Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ISILDA PINHO | ||
Descritores: | CRIME DE DESOBEDIÊNCIA QUALIFICADA ILÍCITO CONTRAORDENACIONAL RECUSA DE IDENTIFICAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 12/19/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I. O artigo 49.º do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27/10 [ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL], confere às autoridades policiais o poder de exigir aos agentes das contraordenações a sua identificação. II. Esta exigência de identificação encontra-se diretamente ligada ao disposto no artigo 48.°, n.º1, do mesmo diploma legal, de cujo texto normativo decorre bastar que o evento ou circunstância seja suscetível de implicar responsabilidade contraordenacional e não que esta se encontre indubitavelmente comprovada no momento em que o agente da autoridade toma conta da ocorrência. III. Tais disposições legais, a par do n.º 2, do artigo 12.º da Lei n.º 53/2007, de 31 de agosto [LEI ORGÂNICA DA PSP], autorizam as autoridades policiais a exigir a identificação do agente de qualquer contraordenação em geral. IV. O direito de resistência, consagrado no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa, não implica, para a generalidade das pessoas, o direito de não acatar as determinações das autoridades públicas ou dos seus agentes, sob a invocação da sua ilegalidade, a não ser em circunstâncias excecionais. V. Será, assim, legítima a recusa do fornecimento de identificação, para o efeito da elaboração de auto de contraordenação, uma vez verificados cumulativamente dois requisitos: - a intervenção da autoridade administrativa ou policial seja manifestamente descabida e não apenas juridicamente discutível, como muitas vezes sucede; - o cumprimento da ordem provoque dano a direito ou interesse juridicamente protegido do visado, que não seja suscetível de ser revertido por uma ulterior decisão não sancionatória, no final do processo de contraordenação. VI. Não assistia, assim, ao arguido o direito de recusar o fornecimento da sua identificação ao agente da PSP, que lhe foi solicitada com vista à elaboração de auto contraordenação, mesmo entendendo não estar a praticar qualquer infracção dessa natureza. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I- RELATÓRIO I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 155/21.0PAVNF.G1, que corre termos pelo Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., em 01 de junho de 2023, foi proferida a seguinte decisão [transcrição]: “(…) Pelo exposto: 1. Condeno o arguido AA pela prática de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 348º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, conjugado com os arts. 12º, n.º 2, da Lei Orgânica da Polícia de Segurança Pública e o art. 5 da Lei da Segurança Interna, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,00 (cinco) euros, no montante global de 450,00 (quatrocentos e cinquenta) euros. (…)”. [sublinhado e negrito nossos]. I.2 Recurso da decisão Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]: “(…) A- Constando de forma expressa da motivação da resposta à matéria de facto os seguintes elementos: (…) a sentença não poderia ter dado como provado que: “..estar a controlar o trânsito e a dar ordem de paragem a veículos automóveis, sem que tivesse legitimidade e competência legal para o efeito...” Nem omitir da matéria e facto com relevo e dar como provados os seguintes factos: – Que a entidade a realizar a obra era a EMP01..., S.A., sendo esta entidade o suspeito e Arguido, tal como consta do auto de contra-ordenação levantado, e – Que a obra se encontrava sinalizada e com plano de sinalização aprovado pelo Dono da Obra, a entidade com competência municipal para o efeito; B- Da mesma forma, e considerando a fundamentação há insuficiência da matéria de facto fundar a condenação, dado que, não basta a mera verificação da emissão de ordem de identificação e a sua recusa, é ainda necessária a demonstração de que a ordem de identificação se conteve dentro dos limites da lei e foi proporcional e adequada como medida de polícia, o que não foi considerado ou apreciado em sede de matéria de facto, em especial, quando o suspeito ou putativo Arguido da prática da infracção nunca poderia ser a pessoa a quem foi pedida a identificação; C- Assim, e no que se reporta à matéria de facto, constata-se: A existência de contradição entre os factos relatados e a matéria de facto fixada no que se reporta à contra-ordenação (ainda que sob a forma de suspeita), e a existência em obra de sinalização; Em face dos factos relatados, insuficiência da matéria de facto apurada, não sendo compreensíveis as razões para a validação e desconsideração, e Omissão de apreciação de factos, em especial, no que se refere quer à existência de sinalização de acordo com o projecto em obra, quer à legitimidade da actuação da empresa em face do enquadramento por parte da ANSR, cujo parecer foi junto aos autos; Omissão da apreciação dos factos referentes à propriedade, por se considerar ainda que sob a forma de suspeita, como agente da contra-ordenação, o Arguido, e não a empresa. Assim, para além de não se poder dar como provado que o desvio de trânsito era efectuado sem legitimidade para o efeito, também não se podia ter dado como provado que o Arguido era o suspeito da prática da infracção. D- No actual quadro do Estado de Direito, vigente nos termos da CRP, nomeadamente da proibição do excesso, a ordem de identificação tem que se conformar com os pressupostos para a sua emissão, nomeadamente, em face da existência da necessidade, por estar em causa, ainda que sob a forma de suspeita a prática de contra-ordenação, e o identificado ser o suspeito, ou agente da prática da referida contra-ordenação; E- Não é legítima, antes sendo nula, a ordem de identificação dirigida a quem não pode revestir a qualidade de suspeito, e quando, não possa ser constatada ainda que sob a forma de suspeita a prática de uma contra-ordenação; F- O agente da autoridade que emite a ordem de identificação, como lhe é imposto por lei, tem que ter a capacidade para detectar e identificar a existência de conduta violadora da lei e cominada com uma contra-ordenação, sendo que, se a avaliação do agente assentar em erro ou falta de conhecimento da lei, a sua ordem não tem valor, sendo ilegítima, dado que, do conteúdo mínimo do exercício de funções por parte dos agentes da autoridade, faz parte o conhecimento e tipificação das condutas ilícitas; G- Não integra conduta contra-ordenacionalmente punível a regulação de trânsito por funcionários de uma empresa que se encontre a realizar uma obra estradal devidamente contratada e licenciada pela entidade pública competente, dentro do espaço intervencionado pela obra em causa; H- No quadro legal vigente, e na esteira do Parecer do Prof. Doutor Raúl Gonçalves Taborda, que se anexa às presentes alegações e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a recusa de identificação não se reconduz ao preenchimento do tipo legal do crime de desobediência; I- A sentença agora recorrida, viola o disposto no Art.º 272º da CRP, ao corroborar a proibição constitucional de violação dos princípios da tipicidade e proibição do excesso; Termos em que deve ao presente recurso ser concedido provimento, e em conformidade, deverá a final o Arguido ser absolvido (…)”. I.3 Resposta ao recurso Efetuada a legal notificação, a Ex.mª Sr.