sua faixa de rodagem, com cuidado, atento ao trânsito que se processava na via.
Naquele local, dia e hora chovia intensamente e o piso estava molhado e escorregadio.
Ao descrever uma curva à direita, o PZ entrou em derrapagem.
O A. tentou imobilizar o veículo e recuperar o seu controlo, acionando os travões e compensando a direção no sentido contrário ao da derrapagem. Porém, devido à chuva intensa e ao piso molhado e escorregadio, sem sucesso, tendo o PZ saído da sua faixa de rodagem e ido embater num muro de pedra existente no lado esquerdo da via, considerando o sentido de trânsito ... » ..., a cerca de 29km/h.
Depois do embate, o PZ ficou imobilizado parcialmente sobre um muro situado do lado esquerdo da via, atento o sentido .... O PZ ficou parado numa posição quase perpendicular em relação ao eixo da via na qual circulava anteriormente. O PZ teve de ser arrastado e retirado do local onde se despenhou com recurso a meios mecânicos.
Por seu lado, resultou não provado que o PZ foi conduzido, propositada e intencionalmente, de forma a embater contra um muro, sempre com o condutor/autor em perfeito controlo desse veículo e visando a produção de danos no PZ, para que fossem, de seguida. reclamados da Ré, tendo em vista obter a correspondente indemnização.
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Do que vimos de expor, cabe concluir que o autor logrou provar a ocorrência do sinistro alegado e a ré não provou nenhuma circunstância excludente da sua responsabilidade, nomeadamente a ocorrência de qualquer ato voluntário e premeditado do autor, que tenha sido a causa do acidente de que foi vítima.
Assim, entende-se que a ré é responsável por indemnizar o autor pelos danos sofridos em virtude daquele embate.”
Esta passagem da sentença não vem questionada no recurso, nem a ela temos a opor qualquer objecção.
A divergência da Apelante relativamente à sentença prende-se com o cômputo do valor dos danos a indemnizar.
Neste conspecto a sentença pronunciou-se nos seguintes termos:
- “O autor começa por peticionar o valor da reparação do PZ, ou seja, € 22.010,78.
Contudo, esse valor é superior ao valor comercial do veículo na data do acidente e é superior ao valor seguro após a desvalorização sofrida anual e mensalmente pelo veículo ao longo do contrato.
Na verdade, apurou-se que, aquando da celebração da apólice e por referência à data de início da sua vigência (18/08/2016), o autor indiciou como capital seguro o de 29.083,47€, sendo 26.483,47€ para o veículo e 2.600€ para alegados os alegados extras, correspondentes ao designado pack ....
As partes acordaram ainda que o capital do seguro sofreria uma desvalorização mensal e anual, de acordo com a tabela de desvalorização acordada e constante das condições particulares da apólice.
Em 11/11/2018, fruto das regras de desvalorização previstas na apólice, o capital seguro para a cobertura de “choque, colisão e capotamento” no caso de verificação desse risco era de € 20.629,83.
Do exposto resulta que o custo da reparação é bastante superior ao valor do veículo calculado nos termos das tabelas desvalorização constantes do contrato de seguro e aceites por ambas as partes.
Nessa medida, entende-se que não pode haver lugar ao pagamento do custo de reparação nos moldes peticionados, atenta a sua excessiva onerosidade.
Importa também considerar que ficou estabelecido na apólice que, em caso de sinistro garantido pela cobertura de “choque, colisão ou capotamento”, seria sempre devida pelo A uma franquia, no valor de 500,00€ (quinhentos euros) a abater à eventual indemnização devida.
A ré alega ainda que o valor peticionado é superior ao valor comercial do veículo à data do sinistro, pelo que, uma indemnização nesse montante configuraria um enriquecimento sem causa do autor.
Sobre essa matéria, apurou-se que o PZ tinha o valor de € 12.000,00 na data do acidente.
Ou seja, em face a esta diferença de valores, a reparação, embora possível tecnicamente, será sempre juridicamente inexigível, pois estamos perante uma situação de perda total, uma vez que o valor comercial do veículo na data do acidente é bastante inferior ao custo de reparação.
Por outro lado, entende-se que o valor da indemnização deve ser fixado com base no valor indicado no contrato, tendo em conta as tabelas de desvalorização e descontado o valor da franquia e os salvados.
Importa considerar que a seguradora aceitou celebrar o contrato nos moldes consignados, tendo, além do mais, aceite o valor do capital seguro, através do qual, certamente, calculou os prémios pagos pelo segurado.
Deste modo, não pode agora, quando ocorre um sinistro, alegar que o veículo, afinal, tinha um valor bastante inferior àquele que esteve na base do contrato. Se assim foi, tal facto apenas pode ser imputado à própria ré.
Como se refere no Ac. TRL, de 18/04/2013, proc. n.º 2212/09.2TBACB.L1-2 (PEDRO MARTINS), as seguradoras não podem (…) opor aos tomadores o valor real depois do sinistro ter ocorrido para evitarem sobreindemnizações, se antes de celebrarem o contrato nada fizeram para o apurar, como o que evitaria celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios), apesar de o poderem ter feito com facilidade, se tivessem atuado com um mínimo de diligência que a boa fé lhes impunha (art. 227º do CC).
Importa considerar que uma das premissas da ré para essa interpretação era a alegada informação errada prestada pelo autor sobre as caraterísticas do veículo. No entanto, esses factos foram julgados não provados (cfr. pontos d) a f) dos factos não provados). Assim, essa alegada informação incorreta, que poderia ser causa de anulação do contrato (arts. 24º a 26º do DL n.º 72/2008), não pode relevar para a decisão em causa, atenta a não prova desses factos. Além disso, há que ter em conta que a ré não requereu a anulação do contrato, considerando que o mesmo é válido.
Deste modo, a argumentação apresentada pela ré não pode proceder, nesta parte.
Assim, o autor terá direito ao pagamento da quantia constante no contrato, descontado o valor dos salvados (indicado no facto 25º) e da franquia.
A operação matemática é a seguinte: € 20.629,83 – 5.000,00 – 500,00 = € 15.129,83.”
Concordamos inteiramente com esta conclusão da sentença, que assenta no pressuposto de ser indemnizável o valor declarado (no contrato de seguro) do veículo, mesmo que superior ao seu valor real à data do sinistro.
Sobre esta matéria, por concordarmos com as considerações jurídicas aí explanadas e respeitar a um caso semelhante, seguiremos de perto o sustentado no Acórdão desta Relação, de 26 de Setembro de 2019, proferido no proc. nº 314/18...., cuja Relatora, é aqui 1ª Adjunta, que passamos a citar:
- (…) “A questão posta neste recurso reconduz-se há já muito debatida questão do sobresseguro, no âmbito dos contratos de seguro.
Foi precisamente para situações como a presente que foi criado o DL nº 214/97, de 16 de Agosto, diploma que veio instituir regras destinadas a assegurar uma maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos de seguro automóvel facultativo.
 Decorre do preâmbulo do citado diploma que: “Uma das cláusulas contratuais gerais, comum à generalidade das seguradoras operando no território nacional, que maior reparo tem merecido é a que se refere às situações de sobresseguro, em que a aplicação menos clara de certas regras de carácter técnico, desacompanhadas da necessária informação e explicação, conduz a situações inesperadas e, por vezes, verdadeiramente injustas para os segurados no momento da liquidação das indemnizações em caso de sinistro automóvel.
