Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
58/20.6T9MDR.G1
Relator: ISILDA PINHO
Descritores: CRIME DE FALSAS DECLARAÇÕES
REFERÊNCIA NORMATIVA “OUTRA QUALIDADE”
ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ARTIGO 97.º DO CÓDIGO DO NOTARIADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. Foi para colmatar lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública, designadamente da resultante da declaração de inconstitucionalidade material do artigo 97.º do Código do Notariado, proclamada pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 379/2012, que o atual artigo 348.º-A do Código Penal foi introduzido.
II. As declarações falsas prestadas pelos outorgantes numa escritura de justificação notarial, das quais resultem efeitos jurídicos, designadamente os de, através delas, se obter o registo do direito de propriedade de um prédio por usucapião, integram hoje o crime de falsas declarações previsto e punido pelo artigo 348.º-A do Código Penal, ainda que as declarações se reportem a factos que não tenham sido vivenciados pelo declarante.
III. A referência normativa «outra qualidade», integrante do tipo de crime de falsas declarações compreende, a par dos apontados dados como a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho ou similares, outros elementos identificativos a que a lei atribui efeitos jurídicos, nomeadamente cargos, funções, títulos, categorias ou meras condições como a de proprietário e de possuidor.
IV. A mencionada tipologia criminal não exige a verificação de qualquer prejuízo para terceiro ou sequer da simples intenção de lho causar.
V. A alínea f), do n.º 1, do artigo 386.º do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, não inseriu qualquer elemento novo ao tipo de crime de falsas declarações previsto e punido pelo artigo 348.º-A do Código Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 58/20.... que corre termos pelo Juízo de Competência Genérica de ..., Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, em 25 de outubro de 2023, foi proferida sentença condenatória, com o seguinte dispositivo [transcrição]:

“(…)
Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, julgo a acusação do Ministério Público procedente por provada e em consequência:
a) Condeno o arguido AA pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), num total de € 825,00 (oitocentos e vinte e cinco euros).
b) Condeno a arguida BB pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), num total de €750,00 (setecentos e cinquenta euros).
c) Condeno o arguido CC pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 135 (cento e trinta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €9,00 (nove euros), num total de € 1.215,00 (mil, duzentos e quinze euros).
d) Condeno o arguido DD pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), num total de €845,00 (oitocentos e quarenta e cinco euros).
(…)”. [sublinhado e negrito nossos].

I.2 Recurso da decisão

Inconformados com tal decisão, dela os arguidos interpuseram recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraíram as seguintes conclusões [transcrição]:

“(…)
1- Em casos como o destes autos o intérprete tem que atender ao contexto histórico da norma legal supostamente incriminadora, pela forte consistência, continuidade e coerência do regime já antigo que sempre vigorou, por não implicar mudanças no quotidiano da generalidade das pessoas, porque não houve alteração dos valores ético-jurídicos pretensamente violados, porque também não houve notícia apreensível pela generalidade das pessoas de que tivesse havido modificação no regime e por este, acolhido nos termos constantes da sentença em apreço, suscitar graves dúvidas de aplicação;
2- Na continuação da conclusão anterior, não se pode esquecer que as leis são estabelecidas para regular a conduta de pessoas concretas e que as discussões e análises são estéreis se perderem de vista essa realidade, sobretudo sendo certo que para casos como o deste processo sempre estiveram plasmadas claramente na lei, além do dolo, as exigências do propósito de prejudicar terceiros e a da advertência da prática do crime no caso de tal acontecer;
3- Sobretudo em matéria criminal, havendo alteração legal que implique mudanças significativas de comportamento, a sua aplicação tem que reunir como pressupostos uma base que justifique a nova opção – a sua razão de ser –e o conhecimento dela pelo comum dos interessados através dos meios de divulgação correntes;
4- As disposições legais que ao longo do tempo penalizaram a outorga de iniciativas de justificação não verídica sempre foram acompanhadas de outras, como a do art. 97.º do Código do Notariado, prevendo a necessidade de haver as advertências que dele constam e essas normas duplas sempre foram tomadas como de aplicação conjunta e inseparáveis, tal como acontece com as que vigoram por força dos arts. 359.º e 360.º, n.º 3, do C. Penal;
5- A douta sentença em apreço, pese embora a opção tomada pela ilustre jugadora no sentido de aplicar à letra, sem mais, a disposição do art. 348.º-A do Código Penal, sempre acrescentou uma nota de que aquando da realização da escritura os arguidos foram advertidos que incorriam nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem tiverem prestado ou confirmado falsas declarações;
6- A propósito da conclusão anterior, se a disposição do C. Notariado deixou de valer pela declaração da sua inconstitucionalidade, também deixou de ter razão de ser o argumento contra o arguido invocando as advertências, uma vez que não é legítimo levar em consideração apenas uma parte (a falsidade das declarações) e esquecer a outra (em prejuízo de outrem) e não se compreende que os notários continuem a incluir nas escrituras as tais advertências; no entanto os procedimentos adoptados continuam a ser os mesmos;
7- A comunidade, o Estado, não pode actuar, sobretudo no campo criminal, de forma enganosa e muito menos com ciladas contra o cidadão, antes tem aqui um especial dever de lealdade;
8- Coerentemente, se ao cidadão é feita a advertência, por um Notário, de que comete um crime, e será consequentemente punido, se prestar ou confirmar declarações falsas, dolosamente e em prejuízo de outrem, esse mesmo cidadão fica ciente de que não comete tal crime, e não será punido, se faltar à verdade estando convicto de que com essa conduta não prejudica ninguém,
9- E não pode ser punido se a parte acusadora não alegar e provar que ele tinha o propósito de prejudicar outrem, porque essa é a regra do ónus da alegação e da prova;
10 - Os recorrentes provaram documentalmente que com a outorga da escritura não originaram nenhum prejuízo (significativo, dentro do espírito que evidentemente é perseguido pela disposição legal) ao denunciante, único interessado conhecido e que baseou a sua queixa na alegação de ser o dono do prédio;
11- A razão de ser desse regime de advertências radica na especial situação em que os outorgantes se encontram perante uma escritura do género daquela que originou este processo, em que as circunstâncias, os factos expostos e a exposição dos mesmos por quem os declara e pelo destinatário da declaração são quase sempre complexas e frequentemente ambíguas, além de que nessas situações existe uma predisposição natural de pouco rigor e uma tendência inata para se beneficiar a si próprio ou um amigo (no caso das testemunhas); motivos semelhantes – mormente quanto aos arguidos, que a respeito dos factos de que são acusados têm o direito de não dizer a verdade, o que poderia originar graves dúvidas – estão na base das advertências ao arguido, ao assistente e às partes civis em processo penal (além de outras situações) perante o juiz;
12- Sendo certo que o Tribunal Constitucional não dita leis, a opção do acórdão que em 2015 julgou inconstitucional, por razões orgânicas, o art. 97.º do Código do Notariado (e sendo também certo que já desde 2013 vigorava o art. 348.º-A do Código Penal) de não restringir a declaração de inconstitucionalidade aos casos anteriores à vigência desse novo artigo teve supostamente uma causa e um intuito diferente daquele que lhe tem sido atribuído por quem defende a solução plasmada na douta sentença aqui em análise;
13- A clarificação tem que ser encontrada fora do enquadramento mental que tem sido seguido, de que em casos como o dos autos a conduta dos intervenientes continua a ser punida; dado que o falado art. 97.º deixou de valer e a disposição do art. 348.º-A não basta, a solução óbvia vai no sentido de que os comportamentos em causa não constituem crime;
14- Se assim não fosse, a decisão do Tribunal Constitucional seria ela própria inconstitucional porque levaria a uma incriminação que definitivamente o detentor do poder legislativo não quis, ou seja, o TC estaria a invadir a área de competência exclusiva da Assembleia da República;
15- Se o propósito do legislador (a AR) fosse o de punir aplicando somente a nova disposição do C. Penal, teria que revogar expressamente a norma do C. Notariado; e temos assim que, dado que a construção teórica respeitante a este assunto no sentido da criminalização sempre necessitou de dois apoios igualmente essenciais, a retirada de um deles implica forçosamente a sua derrocada;
16- Os problemas que advenham da realização de escrituras como esta que nos ocupa são resolvidos em substância pela via civil, no âmbito da dialéctica sempre presente na vida social;
17- Com o estatuto do notariado estabelecido do pelo Decreto-Lei n.º 27/2004, de que os notários assumirão uma dupla condição, a de oficiais, enquanto delegatários de fé pública, e a de profissionais liberais, desvinculados da actual condição de funcionários públicos, e cotejando esse novo estatuto com o teor do falado art. 348.º-A (… declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções) conclui-se que o notário não é autoridade pública nem funcionário, o que não coloca em causa a sua condição de delegatário de fé pública dos actos que pratica, porque a credibilidade está nele próprio e no controlo que faz da legalidade, dentro dos limites da sua actuação;
18- Considerando tudo o que atrás foi dito e a melhor interpretação da única norma legal em questão – o artigo 348.º-A do Código Penal – os recorrentes entendem que a douta sentença posta em causa neste recurso violou essa mesma norma e que o desfecho deste processo deve ser o de os absolver.
(…)”.

