Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | RAQUEL BAPTISTA TAVARES | ||
| Descritores: | PETIÇÃO DEFICIENTE APERFEIÇOAMENTO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 10/19/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO PROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I - Uma petição diz-se inepta quando, pura e simplesmente, faltar o pedido e a causa de pedir, mas também quando esta ou aquele forem ininteligíveis, e é ininteligível quando não pode saber-se, nem depreender-se, qual o pedido ou a causa de pedir. II - A petição inepta distingue-se da petição deficiente; neste caso, apesar do pedido e da causa de pedir serem compreensíveis, a petição apresenta-se incompleta, ou com imprecisões e insuficiências na exposição e concretização da matéria de facto. III - Não se verificando a ineptidão, mas apresentando-se a petição deficiente deve ser proferido despacho pré-saneador convidando o autor a aperfeiçoar o seu articulado (cfr. artigo 590º n.º 2 e 4 do CPC). | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO AA e BB, residentes na Rua ..., ..., ..., intentaram a presente ação declarativa de processo comum contra CC e DD, residentes na Rua ..., ..., formulando os seguintes pedidos: “condenação dos RR. no reconhecimento dos AA. enquanto donos e legítimos proprietários dos supraditos prédios rústicos, bem como a reconhecer que a parcela de terreno de que ilegitimamente se apoderaram integra o referido prédio; requer-se, ainda, a condenação dos RR. A entregar a mesma aos AA., repondo o estado em que esta se encontrava antes da agressão por aqueles perpetrada ao direito de propriedade dos AA., retirando as plantações indevidamente cultivadas, abstendo-se de, no futuro, praticar atos que perturbem a posse e o direito de propriedade dos AA., apenas assim se salvaguardando os seus legítimos interesses.” Alegaram para tanto e em síntese que são donos e legítimos proprietários de dois prédios rústicos, registados na Conservatória do Registo Predial ..., respetivamente, sob o artigo n.º ...80 e ...55. Que desde o pretérito dia 19/10/2021, os Réus, por si e através de terceiros, sob a sua ordem e direção, têm vindo a cortar, arrancar e destruir árvores de fruto, nomeadamente 2 (dois) pessegueiros, 1 (uma) ameixoeira, 2 (duas) oliveiras, 2 (dois) marmeleiros, 1 (um) cipreste, 1 (uma) figueira e 16 (dezasseis) videiras, todas localizadas nos aludidos prédios rústicos. Mais alegam que entre os dias 26 e 28 de fevereiro de 2022, os Réus, por si e através de terceiros, sob a sua ordem e direção, invadiram novamente os aludidos prédios rústicos e destruíram 6 (seis) manilhas de 40 cm, propriedade dos AA., usando, para tanto, uma máquina/trator com a matrícula ..-XP-.., em março de 2022, invadiram novamente os aludidos prédios rústicos, principalmente o prédio identificado no artigo n.º ...0 e parte do prédio identificado no artigo n.º ...5, e iniciaram a remoção/deslocação de terras, recorrendo ao uso de maquinaria pesada, procederam à plantação de algumas oliveiras, atuando como se os aludidos prédios fossem sua propriedade e, com a ajuda de maquinaria pesada, deslocaram e alteraram marcos divisórios, através da destruição e posterior reconstrução de muros e marcos divisórios das propriedades, usurpando dos participantes vários m2 de propriedade, mormente a área aproximada de 300 m2. Os Réus vieram contestar invocando a exceção da ineptidão da petição inicial e deduziram reconvenção pedindo: “Julgar-se procedente por provada a reconvenção e por via dela: Reconhecer-se serem os Réus proprietários do prédio urbano identificado nos artigos 34º e 85º desta contestação /reconvenção, com a configuração ali melhor alegada que aqui se dá por reproduzido por razões de economia processual; 3- Serem os Autores condenados a reconhecer a extinção por desnecessidade da passagem e circulação pelo prédio rústico dos Réus conforme alegado nos artigos 85º a 101º desta peça processual, numa área de cerca de 300 metros; 4- Serem os Autores / Reconvindos condenados a retirar e encaminhar as águas pluviais que caem diretamente no prédio dos Réus conforme alegado nos artigos 102º a 106º desta peça processual. 5- Condenarem-se os Autores com litigantes de má fé nos termos dos artigos 542º e seguintes do Código do Processo Civil em quantia a fixar por esse Tribunal”. Os Autores responderam pronunciando-se no sentido da improcedência da exceção de ineptidão da petição inicial e da inadmissibilidade dos pedidos reconvencionais. Pelo Tribunal a quo foi proferido despacho rejeitando o pedido reconvencional formulado pelos Réus por ser legalmente inadmissível e julgando nulo todo o processo, por ineptidão da petição inicial. Inconformados com o despacho proferido, na parte em que julgou nulo todo o processo por ineptidão, vieram os Autores recorrer, concluindo as suas alegações da seguinte forma: “I. Compulsado o teor da douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, constata-se que o caminho que antecedeu a prolação da mesma padece de nulidades processuais, as quais influem na boa decisão da causa; II. Isto porque, o Meritíssimo Juiz de Direito, dispensou a realização da audiência prévia, sem, contudo, aduzir qualquer justificação e, bem assim, fundamentar tal decisão, limitando-se a remeter para a norma jurídica que confere a possibilidade de dispensar a audiência prévia, o que não se concebe; III. Acresce que, salvo o devido respeito, que é muito, a dispensa da audiência prévia, sem mais, é suscetível de configurar uma omissão de formalidade legal, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 195.º n.º 1 do CPC, tendo, em consequência, o douto Tribunal a quo, com a sua atuação, violado o princípio basilar do Direito Processual, como é o direito ao contraditório e, bem assim, o princípio da cooperação, consagrados nos art.º 3.º n.º 3 e art.º 7.º n.