ª Procuradora da República junto da 1.ª instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]: “(…) 1) Da leitura da decisão recorrida, não se vislumbra que exista distorção na ordem dos factos provados e não provados ou qualquer apreciação ilógica, arbitrária insustentável e, como tal, incorrecta, antes se notando uma completa e coerente descrição da matéria de facto provada e não provada, cuja fundamentação consta depois em aturada referenciação das provas tidas em consideração e cuja análise crítica se mostra igualmente desenvolvida, denotando rigor e permitindo uma fácil e completa sindicância, não lhe sendo, por conseguinte, imputável os vícios alegados. 2) O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão, indicando expressamente os meios de prova produzidos em julgamento que formaram a convicção do Tribunal quanto aos factos que teve por provados e não provados e explicitou ainda os motivos e o processo lógico e racional que estiveram na sua base. 3) O Tribunal a quo realizou de forma plenamente satisfatória as exigências de objectividade, lógica e motivação que o princípio da livre apreciação postula, pelo que o concreto uso que fez do material probatório posto à sua disposição não é susceptível de censura. 4) In casu, entendemos que se encontram reunidos todos os requisitos que permitem afirmar a prática pelo arguido do crime que lhe foi imputado. 5) Por um lado, temos que existe uma norma que pune como desobediência qualificada a conduta em questão, pelo que nem seria necessária a respectiva cominação por parte do agente de autoridade. 6) Por outro lado, temos que a ordem emanada do agente da autoridade se afigura legitima, uma vez que atenta a regulamentação de trânsito que estava a ser levada a cabo no local dos factos, por quem não estava autorizado para o efeito, o agente da PSP, confrontado com tal, confrontou o funcionário que estava a levar a cabo tal operação tendo, nessa altura, comparecido no local, o arguido o qual se intitulou como responsável pela obra. 7) Perante a noticia da infração e mediante a pessoa responsável pela obra naquele momento, o agente da PSP informou que seria levantado o respectivo auto, tendo, assim, solicitado àquele a sua identificação, o que corresponde ao mais normal dos procedimentos. 8) Nessa altura, e por considerar que não estava a levar a cabo qualquer infração – o que, diga-se, não é esta a sede própria para se aferir da existência da mesma – optou, de forma livre, voluntária e consciente, por não cumprir a ordem que lhe estava a ser transmitida, apesar de saber que a mesma lhe estava a ser comunicada por um agente da autoridade com competência para tal. 9) Não colhe o entendimento de que se teria de lançar mão dos procedimentos de identificação identificados no artigo 250º, nº 6 do Código de Processo Penal, uma vez que os mesmos apenas respeitam a suspeitos da prática de infrações criminais e não contraordenacionais, com tem sido referido na doutrina e na jurisprudência, nos termos devidamente explanados pela Mma. Juiz “a quo” na decisão recorrida. (…)”. I.4 Parecer do Ministério Público Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, além de aderir à posição da Digna Magistrada do Ministério Público da primeira instância, ainda acrescentou outros argumentos no sentido da improcedência do recurso. I.5. Resposta Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer. I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal. Cumpre, agora, apreciar e decidir: II- FUNDAMENTAÇÃO II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso: Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2]. Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir reportam-se: - À impugnação da matéria de facto [vícios decisórios ínsitos no artigo 410.º do Código de Processo Penal]; - À contestada verificação do elemento objetivo do tipo de crime de desobediência qualificada, pelo qual o arguido foi condenado [legalidade da ordem emanada pelo agente da PSP BB]. II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]: “(…) II. Fundamentação. 1. De facto. 1.1. Factos provados. Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos: Da acusação 1. No dia 08 de Março de 2021, cerca das 14h48m, em frente à Escola ..., sita na Rua ..., em ..., o arguido, encarregado de obra da sociedade EMP01..., SA, deu instruções a um trabalhador da mesma empresa para proceder à regulação de trânsito, devido a obras que estavam aí a ser executadas pela mesma; 2. Quando estava assim a proceder à regulação do trânsito o referido trabalhador foi interpelado BB, que trajando à civil, se identificou com a carteira profissional, como Guarda da PSP e, por o mesmo (o referido trabalhador) estar a controlar o trânsito e a dar ordem de paragem a veículos automóveis, sem que tivesse legitimidade e competência legal para o efeito, para se identificar; 3. Perante tal abordagem, surgiu o arguido que se dirigiu ao Guarda da PSP; 4. BB identificando-se como agente de autoridade, com a carteira profissional, informou-o que a actividade de controle de trânsito e obras não sinalizadas que estavam a ser efectuadas não eram possíveis, e que, por isso, iria proceder ao levantamento do auto de contraordenação, solicitando-lhe a respectiva identificação pessoal; 5. Contudo, o arguido recusou-se identificar; 6. Foi então o arguido informado, pelo Guarda da PSP, que caso persistisse na sua recusa em identificar-se incorreria num crime de desobediência, mantendo o arguido a recusa em se identificar; 7. O arguido sabia que estava obrigado a identificar-se perante o Guarda da PSP e, não obstante, não quis acatar tal determinação, que lhe foi regularmente comunicada por agente de autoridade, devidamente identificado como autoridade policial e no exercício das suas funções profissionais; 8. Com tal comportamento quis o arguido subtrair-se ao cumprimento das ordens emanadas de exibição de identificação, em total desrespeito pelo teor de tal ordem, apesar de ter percebido o sentido e o alcance da mesma e da advertência de que o seu não acatamento implicaria a prática de um crime de desobediência qualificada; 9. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Mais se provou 10. Face à conduta do arguido o Agente da PSP BB solicitou a presença, no local, de um carro patrulha e, por isso, ali acederam os Agentes da PSP CC e DD, sendo que estes estavam uniformizados; 11. E o arguido, quando por estes solicitado para se identificar, identificou-se aos referidos Agentes da PSP CC e DD. 12. O Agente da PSP BB elaborou, posteriormente, o Auto de Contraordenação n.