I.3 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação, a Ex.mª Sr.ª Procuradora da República junto da 1.ª instância respondeu ao recurso interposto pelos arguidos, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:

“(…)
Com relevância para a decisão em causa, afere-se que o Tribunal a quo formou a sua convicção na conjugação dos factos trazidos a juízo pela acusação, alicerçada, designadamente, no teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em julgamento, na prova documental carreada nos autos, assim como, nas próprias regras da experiência.
A prova produzida foi devidamente ponderada, apreciada e corretamente valorada para efeitos de fixação da matéria de direito, inexistindo a invocada violação da norma a que corresponde o artigo 348º-A do Código Penal.
Critérios que foram assertivamente ponderados e fundamentados na sentença recorrida, a qual se afigura, assim, perfeitamente ajustada, devendo, em consequência, o recurso interposto ser declarado totalmente improcedente, por infundado, mantendo-se aquela integralmente.
(…)”.

I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exma. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta também emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

I.5. Resposta

Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vieram os arguidos/recorrentes apresentar resposta ao sobredito parecer, no sentido da posição já vertida na peça recursiva.

I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:

II- FUNDAMENTAÇÃO

II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].

Assim, face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão a apreciar e decidir consiste em:

® Saber se a factualidade provada permite a sua subsunção no crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.

II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

1. Relatório
(…)
EE deduziu pedido de indemnização civil ( fls. 270 e 275) contra os arguidos peticionando a condenação dos arguidos AA e FF ao pagamento da quantia de €9.000,00 (nove mil euros), a título de danos patrimoniais, e de €4.000,00 (quatro mil euros) ,e a condenação dos arguidos CC e GG ao pagamento de €1.000,00 (mil euros)/cada, a título de danos não patrimoniais, o qual não foi admitido (cfr. despacho de fls. 382 a 384).

(…)
3. Fundamentação de facto

3.1 Factos provados

Terminada a discussão da causa e considerando a prova produzida este Tribunal considera provados os seguintes factos:
1. No dia 18 de julho de 2019, os arguidos AA, BB, CC e GG, compareceram no Cartório Notarial de HH, sito na Rua ... em ..., e realizaram uma escritura de justificação.
2. Os arguidos AA e BB intervieram na escritura como primeiros outorgantes, e CC e GG na qualidade de testemunhas.
3. Nesses atos, todos declaram perante o Exmo. Senhor Notário HH, que o prédio rústico sito no Lugar ..., na Freguesia ..., concelho ..., composto de cultura de centeio, inscrito na matriz sob o artigo ...89, se encontrava na posse dos arguidos AA e BB, desde o ano de 1990 (mim novecentos e noventa).
4. Ao autuarem da forma descrita, os arguidos mentiram sobre factos relativamente aos quais deviam falar com verdade, pois na realidade sabiam que a propriedade do prédio rústico não pertencia aos arguidos AA e BB, e que o prédio não se encontrava na posse dos mesmos há mais de vinte anos.
5. Mais sabiam que ao declarar tal facto, permitiam que os arguidos AA e BB, adquirissem pela posse o mencionado prédio.
6. Os arguidos fizeram aquelas afirmações bem sabendo que as mesmas não correspondiam à verdade e que as mesmas se destinavam a ser exaradas em documento autêntico.
7. Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de prestarem declarações falsas perante o Exmo. Senhor Notário HH, o que quiseram.
8. Mais sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
(…)

4. Fundamentação de direito

4.1 Enquadramento jurídico – penal da conduta dos arguidos
Estabelecido o quadro factual apurado, importa proceder ao respetivo enquadramento jurídico – penal.
*
4.1.1 Do crime de falsas declarações
Os arguidos vêm pronunciados pela prática de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

O artigo 348.º- A, do Código Penal, sob a epigrafe «Falsas declarações», dispõe que:

«1. Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2- Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.»
Este tipo legal de crime foi aditado pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, sendo que a exposição de motivos da proposta de lei n.º 75/XII escreve -se como justificação para a nova disposição, que se manteve com a mesma redação que foi proposta e com a que hoje está formulada, o seguinte: «Aproveita-se para clarificar o tipo de crime de falsas declarações, que deixa de se confinar às declarações recebidas como meio de prova em processo judiciário, ou equivalente, passando a constituir ilícito criminal igualmente às falsas declarações que sejam prestadas perante autoridade pública ou funcionário público no exercício das suas funções e se destinem a produzir efeitos jurídicos. Protege-se desta forma a autonomia intencional do Estado e dá-se conteúdo normativo às múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crimes.»
O legislador pretendeu colmatar a ausência de um crime geral de falsas declarações perante entidades públicas, que desse conteúdo material às diversas normas da legislação extravagante que remetem a punição das condutas nelas referidas para um tipo abstrato designado de falsas declarações.
O bem jurídico protegido pela incriminação é a autonomia intencional do funcionário ou autoridade pública, que pode ser prejudicada quando o funcionário ou a autoridade pública não conhece a pessoa que se lhe dirige, sendo que a autoridade pública é, para efeitos penais, o funcionário público ou o membro das forças armadas, militarizadas ou de segurança, desde que aja iure imperii (cfr. Paulo Pinto Albuquerque – Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5.º edição atualizada, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2022, pág. 1215).
Trata -se de um crime de perigo abstrato quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido e de mera atividade quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação.
O tipo objetivo consiste na declaração ou atestação falsa à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções, identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios.
No n.º 2 acrescenta-se um outro elemento, que tem como consequência uma punição mais grave, que é o de a declaração ou atestação se destinar a ser exarada em documentos autênticos.
A falsidade da declaração ocorre quando o conteúdo do declarado não corresponde à realidade fática que o mesmo descreve ou exara relevando a falsidade ideológica.
No que respeita ao conteúdo relevante da falsa declaração ou atestação, o tipo legal refere que tem de respeitar à «identidade», «estado» ou «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídico» próprios ou alheios, sem que se precise o concreto âmbito de cada um destes elementos, o que gera dificuldades, em particular quanto ao que à abrangido por «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos.»
De acordo com Paulo Pinto Albuquerque (ob. cit., pág. 1216), «A identidade inclui a identidade do declarante ou de terceiros.(…)» ; « O estado inclui o estado civil do declarante ou de terceiro» e a «outra qualidade a que a lei atribui efeitos jurídicos inclui a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho, do declarante ou de terceiro.»
Aquele Autor acrescenta que, por contraste com a expressão «factos» que é usada no artigo 359.º do Código Penal, «não podem ser consideradas como típicas as declarações sobre factos ou acontecimentos mesmo que tenham sido vividos pelo declarante, como o modo de aquisição da posse de um imóvel ou o modo de condução de um veículo automóvel.»
Diferentemente, M. Miguez Garcia e M. Castela Rio ( in Código Penal – Parte Geral e Especial, 2.º edição, Coimbra: Almedina, 2015, pág. 1241) entendem que a expressão «”a que a lei atribua efeitos jurídicos” destina-se a por em evidência um facto juridicamente relevante. A idoneidade probatória, idoneidade para provar facto juridicamente relevante (…) para tanto basta a aptidão para formar uma convicção de fatores codeterminantes.(…) comete este crime o indivíduo que declara falsamente a notário, depois de advertido estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, para serem exarados em documento autêntico.»
Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.03.2023, proferido no processo n.º 1634/21.5T9ALM.L1-5, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual «(…) no caso de o agente que numa escritura de justificação notarial declara falsamente a qualidade de possuidor de outrem de um imóvel, com vista a conseguir obter o registo de propriedade com base na usucapião, deve ser considerado como sendo uma declaração falsa de uma qualidade a que a lei atribui efeitos jurídicos para efeito de integração da conduta no crime de falsas declarações previsto no artigo 348.º-A do Código Penal pois tal declaração atinge a autoridade pública na sua autonomia intencional que é imprescindível para a realização de um Estado de Direito, de modo a justificar a sua punição. Foi, aliás, para colmatar, também, a lacuna resultante da declaração de inconstitucionalidade material do artigo 97.º do Código de Notariado, proclamada pelo acórdão do TC n.º 379/2012, que punia as falsas declarações em escritura de justificação notarial, remetendo para uma norma então inexistente no Código Penal, que o atual 348.º-A do Código Penal foi introduzido.
É certo que, já na vigência do atual crime de falsas declarações, esse artigo 97.º foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral, com fundamento em inconstitucional orgânica, deixando assim de poder ter-se em conta a advertência que consta desse artigo (…). Porém, independentemente dessa advertência, hoje inexistente, não pode deixar de se considerar que as declarações falsas prestadas pelo outorgante numa escritura de justificação notarial, das quais resultam efeitos jurídicos, como é o caso de através delas se obter a propriedade um prédio por usucapião, integram hoje o crime de falsas declarações previsto no artigo 348.º-A do Código Penal, mesmo que as declarações se reportem a factos que não foram vividos pela declarante, assim se discordando da posição que é defendida por Paulo de Albuquerque.»
No que tange ao elemento subjetivo do tipo legal de crime, estamos perante um crime doloso, «(…) não se excogitando a necessidade de um “dolo específico”, nomeadamente a intenção de enganar, face aos interesses tutelados por estes crimes contra o Estado. Basta o dolo eventual. O sujeito ativo deverá saber que declara ou atesta perante autoridade pública ou funcionário no exercício das suas funções; deverá igualmente saber que a lei atribui efeitos jurídicos ( próprios ou alheios) às suas declarações não se exigindo qualquer advertência ao sujeito ativo. (…) Quanto ao n.º 2, importa saber que as declarações se destinam a ser exaradas em documento autêntico, com implicações do conhecimento ao nível do leigo.» (cfr. M. Miguez Garcia e M. Castela Rio, ob. cit., pág. 1242).
(…)
Tecidas estas considerações teóricas cumpre reverter ao caso em apreço.
Da factualidade dada como provada resulta que no dia 18 de julho de 2019, os arguidos compareceram no Cartório Notarial de HH e realizaram uma escritura de justificação, tendo os arguidos AA e BB intervindo na referida escritura como primeiros outorgantes, e CC e GG na qualidade de testemunhas.
Nessa ocasião, os arguidos AA e BB declararam factos falsos, isto é, que o prédio rústico sido no Lugar ... na Freguesia ..., concelho ..., composto por cultura de centeio, inscrito na matriz sob o artigo ...89, se encontrava na posse dos arguidos AA e BB, desde o ano de 1990 (mil novecentos e noventa), tendo os arguidos II e GG atestado esses factos, bem sabendo que os mesmos não correspondiam à verdade.
Acresce que, ficou demonstrado que as aludidas declarações permitiram o registo da aquisição do prédio em causa pelos arguidos AA e BB e que aquelas declarações foram exaradas em documento autêntico – escritura de justificação notarial.
Ademais, não podemos deixar de referir que a qualidade de possuidor do prédio falsamente declarada perante o Sr. Notário, na escritura de justificação notarial preenche um elemento constitutivo do tipo objetivo do crime de falsas declarações, por constituir uma declaração sobre uma qualidade a que a lei atribui efeitos jurídicos, designadamente a de poder justificar a aquisição da propriedade do prédio por usucapião.
Ficou igualmente provado o dolo dos arguidos, bem como a consciência por parte destes da natureza proibida da conduta que adotaram.
Por último, não podemos deixar de referir que ainda que se tivesse dado como provado que a referência constante da escritura a JJ, como anterior proprietário do prédio aludido como n.º 8, constituiu um lapso do cartório notarial, ainda assim se encontrava verificado o elemento objetivo do tipo de crime, porquanto os arguidos declaram e atestaram que os arguidos AA e BB tinham a posse do referido prédio há mais de vinte anos, o que bem sabiam que não correspondia à verdade.
Atendendo que se encontram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime em apreço e que inexistem circunstâncias que excluam a ilicitude da conduta ou a culpa, conclui-se que os arguidos AA, BB, CC e GG praticaram, em autoria material e na forma consumada, um crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.º-A, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
(…)”.

