Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | SANDRA MELO | ||
Descritores: | ARRESTO JUSTO RECEIO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 01/23/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 3.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | 1. O justo receio de perda da garantia patrimonial verifica-se sempre que o requerido adote, ou tenha o propósito de adotar, conduta (indiciada por factos concretos) relativamente ao seu património que coloque, objetivamente, o titular do crédito com receio de ver frustrado o respetivo pagamento ou quando a situação económica do responsável pelo cumprimento se está a depauperar de tal forma que o Requerente vê diminuir o património que garantia o seu crédito. 2. Assim, não basta a existência de um crédito que o Requerido não satisfaça para se decretar o arresto: é necessário que resulte das circunstâncias que sem o arresto o credor corre o risco de ver diminuída ou perder a possibilidade de satisfazer o seu crédito. | ||
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Decisão Texto Integral: | I- Relatório Nos presentes autos de procedimento cautelar especificado de arresto a Requerente pediu que fosse decretado o arresto de todos os saldos bancários das contas da titularidade das Requeridas, dos bens móveis sujeitos a registo, de todos os bens móveis que se encontrarem no stand automóvel e na sede das Requeridas e que fosse aplicada sanção pecuniária compulsória no valor mínimo de €100,00 dia. Alegou, em síntese, que estabeleceu uma relação comercial, de compra, pela Requerente e venda a esta, pelas Requeridas, de bens automóveis importados, ficando as Requeridas responsáveis pelo processo burocrático, mas nos últimos três meses as Requeridas deixaram de cumprir os prazos de entrega dos veículos, estando a Requerente lesada no montante de € 335.850,00, correspondente ao preço de sete veículos pagos e entregues sem matrícula e sem legalização e dez veículos pagos e não entregues, estes últimos no montante de €212.350,00. As relações comerciais com as requeridas eram tidas por intermédio do seu gerente de facto. Produzida prova, proferiu-se decisão que julgou a providência cautelar de arresto improcedente e absolveu as requeridas do pedido. O presente recurso de apelação foi interposto pelo Requerente, pugnando para que seja revogado o despacho que rejeitou a providencia cautelar, com as seguintes conclusões: (…) II- Objeto do recurso O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil). Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma. Da mesma forma, não está o tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, desde que prejudicadas pela solução dada ao litígio. Face ao alegado nas conclusões das alegações, é a seguinte a questão que cumpre apreciar: -- se deve ser alterada a matéria de facto no sentido pugnado pelo Recorrente, verificando do cumprimento dos requisitos necessários para a impugnação da matéria de facto para e se cumpridos, se foi feita correta avaliação da prova; - se se verificam preenchidos os requisitos necessários para o decretamento do peticionado arresto. Fundamentação de Facto Segue o elenco da matéria de facto provada e não provada a considerar, indicando-se os factos selecionados na sentença (os quais, mantendo-se, são reproduzidos sem qualquer menção adicional): a) A Requerente, no exercício da sua atividade comercial de venda de automóveis, estabeleceu com as Requeridas, através de pessoa que se apresentou como representante, AA, desde novembro do ano de 2023, uma relação comercial. b) A pedido da Requerente, o referido AA deslocava-se aos países de origem e trazia veículos para Portugal, legalizando-os através das Requeridas e, de seguida, emitia faturas e/ou faturas proforma dos veículos à requerente. c) Existem no stand da requerente seis viaturas, sem matrícula e desacompanhados de documentação, que a Requerente liquidou, nos seguintes termos: - ... ...: Fatura-Recibo n.º ...6, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda., a EMP02... Unipessoal, Lda., no valor de €9.500,00 (nove mil e quinhentos euros), sem IVA, pago a 24.04.2024; - ...: Fatura Pró-Forma n.