º ...43 (junto aos autos a fls. 22), assim como o Auto de Notícia junto a fls. 4 e ss.. (…) * 1.2. Factos não provados.Com interesse para a decisão da causa não resultaram “não provados” quaisquer factos. * 1.3. Motivação.A convicção do Tribunal formou-se com base na análise crítica e conjunta das declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas e do teor dos documentos juntos autos. Vejamos. O arguido admitiu que no dia, hora e local reportados no número 1 da acusação, e enquanto encarregado de obra da sociedade EMP01..., SA. deu instruções a um trabalhador (EE), da mesma empresa, para proceder à regulação de trânsito devido a obras que estavam aí a ser executadas pela mesma empresa. Mais disse que quando o referido trabalhador estava, assim, a proceder à regulação do trânsito, e após o mesmo ter mandado parar três carros que seguiam naquele local, foi, aquele, interpelado por BB que começou a discutir com o mencionado trabalhador e, por isso, ele (arguido) foi ao encontro daqueles. Relatou que, então, o referido trabalhador lhe disse que tal cidadão lhe tinha dito que era polícia. E mais referiu que, na ocasião, BB lhe disse, a ele arguido, que a obra não estava sinalizada e que eles (arguido e o dito trabalhador) não podiam fazer aquilo (regulação de trânsito), ao que ele (arguido) respondeu que a “obra estava sinalizada” e que “tinham que trabalhar”, insistindo o Agente que não podiam fazer aquilo e que a empresa não estava em condições, não sabia trabalhar, e que, entretanto, ele (arguido) “virou costas” e foi para dentro do estaleiro e o Agente foi atrás dele a dizer-lhe que ele tinha que se identificar, o que tal Agente fez em tom agressivo e muito perto dele. Relatou que o referido Agente não estava fardado e nem se tinha identificado e que só dentro do estaleiro é que se identificou como sendo polícia e mostrou-lhe o crachá e disse que ia levantar auto de contraordenação e que ele (arguido) tinha que se identificar. Reportou, ainda, que talvez o Agente tivesse dito, quando lhe solicitou que se identificasse, que se o não fizesse incorria em crime de desobediência. E mais disse que o referido Agente chamou, entretanto, dois Agentes da PSP ao local e que ele (arguido) identificou-se a estes dois elementos. Perguntado porque não se identificou ao Agente BB quando o mesmo isso lho solicitou e exibiu o respectivo crachá o arguido respondeu que nem viu o nome no crachá e que o referido Agente já tinha feito “umas coisas” na obra – reportando, a propósito, que a empresa em causa com o Comandante da PSP e a Câmara Municipal fechavam o troço e o agente BB ia lá e tirava os pinos e abria o troço - todavia, em momento posterior já disse que tal sucedeu apenas após os factos em causa nos autos. Ou seja, e aqui chegados, cumpre referir que, em bom rigor, o próprio arguido acabou por relatar os factos tal como vieram a ser dados como provados, embora defendendo que “talvez” o Agente BB lhe tivesse dito que caso se recusasse a identificar incorria num crime de desobediência, e, igualmente defendendo que se recusou a identificar-se àquele, mas que (só) não se identificou àquele Agente porque o mesmo não estava fardado e nem viu, ele arguido, o nome do crachá que por aquele, na ocasião, foi exibido. Por sua vez, a testemunha BB, Agente da PSP, relatou que à data e local dos factos em causa nos autos estava de serviço, “à civil”, e porque presenciou um cidadão (um civil, sem raquete, sem colete) a regularizar o trânsito, no local, foi ao encontro do mesmo, identificou-se como Guarda da PSP, exibiu a carteira profissional, e referiu-lhe que não podia estar a regularizar o trânsito e para se identificar, sendo que tal cidadão disse que estava a cumprir ordens do encarregado da obra. Mais disse que, entretanto, ali surgiu o arguido, como encarregado da obra, e a testemunha identificou-se ao mesmo como agente de autoridade, com exibição do crachá, da carteira profissional, informou-o que a actividade de controle de trânsito e obras não sinalizadas que estavam a ser efectuadas não eram possíveis, e que, por isso, iria proceder ao levantamento do auto de contra-ordenação, solicitando-lhe a respectiva identificação pessoal, porém, o arguido recusou-se identificar referindo que BB “estava à civil”, não estava fardado e que, por isso, o não reconhecia como Agente de Autoridade. Relatou que foi então o arguido informado, pela testemunha, e por cerca de duas ou três vezes, que caso persistisse na sua recusa em identificar-se incorreria num crime de desobediência, e que o arguido manteve a recusa em se identificar. Mais disse que chamou ao local a patrulha e ali compareceram dois colegas e que o arguido identificou-se a estes elementos. Confrontado, em juízo, com o Auto de Notícia de fls. 4 a 6 e com o Auto de Contraordenação de fls. 7, e que elaborou, corroborou o teor dos mesmos; e mais explicou, quanto ao documento de fls. 7, que quando se introduz as normas em causa o próprio sistema assume um texto que depois é adaptado à situação em causa. E confrontado com o documento junto com a contestação e que faz fls. 78 referiu não conhecer “tal parecer”. Aqui chegados cumpre referir que a testemunha BB prestou o seu depoimento de modo que se nos evidenciou espontâneo, objectivo, pormenorizado, isento e, por isso, credível. A testemunha EE, funcionário da empresa em causa nos autos, relatou que à data e local dos factos estava, segundo ordens do arguido que era o encarregado da obra, a regularizar o trânsito, mormente a dar ordens para os carros que ali transitavam parassem a fim de uma máquina poder fazer uma manobra. Mais disse que do interior de um desses carros saiu BB e que este foi ao seu encontro, identificou-se como polícia, exibiu a carteira profissional, o crachá, e perguntou-lhe o que estava a fazer e solicitou a sua identificação o que a testemunha fez porquanto tal cidadão se identificou como polícia e exibiu o crachá. Relatou que, entretanto, ali acedeu o arguido e que ouviu, a testemunha, o Agente BB a solicitar ao arguido que se identificasse e o arguido a dizer não saber quem tal senhor era e por isso não se identificava; mais referindo a testemunha que, nessa ocasião, disse ao arguido que tal cidadão era polícia e que o arguido referiu que ele (BB) não estava fardado e que ele (arguido) não se identificava a qualquer pessoa. Mais disse que depois já só viu o carro da patrulha a chegar ao local e que viu o arguido a identificar-se aos polícias que vinham em tal carro de patrulha. Reportou que não ouviu o Agente BB a referir ao arguido que caso não se identificasse incorria num crime de desobediência – sucede, porém, e como decorre do acima exposto, do seu depoimento também resulta que não esteve sempre perto e a ouvir a conversa entre o Agente BB e o arguido. Questionado a propósito pela Defesa referiu que quando foi regular o trânsito estava trajado com roupa normal e com um colete da empresa e que havia, no local, sinais colocados na obra, mas que “acha” que não havia sinais luminosos. As testemunhas FF e CC, Agentes da PSP, relataram terem sido chamados ao local dos factos porque um cidadão se recusava a identificar-se a um Agente da PSP (BB); referindo que ali chegados presenciaram o Agente BB, trajado à civil, exibindo a carteira profissional, a solicitar ao arguido que se identificasse e que caso não se identificasse incorria na prática de um crime de desobediência e que o arguido se recusou a fazê-lo dizendo que não o reconhecia como agente de autoridade e porque o mesmo estava “à civil”. Referiram que quando se dirigiram ao arguido disseram-lhe para se identificar porque estava a recusar-se a fazê-lo a um Agente da PSP e o mesmo imediatamente se identificou às testemunhas (FF e CC) e estas deram os documentos do arguido ao Agente BB porque o serviço em causa era dele e porque tinha sido ele a presenciar os factos pelos quais iria levantar o Auto. As aludidas testemunhas prestaram os seus depoimentos de modo que se mostrou espontâneo, objectivo, isento e, por isso, credível, e