II.2- Apreciação do recurso

Da integração, ou não, da factualidade provada na tipologia do crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A do Código Penal:

Após uma breve análise sobre o contexto do surgimento deste tipo legal de crime no Código Penal e dos seus elementos típicos constitutivos, concluiu o tribunal a quo que a conduta dos arguidos/recorrentes, descrita na factualidade provada, os fez incorrer na prática de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.

Insurgem-se os arguidos/recorrentes contra tal entendimento e inerente condenação pela prática do apontado crime, estribando o seu recurso nos seguintes pilares:

® Necessidade de se atender ao contexto histórico da norma em causa, tendo a declarada inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 97º do Código do Notariado, prejudicado a aplicabilidade do artigo 348º-A do Código Penal, uma vez que tais disposições legais só operam em conjunto;
® O Tribunal a quo não olhou ao facto de não ter sido causado prejuízo a terceiros;
® Um Notário não é autoridade pública ou funcionário à luz do Estatuto do Notariado;
® Foi violado o artigo 348º-A do Código Penal.
Pugnam, assim, os arguidos/recorrentes pela sua absolvição.

Vejamos:

O artigo 348.º-A do Código Penal, sob a epígrafe falsas declarações, que se encontra inserido no TÍTULO V destinado aos crimes contra o Estado, CAPÍTULO II reportado aos crimes contra a autoridade pública, SECÇÃO I denominada da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública, prevê o seguinte:

“1 - Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.»

Por sua vez, o invocado artigo 97.º do DL n.º 207/95, de 14 de agosto [CÓDIGO DO NOTARIADO], na SUBSECÇÃO destinada a regulamentar os atos de Justificações Notariais, sob a epígrafe advertência”, previa que:

“Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura.”.