º 2 do CPC, respetivamente; IV. Pelo que laborou em erro o Meritíssimo Juiz de Direito ao não convocar a audiência prévia, como se impunha, antes acompanhando os RR. na invocação da alegada exceção dilatória de ineptidão, decidindo, sem mais, pela procedência da mesma; V. Tal exceção dilatória tem natureza de ultima ratio, sendo apenas de aplicar nos casos em que se verifica uma marcada ausência de nexo entre a causa de pedir e o pedido formulado pelo autor; VI. Ora, no caso em concreto, nunca se poderia dizer que a PI apresentada pelos AA. enfermava de um tal vício, na medida em que da mesma resulta claramente esclarecida a causa de pedir e o respetivo pedido, na medida em que os AA. demonstraram ser proprietários dos terrenos com os artigos ...5.º e ...0.º, que o seu direito de propriedade foi violado pela ocupação perpetrada pelos RR., terminando os AA. pelo reconhecimento enquanto proprietários daqueles prédios rústicos, que a parcela de terreno de que os RR. se ilegitimamente apoderaram integra os referidos prédios, solicitando a sua a restituição, no estado em que se encontrava em momento anterior à agressão perpetrada; VII. Contudo, decidiu o douto Tribunal a quo, erradamente, salvo o devido respeito, pela procedência da aludida exceção dilatória, o que não se concebe; VIII. Mais, o douto Tribunal formou a sua convicção ancorado, essencialmente, em jurisprudência que se reporta a figura processual distinta daquela a que se socorreram os aqui Recorrentes para fazer valer o seu direito, o que doutamente não se concebe; IX. Ademais, incorre o douto Tribunal a quo em erro de julgamento, na medida em que refere que os AA. aqui Recorrentes não peticionam a condenação dos RR. no reconhecimento que são donos e legítimos proprietários do imóvel descrito no artigo 1.º da PI, quando resulta do pedido a referência expressa aos supraditos prédios; X. Mais, de lado algum da PI se poderá retirar que os RR. ocuparam apenas um dos imóveis; XI. Pelo que andou mal o douto Tribunal a quo ao decidir como decidiu, pela procedência da exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, quando a mesma não se verifica; XII. A padecer de alguma desconformidade, sempre poderia enfermar a PI de alguma imprecisão, circunstância essa absolutamente oposta a uma ineptidão e, bem assim, suscetível de sanação; XIII. Pelo que deveria o douto Tribunal a quo ter procedido ao aproveitamento do articulado dos AA., e, bem assim, proferido um despacho pré-saneador, convidando os AA. a aperfeiçoar o articulado apresentado, o que, contudo, não sucedeu, incorrendo na prática, por omissão, de formalidade legal; XIV. Tão pouco procedeu o douto Tribunal à convocação da audiência prévia para os devidos efeitos; XV. Pelo que em face da omissão de tal formalidade legal, viram os AA. ser-lhe cerceada a possibilidade de discutirem de facto e de direito a pretensão oferecida nos articulados e, bem assim, de escalpelizar qualquer imprecisão que pudesse resultar dos mesmos; XVI. Ademais, entendeu o douto Tribunal a quo não ser de proceder a novo convite ao aperfeiçoamento, declarando nulo, sem mais, todo o processado, o que não se concebe; XVII. Isto porque, cumpre salientar, na Réplica apresentada responderam os AA. à aludida exceção dilatória invocada e, bem assim, à Reconvenção deduzida pelos RR., tendo-o feito em exercício do direito de resposta que a Réplica confere e não a título de aperfeiçoamento, dado que o douto Tribunal a quo nunca endereçou aos AA. um tal convite; XVIII. Mais, não subjaz à Réplica qualquer função de aperfeiçoamento dos articulados, servindo apenas a mesma para oferecer a defesa do autor quanto à Reconvenção deduzida pelo réu na Contestação e, no máximo, responder às exceções deduzidas pelos réus na Contestação, como tal empreenderam os AA; XIX. Não obstante a lei prever a não realização da audiência prévia no caso de, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta se mostrar já debatida nos articulados, o certo é que tal não obsta a que sobre o julgador impenda um dever de comunicar tal pretensão às partes, com vista a auscultar o seu entendimento quanto à não realização da audiência prévia; XX. Contudo, no presente caso, olvidou o Meritíssimo Juiz de Direito tal formalidade legal, tendo decidido, sem mais, dispensar a realização da audiência prévia; XXI. Pelo que, não o tendo feito, coartou o douto Tribunal a quo o exercício do contraditório por parte dos AA., tendo, em consequência, violado, de forma grave, tal princípio basilar do Direito Processual, sendo os AA. alvo de uma decisão surpresa; XXII. Pelo que se impõe ao douto Tribunal a quo observar o cumprimento das formalidades legais preteridas, pela convocação da audiência prévia, com vista a sanar qualquer imprecisão que possa resultar dos articulados dos AA. e, bem assim, que os mesmos possam discutir de facto e de direito a sua pretensão; XXIII. Por outro lado, acresce que, mesmo que a PI apresentada pelos AA. aqui Recorrentes fosse tida como inepta, tal vício sempre teria sido sanado em virtude da dedução de Contestação por parte dos RR., nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 186.º n.º 3 do CPC; XXIV. Contudo, não obstante terem os AA. suscitado tal questão na Réplica, não mereceu a mesma a pronúncia por parte do douto Tribunal a quo; XXV. Pelo que, assim sendo, incorreu o douto Tribunal a quo, s. m. o., em omissão de pronúncia, traduzindo-se a mesma numa nulidade de sentença, nos termos dos art.º 608.º n.º 2 e art.º 615.º n.º 1 al. d) do CPC, devendo, para o efeito, observar-se a revogação de tal decisão”. Pugnam os Recorrentes pela declaração de nulidade da decisão recorrida procedendo-se à sua substituição por decisão que atenda aos legítimos interesses dos Recorrentes. Os Réus apresentaram contra-alegações concluindo da seguinte forma: “1ª – Consideram os ora recorridos que, a decisão, ora em crise, não infringe qualquer preceito legal, enquadra-se perfeitamente na letra e no espírito da lei, é absolutamente legal e fundamentada, pelo que não existe motivo para a sua alteração. 2º - Não se verifica a violação de qualquer preceito e formalidade legal, nem do Código de Processo Civil, pelo que deve ser mantida a decisão aqui em crise”. Pugnam os Réus pela improcedência do recurso, mantendo-se, nesta parte, a decisão recorrida. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. *** II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSOO objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC). As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos Recorrentes, são as seguintes: 1) Saber se a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia; 2) Saber se a dispensa da audiência prévia constitui nulidade nos termos do disposto no artigo 195º do CPC e violação do principio do contraditório e da cooperação; 3) Saber se a petição inicial é inepta ou se deve ser proferido um despacho pré-saneador a convidar os Autores ao aperfeiçoamento da petição inicial. *** III. FUNDAMENTAÇÃOInconformados com o despacho saneador proferido pelo Tribunal a quo, na parte em que julgou verificada a ineptidão da petição inicial vieram os Recorrentes invocar em primeiro lugar que a dispensa da audiência prévia, sem mais, é suscetível de configurar uma omissão de formalidade legal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195º n.º 1 do CPC e violação do principio do contraditório e da cooperação. Sustentam ainda que a petição inicial não é inepta, que o Tribunal a quo devia ter procedido ao aproveitamento do articulado dos Autores e proferido um despacho pré-saneador, convidando-os a aperfeiçoar o articulado apresentado, e que a decisão recorrida é nula nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC. São estas, por isso, as questões que se colocam no presente recurso e que importa apreciar e decidir. Para o efeito, as incidências fáctico-processuais a considerar são as descritas no relatório e no despacho recorrido. Relembramos o teor deste último, que transcrevemos na parte que aqui releva: “(…) Sobre a exceção de ineptidão da p.i: art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.a) do Cód de Proc Civil Conforme referem os autores na sua réplica, os réus invocam a ineptidão da p.i com dois fundamentos distintos, a saber, uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, bem como uma alegada ininteligibilidade do pedido. No tocante à ininteligibilidade, os réus consideram que a p.i é inepta pela omissão de elementos essenciais que levam à falta de causa de pedir, sendo o pedido nela inserto suportado por conclusões; com efeito, alegam não perceber em que prédio rústico dos autores ou propriedades como dizem, estes alegam ter danos, pois apenas se referem aos mesmos na globalidade, sem identificar em cada facto, o prédio rústico que alegadamente foi usurpado e destruído; no tocante à contradição, alegam existir contradição na p.i entre os pontos 10, 11, 12, 19 e 20, na medida em que ora dizem que a faixa de terreno é propriedade dos réus, ora dizem que é parte integrante do prédio dos autores. Concluem assim que a petição é inepta nos termos indicados. Em sede de réplica, os autores consideram que da conjugação dos seus citados artigos 10.º a 12.º, resulta claro que os autores, quando se reportam à parcela de terreno propriedade dos RR. se referem àquela que é, efetivamente, titulada por estes, situada junto dos aludidos prédios rústicos titulados pelos autores e não à parcela de terreno dos autores ocupada pelos réus, como pretendem estes fazer crer, induzindo em erro o douto tribunal; mais alegam que numa leitura atenta da p.i que a identificação dos prédios é realizada, discriminando-se os artigos matriciais dos terrenos propriedade dos AA., juntando-se, ainda, aos autos as respetivas certidões prediais: terminam peticionando a improcedência da exceção alegada. Isto posto: A ineptidão da petição inicial consiste numa exceção dilatória geradora da nulidade de todo o processo (art. 186º, n.º 1 e art. 577º, al.b), ambos do Cód de Proc Civil). O Código de Processo Civil considera que é inepta a petição quando (a) falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; (b) o pedido estiver em contradição com a causa de pedir ou (c) se cumulem causas de pedir e pedidos substancialmente incompatíveis (art. 186º, n.º 1, al.b) do Cód de Proc Civil). No tocante à falta ou inintegibilidade do pedido ou da causa de pedir, o pedido é a pretensão do autor (art.º 552º, n.º 1, alínea e)); o direito para que ele solicita ou requer a tutela judicial/e o modo por que intenta obter essa tutela; o efeito jurídico pretendido pelo autor (art.º 581º, n.º 3); a causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer, direito que não pode ter existência (e por vezes nem pode identificar-se) sem um ato ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir – o ato ou facto jurídico concreto em que o autor se baseia para formular o seu pedido, de que emerge o direito que se propõe fazer declarar; a figura da ineptidão da petição inicial por falta ou inintegibilidade do pedido ou da causa de pedir implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objeto inteligível (cfr o Douto Acórdão do TRC de 14/11/2017, proc n.º 7034/15.9T8VIS.C1). Nos termos do disposto no art 552º, n.º 1, al.d) do Cód de Proc Civil, o requerente tem o ónus de «Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação». Com efeito, como se retira do Douto Acórdão do TRL de 03/12/2009, proc. n.º 61495/09...., o requisito da exposição sucinta dos factos no requerimento de injunção não deve prejudicar o ónus que recai sobre o requerente de indicar os factos estruturantes da causa de pedir como garantia que é do exercício do contraditório e da delimitação objetiva do julgado. Prossegue o Venerando Tribunal dizendo que o ónus de alegação da causa de pedir constitui uma garantia postulada pelos princípios constitucionais do processo equitativo e da tutela efetiva em relação a ambas as partes, pelo que a simplificação destinada a facilitar a acesso à tutela do direito de quem demanda não deve ser interpretada a ponto de sacrificar a tutela de defesa de quem é demandado. Já quanto ao grau de densidade da exposição sucinta dos factos que servem de fundamento à pretensão, o mesmo deve ser aferido em função da simplicidade ou complexidade de cada caso, atendendo às garantias conferidas à causa de pedir. Todavia, como acrescenta o art. 186º, n.