É o caso da manutenção do valor seguro, e correspondente reflexo no prémio devido, por falta de iniciativa do segurado no sentido da respectiva actualização, quando é certo que a indemnização a suportar pela seguradora em caso de sinistro tem em conta a desvalorização comercial entretanto sofrida pelo veículo.
Nesta conformidade, e de forma a garantir uma efectiva protecção e defesa dos consumidores subscritores de contratos de seguro automóvel facultativo, entendeu-se ser necessário regular a matéria de forma a assegurar uma maior transparência do clausulado das apólices de seguro em causa e instituir a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, correspondente à eventualidade de perda total, que seja calculada com base nesse valor.
O sistema introduzido garante, assim, a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total.
As consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual.”.
Analisemos, pois, as normas constantes do Decreto-lei nº 214/97 com pertinência para a resolução do caso.
Desde logo, dispõe o art. 2º que “o valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4.º, sendo o respetivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro", decorrendo do art. 4.º que as empresas de seguros devem elaborar a tabela de desvalorizações periódicas automáticas para determinação do valor da indemnização em caso de perda total, incluindo, necessariamente, como referências, o ano ou o valor da aquisição em novo, ou ambos, de acordo com as normas emitidas pelo Instituto de Seguros de Portugal, relativas aos critérios a adoptar na elaboração da tabela referida.
Estabelece, por sua vez, o art. 3.º que “a cobrança de prémios por valor que exceda o que resultar da aplicação do disposto no número anterior constitui, salvo o disposto no artigo 5.º, as seguradoras na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, sem direito a qualquer acréscimo de prémio e sem prejuízo de outras sanções previstas na lei.”.
Com a epígrafe "deveres de informação pré-contratual", prescreve o art. 7.º que “a empresa de seguros, antes da celebração dos contratos a que se refere o artigo 1.º e sem prejuízo do disposto na legislação aplicável em matéria de cláusulas contratuais gerais e das demais regras sobre informação pré-contratual previstas no Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Julho, deve fornecer ao tomador do seguro, por escrito e em língua portuguesa, de forma clara, as seguintes informações:
a) Os critérios de actualização anual do valor do veículo seguro e respectiva tabela de desvalorização;
b) O valor a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total;
c) A existência da obrigação de a empresa de seguros de anualmente, até 30 dias antes da data de vencimento do contrato, comunicar por escrito ao tomador os valores previstos nas alíneas anteriores para o próximo período contratual”.
Sobre os deveres de informação contratual estatui o art. 8.º que:
“1 — Sem prejuízo das demais regras sobre informação contratual previstas no Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Junho, nos contratos a que se refere o artigo 1.º devem constar os seguintes elementos:
a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, bem como os critérios da sua actualização anual e a respectiva tabela de desvalorização;
b) O prémio devido.
2 — A empresa de seguros deve anualmente, até 30 dias antes da data de vencimento do contrato, comunicar por escrito ao tomador os seguintes elementos relativos ao próximo período contratual:
a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total;
b) O prémio devido;
c) Os agravamentos e bonificações a que o prémio foi sujeito”.
Perante este quadro legal, como bem se refere no acórdão desta Relação de Guimarães de 11 de julho de 2013[1], "a conclusão a tirar não pode deixar de ser a de que enquanto não for actualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total/furto, e tal actualização comunicada ao tomador de seguro, as seguradoras estão constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro".
O regime estabelecido no DL nº 214/97 é aplicável ao contrato em causa, celebrado em ../../2012 e que se manteve em vigor por força das sucessivas prorrogações até ../../2017 (data do sinistro).
Na verdade, o DL 214/97 estabeleceu um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel consagrando uma regulamentação expressa em matéria de sobresseguro.
Este regime especial não veio a ser derrogado ou alterado com a entrada em vigor do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
A regulamentação específica do DL nº 214/97 impondo a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, por forma a garantir a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total, não conflitua com as normas previstas no RJCS que integram o chamado princípio indemnizatório, nos termos do qual a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro. Tal assim é, na medida em que, como já se antevia no preâmbulo do DL nº 214/97 "as consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual".
Ora, não se pode falar de normalidade contratual quando, encontrando-se expressamente prevista nas condições particulares da apólice a aplicação da tabela de desvalorização do valor seguro, a seguradora não procede no decurso do contrato à atualização desse valor mantendo-se o mesmo inalterado ao cabo de 5 anos, não sendo o respetivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro, pagando o segurado, por conseguinte, o prémio correspondente àquele valor.
A manutenção do valor seguro, e correspondente reflexo no prémio devido, em desrespeito da regra da desvalorização automática, em caso de sinistro, constitui a seguradora na obrigação de indemnizar com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.
É à luz desta compreensão e alcance da função da regra da desvalorização automática do valor seguro, que as normas do DL nº 214/97 e do DL n.º 72/2008, em matéria de sobresseguro, devem ser compaginadas.
O valor do interesse seguro ao tempo do sinistro, conforme refere o artigo 130.º, n.º 1 do DL n.º 72/2008, é determinado de acordo com as regras de fixação desse valor constantes do DL nº 214/97.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de junho de 2014[2], "As normas do RJCS (Regime Jurídico do Contrato de Seguro) terão que ser interpretadas em consonância com aquelas outras do DL n.º 214/97, de 16 de Agosto, pois, são estas que definem as regras a seguir em matéria de sobresseguro no ramo automóvel e é com base nelas que se calcula o valor a considerar para efeito de indemnização – o valor do interesse seguro ao tempo do sinistro, conforme refere o artigo 130.º, n.º 1 do RJCS, mas atendendo às regras de fixação desse valor constantes daquele DL."
O que tudo significa que a Ré seguradora está constituída na obrigação de responder com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, ou seja, € 20.714,40.”
Na base das considerações acabadas de expor, somos a concluir que o autor terá direito ao pagamento da quantia constante no contrato, descontado o valor dos salvados e da franquia.
Deste modo, tem de improceder totalmente a apelação e, consequentemente, confirmar-se a sentença recorrida.
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Sumário:

I - O DL 214/97, de 16 de Agosto, estabeleceu um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel consagrando uma regulamentação expressa em matéria de sobresseguro.

II - Este regime especial não veio a ser derrogado ou alterado com a entrada em vigor do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro.

III - A regulamentação específica do DL nº 214/97 impondo a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, por forma a garantir a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total, não conflitua com as normas previstas no RJCS que integram o chamado princípio indemnizatório, nos termos do qual a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.

IV - Tal assim é, na medida em que, como já se antevia no preâmbulo do DL nº 214/97 "as consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual".

V - Ora, não podem as seguradoras opôr aos tomadores o valor real depois do sinistro ter ocorrido para evitarem sobreindemnizações, se antes de celebrarem o contrato nada fizeram para o apurar, como o que evitaria celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios), apesar de o poderem ter feito com facilidade, se tivessem actuado com um mínimo de diligência que a boa fé lhes impunha (art. 227º do CC).

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Mais acordam em não admitir a requerida ampliação do objecto do recurso apresentada pelo Recorrido.
Custas da apelação pela Recorrente e da ampliação pelo Recorrido.
Guimarães, 29.05.2024

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: Conceição Sampaio
Margarida Pinto Gomes


[1] Disponível em www.dgsi.pt.
[2] Disponível em www.dgsi.pt.