Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
300/21.6GBVNF.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
ADMISSÃO DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
DESPACHO TABELAR E GENÉRICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- O despacho liminar, meramente tabelar e genérico de admissão do requerimento de abertura de instrução não forma caso julgado formal.
II- O caso julgado apenas se forma relativamente às questões que tenham sido especificamente apreciadas.
III- Este entendimento é o que melhor se compatibiliza com a regra do dever de fundamentação dos atos decisórios contida no artigo 97.º n.º 5, do CPP, enquanto consagração do disposto no artigo 205.º n.º 1, da CRP, e no artigo 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Instrução Criminal ... - J..., em que é arguido AA e assistentes BB e CC, todos  com os demais sinais nos autos, com data de 05.12.2022, foi proferido despacho de não pronúncia do arguido.
2. Não se conformando com tal despacho, as assistentes dele interpuseram recurso, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição)[1]:
1. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da decisão instrutória, do despacho de não pronúncia.
2. As assistentes imputam ao arguido a prática de dois crimes de ameaça, p. e. p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal e de dois crimes de ofensa à integridade física, p. e. p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.
3. A assistente CC é proprietária da fração ..., que pertence ao lote ... e é herdeira da fração ... que pertence ao lote ....
4. O arguido é tão-só herdeiro da fração ..., que pertence ao lote ..., não é proprietário e nem vive no loteamento! (sublinhado nosso)
5. O arguido, no dia 20 de agosto de 2021, pelas 7h30m, começou a realizar obras na área comum aos lotes ... e ..., sem qualquer consentimento e autorização da assistente CC e do seu marido, por consequência, há um processo de fiscalização e contraordenação a decorrer no Município ....
6. Face ao sucedido, a assistente CC, não se encontrava em casa e a sua filha BB, solicitou a presença das autoridades policiais - registo de serviço da GNR com o n.º .../21....52,    auto     de        ocorrência n.º ...1(sublinhado nosso).
7. O arguido, ainda, assim, após a presença da GNR, não se absteve de dar continuidade à execução das obras na área comum ao loteamento.
8. Pelas 13h30m, a assistente CC dirigiu-se ao local, porém os portões de acesso encontravam-se vedados, pelo que, o acesso só poderia ser feito por cima do muro (muro de 1,20m que delimita o loteamento da via pública), através de uma escada de alumínio que se encontrava no interior do terreno, assim a assistente pega na escada e coloca-a no exterior do terreno, na via pública, apoiada no muro e sobe os degraus da escada, subindo para cima do muro, pelo que a assistente pega novamente na escada e coloca-a no interior do terreno, encostada ao muro e assim procede à descida dos degraus da escada, acedendo ao interior do terreno onde estava o arguido, acompanhado pelo seu sobrinho, pelo seu outro irmão e por dois trabalhadores (sublinhado nosso).
9. A assistente CC, já dentro do terreno, confrontou o arguido sobre o que este pretendia fazer com as referidas obras e este, em tom agressivo e ameaçador, afirmou-lhe “põe-te no caralho se não amarro já nesta pá e dou-te com ela”, e de seguida desferiu-lhe um empurrão, pelo que a assistente CC caiu desamparada sobre um monte de brita e parte de um muro que estava a ser construído- doc. n.º ... e ....
10. Face ao sucedido, a assistente BB foi em auxílio da sua mãe e o arguido aproximou-se do muro que delimita o loteamento da via pública e afirmou-lhe em tom agressivo e ameaçador “se tentas entrar aqui dentro eu parto-te toda” e em ato contínuo, agarrou na escada de alumínio, que se encontrava no interior do terreno encostada ao muro, levantou-a e acertou com a escada na face da assistente BB - doc. n.º ... e ....
11. A assistente BB contactou de imediato as autoridades policiais a fim de se deslocarem ao local, cfr. o auto de ocorrência n.º ...21.
12. Na sequência das agressões praticadas pelo arguido, no dia 20/08/2021, pelas 15h45m, a assistente BB e pelas 15h47m a assistente CC, deram entrada no Hospital ..., E.P.E, conforme os relatórios de episódios de urgência n.º ...03 e ...04 - Doc. n.º ...0 a ...3 (sublinhado nosso).
13. Ficou provado, que o arguido, na execução das obras, estava apenas e só acompanhado pelo seu sobrinho DD, pelo seu irmão EE e por dois trabalhadores (o próprio arguido indicou tal facto no  processo n.º 2685/21....).
14. A testemunha DD, sobrinho do arguido, foi claramente instruída para colocar o arguido como sendo a vítima nos presentes autos, uma vez que, a testemunha nada refere sobre o arguido ter a pá das obras na sua posse e o extintor para ameaçar a assistente CC e não refere nada sobre a agressão e os ferimentos que o arguido praticou à assistente CC.