º 3 do Cód de Proc Civil, nas situações em que o réu apresenta contestação, a arguição não será atendida quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou corretamente a petição inicial. De acordo com a tese da substanciação, que o atual Código de Processo Civil acolhe, a causa de pedir é constituída por factos sem qualificação jurídica, ainda que com relevância jurídica; conforme se refere no Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/5/2010, proc. 5623/09.0TBVNG.P1, é por referência aos factos, independentemente da qualificação jurídica que deles hajam feito as partes, que haverá de indagar-se da concordância prática entre tais factos, enquanto causa de pedir e a concreta pretensão jurídica formulada; a contradição prevista na norma invocada tem que ser avaliada no sentido da incompatibilidade lógica entre o facto real, concreto, individual, invocado pelo autor como base da sua pretensão (causa de pedir) e o efeito jurídico, por ele requerido (pedido) através da ação judicial. In casu, o Tribunal considera que se verificam os vícios apontados, a contradição entre o pedido e a causa de pedir e a ininteligibilidade da causa de pedir. Em primeiro lugar, na sua douta p.i, os autores alegam ser proprietários de dois imóveis inscritos na matriz sob os artigos ...55... e ...80º; posteriormente, alegam que os réus são praticaram diversos atos de ocupação de parte de ambos imóveis (pontos 13 a 17) e terminam peticionando a condenação dos mesmos a reconhecer que são donos e legítimos proprietários do imóvel descrito no artigo 1º da presente petição inicial e de que a parcela de terreno de que os réus se apoderaram, numa área aproximada de 300 m2 é parte integrante do prédio dos autores. Ora, uma simples leitura da p.i revela que o ponto 1 da p.i não se refere a um mas a dois imóveis (inscritos na matriz sob os artigos ...55... e ...80º;), sendo que os autores peticionam a condenação dos réus no reconhecimento da propriedade de um, sem especificar qual; por outro lado, os autores ora alegam que os réus ocuparam parte de ambos os imóveis (cfr pontos 13 a 17, onde se referem sempre aos imóveis no plural), ora alegam que os réus ocuparam uma parte de um dos imóveis com a dimensão de 300m2 e pretendem a condenação dos réus na desocupação do mesmo e reposição no estado anterior à ocupação (mais uma vez sem especificar qual deles). Conforme decorre do exposto no parágrafo anterior, os autores vão referindo-se alternadamente à ocupação de ambos os imóveis e à ocupação de um só imóvel, peticionando o reconhecimento do direito de propriedade sobre ele e a correspondente desocupação, sem nunca identificar o imóvel em concreto. Daqui decorre que o pedido formulado pelos autores se encontra em contradição com a causa de pedir pois pede a desocupação de um dos prédios (sem especificar qual) e ao longo da sua exposição vai acusando os réus de terem ocupado dois prédios (art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.b) do Cód de Proc Civil). Em segundo lugar, entendemos que o pedido formulado pelos autores é ininteligível, pois peticiona o reconhecimento do direito de propriedade sobre um dos prédios, quando o artigo para que remete menciona dois (artigos 1255º e 1280º), o que gera o vício referido no art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.a) do Cód de Proc Civil. Note-se que em sede de réplica teve a oportunidade de especificar quais o imóvel em concreto que alegam ter sido ocupado, sem que o tenham feito, pelo que não se irá proceder a um novo convite ao aperfeiçoamento pois já tiverem a possibilidade de o fazer. Termos em que consideramos nulo todo o processo, por inepetidão da p.i, com os fundamentos indicados (art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.a) e b) do Cód de Proc Civil)”. Vejamos então se assiste razão aos Recorrentes. * 3.1. Da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação e omissão de pronunciaSustentam os Recorrentes, em primeiro lugar, que o Tribunal a quo dispensou a realização da audiência prévia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 593º n.º 1 do CPC, decidindo, sem mais, pela improcedência da ação e, bem assim, limitando-se a aludir ao referido preceito legal, sem aduzir qualquer justificação para o efeito e, não fundamentando tal decisão. Pugnam pela absoluta falta de fundamentação da decisão recorrida e pelo reconhecimento da verificação da prevista na alínea b) do n.º 1, do artigo 615º, do CPC. Sustentam ainda que mesmo que a petição inicial que apresentaram fosse tida como inepta, tal vício sempre teria sido sanado em face da dedução de contestação por parte dos Réus, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 186º n.º 3 do CPC. Alegam que apesar de terem suscitado tal questão na Réplica, não mereceu a mesma a pronúncia por parte do Tribunal a quo, o que se traduz numa nulidade de sentença. Vejamos. Estabelece o n.º 1 do artigo 615º do CPC, de forma taxativa, as causas de nulidade da sentença: “1- É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”. Conforme é consabido as decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respetiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respetiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido artigo 615º. Como se afirma no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/03/2021 (Processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, Relatora Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt) “I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma”. No que agora aqui releva, importa decidir se se verifica a nulidade da sentença nos termos previstos nas alíneas b) e d) do n.º 1 do referido artigo 615º. As nulidades taxativamente previstas neste preceito não visam o chamado erro de julgamento e nem a injustiça da decisão, ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável; a nulidade da sentença e o erro de julgamento, traduzindo-se este numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, são coisas distintas. Não deve, por isso, confundir-se o erro de julgamento, e muito menos o inconformismo quanto ao teor da decisão, com os vícios que determinam as nulidades em causa. Começando por apreciar a nulidade decorrente da falta de fundamentação, importa referir que o dever de fundamentar a decisão judicial resulta, desde logo, de imposição constitucional, conforme disposto no n.º 1 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa que prescreve que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, e decorre expressamente do disposto no artigo 154º n.