No presente recurso, os arguidos/recorrentes iniciam o seu percurso argumentativo a defender que em casos como o destes autos o intérprete tem que atender ao contexto histórico da norma legal supostamente incriminadora e que a clarificação tem que ser encontrada fora do enquadramento mental que tem sido seguido, de que em casos como o dos autos a conduta dos intervenientes continua a ser punida, dado que o artigo 97.º do Código do Notariado deixou de valer e a disposição do artigo 348.º-A não basta.
Concluem, assim, os arguidos/recorrentes que a solução óbvia, vai no sentido de que os comportamentos em causa não constituem crime e, como tal, se impõe a sua absolvição.
Ora, no que respeita ao invocado contexto histórico da norma em causa verifica-se que o antecedente legislativo deste tipo legal remonta ao ano de 1944, tendo o legislador previsto idêntico ilícito criminal, no artigo 22.º, do DL n.º 33725, de 21 de junho de 1944, então punido com pena de prisão, quando cometido a titulo doloso, ou com multa, se a falsidade fosse cometida por negligência, cujo teor era o seguinte:
“Aquele que declarar ou atestar falsamente a autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções, identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios será punido com prisão até seis meses.
§1.º A pena será de prisão até um ano quando as declarações se destinarem a ser exaradas em documento oficial.
§ 2.° Se a falsidade a que se referem o corpo deste artigo e o § 1.° tiver sido cometida por negligência, aplicar-se-á a pena de multa até 100$00”.
Diversos diplomas legais se lhe sucederam no tempo, no que respeita ao tratamento a dar às falsas declarações prestadas a autoridade pública, acabando tal normativo por vir a ser expressamente revogado pela alínea a) do artigo 53º da Lei n.º 33/99 de 18 de maio.
Desde então, considerou-se que alguns dos casos, que anteriormente cabiam na previsão daquele normativo legal, não poderiam subsumir-se ao crime de falsificação de documento, por muitas vezes a declaração ser oral e não se inserir em documento [artigo 256.º Código Penal], nem poderiam subsumir-se ao crime de falsidade de depoimento ou declaração [artigo 359.º Código Penal] ou ao crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução [artigo 360.º Código Penal], por a declaração não ser feita em Tribunal. Tal circunstancialismo levava a que em inúmeras situações, que imperiosamente demandavam tutela penal, o agente da falsidade fosse absolvido, por inexistência de norma legal que as contemplasse.
Foi neste contexto que surgiu a Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, que acabaria por repristinar o mencionado crime, em moldes idênticos ao normativo anterior [artigo 22.º, do DL n.º 33725, de 21 de junho de 1944], ao aditar ao Código Penal o artigo 348º-A, ora questionado.
E tal aditamento ocorreu precisamente na sequência de um parecer da Procuradoria Geral da República, sobre «a tutela de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública»[3], elaborado por Paulo Dá Mesquita, com vista a suprir as lacunas punitivas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública, tais como os artigos 45.º, n.º3 e 253.º, n.º2 do Código de Registo Civil, o artigo 153.º do Código de Registo Predial, o artigo 97.º do Código de Notariado, declarado inconstitucional pelo acórdão do TC n.º 379/2012, o artigo 47.º do Decreto-Lei n.º83/2000, o artigo 2.º-A da Lei n.º7/2001, na redacção dada pela Lei n.º23/2000 e o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que por sua vez resultou da revogação dos artigos 22.º a 24 do Decreto-Lei n.º33725 de 21 de Junho de 1944, operada pela Lei n.º33/99 e da constatação da existência em legislação penal extravagante de exemplos de normas penais completas que tipificam e punem situações específicas de falsas declarações fora de quaisquer processos judiciários, tais como o artigo 17.º, n.º1 da Lei n.º104//2009, de 14 de Setembro (que regula o regime de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica), do artigo 43.º, n.º1, alínea b) da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Protecção de Dados Pessoais) e do artigo 39.º, n.º2 da Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro (Lei de Imprensa), entre outras.
Note-se que nesse parecer realçou-se que a ausência de tutela penal das falsas declarações perante autoridade pública afecta a autonomia intencional do Estado, nomeadamente nas áreas dos registos, notariado, concursos públicos e múltiplos procedimentos sancionatórios”. [sublinhado e negrito nossos]
Acresce que, conforme se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 28-03-2023, proferido no Processo n.º 1634/21.5T9ALM.L1-5, relatado pela Ex.ma Desembargadora Maria José Machado, acessível em www.dgsi.pt, citado pelo tribunal a quo e que aqui seguimos de perto pela similitude do caso subjacente e porque secundamos os fundamentos ali expostos,  “(…) Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 75/XII/1, apresentada na sequência desse parecer, e também para introduzir outras alteração ao Código Penal, escreve-se como justificação para a nova disposição (artigo 348.º-A), que se manteve com a mesma redação que foi proposta e com a que hoje está formulada, o seguinte:
«Aproveita-se para clarificar o tipo do crime de falsas declarações, que deixa de se confinar às declarações recebidas como meio de prova em processo judiciário, ou equivalente, passando a constituir ilícito criminal igualmente as falsas declarações que sejam prestadas perante autoridade pública ou funcionário público no exercício das suas funções e se destinem a produzir efeitos jurídicos. Protege-se desta forma a autonomia intencional do Estado e dá-se conteúdo normativo às múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime». (…)”
É esse, em termos muito sintéticos, o contexto histórico do surgimento do artigo 348.º-A do Código Penal que prevê o crime de falsas declarações pelo qual os arguidos/recorrentes foram condenados e que entendemos ser aqui aplicável.
Não ignoramos que o invocado artigo 97.º do DL n.º 207/95, de 14 de agosto [CÓDIGO DO NOTARIADO], sob a epígrafe “advertência”, previa que:
“Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura.”.
Nem desconhecemos que, mediante o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/2015 de 03 de março, foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de tal norma [do citado artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de agosto],  no entanto, não se pode esquecer que tal decisão foi tomada sem se apreciar se a conduta de um outorgante em escritura de justificação notarial que preste ou confirme declarações falsas se subsume, ou não, ao crime previsto no artigo 348.º-A do Código Penal. Na realidade, a proclamada inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do mencionado artigo 97.º do Código de Notariado ocorreu uma vez que o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se em plenário, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição e no artigo 82.º da LTC, para apreciar e declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou ilegalidade desta norma, tendo em conta que já havia sido por ele julgada inconstitucional em mais de três casos concretos.
Como se refere no citado aresto do Tribunal da Relação de Lisboa, que, relembre-se, apreciou situação idêntica à dos presentes autos, da análise conjugada do contexto histórico que esteve na base do surgimento do apontado artigo 348.ºA do Código Penal, com a declarada inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 97.º do Código do Notariado, o que se conclui é que “(…) foi (…) para colmatar, também, a lacuna resultante da declaração de inconstitucionalidade material do artigo 97.º do Código de Notariado, proclamada pelo acórdão do TC n.º 379/2012, que (…) o atual 348.º-A do Código Penal foi introduzido.” [sublinhado e negrito nossos].
Na verdade, como refere Maria de Fátima dos Anjos Colaço[4], “(…) o modo como o legislador foi consagrando a responsabilidade criminal daquele que declarasse facto falso a autoridade pública foi de tal forma vago, impreciso e lacunar, com violação dos princípios constitucionais nullum crimen sine lege scripta, previa et certa, tendo até originado a declaração de inconstitucionalidade do art.º 97º, do Código do Notariado, que houve necessidade de se tipificar um crime de falsas declarações que pudesse ser aplicado em todas estas situações. [sublinhado e negrito nossos]
Não se argumente que tal entendimento carece de sentido, porque na data em que o mencionado artigo 348.º-A foi aditado ao Código Penal [2013] o legislador não podia adivinhar que em 2015 o artigo 97.º do Código do Notariado iria ser declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pois, cfr. decorre do que acabamos de expor, já antes do mencionado aditamento ter ocorrido tal preceito legal havia sido declarado inconstitucional, em razão da matéria, pelas incertezas que causava, em manifesta violação do princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Falamos do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 379/2012, de 12 de julho de 2012 que foi, entre outros, precisamente, o que serviu de base ao requerimento que culminou com a proclamada inconstitucionalidade orgânica, ditada pelo citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/2015 de 03 de março. Perante tal circunstancialismo, facilmente se compreenderá a sua relevância no surgimento do questionado artigo 348.ºA do Código Penal.
Não se defenda, também, que estamos perante normas de aplicação conjunta e inseparáveis e, como tal, o artigo 348.ºA do Código Penal só por si não é suscetível de criminalizar a conduta dos arguidos/recorrentes, pois sempre careceria de ser acompanhado do citado artigo 97.º do Código do Notariado e deste já não se pode extrair qualquer efeito, perante a sua declarada inconstitucionalidade; que, para casos como o deste processo, sempre estiveram plasmadas claramente na lei, além do dolo, as exigências do propósito de prejudicar terceiros e a da advertência da prática do crime no caso de tal acontecer, pelo que se a disposição do Código do Notariado deixou de valer pela declaração da sua inconstitucionalidade, também deixou de ter razão de ser o argumento contra o arguido invocando as advertências, uma vez que não é legítimo levar em consideração apenas uma parte (a falsidade das declarações) e esquecer a outra (em prejuízo de outrem); que se assim não fosse, a decisão do Tribunal Constitucional seria ela própria inconstitucional porque levaria a uma incriminação que definitivamente o detentor do poder legislativo não quis, ou seja, o TC estaria a invadir a área de competência exclusiva da Assembleia da República, pois se o propósito do legislador (a AR) fosse o de punir aplicando somente a nova disposição do C. Penal, teria que revogar expressamente a norma do C. Notariado; ou que a opção do acórdão que em 2015 julgou inconstitucional, por razões orgânicas, o art. 97.º do Código do Notariado (e sendo também certo que já desde 2013 vigorava o art. 348.º-A do Código Penal) de não restringir a declaração de inconstitucionalidade aos casos anteriores à vigência desse novo artigo teve supostamente uma causa e um intuito diferente daquele que lhe tem sido atribuído por quem defende a solução plasmada na douta sentença aqui em análise, pois tal argumentação encontra-se sustentada na certeza de que o apontado artigo 97.º do Código do Notariado constitui uma norma incriminatória, mas a realidade é que nem a própria letra da lei nos permite fazer tal interpretação. Como refere Maria de Fátima Mata Mouros, na sua declaração de voto no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/2015 de 03 de março, “(…) basta atender à letra do preceito («Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura»), para se perceber que este não corresponde a um tipo incriminador. Do preceito apenas resulta um dever de "advertência", em correspondência com a sua epígrafe. Em cumprimento do dever funcional aí estabelecido, os outorgantes devem ser advertidos pelo oficial público das consequências decorrentes da prestação de declarações falsas, nomeadamente a prática de um crime (de falsas declarações), necessariamente previsto num outro local do ordenamento. A consequência de o ordenamento jurídico, num eventual momento, não conter o crime que é objeto de advertência é tão-só o esvaziamento das consequências penais desta, não, necessariamente, a sua inutilidade ou falta de sentido, designadamente ao nível da fiabilidade do ato que a convoca.
Não se ignora que as decisões que estiveram na origem do pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 97.º do Código do Notariado a conceberam como um tipo penal.
No entanto, a atribuição de relevância jurídico-penal ao artigo 97.º do Código do Notariado não constitui a única interpretação possível daquele preceito legal, ou sequer a mais representativa da jurisprudência proferida na matéria. (…)”. [sublinhado e negrito nossos].
Por fim, cumpre-nos dizer que não olvidamos o facto de na sentença recorrida o tribunal a quo ter referido “(…) que aquando da realização da escritura os arguidos foram advertidos que incorriam nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem tiverem prestado ou confirmado falsas declarações (…)”, porém, daí não se retira a existência de qualquer deslealdade por parte do Estado para com os arguidos/recorrentes. Não é por ter trazido à colação as apontadas advertências que se pode concluir que o tribunal a quo levou em consideração apenas uma parte (a falsidade das declarações) e esquecido a outra (em prejuízo de outrem). Para tanto, basta atentar que, como analisaremos de seguida, o prejuízo de outrem não faz parte da tipologia criminal que levou à condenação dos arguidos/recorrentes e, além disso, o tribunal a quo fez tal referência a propósito da fundamentação da matéria de facto e não de direito, concretamente quanto aos factos dados como provados nos pontos 7. e 8., atinentes ao elemento subjetivo do tipo criminal, sendo inquestionável que a fundamentação de facto e a fundamentação de direito constituem realidades distintas. Na verdade, o mencionado trecho da sentença recorrida foi trazido à colação, nesta sede recursiva, de forma descontextualizada, incapaz, portanto, de sustentar a conclusão a que nesse ponto chegaram os arguidos/recorrentes.