corroborando o depoimento da testemunha BB. A testemunha GG referiu ser o Director da obra em causa nos autos; explicou a referida obra e tempo da mesma; referiu que houve vários planos de sinalização e segurança para a mesma; que inicialmente foram colocadas barreiras físicas na obra e depois outra sinalização temporária na via; que todos os funcionários da obra usam coletes em obra. E questionado sobre as instruções dadas aos funcionários quando é necessário fazer a paragem/desvio do trânsito automóvel referiu que se tenta evitar essa situação e que o ideal é que isso não aconteça e que pensa que o funcionário pede aos veículos para pararem para se proceder à manobra necessária. No entanto, e como decorre do seu depoimento, a testemunha não estava no local à hora dos factos em consideração nos autos e, por isso, o seu depoimento, e em relação aos factos, de nada adiantou. A testemunha HH referiu ter visto, à data e local dos factos, um funcionário da obra em apreço a mandar parar os veículos que ali transitavam para uma máquina da obra fazer uma manobra; que de repente saiu da fila, que assim ali se fez, um carro que foi contra tal funcionário, mas depois já disse que tal carro se encostou ao dito funcionário, mas que não pode jurar se lhe deu um encontrão; e desse carro saiu um cidadão exaltado e a discutir com o mencionado funcionário; e que depois da máquina fazer a manobra os carros que haviam sido mandados parar seguiram caminho, entre eles a testemunha no seu carro. Referiu, ainda, que a obra estava sinalizada porque havia sinais a dizer “obra”, barreiras, e outros com limitação de velocidade. Reportou, ainda, que tal carro, de onde saiu o referido sujeito, estava a fazer um sinal sonoro, referindo a testemunha ele ligou a sirene, mas um carro à civil, um homem à civil! Ou seja, e em bom rigor, a testemunha não presenciou os factos ocorridos entre o Agente BB e o arguido. A testemunha II, Técnica Superior de Segurança e Saúde no Trabalho, referiu exercer funções na empresa em causa nos autos e que fez planos de higiene e segurança para a obra em consideração neste processo; mais disse que daqueles planos fazem parte os diversos planos de sinalização; referiu que o dono da obra era o Município ... e que é este que valida e aprova os referidos planos e divulga nas entidades policiais os mesmos; reportou que os funcionários da referida empresa quando estão em obra usam botas, coletes, capacetes, óculos. Acrescentou ter sabido dos factos porque o arguido lhos referiu no dia seguinte da ocorrência dos mesmos. Relatou que em concreto não sabe que sinais tinha esta obra à data dos factos, mas que há um Kit básico e que é da mesma a responsabilidade de fazer os planos de sinalização e que os fez. Foi confrontada, em juízo, com o teor dos documentos de fls. 42 e ss. e 126 e 127 e explicou tais documentos, referindo que à data dos factos estava a obra sinalizada como consta do documento de fls. 126. A testemunha JJ referiu que à data dos factos era funcionário da empresa em causa nos autos e estava na obra em consideração neste processo. Referiu que um outro funcionário da obra estava a mandar parar o trânsito para que uma máquina fizesse uma manobra, e que o tal Agente saiu de um dos carros que foram assim mandados parar e foi ao encontro do tal funcionário, aos berros, e disse que eles não podiam mandar parar o trânsito. Mais disse que o arguido foi abordado pelo tal polícia que estava “à civil” a pedir-lhe a identificação, mas que acha que o tal polícia não se identificou como agente da PSP e que passado algum tempo vieram dois Agentes num carro patrulha e o arguido identificou-se a estes. Relatou, ainda, que ele e os demais funcionários da empresa estavam com coletes da mesma; que na obra tinha sinais de trabalho na via e de limite de velocidade. Por fim, referiu achar que o Agente BB não disse ao arguido que se ele não se identificasse incorria na prática de um crime de desobediência. A testemunha KK, funcionário da empresa em causa nos autos, referiu achar que não estava no local à data dos factos; e no mais relatou ter visto, após os factos em causa nos autos, e por duas ocasiões o Agente BB no local, e que numa dessas vezes o mesmo retirou a protecção dos resguardos da obra e na outra vez o mesmo puxou o casado que trajava para trás e mostrou, assim, a sua arma e disse ao arguido que o mesmo não mandava nada e que era a polícia que mandava. Ou seja, e desde logo, as testemunhas GG, HH, II e KK, e como decorre dos seus depoimentos, não estavam no local à hora dos factos em consideração nos autos e, por isso, não presenciaram a “conversa” havida entre o Agente BB e o arguido. Por sua vez, o próprio arguido e as testemunhas EE e LL, todos funcionários da empresa em causa nos autos e na obra em consideração, relataram os factos descritos nos números 1, 2 e 3, da acusação. Sendo, ainda, que o arguido assumiu os factos descritos nos números 4 e 5 da acusação. E quanto ao facto descrito no número 6 da acusação defendeu, o arguido, que talvez o Agente BB o tivesse informado que caso ele (arguido) persistisse na sua recusa em identificar-se incorreria num crime de desobediência – ou seja, aqui o arguido foi titubeante, evasivo, esquivo e subjectivo, porém, também não disse que tal advertência não lhe foi feita; e sendo, ainda, que quando a esta advertência o Agente BB e os demais Agentes que, entretanto, ali acederam referiram que a mesma foi feita e por várias vezes pelo referido Agente BB ao arguido. E na ausência de qualquer elemento que excepcionalmente permitisse reconhecer alguma deficiência no processo comunicativo ou algum problema ao nível da capacidade de entendimento na pessoa do arguido, a conclusão para que directamente apontam as regras da experiência comum, quando aplicadas ao caso, levam a concluir, no que concerne ao elemento subjectivo do tipo de crime em apreço nos autos, nos termos que se deram por provados. Relativamente às condições pessoais e económicas do arguido o Tribunal baseou-se nas declarações pelo mesmo a propósito prestadas e que se afiguraram espontâneas, isentas e credíveis. Quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido o Tribunal teve em consideração o certificado junto aos autos a fls. 112 v.º. (…)”. II.2- Apreciação do recurso Da impugnação da matéria de facto [vícios decisórios ínsitos no artigo 410.