ºs 1 e 2 do CPC que prevê que as decisões são sempre fundamentadas, sendo que a justificação não pode, em princípio, consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou oposição. A nulidade em causa tem ainda correspondência com o n.º 3 do artigo 607º do CPC que impõe ao juiz o dever de, na parte motivatória da sentença, “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes (...)”; e com o seu nº 4 que dispõe que “na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (…)”. Não basta que o juiz decida a questão que lhe é colocada, tornando-se indispensável que refira as razões que o levaram a ditar aquela decisão e não outra de sentido diferente; torna-se necessário que demonstre que a solução encontrada é legal e justa (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/07/2017, Relator Conselheiro Nunes Ribeiro, disponível em www.dgsi.pt). É necessário que a decisão contenha uma fundamentação material ou ativa, consistente na invocação própria de fundamentos que, ainda que coincidentes com os invocados pela parte, sejam expostos num discurso próprio, capaz de demonstrar que ocorreu uma verdadeira reflexão autónoma (v. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, p. 281, a propósito do anterior artigo 158º mas que aqui mantém a sua atualidade, e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código se Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 188). Cremos ser absolutamente consensual que o dever de fundamentação apenas se encontra dispensado no caso de decisões de mero expediente, não devendo, contudo, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a primeira constitui a causa de nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º citado. A insuficiência ou mediocridade da motivação, como ensinava já o Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Volume V, p. 140) afeta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade. O vício de fundamentação deficiente constitui, por isso, uma irregularidade da sentença, mas não gera a sua nulidade. No mesmo sentido se pronuncia Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 2ª edição, 1985, p. 687) ao consignar que “[p]ara que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. Importa ainda referir que a decisão deve ser fundamentada nos termos que sejam justificados pelo caso em análise, designadamente da complexidade das questões em causa ou do maior ou menor nível de discussão na jurisprudência ou na doutrina em torno das mesmas. In casu, o Tribunal a quo para justificar a dispensa de realização da audiência prévia proferiu o seguinte despacho: “Dispenso a realização da audiência prévia, nos termos o disposto no art. 593º, n.º 1 do Código de Processo Civil”. A questão em causa - dispensa da audiência prévia – pela sua simplicidade não justifica efetivamente muito mais do que a referência ao normativo que a permita; não entendemos, por isso, que se possa falar em falta de fundamentação. No que se refere à alínea d) do n.º 1 do referido artigo 615º prende-se a mesma com a omissão de pronúncia (quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar) ou com o excesso de pronúncia (quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento). A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há-de resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do CPC do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas, cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. Mas, a resolução das questões suscitadas pelas partes não pode confundir-se com os factos alegados, os argumentos suscitados ou as considerações tecidas, e nem tão pouco com meios de prova. Assim, ao Tribunal a quo impunha-se conhecer da questão da ineptidão da petição inicial, exceção expressamente suscitada pelos Réus, pronunciando-se sobre a sua procedência ou improcedência, mas já não sobre todos os argumentos invocados pelas partes. Se o Tribunal a quo julgou verificada a ineptidão da petição inicial e o não poderia fazer, por o vício ter sido sanado em face da dedução de contestação por parte dos Réus, nos termos do artigo 186º n.º 3 do CPC, conforme pretendem os Recorrentes, é questão que se coloca já ao nível do erro na aplicação do direito e não da nulidade da decisão. Improcede, por isso, desde já e nesta parte o recurso. *** 3.2. Da dispensa de audiência préviaNa decisão recorrida foi entendimento do Tribunal a quo dispensar a audiência prévia termos o disposto no artigo 593º, n.º 1 do CPC. Dispõe este preceito que “[n]as ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591º”. Sustentam os Recorrentes que a dispensa da audiência prévia, sem mais, é suscetível de configurar uma omissão de formalidade legal, pelo que o Tribunal a quo cometeu uma nulidade processual prevista no artigo 195º n.º 1 do CPC, violando o princípio basilar do direito processual, como é o direito ao contraditório e, bem assim, o princípio da cooperação, consagrados nos artigos 3º n.º 3 e 7º n.º 2, ambos do CPC. Vejamos. É inquestionável que o principio do contraditório é um dos princípios estruturantes do processo civil, também com consagração constitucional (cfr. artigos 2º e 20º n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa). O principio do contraditório encontra-se expressamente consagrado no n.º 3 do artigo 3º do CPC onde se estabelece que o tribunal não pode decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, salvo caso de manifesta desnecessidade, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. Com esta regra (prescindida apenas em casos de manifesta desnecessidade) visa-se essencialmente evitar que as partes venham a ser confrontadas com decisões inesperadas ou que poderiam constituir verdadeiras decisões-surpresa. In casu, estamos perante uma decisão proferida pelo Tribunal a quo que, decidindo dispensar a audiência prévia, julgou verificada a ineptidão da petição inicial e nulo todo o processado. Não obstante estar em causa uma exceção de conhecimento oficioso (cfr. artigos 186º n.