º ...2, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda. a EMP02..., Lda., no valor de €21.000,00 (vinte e um mil euros) sem IVA, pago a ../../2024; - ...: Fatura Pró-Forma n.º ...3, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda. a EMP02..., Lda., no valor de €19.000,00 (dezanove mil euros) sem IVA, pago a ../../2024; - ... 4x4: Fatura Pró-Forma n.º ...5, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda., a EMP02..., Lda., no valor de €24.000,00 (vinte e quatro mil euros) sem IVA, pago a 27.06.2024; - ... 300d ...: Fatura Pró-Forma n.º ..., emitida em ../../2024 por EMP03..., Lda. a EMP02..., Lda., no valor de €58.000,00 (cinquenta e oito mil euros) sem IVA, tendo sido pago a 02.09.2024 o montante de €50.000,00 (cinquenta mil euros). d) Está ainda imobilizado no stand da requerente um ... com matrícula nacional já atribuída, ..-..-MC, que está a aguardar que seja entregue o pedido de certidão de caraterísticas do veículo ...) para que seja possível proceder à alteração do nome, bem como, a aguardar do envio da respetiva fatura, para proceder ao pagamento, tendo sido emitida uma Fatura Pró-Forma n.º ...3, emitida em ../../2024 por EMP03..., Lda. a EMP02..., Lda., no valor de € 115.000,00 (cento e quinze mil euros) sem IVA. e) Foram ainda emitidas as seguintes faturas Pró-forma das seguintes viaturas: - ... 300de ...: Fatura Pró-Forma n.º ...2, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda. a EMP02..., Lda., no valor de €36.900,00 (trinta e seis mil e novecentos euros) sem IVA, paga a ../../2024; - ... 1.6 HDI FEEL – ...: Fatura Pró-Forma n.º ...4, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda. a EMP02..., Lda., no valor de €11.000,00 (onze mil euros) sem IVA, e paga a 12.03.2024; - ... 2008 1.5 Hdi Allure: Fatura Pró-Forma n.º ...9, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda. a EMP02..., Lda., no valor de €11.750,00 (onze mil, setecentos e cinquenta euros) sem IVA, e paga a 11.04.2024; - ... 20: Fatura Pró-Forma n.º ...6, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda a EMP04..., Lda., no valor de €30.300,00 (trinta mil e trezentos euros) sem IVA, paga a 14.05.2024; - ... 5008 1.5 .... Aut. 96 KW 130 7 ...: Fatura Pró-Forma n.º ...8, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda. a EMP02..., Lda., no valor de €19.400,00 (dezanove mil e quatrocentos euros) sem IVA, e paga a 27.05.2024 no valor de €16.000,00 (dezasseis mil euros); - ... 3008 1.2 PureTech Allure Aut: Fatura Pró-Forma n.º ...0, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda. a EMP02..., Lda., no valor de €17.500,00 (dezassete mil e quinhentos euros) sem IVA, e paga a 15.07.2024; - ...: Fatura Pró-Forma n.º ...9, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda. a EMP02..., Lda., no valor de €23.000,00 (vinte e três mil euros) sem IVA, e comprovativo de pagamento datado de 11.07.2024, no valor de €21.000,00 (vinte e um mil euros); - ...: Fatura Pró-Forma n.º ...8, emitida em ../../2024 por EMP01..., Lda. a EMP02..., Lda., no valor de €13.450,00 (treze mil, quatrocentos e cinquenta euros) sem IVA, e comprovativo de pagamento datado de 11.07.2024, no valor de €12.000,00 (doze mil euros); - ...: Fatura Pró-Forma n.º ..., emitida em ../../2024 por EMP03..., Lda. a EMP02..., Lda. no valor de €18.200,00 (dezoito mil e duzentos euros) sem IVA, e paga a 31.07.2024; - ... 300e ...: Fatura Pró-Forma n.º ...2, emitida em ../../2024 por EMP03..., Lda. a EMP02..., Lda. no valor de €38.000,00 (trinta e oito mil euros) sem IVA, paga a 13.09.2024. f) A Requerente está impedida de vender estas viaturas. g) Em julho de 2024 a EMP01... comunicou, via correio eletrónico um ponto de situação quanto às viaturas, tendo comunicado o seguinte: “Aguardam Homologaçäo Model X IOOD Dual Motor EAP Luft premium Int 20" - ...22 5008 1.5 .... Aut. 96 kW 130 7 ... - ... ... Extrakabine 4x4 XLT - ... ... Pick up -... ... 2.0 TDCI 4x4 6FPPYO<... ... DOPPLEKABINE RAPTOR 2.0 - ... ... 