º do Código de Processo Penal]; Alega o arguido/recorrente que o tribunal a quo: - não poderia ter dado como provado a seguinte factualidade: “estar a controlar o trânsito e a dar ordem de paragem a veículos automóveis, sem que tivesse legitimidade e competência legal para o efeito”, tal como não podia omitir que: - a entidade a realizar a obra era a EMP01..., S.A., sendo esta entidade o suspeito e arguido, tal como consta do auto de contra-ordenação levantado, e que - a obra se encontrava sinalizada e com plano de sinalização aprovado pelo dono da obra, a entidade com competência municipal para o efeito. Assim, conclui o recorrente, no que se reporta à matéria de facto, constata-se: - A existência de contradição entre os factos relatados e a matéria de facto fixada no que se reporta à contra-ordenação (ainda que sob a forma de suspeita), e a existência em obra de sinalização; - Em face dos factos relatados, insuficiência da matéria de facto apurada, não sendo compreensíveis as razões para a validação e desconsideração; - Omissão de apreciação de factos, em especial, no que se refere à existência de sinalização de acordo com o projecto em obra; à legitimidade da actuação da empresa em face do enquadramento por parte da ANSR, cujo parecer foi junto aos autos; - Omissão da apreciação dos factos referentes à propriedade, por se considerar ainda que sob a forma de suspeita, como agente da contra-ordenação o arguido e não a empresa. Assim, conclui o recorrente, não se podendo dar como provado que o desvio de trânsito era efetuado sem legitimidade para o efeito, também não se pode dar como provado que o arguido era o suspeito da prática da infracção e, consequentemente, estamos perante uma ordem de identificação que é ilegítima. Vejamos: Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal. No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido preceito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[3]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário. No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal. In casu, o recorrente não chama à colação nenhum dos apontados preceitos legais, no entanto, se bem percebemos as suas conclusões recursivas e inerente motivação, embora sem o referir expressamente, cinge-se aos vícios decisórios vertidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, os quais sempre seriam de conhecimento oficioso. Ora, conforme resulta do artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “Fundamentos do recurso”: “1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. 3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.” Da análise de tal preceito legal decorre, portanto, que a decisão sobre a matéria de facto é suscetível de ser posta em causa por via da invocação dos apontados vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mas conforme se referiu supra, tais vícios devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. In casu, o recorrente invoca a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Porém, sem razão. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão. Diga-se, contudo, que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não com a falta de prova para a decisão da matéria de facto provada[4]. Trata-se de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, de um “vício de confecção da matéria de facto”, (…) impeditivo de bem se decidir , tanto no plano objectivo como subjectivo, o julgador quedou –se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais à decisão de direito, figurando na acusação, defesa ou resultantes da decisão da causa, impedindo de bem decidir no plano do direito, comprometendo a conclusão final do silogismo judiciário”.[5] Analisado o texto da decisão recorrida, não se constata a existência do invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois, não só a matéria de facto provada é suficiente para fundamentar a decisão de direito [encontrando-se provados todos os elementos do tipo de crime pelo qual o arguido foi condenado], mas também porque não decorre da sentença recorrida que o tribunal a quo tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão. No que aqui releva, refere o recorrente que foi omitida da matéria de facto factualidade com relevo para a apreciação do mérito da causa, concretamente atinente à identidade do suspeito da prática da infracção que nunca poderia ser o encarregado da obra dado que não era o agente direto que estava a regular o trânsito e muito menos sócio gerente da empresa autuada no auto de contraordenação, não compreendendo porque razão o pedido de identificação lhe foi dirigido e não à empresa ou aos seus gerentes. Porém, da factualidade provada consta a matéria que releva para apreciar tal questão, concretamente no seu artigo 1.º, do qual resulta o seguinte: [“(…) o arguido, encarregado de obra da sociedade EMP01..., SA, deu instruções a um trabalhador da mesma empresa para proceder à regulação de trânsito, devido a obras que estavam aí a ser executadas pela mesma”]. E desta decorre, de forma clara e inequívoca, que o arguido atuou na qualidade de encarregado da obra em questão e foi ele que deu instruções a outro trabalhador da empresa para proceder à regulação do trânsito, devido a obras que estavam a ser executadas, factualidade bastante, portanto, para que lhe fosse solicitada a si a necessária identificação, com vista a ser levantado o referido auto contraordenacional. Aliás, o recorrente foca o presente recurso em questões que na sua ótica são tendentes a inquinar a existência do ilícito contraordenacional que esteve na base da ordem que lhe foi dada com vista a proceder à sua identificação. Porém, o que está em causa nos presentes autos [autos de natureza criminal] não é a comprovação, ou não, da existência do referido ilícito contraordenacional, não é saber se o respetivo infrator é o trabalhador ou antes a empresa para quem trabalha. Tais questões extravasam a consumação do ilícito criminal aqui em discussão e têm sede própria para serem discutidas - a saber: o respetivo processo contraordenacional. Aqui, discute-se apenas o ilícito criminal de desobediência qualificada, decorrente da recusa do arguido em proceder à sua identificação perante a autoridade policial com vista a poder levantar um auto contraordenacional, recusa essa que o próprio arguido reconhece ter ocorrido. Como de forma pertinente o refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer “a seguir-se o entendimento do recorrente, o destino do processo de contraordenação funcionaria como questão prejudicial relativamente ao processo crime da desobediência, ou seja, só a confirmação da condenação pela prática da contraordenação tornaria “legítima” a atuação do agente.”, posição que é “inaceitável.”. Inexiste, portanto, o apontado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Ora, analisado o texto da decisão recorrida não se constata a existência do apontado vício ínsito no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal. Com efeito, lida a decisão recorrida, constata-se que da mesma não resulta qualquer incompatibilidade, e muito menos, insuscetível de ser ultrapassada, através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Não existe qualquer facto com interesse para a decisão da causa que tenha sido simultaneamente considerado como provado e não provado. Não se consideraram como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles possa persistir. E, por fim, analisada a respetiva fundamentação, constata-se que esta não conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Na verdade, com vista a sustentar a existência de contradição insanável, argumenta o recorrente que não se pode, por um lado, afirmar a existência de sinalização colocada em obra e por outro concluir sem mais o seguinte “.... estar a controlar o trânsito e a dar ordem de paragem a veículos automóveis, sem que tivesse legitimidade e competência legal para o efeito”, mais acrescentando, não perceber que elementos de prova, ponderados no seu conjunto, levaram o tribunal a quo a formar tal convicção. Mas não lhe assiste qualquer razão. Com efeito, tal factualidade encontra-se vertida no artigo 2.