º 1, 576º, 577º alínea b), e 578º, todos do CPC), a mesma foi expressamente invocada pelos Réus na contestação e objeto de resposta pelos Recorrentes no articulado de réplica que apresentaram (por força da reconvenção deduzida) no qual alegaram ter a faculdade de exercer o correspondente direito ao contraditório, apresentando expressamente “resposta à exceção de ineptidão da Petição Inicial” nos artigos 6º a 43º. No caso concreto não estamos, por isso, perante qualquer violação do principio do contraditório e nem a decisão proferida pode ser considerada, para os Recorrentes, uma decisão-surpresa; da mesma forma não ocorre qualquer violação do principio da cooperação. Terá sido, ainda assim, cometida alguma nulidade processual, nos termos previstos no artigo 195º n.º 1 do CPC, por omissão de formalidade legal prescrita na lei? A resposta a esta questão terá de ser necessariamente negativa, desde logo porque se não pode concretamente afirmar a omissão de qualquer formalidade prescrita na lei. Vejamos. A importância que o legislador do novo Código de Processo Civil pretendeu conferir à audiência prévia, como um dos instrumentos envolvendo todos os participantes no processo, resulta bem patente da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII (PL 521/2012, de 2012-11-22), que está na origem da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, que aprovou aquele Código: “O novo figurino da audiência prévia, designação ora dada à audiência a realizar após a fase dos articulados, assente decisivamente num princípio de oralidade e concentração dos debates, pressupondo a intervenção ativa de todos os intervenientes na lide, com vista a obter uma delimitação daquilo que é verdadeiramente essencial para a sua plena compreensão e justa resolução, conjugado com a regra da inadiabilidade e com a programação da audiência final, é suscetível de potenciar esse resultado desejável. (…) Há um manifesto investimento na audiência prévia, entendida como meio essencial para operar o princípio da cooperação, do contraditório e da oralidade. Tem-se presente que a audiência preliminar, instituída em 1995/1996, ficou aquém do que era esperado, mas há também a convicção de que, além da inusitada resistência de muitos profissionais forenses, certos aspetos da regulamentação processual acabaram, eles próprios, por dificultar a efetiva implantação desta audiência no quotidiano forense. (…) A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.” Importa, contudo, distinguir o regime previsto para as ações de valor superior a metade da alçada da Relação, do estabelecido para as ações de valor não superior (cf. artigo 597º do CPC e artigo 44º n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto). Quanto ao primeiro, e ainda que a realização da audiência prévia constitua a regra, a lei consagra exceções conforme decorre dos artigos 592º e 593º do CPC, referindo-se o primeiro aos casos de não realização da audiência prévia e prevendo o segundo as situações em que o juiz pode dispensar a sua realização. Assim, prevê o n.º 1 do artigo 593.º que “[n]as ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591º”. E estabelece o n.º 1 do artigo 592º que a audiência prévia não se realiza: a) Nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º; b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados. In casu, tendo o processo findo no saneador pela procedência da exceção de ineptidão da petição inicial, a qual, como já vimos, fora debatida nos articulados, estaríamos perante uma situação que cairia no âmbito da alínea b) do n.º 1 do artigo 592º que prevê a não realização da audiência prévia, e não de dispensa da sua realização nos termos do artigo 593º, uma vez que este preceito se reporta aos casos em que a ação prosseguirá para além do despacho saneador (veja-se que o n.º 1 refere exatamente “nas ações que hajam de prosseguir”). Ora, prevendo a lei a não realização da audiência prévia quando o juiz projetar conhecer de uma exceção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados, julgando-a procedente e absolvendo o réu da instância, findando o processo no despacho saneador, não se poderia falar na omissão de qualquer formalidade na não realização da audiência prévia. Quanto ao regime previsto para as ações de valor não superior a metade da alçada da Relação dispõe o artigo 597º do CPC, na parte que aqui releva, que findos os articulados, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 590.º, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo: a) Assegura o exercício do contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados; b) Convoca audiência prévia. In casu, atento o valor da presente ação (€5000,01), não superior a metade da alçada da Relação, deve a questão ser enquadrada no âmbito de aplicação do referido artigo 597º do CPC segundo o qual cabe ao juiz definir quais os trâmites processuais que devem ser seguidos, tendo em conta a natureza e a complexidade da ação e a necessidade e adequação dos atos ao seu julgamento, podendo a tramitação ser similar à prevista para o processo comum ou, findo os articulados, seguir-se a audiência final. É neste contexto que pode justificar-se a convocação de audiência prévia, designadamente se for necessário assegurar o contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados. No caso dos autos, como vimos, a exceção da ineptidão da petição inicial foi suscitada na contestação e os Recorrentes exerceram o contraditório com a apresentação do articulado de réplica em que responderam também à matéria da reconvenção. Do exposto decorre que não se impunha ao Tribunal a quo a convocação da audiência prévia, e nem o conhecimento da exceção em causa, sem realizar tal diligência, constitui omissão de formalidade prescrita na lei. Improcede, por isso, também nesta parte, o recurso. *** 3.2. Da ineptidão ou da prolação de despacho pré-saneador a convidar os Autores ao aperfeiçoamento da petição inicialSustentam por fim os Recorrentes que, apesar de se não verificar a ineptidão da petição inicial, a padecer a mesma de alguma desconformidade sempre poderia ser de alguma imprecisão, suscetível de sanação, pelo que deveria o Tribunal a quo ter procedido ao aproveitamento do articulado dos Autores, e, bem assim, proferido um despacho pré-saneador, convidando a aperfeiçoar o articulado apresentado. Vejamos. Dispõe o artigo 186º n.º 2 do CPC que: “2 - Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”. Por outro lado, se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial (n.