300 de 4M coupe ... - ... Aguarda Transporte ... Model S 750 75 kWh - ... - ...99 ForFour EQ ...08 3008 1.2 PureTech Allure Aut - ... Aguardam COC as seguintes Viaturas pace St 1.0 Cool+ ... Up 1.0 ...” h) A relação comercial foi mantida, pelo menos até outubro de 2024, altura em que, por razões não concretamente determinadas, houve um corte de relações entre os representantes das partes. i) O legal representante da Requerente chegou a deslocar-se a ..., mas não encontrou o referido AA, tendo depois interpelado a 1 de novembro de 2024 para em 10 dias entregar as viaturas e/ou matrículas em falta. j) A instituição financeira Banco 1... deixou de ter relações comerciais com a EMP03..., em altura indeterminada. Não ficou provado que (numeração ora aditada): 1. as relações existentes entre a Requerente e as Requeridas fosse de compra e venda; 2. que estas tivessem de definido um prazo de 10 dias para a entrega dos veículos e legalização; 3. que durante os últimos quatro meses tenha havido falha nesse prazo; 4. que a Requerida vendeu um veículo que tinha sido adquirido pela Requerente; 5. que o AA já manifestou a terceiros intenção de encerrar as sociedades Rés, que operam através de testas-de-ferro, viajando em definitivo sem regresso para o ..., onde viaja com frequência; 6. que o AA, em representação das Sociedades Rés, tem incumprido os contratos de fornecimento de viaturas e que manifesta a intenção de não cumprir com a Requerente. Fundamentação .A- Da impugnação da matéria de facto .a1) Dos ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil. Nos termos do artigo 640º do Código de Processo Civil existem requisitos específicos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto com base em diversa valoração da prova, os quais, se não observados, conduzem à sua rejeição. Assim, impõe esta norma ao recorrente o ónus de: a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham diferente decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. (sendo a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, a que se refere o nº 2, alínea a), deste artigo, considerado um ónus secundário, por instrumental, não obstante a expressa letra da norma). c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. É patente, numa primeira linha, que no novo regime foi rejeitada a admissibilidade de recursos que se insurgem em abstrato contra a decisão da matéria de facto: o Recorrente tem que especificar os exatos pontos que foram, no seu entender, erroneamente decididos e indicar também com precisão o que entende que se dê como provado. Pretende-se, com a imposição destas indicações precisas ao recorrente, impedir “recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, restringindo-se a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.” cfr Recursos no Novo Código de Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, 2017, p.153. Por estes motivos, o recorrente, tem também que especificar os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos. Quanto a cada um dos factos que pretende que obtenha diferente decisão da tomada na sentença, tem o recorrente que, com detalhe, indicar os meios de prova deficientemente valorados, criticar os mesmos e, também discriminadamente e explicadamente, concluir pela resposta que deveria ter sido dada. Relativamente ao ónus de especificar os concretos meios probatórios, particulariza o nº 2 deste preceito: “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”. O que se pretende, com a exigência ao recorrente de assinalar "com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso", é onerá-lo com o esforço de se assegurar que existem, na prova gravada em que se pretende fundar, declarações que efetivamente justificam a sua discordância. Da mesma forma, permite-se ao tribunal que verifique diretamente, pelo acesso aos elementos objetivos do processo, apontadas pelo recorrente de forma definida e concretizada, da existência de alguns indícios nesse sentido, a exigir posterior análise. É comum verificar-se que há a tendência, nas alegações, no discorrer da pena, de misturar a impugnação do facto e do direito, trazendo opiniões sobre o que foi dado como provado, afirmando ter opinião diversa, mas conformando-se ainda assim com tal parte da decisão tomada. Desta forma, impõe-se que nas conclusões o Recorrente indique concretamente quais os pontos da matéria de facto que impugna, de forma a poder-se, com clareza, separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da reivindicação fundamentada quanto à alteração da matéria de