Aqui chegados, importa, então, averiguar se, in casu, a conduta dos arguidos/recorrentes que foi considerada provada pelo tribunal a quo integra, ou não, a previsão do tipo incriminatório que foi fundamento da sua condenação.

Relembremos que o mencionado artigo 348.º-A do Código Penal, sob a epígrafe falsas declarações, prevê o seguinte:

“1 - Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.»
Da análise de tal preceito legal constata-se que ao nível do tipo objetivo, o legislador exige:
® A declaração ou a atestação falsa;
® Acerca da identidade, estado ou outra qualidade a que a Lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios; e que
® Essa declaração ou atestação falsa seja efetuada à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções.
No n.º 2 acrescenta-se um outro elemento, que tem como consequência uma punição mais grave, que é o de a declaração ou atestação se destinar a ser exarada em documentos autênticos.
O tipo subjetivo admite qualquer modalidade de dolo.
A declaração corresponde à manifestação por parte do agente de um facto.
O atestado corresponde ao ato de alguém confirmar determinado facto ou circunstância que se pretende exarar/demonstrar.
A falsidade da declaração ou atestação ocorre quando o conteúdo do declarado/atestado não corresponde à realidade fáctica descrita ou exarada relevando, portanto, a falsidade ideológica, tal como vem sendo entendida quanto ao crime de falsificação de documento.
Quanto ao conteúdo relevante da falsa declaração ou atestação o legislador não foi preciso, limitando-se a indicar que tem de respeitar à «identidade», «estado» ou «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos». A falta de delimitação do concreto âmbito de abrangência de cada um destes elementos tem gerado algumas dificuldades de interpretação, em especial quanto ao que possa ser abrangido por «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos», assumindo, por isso, neste campo, a doutrina e a jurisprudência “um papel importante na definição precisa dos respetivos elementos típicos, nomeadamente em função das situações que nos diversos domínios da atividade administrativa do Estado possam convocar a aplicação do novo tipo penal.”[5]
No campo da doutrina:
Temos duas grandes correntes.
Uma sustentada nos ensinamentos de Paulo Pinto de Albuquerque[6] que defende que a «identidade» inclui a identidade do declarante ou de terceiro”; o «estado» inclui o estado civil do declarante ou de terceiro e «a outra qualidade a que a lei atribui efeitos jurídicos» inclui a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho, do declarante ou de terceiros.
E, por contraste com a expressão «factos» que é usada no artigo 359.º do Código Penal (que pune o crime de falsidade de depoimento ou declaração num processo), defende que “não podem ser consideradas como típicas as declarações sobre factos ou acontecimentos mesmo que tenham sido vividos pelo declarante, como o modo de aquisição da posse de um imóvel ou o modo de condução de um veículo automóvel”.
Outra sustentada nos ensinamentos de Miguez Garcia e Castela Rio[7] que entendem que «A expressão “a que a lei atribua efeitos jurídicos” destina-se a pôr em evidência um facto juridicamente relevante. A idoneidade probatória, idoneidade para provar facto juridicamente relevante, avalia-se segundo critérios objetivos. Para tanto, basta a aptidão para formar uma convicção de fatores codeterminantes. Comete este crime o indivíduo apanhado a viajar sem bilhete no metropolitano que se identifica com o seu nome, mas dá como morada a de um terceiro que sabe estar de momento desocupada. Também comete este crime o indivíduo que declara falsamente a notário, depois de advertido, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, para serem exaradas em documento autêntico.».

No campo da jurisprudência:

Quanto à delimitação deste conceito chama-se à colação, a título meramente exemplificativo, os seguintes arestos, que abordaram tal questão, todos acessíveis em www.dgsi.pt:

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/06/2015, Processo n.º 2119/13.9TAPTM.E1, relatado pela Ex.ma Desembargadora Maria Leonor Esteves, no qual se decidiu que integra este elemento a conduta dos arguidos que “produziram afirmações falsas acerca de uma qualidade – a de condutor da viatura, à qual a lei atribui efeitos jurídicos, nomeadamente quanto à necessidade de habilitação legal para o exercício da condução, à obrigação de sujeição a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas e eventual responsabilidade criminal pela prática de crimes no exercício da condução – atribuindo-a a um deles, quando sabiam perfeitamente que não era esse, mas sim um outro, o condutor da viatura. Tudo de forma concertada e com o claro propósito de levar aquele militar a elaborar o auto de notícia e a participação de acidente com dados falsos sobre a identidade da pessoa, não da pessoa que ali ficou a constar como sendo o condutor da viatura, mas sim acerca de quem exercia realmente a condução, e evitar, como veio a suceder, que esta viesse a ser submetida a fiscalização legal e a sofrer eventuais consequências advenientes da prática de alguma infracção/crime em que pudesse ter incorrido.”.
Diz-se nesse acórdão que “ao declarar ou atestar falsamente identidade, estado ou outra qualidade própria ou de terceiro, o agente induz a autoridade ou funcionário a quem se dirige a praticar ato objectivamente viciado nos seus pressupostos, pondo em causa a própria administração e a sua imprescindibilidade para a realização ou satisfação de finalidades fundamentais, indispensáveis em qualquer sociedade organizada. (…) está em causa o estado ou outra qualidade em que o próprio ou outra pessoa é tomada pela lei para determinado efeito jurídico (v.g. estado civil, nacionalidade, residência, maioridade, ser proprietário), o que não se confunde com afirmações do agente sobre factos concretos que não correspondam necessariamente àquelas qualidades típicas, ainda que deles, juntamente com outros, possam retirar-se conclusões sobre as mesmas.” [sublinhado e negrito nossos].

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 17-02-2021, Processo n.º 837/17.1T9CTB.C1, relatado pela Ex.ma Desembargadora Ana Carolina Cardoso, no qual, a propósito do elemento do tipo objetivo do crime de falsas declarações, respeitante a «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos próprios ou alheios», refere o seguinte:
“Nesta última alínea inclui-se a escritura de justificação notarial, cuja outorga se encontra regulada nos arts. 89º e s. do Código do Notariado.”. [sublinhado e negrito nossos].

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 18-05-2022, Processo n.º 424/20.7T9CLD.C1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Paulo Guerra, sumariado, no que aqui releva, nos seguintes termos:
“(…)
II - Sendo o tipo demasiado amplo, compete à doutrina e jurisprudência preencher o que se deve entender por «qualidade a que a lei atribui efeitos jurídicos» ínsito no artigo 348º-A do CP (aquela que se destina a pôr em evidência um facto juridicamente relevante) - as dúvidas suscitar-se-ão sobretudo com a abertura do tipo a outras qualidades para além da identidade e do estado, próprios ou alheios, embora também a referência ao estado abranja realidades distintas do estado civil, que não são facilmente intuídas.
III - Neste conceitoestá em causa o estado ou outra qualidade em que o próprio ou outra pessoa é tomada pela lei para determinado efeito jurídico (v.g. estado civil, nacionalidade, residência, maioridade, ser proprietário), o que não se confunde com afirmações do agente sobre factos concretos que não correspondam necessariamente àquelas qualidades típicas, ainda que deles, juntamente com outros, possam retirar-se conclusões sobre as mesmas”. [sublinhado e negrito nossos].