º 3 do mesmo preceito). Uma petição diz-se inepta quando, pura e simplesmente, faltar o pedido e a causa de pedir, mas também quando esta ou aquele forem ininteligíveis, correspondendo a ininteligibilidade à falta daqueles. Como ensinava já o Prof. Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2º, Almedina, 1945, p. 359 e sgs.) uma petição é ininteligível quando não pode saber-se, nem depreender-se, qual o pedido ou a causa de pedir. No que toca à causa de pedir, impõe-se que os factos essenciais sejam apresentados com clareza e concisão. A causa de pedir traduz-se no facto jurídico material, concreto, em que se baseia a pretensão deduzida em juízo (cfr. artigo 581º n.º 4 do CPC), consistindo a falta de causa de pedir na omissão dos factos essenciais que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido. Quanto ao pedido a lei processual “impõe também que o pedido seja formulado de modo claro e inteligível, que seja preciso e determinado. Compreende-se perfeitamente esta exigência legal, na medida em que se torna indispensável para assegurar à contraparte o exercício do direito de defesa e colocar o autor a coberto de decisões judiciais que, porventura, tenham um alcance ou sentido diferentes dos pretendidos. Sendo um elemento fundamental para definir o objeto do processo, deve apresentar características que o tornem inteligível, idóneo e determinado, conforme Castro Mendes refere na sua obra Direito Processual Civil, vol. II, pág. 290. A petição inicial será pois inepta, quando por meio dela não puder descobrir-se que tipo de providência o autor se propõe obter ou qual o efeito jurídico que pretende conseguir por via da ação (…)” (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 1997, p. 105). A autor deve expressar a sua vontade de forma a que a mesma possa ser facilmente apreendida por terceiros de modo a permitir a definição dos contornos do direito no caso concreto quando tiver de ser proferida a sentença; assim, será inepta uma petição que contenha um pedido vago e abstrato como quando o autor pretende proibir o réu de todo e qualquer ato ofensivo de interesses do autor, ou ainda quando pretende a condenação na entrega de um prédio rústico ou urbano, sem qualquer identificação, ou o reconhecimento da propriedade de uma parcela de terreno, sem indicar a sua área, sem delimitações ou outros elementos identificadores. Da petição inepta deve, contudo, distinguir-se a petição deficiente; neste caso, apesar do pedido e da causa de pedir serem compreensíveis, a petição apresenta-se incompleta, ou com imprecisões e insuficiências na exposição e concretização da matéria de facto. Assim, a petição inepta, nos termos referidos, não pode ser objeto de convite ao aperfeiçoamento; de facto, careceria de qualquer sentido determinar o aperfeiçoamento quando não existe de todo (falta) ou é ininteligível o pedido ou a causa de pedir. Não se verificando a ineptidão, mas apresentando-se a petição deficiente, deve ser proferido despacho pré-saneador convidando o autor a aperfeiçoar o seu articulado (cfr. artigo 590º n.º 2 alínea b) do CPC). “A mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omite a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspeto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas podendo implicar a improcedência, no plano do mérito, se o A. não tiver aproveitado as oportunidade de que beneficia para fazer adquirir processualmente os factos substantivamente relevantes, complementares ou concretizadores dos alegados, que originariamente não curou de densificar em termos bastantes” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/03/2015, Processo n.º 6500/07.4TBBRG.G2,S2, Relator Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt). Analisemos então o caso concreto. O Tribunal a quo entendeu verificar-se a contradição entre o pedido e a causa de pedir e a ininteligibilidade da causa de pedir; refere a este propósito que: “(…) os autores alegam ser proprietários de dois imóveis inscritos na matriz sob os artigos ...55... e ...80º; posteriormente, alegam que os réus são praticaram diversos atos de ocupação de parte de ambos imóveis (pontos 13 a 17) e terminam peticionando a condenação dos mesmos a reconhecer que são donos e legítimos proprietários do imóvel descrito no artigo 1º da presente petição inicial e de que a parcela de terreno de que os réus se apoderaram, numa área aproximada de 300 m2 é parte integrante do prédio dos autores. Ora, uma simples leitura da p.i revela que o ponto 1 da p.i não se refere a um mas a dois imóveis (inscritos na matriz sob os artigos ...55... e ...80º;), sendo que os autores peticionam a condenação dos réus no reconhecimento da propriedade de um, sem especificar qual; por outro lado, os autores ora alegam que os réus ocuparam parte de ambos os imóveis (cfr pontos 13 a 17, onde se referem sempre aos imóveis no plural), ora alegam que os réus ocuparam uma parte de um dos imóveis com a dimensão de 300m2 e pretendem a condenação dos réus na desocupação do mesmo e reposição no estado anterior à ocupação (mais uma vez sem especificar qual deles). (…) Daqui decorre que o pedido formulado pelos autores se encontra em contradição com a causa de pedir pois pede a desocupação de um dos prédios (sem especificar qual) e ao longo da sua exposição vai acusando os réus de terem ocupado dois prédios (art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.b) do Cód de Proc Civil). Em segundo lugar, entendemos que o pedido formulado pelos autores é ininteligível, pois peticiona o reconhecimento do direito de propriedade sobre um dos prédios, quando o artigo para que remete menciona dois (artigos 1255º e 1280º), o que gera o vício referido no art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.a) do Cód de Proc Civil.” Da análise dos articulados (petição inicial e réplica) apresentados pelos Autores resulta alegado que são donos e legítimos proprietários de dois prédios rústicos, sitos no lugar de ..., freguesia ..., concelho ..., destinados à cultura de oliveiras e vinha, registados na competente Conservatória do Registo Predial ..., respetivamente, sob o artigo n.