facto. Tem sido também opinião praticamente pacífica, e que se perfilha, que no âmbito da impugnação da matéria de facto não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento da alegação, ao contrário do que se verifica quanto às alegações de direito. A tal convite se opõe, por um lado, a intenção da lei em não permitir impugnações vagas, sem bases consistentes, genéricas e injustificadas da decisão da matéria de facto, sendo aqui mais exigente no princípio da autorresponsabilização das partes. Veja-se que essa maior responsabilização é premiada com um alargamento do prazo processual para a apresentação das alegações quando ao recurso se funda também na impugnação da matéria de facto. Por outro lado, a leitura das normas que regem esta matéria não permite outro entendimento, como resulta da análise do teor taxativo do artigo 640º e da previsão dos casos que justificam o convite constante do artigo 639º do Código de Processo Civil. Cumpre ainda salientar que a apreciação das questões pelo Tribunal da Relação deverá versar sobre as questões levantadas pelo Recorrente, sendo, por isso, do interesse deste o cumprimento com rigor dos ónus expressos no normativo que se discute, por conduzir a um maior aprofundamento da análise que pretende que seja efetuada num sentido divergente ao obtido na sentença, o que será potenciado com a especificação dos factos e a mais aprofundada concatenação de cada facto com a prova produzida, criticando o raciocínio efetuado na sentença. Com efeito, a maior parte das vezes, haverá alguma proporção entre a profundidade com que a parte apresenta as suas questões sobre a fixação da matéria de facto pelo tribunal recorrido e o calibre e a densidade que toma a apreciação das questões suscitadas. Em 17 de outubro de 2023 prolatado o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, n.º 12/2023, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, páginas 44 – 65, com a seguinte síntese : “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”, procurando “a interpretação que se configure mais adequada no atendimento do estado atual do nosso ordenamento jurídico”, “num crescendo da preocupação da verdade material em detrimento da observação de formalidades, de menor relevância, ainda que algumas tenham resultado das inovações técnicas ocorridas, sem contudo deixar de manter a exigência, no que à impugnação da decisão da matéria respeita do cumprimento dos ónus enunciados”. Ali se é perentório a afirmar que: “Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso. [salientando embora que a mesma não precisa de ser indicada pela respetiva numeração.] Quando aos dois outros itens (leia-se alíneas b) e c) do nº do artigo 640º do Código de Processo Civil), caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso”. Assim, na posição deste acórdão uniformizador tais ónus têm que ser cumpridos pelo menos nas alegações, mas podem não ser vertidos para as conclusões, com exceção da identificação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, que ali devem têm necessariamente de constar, sob pena de rejeição do recurso nessa parte. Entende-se que as razões que legitimariam posição diferente, aliás retratadas nos votos de vencido, não justificam postergar os interesses na segurança e certeza do direito trazida pelos Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência. Desta forma vejamos, à luz da tese vertida no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência supra mencionado, se estes ónus não foram cumpridos. Assim, há que verificar, para admitir o recurso quanto à impugnação da matéria de facto se: --constam das conclusões a indicação dos concretos pontos que o Recorrente considera incorretamente julgados? --constam das alegações os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida? --vem especificada nas alegações, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas? Embora as alegações e conclusão de recurso sofram de alguma falta de precisão e concatenação dos meios de prova em que se funda, pode ainda responder-se às questões suscitadas, pelo que se entende que é de admitir a impugnação da matéria de facto. .a2)- Dos critérios para a apreciação da impugnação da matéria de facto Na reapreciação dos meios de prova deve-se assegurar o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância -, efetuando-se uma análise crítica das provas produzidas. É á luz desta ideia que deve ser lido o disposto no artigo 662º nº 1 do Código de Processo Civil, o qual exige que a Relação faça nova apreciação da matéria de facto impugnada. Como explanado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2012 no processo 649/04.2TBPDL.L1.S1, (sendo este e todos os acórdãos citados sem menção de fonte consultados no portal www.dgsi.pt) “A reapreciação das provas que a lei impõe ao Tribunal da Relação no art. 712.