º dos “factos provados” e o tribunal a quo, após ter feito uma resenha das declarações prestadas pelo arguido e dos depoimentos prestados pelas testemunhas, na sequência da sua análise critica da prova, conclui que “o próprio arguido e as testemunhas EE e LL, todos funcionários da empresa em causa nos autos e na obra em consideração, relataram os factos descritos nos números 1, 2 e 3, da acusação”. Além disso, ao contrário do sustentado pelo recorrente, o tribunal a quo deu a conhecer as razões pelas quais deu relevância ao depoimento da testemunha BB, ao fazer constar da motivação da factualidade provada que “a testemunha BB prestou o seu depoimento de modo que se nos evidenciou espontâneo, objectivo, pormenorizado, isento e, por isso, credível.”. É, portanto, contrariamente ao defendido pelo arguido, perfeitamente percetível que elementos de prova, ponderados no seu conjunto, levaram o tribunal a quo a formar tal convicção, e tanto assim o é que o arguido a contesta. Acresce dizer que não se descortina de que forma a alegada existência de sinalização colocada na obra possa contraditar o facto de se ter dado como provado que o controlo do trânsito por parte de um trabalhador da empresa, dando ordem de paragem aos veículos automóveis, era ilegítima, por aquele trabalhador carecer de legitimidade e competência legal para o efeito. Uma coisa não impede a outra e muito menos a contradita, tando mais se atentarmos que decorre da mesma motivação, que o arguido não coloca em causa pois é desta que se socorre, que “o arguido admitiu que no dia, hora e local reportados no número 1 da acusação, e enquanto encarregado de obra da sociedade EMP01..., SA. deu instruções a um trabalhador (EE), da mesma empresa, para proceder à regulação de trânsito devido a obras que estavam aí a ser executadas pela mesma empresa.” [sublinhados e negritos nossos]. Ora, se a obra estivesse devidamente sinalizada no que respeita à questão do trânsito, certamente que não careceria o arguido de dar ordens a um dos seus colegas de trabalhado para proceder à regulação daquele, como este admitiu tê-lo feito. Aliás, diga-se, ao longo da motivação recursiva o recorrente reitera que a obra estava devidamente sinalizada, mas não concretiza em que consistia tal sinalização, que, na sua ótica, deveria ter sido dada como provada pelo tribunal a quo. Invoca, ainda, o recorrente que segundo o parecer da ANSR, entidade com a necessária competência para tal, a regulação de trânsito, por funcionários da empresa, em zona de obra, e identificados com raquetes, é uma operação lícita. Acontece, porém, que tal circunstância não resulta sequer da factualidade provada e, segundo a motivação da mesma, do depoimento da testemunha BB decorre que o referido trabalhador que regulava o trânsito não fazia uso de qualquer raquete e, por sua vez, este trabalhador - testemunha EE - apenas refere o facto de envergar um colete da empresa e achar que não havia sinais luminosos. Mas o recorrente vai mais longe e impugna a conclusão a que chegou o tribunal a quo quanto à factualidade que considerou provada, chamando à colação documentação junta aos autos. Porém, ao fazê-lo, extravasa o texto da decisão recorrida e, como tal, deveria ter impugnado a matéria de facto ao abrigo do artigo 412.º do Código de Processo Penal, sendo certo que o recorrente não o fez, não manifestou, sequer, ser essa a sua pretensão, e muito menos deu cumprimento ao ónus da especificação ínsito no n.º 3 de tal preceito legal, o que, desde logo, inviabiliza a possibilidade de conhecimento da matéria de facto pelo prisma da sua impugnação ampla. Em suma, o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão também não se verifica no caso concreto. Finalmente, o erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis. Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido[6]. “Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido”[7]. Resumindo, “o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo”.[8] Tal erro já não se verifica se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício[9]. Assim sendo, pese embora não tenha sido questionado e a sua inexistência seja uma evidência, porque é de conhecimento oficioso, sempre se dirá que do texto da decisão recorrida não resulta que o tribunal a quo tenha violado as regras da experiência ou que tenha efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada ou da legis artis. Não se verifica, portanto, in casu, o vício de erro notório na apreciação da prova. Ainda que en passant, refere o recorrente que o tribunal a quo não logrou identificar e apreciar a conduta referente ao desvio do tráfego, como devia, uma vez que foi expressamente suscitada por si na sua defesa e, por assim ser, a sentença recorrida encontra-se ferida de nulidade. Ora, embora o recorrente não suscite tal questão nas conclusões recursivas, sempre se dirá, ainda que brevemente, que é jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, que a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidas pelas partes na defesa das teses em presença.[10] [sublinhado e negrito nosso] Temos vindo a defender que a sentença ou o acórdão só têm que se pronunciar sobre matéria relevante para a decisão da causa, ou seja sobre as questões, de facto ou de direito, com incidência ou impacto direto, positivo ou negativo, na decisão, o que não é, de todo, a alegada conduta referente ao desvio do tráfego, como melhor se explicará de seguida, aquando da apreciação da questionada legalidade da ordem de identificação. O tribunal a quo só tinha o dever de se pronunciar sobre os factos que revestiam interesse para a decisão da causa e, como veremos de seguida, o tribunal a quo fê-lo. Não se lhe impunha que fosse além do que apreciou, inclusive no que se reporta ao domínio da factualidade dada como assente, e, como tal, não existe a invocada nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal. Improcede, portanto, o presente segmento recursivo, permanecendo intocada a matéria de facto, tal como foi fixada pelo tribunal a quo. Da verificação do elemento objetivo do tipo de crime de desobediência qualificada, pelo qual o arguido foi condenado [legalidade da ordem emanada pelo agente da PSP BB]. Foi o arguido condenado pela prática de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, conjugado com os artigos 12.º, n.º 2, da Lei Orgânica da Polícia de Segurança Pública e o artigo 5.º da Lei da Segurança Interna. Prevê o artigo 348.