º ...80 e ...55, pedindo em primeiro ligar a condenação dos Réus no reconhecimento dos Autores enquanto donos e legítimos proprietários dos supraditos prédios rústicos. Alegam ainda que desde o dia .../.../2021, os Réus por si e através de terceiros, sob a sua ordem e direção, têm vindo a cortar, arrancar e destruir árvores de fruto, nomeadamente 2 (dois) pessegueiros, 1 (uma) ameixoeira, 2 (duas) oliveiras, 2 (dois) marmeleiros, 1 (um) cipreste, 1 (uma) figueira e 16 (dezasseis) videiras, todas localizadas nos aludidos prédios rústicos; que entre os dias 26 e 28 de fevereiro de 2022, os Réus, por si e através de terceiros, sob a sua ordem e direção, invadiram os aludidos prédios rústicos e destruíram 6 (seis) manilhas de 40 cm, propriedade dos Autores, usando, para tanto, uma máquina/trator com a matrícula ..-XP-.. e que em março de 2022, invadiram novamente os aludidos prédios rústicos, principalmente o prédio identificado no artigo n.º ...0 e parte do prédio identificado no artigo n.º ...5, e iniciaram a remoção/deslocação de terras, recorrendo ao uso de maquinaria pesada e procederam à plantação de algumas oliveiras, atuando como se os aludidos prédios fossem sua propriedade e deslocaram e alteraram marcos divisórios, através da destruição e posterior reconstrução de muros e marcos divisórios das propriedades, usurpando vários m 2 de propriedade, mormente a área aproximada de 300 m. E no artigo 55º do articulado de réplica reiteram que pretendem ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre a faixa de terreno que os Réus invadiram, principalmente no prédio identificado com o artigo n.º ...0 e parte do prédio identificado com o artigo n.º ...5, mormente numa área aproximada de 300 m2. Assim, e da leitura dos seus articulados conclui-se que os Autores, alegando serem proprietários de dois prédios, invocam a prática de atos pelos Réus violadores desse direito, designadamente a ocupação de uma parcela de terreno com cerca de 300 m2 que faz parte desses seus prédios. E pretendem a condenação dos Réus no reconhecimento desse seu direito de propriedade e na entrega da parcela aos Autores, repondo o estado em que esta se encontrava, retirando as plantações indevidamente cultivadas, abstendo-se de, no futuro, praticar atos que perturbem a posse e o direito de propriedade dos Autores. É certo que no pedido de reconhecimento da parcela mencionam “referido prédio” em vez de “referidos prédios”, mas no contexto de toda a sua alegação facilmente se percebe, tal como os Recorrentes alegam, que tal se deve a um lapso de escrita, devendo ler-se no plural. Da interpretação da petição inicial resulta, quanto a nós, que a alegação e a pretensão dos Autores são perfeitamente inteligíveis, não padecendo de contradição. De referir que a apreciação de uma peça processual deve partir do pressuposto que a mesma terá que ser interpretada no sentido de apurar se a mesma permite a um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário (cfr. artigos 236° e 295º do Código Civil) compreender o que está em causa na relação material em litígio. À interpretação dos articulados devem aplicar-se os princípios de interpretação das declarações negociais pelo que valem com o sentido que um declaratário normal deva retirar dos mesmos e tal interpretação deve ter presente a máxima da prevalência do fundo sobre a forma (neste sentido v. o Acórdão desta Relação de 31/10/2019, Processo n.º 4180/18.0T8BRG.G1,Relatora Margarida Almeida Fernandes, disponível em www.dgsi.pt). De facto, o esforço interpretativo deve ser feito no sentido de procurar, dentro do possível, dirimir materialmente os conflitos que são colocados nos tribunais, tendo presente uma preocupação de prevalência do fundo sobre a forma de molde a procurar ir ao encontro do que é efetivamente pretendido pelas partes no processo, independentemente de eventuais incorreções formais. Não subscrevemos, por isso, o entendimento do tribunal a quo da verificação de contradição entre o pedido e a causa de pedir e de ininteligibilidade da causa de pedir; como já referimos, a alegação e a pretensão dos Autores afiguram-se-nos perfeitamente inteligíveis, não podendo a menção a “referido prédio”, no contexto de toda a petição inicial, desencadear a invocada ineptidão da petição inicial. Contudo, a petição inepta distingue-se da petição deficiente, aqui se abarcando os casos em que, apesar do pedido e da causa de pedir serem compreensíveis, a petição apresenta insuficiências na exposição e concretização da matéria de facto. In casu, embora a causa de pedir e o pedido sejam compreensíveis, concluímos que a petição inicial apresenta insuficiências na matéria de facto respeitante à identificação da referida parcela com cerca de 300 m2 pois, embora seja referido pelos Autores que a mesma se situa nos dois prédios rústicos por si identificados, principalmente no prédio identificado com o artigo n.º ...0 e em parte do prédio identificado com o artigo n.º ...5, não concretizam a área ocupada em cada um dos referidos prédios e nem indicam as respetivas delimitações e/ou outros elementos identificadores. Tais insuficiências, entendemos nós, podem ser supridas mediante o convite de aperfeiçoamento da petição inicial nos termos previstos no artigo 590º n.º 2 alínea b) e 4 do CPC, pelo que tem, nesta parte, de proceder o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se a notificação dos Autores para querendo procederem ao aperfeiçoamento da petição inicial, apresentando no prazo de 15 dias articulado em que completem o inicial nos moldes acima referidos. As custas do recurso são da responsabilidade dos Recorridos atento o seu decaimento (artigo 527º do CPC). *** IV. DecisãoPelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e determinando a notificação dos Autores para, querendo, procederem ao aperfeiçoamento da petição inicial no prazo de 15 dias, mediante articulado em que completem o inicial apresentado, quanto à identificação da parcela com cerca de 300 m2 alegadamente ocupada pelos Réus, concretizando a área ocupada em cada um dos prédios identificados no artigo 1º da petição inicial e indicando as respetivas delimitações e/ou outros elementos identificadores. Custas pelos Recorridos. Guimarães, 19 de outubro de 2023 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária Raquel Baptista Tavares (Relatora) Paulo Reis (1ª Adjunto) Ana Cristina Duarte (2ª Adjunta) |