º, n.º 2, do CPC, quando haja impugnação da matéria de facto que haja sido registada, implica que o tribunal de recurso, ponderando as razões de facto expostas pelos recorrentes em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, forme a sua prudente convicção que pode coincidir ou não com a convicção do tribunal recorrido (art. 655.º, n.º 1, do CPC). A reapreciação da prova não se reduz a um controlo formal sobre a forma como o Tribunal de 1.ª instância justificou a sua convicção sobre as provas que livremente apreciou, evidenciada pelos termos em que está elaborada a motivação das respostas sobre a matéria de facto.” Assim, visto que vigora também neste tribunal o princípio da livre apreciação da prova, há que mencionar que esta não se confunde com a íntima convicção do julgador. A mesma impõe uma análise racional e fundamentada dos elementos probatórios produzidos, estribando-se em critérios de razoabilidade e sensatez, recorrendo às regras da experiência e aos parâmetros do homem médio. A formação da convicção não se funda na certeza absoluta quanto à ocorrência ou não ocorrência de um facto, em regra impossível de alcançar, por ser sempre possível equacionar acontecimento, mesmo que muito improvável, que ponha em causa tal asserção, havendo sempre a possibilidade de duvidar de qualquer facto. É obvio que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”, como explica Vaz Serra in Provas – Direito Probatório Material”, in BMJ 110/82 e 171. “Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz – meio da apreensão e não critério da apreensão – a ideia de que mais do que ser possível (pois não é por haver a possibilidade de um facto ter ocorrido que se segue que ele ocorreu necessariamente) e verosímil (porque podem sempre ocorrer factos inverosímeis), o facto possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.” cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2014 no processo 1040/12.2TBLSD-C.P1. A convicção do julgador é obtida em concreto, face a toda a prova produzida, com recurso ao bom senso, às regras da experiência, quer da vida real, quer da vida judiciária, à diferente credibilidade de cada elemento de prova, à procura das razões que conduziram à omissão de apresentação de determinados elementos que a parte poderia apresentar com facilidade, a dificuldade na apreciação da prova por declarações e a fragilidade deste meio de prova. Igualmente importa a “acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.” (mesmo Acórdão). .a3) concretização O Recorrente pretende que se altere o vertido nas alíneas a) e b) da matéria de facto provada, afirmando que não vem indiciado que as Requeridas serviriam de intermediárias da Requerente para a importação, tratando do transporte e burocracias, mas sim que a Requerente comprava veículos automóveis às Requeridas, por o preço ser entregue às Requeridas. Assim, onde se lê: “a) A Requerente, no exercício da sua atividade comercial de venda de automóveis, estabeleceu com as Requeridas, através de pessoa que se apresentou como representante, AA, desde novembro do ano de 2023, uma relação comercial”, pretende que se leia “A Requerente, no exercício da sua atividade comercial de venda de automóveis, celebrou com as Requeridas, através de pessoa que se apresentou como representante, AA, desde novembro do ano de 2023, vários contratos de compra e venda de veículos automóveis.” Pretende, também, que onde se lê, na alínea b) “A pedido da Requerente, o referido AA deslocava-se aos países de origem e trazia veículos para Portugal, legalizando-os através das Requeridas e, de seguida, emitia