º do Código Penal o seguinte: 1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação. 2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.” Integra, pois, o elemento objetivo do tipo de crime de desobediência: - a existência de uma ordem ou mandado; - a legalidade substancial e formal dessa ordem ou mandado; - a competência da autoridade ou funcionário para a emissão dessa ordem ou mandado; - a regularidade da sua transmissão ao destinatário; e - a desobediência à referida ordem ou mandado. A ordem ou mandado têm de se revestir de legalidade substancial [têm de se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente] e formal [a sua emissão deve conformar-se com as formalidades estipuladas pela lei para o efeito]. É ainda indispensável que a autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado tenha competência para o fazer, ou seja, que aquilo que pretende impor esteja compreendido na esfera das suas atribuições. Por fim, exige-se que a ordem ou mandado seja transmitida aos seus destinatários de uma forma que lhes permita tomar efetivo conhecimento daquilo que lhes é imposto ou exigido e que este desobedeça a essa ordem ou mandado. Pratica, então, um crime de desobediência quem faltar à obediência devida e tal obediência só é devida a ordem ou mandado legítimos, sendo condição necessária dessa legitimidade a competência em concreto da entidade de onde emana a ordem ou mandado. A ordem em causa tem que chegar ao conhecimento do destinatário e pelas vias normalmente utilizadas ou seja tem de lhe ser regularmente comunicada. Finalmente, não basta a mera desobediência a uma ordem legítima dada por quem tem competência para tal, sendo ainda necessário que o dever de obediência que se incumpriu tenha uma de duas fontes: - ou uma disposição que comine, no caso, a sua punição; - ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado[11]. O bem jurídico que a norma em causa visa proteger é a autonomia intencional do Estado, isto é, visa-se a abstenção de comportamentos que obstem ao regular curso atividade administrativa por parte dos destinatários dos seus atos[12]. Aqui chegados, analisemos o caso dos autos à luz dos considerandos acabados de expor. In casu, resultou provado que o agente da PSP BB solicitou a identificação ao arguido, que se recusou a dá-la, mesmo após ter sido advertido de que não o fazendo incorreria na prática de um crime de desobediência. Tal ordem foi regularmente comunicada pelo referido agente da PSP ao arguido, que a entendeu, e não se lhe impunha a obediência a quaisquer formalidades para o efeito, sendo de relembrar que a situação em análise reporta-se à identificação de suspeito da prática de um ilícito contraordenacional e não de um ilícito criminal, situada, portanto, fora do quadro de aplicação do artigo 250.° do Código de Processo Penal, relativo à identificação de suspeitos da prática de crimes. Trata-se, portanto, de uma ordem legal, do ponto de vista formal, mas também do ponto de vista substancial. Com efeito, a ordem de identificação dirigida ao arguido emana de um agente da PSP, com vista a levantar um auto de contraordenação, que acabou por se formalizar contra a sociedade para a qual o arguido trabalhava, pela prática de contraordenação prevista no artigo 8.º, n.º 1, do DL n.º 114/94, de 03 de maio [CÓDIGO DA ESTRADA], que, sob a epígrafe “realização de obras e utilização das vias públicas para fins especiais” dispõe o seguinte: “1- A realização de obras nas vias públicas e a sua utilização para a realização de atividades de caráter desportivo, festivo ou outras que possam afetar o trânsito normal ou colocar restrições ao trânsito dos peões nos passeios só é permitida desde que autorizada pelas entidades competentes, e com a correspondente aplicação local de sinalização temporária e identificação de obstáculos. Assim sendo, tal ordem afigura-se legítima, face ao disposto no artigo 49.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27/10 [ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL], de acordo com o qual “as autoridades administrativas competentes e as autoridades policiais podem exigir ao agente de uma contra-ordenação a respectiva identificação.” [sublinhados e negritos nossos]. Esta exigência de identificação encontra-se diretamente ligada ao disposto no artigo 48.°, n.º1, do mesmo diploma legal que estipula que “As autoridades policiais e fiscalizadoras deverão tomar conta de todos os eventos ou circunstâncias susceptíveis de implicar responsabilidade por contra-ordenação e tomar as medidas necessárias para impedir o desaparecimento de provas.”. [sublinhados e negritos nossos], de cujo texto legal decorre bastar que o evento ou circunstância seja suscetível de implicar responsabilidade contraordenacional e não que esta se encontre indubitavelmente comprovada no momento em que o agente da autoridade toma conta da ocorrência. Além disso, do n.º 2, do artigo 12.º da Lei n.º 53/2007, de 31 de agosto [LEI ORGÂNICA DA PSP] decorre que “2 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade de polícia ou agente de autoridade da PSP, é punido com a pena legalmente prevista para a desobediência qualificada”. Tais disposições legais autorizam, portanto, as autoridades policiais a exigir a identificação do agente de qualquer contraordenação em geral e concedem legalidade à ordem de identificação dada ao arguido pelo referido agente da PSP que, como vimos, tinha competência para o fazer. Afigura-se-nos, pois, que em face da natureza e atribuições da autoridade policial, o motivo que determinou a sua intervenção e o fim a que se destinava – levantar o auto de contraordenação – a ordem dirigida ao arguido, no sentido de fornecer os seus elementos de identificação, apresenta-se material e formalmente legítima. Contesta a arguido a legalidade da referida ordem, argumentando a inexistência de qualquer contraordenação, perante o facto de a obra se encontrar sinalizada, e, a existir, não ser ele o respetivo responsável, uma vez que apenas se encontra investido nas funções de encarregado da obra e não dono da empresa que a executava. No fundo, contesta a legalidade da ordem de identificação que lhe foi dada, por não ter praticado qualquer facto suscetível de integrar ilícito contraordenacional. Porém, sem razão. Com efeito, conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 08-05-2018, Processo n.º 3/14.8FCOLH.E1, “a criminalização da desobediência tem por finalidade a tutela da autonomia intencional do Estado, o que equivale a assegurar o acatamento pelos membros de comunidade das determinações legítimas das autoridades públicas e dos seus agentes” e, como vimos, a ordem emanada da autoridade policial que esteve na base do crime de desobediência é legal, legítima e foi emitida no âmbito das suas competências funcionais. Não esquecemos que o artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa consagra o “direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os direitos, liberdades e garantias (…).” No entanto, como é sabido, a constitucionalização do direito de resistência não implica, para a generalidade das pessoas, o direito de não acatar as determinações das autoridades públicas ou dos seus agentes, sob a invocação da sua ilegalidade, a não ser em circunstâncias excecionais, que não se encontram perfectibilizadas no caso dos presentes autos. Com efeito, como vimos, em causa está a recusa por parte do arguido de fornecer ao agente da PSP a sua identificação, para o efeito do levantamento de auto de contraordenação. Além disso, resultou provado que foi o arguido, na qualidade de encarregado da obra, quem deu instruções a um outro trabalhador para proceder à regulação de trânsito devido a obras que estavam aí a ser executadas pela empresa para a qual estava a trabalhar. E, como vimos também, o artigo 49.º do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27/10 [ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL], confere efetivamente às autoridades policiais o poder de exigir aos agentes das contraordenações a sua identificação. Assim sendo, não se descortina de que forma é que tal ordem possa ser ilegal. Acresce que a tramitação legalmente prevista para os processos de contraordenação confere aos arguidos os instrumentos adequados a evitar a aplicação injusta de uma sanção, concedendo, desde logo, o “direito de audição e defesa do arguido”, antes de lhe ser aplicada qualquer coima ou sanção acessória [artigo 50.