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 11-01-2023, Processo n.º 116/15.9GTLRA.C1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Pedro Lima, sumariado, no que ora relava, nos seguintes termos:

“(…)
III – A referência normativaoutra qualidade” integrante do tipo de crime de falsas declarações compreende, para além de dados como a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho ou similares, outros elementos identificativos a que a lei atribui efeitos jurídicos, nomeadamente cargos, funções, títulos, categorias ou meras condições como a de proprietário, de possuidor, representante legal ou voluntário e a de condutor de um veículo.
IV – O arguido, ao declarar, com falsidade, a órgão de polícia criminal, sobre a identidade de quem conduzia um veículo automóvel interveniente em acidente de viação, afirmando ser terceira pessoa quando esse acto era executado pelo próprio, incorreu, como autor material, na prática do crime p. e p. no artigo 348.º-A do CP. [sublinhado e negrito nossos].
(…)”.
Diz-se nesse acórdão que “Limitar a abrangência do conceito “qualidade” a dados como a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho ou similares, é afinal e em medida quase esgotante assimilá-lo à identidade (aqueles são claramente elementos de identificação), tornando redundante e até algo esdrúxulo o respectivo emprego, sempre com o devido respeito – e por outro lado, com semelhante limitação deixar-se-ia de fora do foco da incriminação um largo conjunto de condutas que são potencialmente lesivas do bem jurídico que, como se disse, a norma visa tutelar. Tendo presente que nos termos da norma o decisivo é que se trate de qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, então, entendemos decididamente que no conceito caberão cargos, funções, títulos, categorias ou meras condições, independentemente da sua natureza mais ou menos duradoura ou transitória, e desde que em concreto os importem – assim incluindo, segundo os efeitos que possa importar de acordo com as incidências concretas de cada caso, e a título meramente exemplificativo, não apenas condições como a de proprietário [nisto acompanhando aquele autor (António Latas)], mas igualmente de possuidor, representante legal ou voluntário, e, entre tantas mais que possam cogitar-se, a de condutor de um veículo (…)”. [sublinhado e negrito nossos].

Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 25-05-2020, Processo n.º 405/18.0GAEPS.G1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Pedro Cunha Lopes, sumariado nos seguintes termos:

“1 - Para efeitos da previsão do crime de falsas declarações (art.º 348º-A, C.P.), alguém intitular-se falsamemte como condutor de um veículo integra a previsão do referido crime.
2 - Com efeito, a referida condição integra-se no conceito de qualidade do agente, a que a lei atribui efeitos jurídicos.”. [sublinhado e negrito nossos].

Aqui chegados concluímos o seguinte:
O elemento «identidade» integra a identificação civil, nele se incluindo o nome, a filiação, a naturalidade, a data de nascimento, o sexo e a residência, por reporte ao que consta da Lei n.º 33/99 de 18/05 [que Regula a identificação civil e a emissão do bilhete de identidade de cidadão nacional] ou do que é estabelecido no artigo 1.º do DL n.º 131/95, de 06 de junho [CÓDIGO DO REGISTO CIVIL].
O elemento «estado» reporta-se ao estado civil do declarante ou de terceiro.
Já o que se entenda por «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios», tal como se refere no citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, “sendo algo mais relativamente aos conceitos de «identidade» e «estado», tem de ser preenchido em função do caso concreto e de ser ou não um facto juridicamente relevante, como defendem Miguez Garcia e Castelo Ria, tendo em conta o que esteve subjacente à pretensão do legislador quando introduziu este tipo de crime, em termos de tutela do bem jurídico que pretendeu proteger.
O legislador, como evidencia a história do preceito e é referido no dito parecer pretendeu punir as falsas declarações prestadas perante funcionário ou autoridade pública, protegendo a autonomia intencional do Estado, nomeadamente nas áreas dos registos e do notariado.”.
Assim, sufragamos o entendimento dos citados arestos de que a referência normativa «outra qualidade», integrante do tipo de crime de falsas declarações compreende, a par dos apontados dados como a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho ou similares, outros elementos identificativos a que a lei atribui efeitos jurídicos, nomeadamente cargos, funções, títulos, categorias ou meras condições como a de proprietário, de possuidor, representante legal ou voluntário e a de condutor de um veículo.
Alegam os arguidos/recorrentes que atuaram convictos de que com a sua conduta não prejudicavam ninguém e que com a outorga da escritura não originaram nenhum prejuízo ao denunciante, único interessado conhecido que baseou a sua queixa na alegação de ser o dono do prédio, pelo que, na sua ótica, devem ser absolvidos.    
Porém, também aqui não lhes assiste qualquer razão.
Com efeito o tipo de crime de falsas declarações que temos vindo a analisar e pelo qual foram os arguidos condenados não exige a verificação de qualquer prejuízo para terceiro (no que ora importa, para o dono do imóvel) ou sequer da simples intenção de lho causar.
Na verdade, trata-se de um crime de “perigo abstrato, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido” e de “mera atividade quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação”[8], pelo que o comportamento punível dá-se logo na efetivação da conduta proibida, ou seja, na prestação de declaração/atestação falsa, não exigindo o tipo legal em apreço a produção de qualquer resultado decorrente dessa conduta, designadamente do invocado prejuízo do denunciante.
Como pertinentemente assinala a Ex.ma Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer, o que está aqui “em causa [é] a tutela da integridade da função administrativa nas suas diversas manifestações e da capacidade funcional da administração, exercida em conformidade com as exigências de legalidade e objectividade que num Estado de Direito devem presidir às funções públicas.”.
Repare-se que o normativo em causa - artigo 348.º-A do Código Penal - encontra-se inserido no TÍTULO V destinado aos crimes contra o Estado, CAPÍTULO II reportado aos crimes contra a autoridade pública, SECÇÃO I denominada Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública, não se descortinando, portando, qualquer abertura para a tese defendida pelos arguidos/recorrentes sustentada na necessidade de se provar a existência de prejuízo para o denunciante que se anunciou, na queixa apresentada, como dono do referido imóvel objeto da escritura de justificação em apreço.
Também não assiste qualquer razão aos arguidos/recorrentes quando à suscitada questão de um notário não ser autoridade pública nem funcionário à luz do Estatuto do Notariado.
Para tanto, basta atentar-se no artigo 1.º, n.º 1, do DL n.º 207/95, de 14 de agosto [CÓDIGO DO NOTARIADO] que prevê que “1 - A função notarial destina-se a dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais.” e no artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 155/2015, de 15 de setembro [ESTATUTO DA ORDEM DOS NOTÁRIOS] que prevê que “1 - O notário é o jurista a cujos documentos escritos, elaborados no exercício da sua função, é conferida fé pública.
2 - O notário é, simultaneamente, um oficial público que confere autenticidade aos documentos e assegura o seu arquivamento e um profissional liberal que atua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados.”, para se concluir pela falta de razão dos arguidos/recorrentes, pois nem a própria letra da lei consente a interpretação por estes defendida.