faturas e/ou faturas proforma dos veículos à requerente.” se leia “as Requeridas importavam e vendiam veículos, assumindo perante o comprador a obrigação de os entregar e legalizar para que a Requerente pudesse prosseguir o seu objeto social.” Funda-se para tanto na existência de faturas-recibos ou faturas pró-forma acompanhadas de transferências bancárias para as Requeridas e no facto c) dado como provado. No entanto, como se vê do teor da alínea d) a mera existência de uma fatura pro forma, não titulava necessariamente a celebração de um contrato de compra e venda entre as partes, o que é reforçado por das mesmas não haver qualquer menção ao IVA. Por outro lado, das mensagens trocadas entre os gerentes destas sociedades resulta uma relação de cooperação na escolha e na angariação e tratamento dos veículos que eram trazidos para Portugal. De toda a prova produzida não resulta que as relações comerciais havidas se resumissem à simples compra de veículos pela Requerente às Requeridas, como decorre desde logo indiciado pelo facto de apenas se estar perante faturas pro forma, sem sequer conterem menção ao IVA e é reforçado pelas conversas entre os gerentes, que combinam estratégias para o desenrolar do processo de aquisição e démarches para revenda dos veículos. Assim, não se podem considerar as entregas monetárias às Requeridas como simples contrapartida pela direito de propriedade das mesmas, como um preço pelos veículos, visto que nem estas se poderiam considerar propriedade daquelas, nem essa transação vem expressa em lado algum. O depoimento de BB dando conta de transportes de viaturas para o stand da Requerente a pedido de quem geria as Requeridas não comprova os negócios que estavam por detrás desses transportes. Por outro lado, o próprio facto do pagamento do registo do veículo que teria sido vendido a terceiro sem a intervenção da Recorrente (o “C3”) ter sido efetuado com o nome desta inculca essa especial relação de cooperação entre as sociedades e não a simples existência de singelos e repetidos contratos de compra e venda, pondo em causa a ideia que a Requerente não teve qualquer intervenção nessa transmissão. O tipo de relações existentes entre as partes como decorre das mensagens juntas, não permite que se entenda que a simples existência de uma fatura proforma é suficiente para se poder dar como assente a compra do veículo pela Requerente à Requerida; da mesma forma dela não decorre que o veículo foi vendido a um terceiro contra a vontade da Requerente, tanto mais que no processamento dessa venda foram utilizados elementos seus de identificação. Não se pode, pois, dar como provado que a Requerida vendeu a terceiro veículo que havia sido adquirido pela Requerente. Da prova testemunhal ouvida – e ouvimo-la na íntegra – não resulta que o Requerido esteja em vias de voltar para o ...: nenhuma testemunha o afirmou com alguma convicção. Assim, não pode dar-se como provada essa intenção. Referem que este viaja muito e também para o ..., que tem lá relações, mas não que estão convictos que este pretenda mudar-se para lá definitivamente num período relativamente próximo. A testemunha CC referiu que o acordo com a Requerida EMP03... para que esta interviesse na intermediação financeira foi cancelada, porque este não cumpria o rigor e as exigências formais exigidas por essa atividade financeira; não se reporta a nenhum problema no fornecimento de veículos. Também DD referiu confusões na documentação, mas não que ocorreram incumprimentos. Não pode, pois, com segurança, dar-se como provados “incumprimentos” nos contratos de fornecimentos de veículos. De toda a prova produzida resulta que em outubro de 2024 o gerente da Requerente entendeu que não estava a conseguir contatar com a mesma facilidade o gerente de facto da Requerida, nomeadamente quando se deslocou ao stand deste, entendendo que há atrasos no cumprimento do que ficou acordado, mas não mais do que isso. Desta forma, não se pode considerar que resulte indiciado que as relações existentes entre a Requerente e as Requeridas fossem de compra e venda e muito menos que houvesse sido definido um prazo de 10 dias para a entrega dos veículos e legalização e logo que houvessem falhas nesse prazo; da mesma forma, não se pode ter como indiciado que a Requerida vendeu um veículo que tinha sido adquirido pela Requerente, nem que o AA já manifestou a terceiros intenção de encerrar as sociedades Rés e pretenda viajar sem regresso para o ..., ou que este tem incumprido os contratos de fornecimento de viaturas e que manifesta a intenção de não cumprir com a Requerente. Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto. B. – Da aplicação do Direito O pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos, nos termos em que foi apresentada pela Recorrente, que definiu as questões de facto e de direito a apreciar, depende essencialmente da alteração da matéria de facto no sentido por si proposto, consubstanciada, em síntese, na prova da existência de contratos de compra e venda de veículos automóveis celebrados entre a Requerente e as Requeridas, que estas não só incumpriram, mas também pretendem não cumprir, preparando-se o seu gerente de facto para fugir para o .... Ora, nada disto se provou. No entanto, das alegações e conclusões parece também resultar que a Recorrente também não se conforma com a aplicação do Direito aos factos apurados, pelo que importa fazer a sua verificação. a) Pressupostos do arresto Determina o artigo 391º n.º 1 do Código de Processo Civil que o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor. Por sua vez, por força do disposto no artigo 392º do Código de Processo Civil, o requerente do arresto tem de deduzir os factos que tornam provável a existência do crédito e ainda os que justificam o receio invocado. Assim, o procedimento cautelar de arresto depende da verificação cumulativa de dois requisitos: probabilidade da existência do crédito e justo receio da perda da garantia patrimonial, (podendo, até, ser deduzido contra o adquirente do bem do devedor). A probabilidade da existência do crédito verifica-se quando se aleguem factos que, comprovados, apontem para a aparência da existência desse direito. O justo receio de perda da garantia patrimonial verifica-se sempre que o requerido adote, ou tenha o propósito de adotar, conduta (indiciada por factos concretos) relativamente ao seu património que coloque, objetivamente, o titular do crédito a recear ver frustrado o pagamento do mesmo ou quando a situação económica deste se está a depauperar de tal forma que o Requerente vê diminuir o património que garantia o seu crédito. Verifica-se ainda perante situação de facto de onde resulte a facilidade de desaparecimento dos bens que garantiam um crédito, mesmo que originada num facto que não tenha sido criado pelo devedor, com dolo. Com efeito, o arresto não é uma sanção a um comportamento do devedor, mas a forma de permitir a um credor assegurar a satisfação de um crédito sobre aquele, sempre tendo em conta que apenas se pode recorrer aos procedimentos cautelares se a regulação dos interesses não puder aguardar pela decisão definitiva. Tal como refere A. Geraldes, "A principal função da tutela cautelar consiste, pois, em neutralizar os prejuízos a suportar pelo interessado que tem razão, derivados da duração do processo declarativo ou executivo e que não sejam absorvidos por outros institutos de direito substantivo ou processual com semelhante finalidade" - "Temas da Reforma do P.C.", Vol. III, p. 41. Isto posto, analisemos se logrou o requerente demonstrar todos os pressupostos para a procedência do procedimento de arresto. concretização Quanto à existência de um crédito, é claro que não se provaram os contratos de compra e venda, mas apenas um corte nas relações comerciais – de natureza indeterminada – verificada entre as partes. A simples existência de transferências monetárias e a entrega de veículos a aguardar regularização documental por si só não nos permite concluir pela existência de um saldo a favor da Requerente no âmbito das relações comerciais existentes entre as partes, visto que as mesmas não se apuraram de forma concretizada. De qualquer forma, mesmo que se entenda que é ainda possível vislumbrar a existência de algum crédito, ainda que ilíquido, por se terem demonstrado transferências a favor das requeridas sem ter sido ainda recebida uma contrapartida (o que se não tem por certo), é-nos claro que, com