º do RGCO] e a possibilidade de impugnação judicial da decisão final da autoridade administrativa que lhe tenha aplicado uma coima [artigo 59.º, n.º 1, do RGCO]. Nesta perspetiva, a elaboração de auto de contraordenação, com vista à instauração do respetivo procedimento não é, por si só, suscetível de causar dano irreparável aos direitos do autuado. Por conseguinte, a busca de um desejável equilíbrio entre os direitos individuais e a autonomia volitiva do Estado poderá ser encontrada nos seguintes termos: será legítima [e assim atípica do crime de desobediência] a recusa do fornecimento de identificação, para o efeito da elaboração de auto de contraordenação, uma vez verificados cumulativamente dois requisitos: - a intervenção da autoridade administrativa ou policial seja manifestamente descabida e não apenas juridicamente discutível, como muitas vezes sucede; - o cumprimento da ordem provoque dano a direito ou interesse juridicamente protegido do visado, que não seja suscetível de ser revertido por uma ulterior decisão não sancionatória, no final do processo de contraordenação[13], circunstancialismo que, perante o quadro factual apurado, não se encontra verificado nos autos. Consequentemente, não assistia ao arguido o direito de se recusar a fornecer ao agente da PSP a sua identificação, que lhe havia sido solicitada com vista à elaboração de auto contraordenacional, mesmo que, na sua ótica, não estivesse a praticar qualquer infracção dessa natureza. Caso fosse entendimento do arguido que a situação dos autos não era suscetível de configurar qualquer contraordenação, nada mais lhe restaria do que defender-se no âmbito do procedimento contraordenacional, que contra si viesse a ser instaurado. O que não lhe é lícito é tentar opor-se à instauração do procedimento contraordenacional na origem, recusando a sua identificação. Aqui chegados, ante o raciocínio acabado de expender, não só o referido agente da PSP tinha competência para a emissão da referida ordem de identificação, como esta é legítima e, consequentemente, a recusa deliberada e injustificada do arguido de acatar tal ordem é punível como crime de desobediência qualificada. Inexiste, portanto, qualquer ilegalidade na ordem dada pelo agente da PSP ao arguido e muito menos tal ordem é suscetível de ferir qualquer direito do recorrente, tal como não fere qualquer preceito legal, designadamente a norma constitucional invocada pelo recorrente. Deste modo, e porque da factualidade provada resulta comprovada a existência quer dos elementos objetivos, quer subjetivos do tipo de crime em apreço, a pretendida absolvição do recorrente terá de improceder. É este o entendimento que sufragamos, defendido, segundo cremos, pela maioria da doutrina e da jurisprudência, trazendo-se aqui à colação, a título meramente exemplificativo: Da doutrina: Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 207, defende que “a recusa injustificada de identificação é punível como desobediência (artigo 348.º do CP) (…)”; António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2009, pág. 149, referem que “a não identificação poderá ter na sua génese uma atitude voluntária de recusa por parte do arguido em relação à entidade policial o que o constitui como agente do tipo legal de desobediência previsto e punido do artigo 348.º do Código Penal (…)”. António Beça Pereira, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 1996, pág. 88, que ali, em anotação ao citado artigo 49.º refere o seguinte: “Em caso de recusa injustificada de identificação, haverá crime de desobediência, artigo 348.º do Código Penal.”. Na jurisprudência: Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 18-09-2013, processo n.º 75/12.0GBMIR.C1, consultável em http://www.dgsi.pt/: “Pratica o crime de desobediência qualificada p. e p. pelo artº. 348º, nº 2 CP, o arguido que recusa identificar-se aos agentes da GNR que lhe ordenaram essa identificação em consequência da prática de uma contraordenação estradal”. Acórdão, já citado, do Tribunal da Relação de Évora, datado de 08-05-2018, processo n.º 3/14.8FCOLH.E1, consultável em http://www.dgsi.pt/: “I - A criminalização da desobediência tem por finalidade a tutela da autonomia intencional do Estado, o que equivale a assegurar o acatamento pelos membros da comunidade das determinações legítimas das autoridades públicas e dos seus agentes. II - Não assistia ao arguido o direito de recusar o fornecimento da sua identificação aos militares da GNR, que lhe a solicitaram com vista à elaboração de auto contra-ordenação, mesmo invocando que não estivesse a praticar qualquer infracção dessa natureza.”. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 09-03-2022, processo n.º 585/21.8GBOAZ.P1, consultável em http://www.dgsi.pt/: “I - Incorre na prática do crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 348.º, n.º 2, do Código Penal, 170.º, n.º 1, e 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, o arguido que, perante ordem que expressamente lhe foi dada, na sequência de contraordenação estradal por ele cometida, recusa identificar-se a agentes policiais. II - A tal não obstam o carácter subsidiário e de ultima ratio do Direito Penal e os princípios da necessidade, da proporcionalidade e da adequação que enformam a atividade da Administração”. Improcede, portanto, in totum, o presente recurso. III- DISPOSITIVO Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida. Custas pelo arguido/recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III]. Notifique. Guimarães, 19 de dezembro de 2023 [Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal] Os Juízes Desembargadores Isilda Maria Correia de Pinho [Relatora] Paulo Almeida Cunha [1.º Adjunto] Fátima Furtado [2.ª Adjunta] [1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt. [2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95. [3] Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.. [4] A propósito deste vício veja-se, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, datados de 15-11-2018 e de 09-01-2020, ambos acessíveis em http://www.dgsi.pt/ [5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 08-01-2014, Processo n.º 7/10.0TELSB.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/ [6] Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pág. 74. [7] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 24-04-2018, Processo n.º 1086/17.4T9FIG.C1, in http://www.dgsi.pt/ [8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 09-07-1998, Processo n.º 1509/97, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 77. [9] A propósito deste vício, veja-se, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, datado de 15-11-2018 já citado, do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 24-04-2018 e do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 18-05-2011, todos acessíveis in http://www.dgsi.pt/ [10] Cfr. Acórdãos do STJ de 25-05-2006, Proc. nº 06P1389 e de 23-10-2008, Proc. nº 08P2869, in http://www.dgsi.pt. [11] Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 351. [12] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 29-05-2008, Processo n.º 3710/08, 9.ª Secção, in https://www.pgdlisboa.pt [13] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 08-05-2018, Processo n.º 3/14.8FCOLH.E1, in http://www.dgsi.pt/ |