Veja-se que, in casu, foi precisamente na veste de oficial público que o Sr. Dr. HH interveio na elaboração da escritura de justificação na qual os arguidos intervieram, e “enquanto oficial público, o notário é o depositário da fé pública, imprimindo autenticidade aos actos jurídicos em que intervém, o que se projecta depois ao nível da força probatória dos documentos que corporizam esses actos (força probatória plena)”[9],sendo, portanto, inquestionável que atuou precisamente nessa qualidade de «autoridade pública».
Mas caso assim não se entendesse, sempre restaria a sua integração na veste de «funcionário», que, no caso, atuou no exercício das suas funções.
Veja-se que, hoje, essa realidade nem sequer pode ser questionada, atento o disposto na alínea f), do n.º 1, do artigo 386.º do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, da qual decorre que “para efeito da lei penal, a expressão funcionário abrange (…) o notário”.
Não esquecemos que na data da prática dos factos tal normativo legal ainda não existia, porém, como bem o salienta a Ex.ma Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer, tal introdução no Código Penal viria (…) a pôr fim a qualquer dúvida ou especulação que a esse propósito se pudesse suscitar quanto à intervenção desse profissional nos diversificados actos em que, actualmente, intervém.” [sublinhado nosso]. O mesmo será dizer que a apontada alínea não introduziu qualquer elemento novo ao tipo de crime de falsas declarações previsto e punido pelo artigo 348.º-A do Código Penal, tendo apenas sedimentando o entendimento que nesse sentido já vinha a ser defendido, quer na doutrina, quer na jurisprudência.
Não se diga, também, que a atuação dos arguidos/recorrentes não merece censura criminal, porque advém de uma prática corrente, sedimentada ao longo dos anos não tendo a alteração legislativa sido devidamente divulgada; ou que as advertências que lhes foram efetuadas nos termos do artigo 97.º do Código do Notariado levariam a que qualquer cidadão ficasse ciente de que não cometia o crime de falsas declarações se faltasse à verdade estando convicto de que com essa conduta não prejudicava ninguém, pois os arguidos/recorrentes bem sabem que tinham o dever de verdade nas declarações que prestavam/atestavam na referida escritura de justificação notarial, dever esse que, aliás, é notoriamente conhecido por qualquer cidadão.
Aliás, a procedência da alegação recursiva dos arguidos/recorrentes quanto a esta particular questão, que se prende com a existência do elemento subjetivo do tipo de crime em apreço, dependia da prévia alteração da matéria de facto, nomeadamente dos factos provados vertidos em 7. e 8., e, esta mantem-se intocada, tanto mais que os arguidos/recorrentes não a impugnaram, não se podendo, também, esquecer que a aplicação do direito, e inerentes questões que possa suscitar, reporta-se apenas aos factos declarados provados, conforme decorre do artigo 368.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
Aqui chegados, só nos resta concluir que tendo os arguidos/recorrentes, na escritura de justificação notarial em apreço, declarado/atestado falsamente a qualidade de possuidores de um prédio rústico, há mais de 20 anos, por parte dos arguidos outorgantes, com vista a que estes pudessem obter o registo de propriedade desse bem, procederam a uma declaração/atestação falsa de uma qualidade a que lei atribui efeitos jurídicos, para efeito de integração da conduta no crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A do Código Penal, declaração essa que foi prestada ao Sr. Notário que presidiu ao ato e atinge a autoridade pública na sua autonomia intencional que é imprescindível para a realização de um Estado de Direito, de modo a justificar a sua punição.
Recorde-se que foi para colmatar lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública, designadamente da resultante da declaração de inconstitucionalidade material do artigo 97.º do Código do Notariado, proclamada pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 379/2012, que o atual artigo 348.º-A do Código Penal foi introduzido.
Assim sendo, por tudo quanto se referiu supra, tal como se concluiu no aresto do Tribunal da Relação de Lisboa que temos vindo a citar, sufragados o entendimento ali plasmado, ou seja, o de que “as declarações falsas prestadas pelo outorgante numa escritura de justificação notarial, das quais resultem efeitos jurídicos, designadamente os de, através delas, se obter o direito de propriedade de um prédio por usucapião, integram hoje o crime de falsas declarações previsto no artigo 348.º-A do Código Penal, ainda que as declarações se reportem a factos que não foram vividos pelo declarante.”.

Face ao exposto e tendo em conta os factos provados nos autos, entendemos que a qualidade de possuidores do prédio pelos arguidos/outorgantes, nos termos por estes falsamente declarados e atestados pelos demais arguidos, perante o Sr. Notário, na referida escritura de justificação notarial, preenchem o elemento constitutivo objetivo do crime de falsas declarações do artigo 348.º-A do Código Penal, por constituírem uma declaração da qualidade dos arguidos outorgantes a que a lei atribui efeitos jurídicos, designadamente a de poderem justificar a propriedade do prédio em causa por usucapião, e que, em conformidade com aquela que foi a intenção do legislador quando introduziu a punição das falsas declarações perante a autoridade pública, ofendem a autonomia intencional do Estado.
Além disso, ficou provada a atuação dolosa dos arguidos/recorrentes, bem como a consciência por parte destes de que tal conduta era legalmente proibida e punida, encontrando-se, portanto, também perfetibilizado o elemento subjetivo do mencionado crime.
Assim sendo, só nos resta concluir que a conduta dos arguidos/recorrentes integra todos os elementos [objetivo e subjetivo] do tipo de crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A do Código Penal, pelo qual foram condenados pelo tribunal a quo, inexistindo a apontada violação do mencionado preceito legal. Consequentemente, a decisão recorrida manter-se-á intocada.

Improcede, portanto, o presente recurso.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelos arguidos e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelos arguidos/recorrentes, fixando a taxa de justiça em 4 UCS [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique.
Guimarães, 23 de abril de 2024
[Elaborado pela relatora e revisto pelos signatários - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

Os Juízes Desembargadores
Isilda Maria Correia de Pinho [Relatora]
António Bráulio Alves Martins [1.º Adjunto]
Anabela Varizo Martins [2.ª Adjunta]



[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
[3] Publicado na Revista do Ministério Público, nº134, págs. 79-116 e acessível na anotação ao artigo 348.º-A em https://www.pgdlisboa.pt.
[4] Breve Comentário ao “Novo” Crime de Falsas Declarações”, Dissertação de Mestrado em Ciência Jurídico- Criminais, Universidade de Coimbra, acessível em https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/43317?locale=en
[5] Como também se considera num estudo de António Latas “As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei 19/2013 de 21 de fevereiro”, publicado na Revista do CEJ nº 1, 2004, pág.s 55-103.
[6] In Comentário do Código Penal, 3ª edição atualizada, pág. 1216.
[7] In Código Penal – Parte Geral e Especial, pág. 1358.
[8] Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 3ª versão atualizada, p. 1215.
[9] In Direito do Notariado em Tratado de Direito Administrativo Especial, coord. de Paulo Otero e Pedro Gonçalves, vol. II, Almedina, 2009, pág. 136.