a matéria de facto assente que não se encontra o justo receio da perda da garantia patrimonial. -- do justo receio da perda da garantia patrimonial Para apurar da verificação deste há que atentar, com base em factos concretos, se o requerido adotou ou pretende adotar comportamentos (com reflexos patrimoniais) e que objetivamente nos façam prever que pode vir a ocorrer a frustração de pagamento do crédito que a providência pretende garantir ou agravar risco da sua falta de satisfação. Mesmo que assim se não verifique, importa também verificar se há indícios claros que a situação económica do requerido se está a depauperar de tal forma que o Requerente vê diminuir o património que garantia o seu crédito. “O justo receio da perda da garantia patrimonial tanto pode resultar de haver indicação de o devedor estar em risco de se tornar insolvente, como de estar a ocultar o seu património ou de tentar alienar bens de modo que se torne consideravelmente difícil ao credor promover a cobrança coactiva do seu crédito, como do facto de aquele se furtar ao contacto com o credor ou, de qualquer modo, denotar pretender eximir-se ao cumprimento da obrigação.” cf Acórdão RL de 16-10-2003 no processo 7016/2003-6, sendo este e todos os acórdãos citados sem menção de fonte consultados no portal www.dgsi.pt na data da prolação desta. Posição que foi confirmada pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 03/06/2018, no processo 1833/17.4T8FIG.C1. “No arresto, o factualismo apto a preencher a previsão legal do requisito “justo receio” da perda da garantia patrimonial, pode assumir uma larga diversidade, nele cabendo casos como os de receio de fuga do devedor, da sonegação ou ocultação de bens, da situação patrimonial deficitária do devedor, ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património, que, objectivamente, faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito”. Acrescenta-se tão só que não basta a simples insuficiência do património do devedor para a satisfação do crédito para se tornar justificado o arresto, importa também que se conheçam outros créditos ou outras situações que façam prever que com o decorrer do tempo vai diminuindo a possibilidade do credor ver satisfeito o seu direito, enfim, que o arresto é necessário para a salvaguarda desse crédito. Para obter esta conclusão há que recorrer a critérios racionais de um credor medianamente cauteloso e prudente. Que temos assente (ainda que indiciariamente) na matéria de facto provada relativamente à adequação deste receio? Apenas um corte nas relações entre os representantes das partes (alínea h) da matéria de facto provada) e que uma instituição financeira em data que se não conhece deixou de ter relações comerciais com uma das requeridas. Daqui não resulta qualquer perigo objetivo para a Requerente de não vir a conseguir recuperar o seu crédito. Como já supra se apontou, não foram invocados nenhuns factos concretos de onde resulte esse temor, de forma justificada e objetiva, considerando as circunstâncias concretas e a posição de um homem razoavelmente esclarecido. Mesmo que se entendesse que a mera privação da possibilidade da venda de um bem por eventual atraso na entrega de documentos que as Requeridas se obrigaram a entregar à Requerente, (obrigação que não resulta da matéria de facto provada, por não se ter provado o contrato e compra e venda, nem os contornos das relações comerciais ente as partes) é em regra uma lesão que com o simples decurso do tempo se vai agravando, certo é que o seu ressarcimento pode ser peticionado, nada levando a crer que não possa ser obtido e pode não se confundir com o valor das faturas emitidas. Assim, da matéria de facto provada não resulta nada clara a existência de um crédito, atual, da Requerente sobre as Requeridas, nem que sem o arresto a Requerida corre o risco de ver diminuída ou perder a possibilidade de satisfazer os seus (eventuais) créditos sobre as Requeridas. V- Decisão Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso e confirmar integralmente a sentença proferida. Custas pelo Recorrente (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil). Guimarães, 23-01-2025 Sandra Melo Conceição Sampaio Fernanda Proença Fernandes |