15. A testemunha  DD, acaba  por identificar claramente o ferimento na face da assistente BB, (...) a BB ficou arranhada na zona da face e junto ao olho (...), porém, em momento algum, descreveu o ferimento do arguido, que se estranha, nem refere se o arguido foi socorrido ou se necessitou de receber cuidados médicos!
16. Os depoimentos das testemunhas DD e EE são falsos e contraditórios, uma vez que apresentam duas versões sobre os mesmos factos, uma versão no âmbito do processo n.º 300/21.... e uma outra versão no processo n.º 2685/21.....
17. Ora, vejamos, a testemunha DD, declarou que “a prima segue no seu encalce, no entanto escorrega no degrau da escada. A mesma não chega a cair, mas ficou com um arranhão na zona da face junto de um olho” e o EE refere que “o FF, vem munido com um ferro e é impedido de passar, junto das   escadas,         pelas filhas. Estes envolvem-se fisicamente e caíram e que certamente lhes causou ferimentos vários” (sublinhado nosso).
18. Está nitidamente provado que a pá das obras estava na posse do arguido e a escada de alumínio estava dentro do terreno (cfr. auto de ocorrência n.º ...21), a assistente BB não chegou a entrar no terreno, nem tocou na escada de alumínio (o próprio arguido confirma este facto em sede de inquérito a fls. 67), assim a assistente nunca poderia escorregar na escada de alumínio, uma vez que a escada estava dentro do terreno das obras, na posse do arguido e a assistente estava do outro lado do muro, na via pública.
19. Contudo, o Tribunal a quo profere uma decisão obscura, pois não faz referência, nem analisa  todo o acervo documental junto pelas assistentes aos presentes autos, nomeadamente, os registos fotográficos que registam as agressões das assistentes, os autos de ocorrência n.º ...1 e ...21, os episódios de urgência n.º ...03 e ...04, os exames complementares (radiogradia ao crânio e uma radiografia ao ombro e ao antebraço) e os exames médico legais que as assistentes foram sujeitas.
20. Aliás, o Tribunal a quo formou a sua convicção com base nos depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido e inquiridas em sede de inquérito, GG, HH, CC e AA, porém estas testemunhas prestaram declarações falsas, uma vez que as mesmas não estavam no local, à data e à hora dos factos.
21. Estas testemunhas sem estarem no local, no dia e à hora dos factos, declararam que o arguido foi agredido pela assistente CC “com uma pancada na nuca, com uma pá das obras”.
22. Mais, se estas testemunhas GG e AA estivessem realmente presentes no dia dos factos teriam sido ouvidas no âmbito do processo n.º 2685/21.... e não o foram!
23.  O Tribunal a quo formou, a sua convicção, com base no depoimento do arguido que prestou em sede de inquérito, o mesmo, negou as ameaças e as agressões às assistentes e declarou que foi agredido pela assistente CC e teve necessidade de ser assistido no hospital, pelo que apresentou um relatório médico e um TAC ao crânio que realizou pelas 23h36m.
24. Sucede que, o arguido não foi agredido, nem injuriado pelas assistentes, MAIS o próprio arguido, NEM sabe a hora da alegada agressão, foi no período da manhã às 09h00 ou foi no período da tarde às 13h00??? (sublinhado nosso).
25. O arguido ao longo do dia não necessitou de cuidados médicos somente às 22h24m dá entrada nas urgências do hospital, bastantes horas mais tarde da suposta ocorrência da agressão!!! (sublinhado nosso).
26. Mais, o arguido apresentou queixa-crime, processo n.º 2685/21...., no dia 18/11/2021, contra as assistentes e referiu que foi agredido pela assistente CC, no dia 20 de agosto de 2021, pelas 9h00 (sublinhado nosso).
27. Sucede que, no diário clínico de urgência n.º ...15 do arguido, consta que “recorre ao SU por alegada agressão por familiar (...) hoje de tarde” e o TAC ao crânio não “evidência coleções hemorrágicas recentes, intra e extra-axiais” (sublinhado nosso).
28. Por outro lado, no seu relatório da perícia de avaliação do dano corporal, o arguido já refere que foi agredido pelas 13h00 (fls. 134 do processo n.º 2685/21....)! (sublinhado nosso)
29. Ademais, conforme o auto de ocorrência n.º ...21, consta na identificação do arguido que “o suspeito não apresenta lesões”!!!- doc. n.º ... (sublinhado nosso).
30. A testemunha II (filha do arguido), inquirida em sede de inquérito (processo n.º 2685/21....), referiu que esteve no local às 9h10 para deixar materiais de construção ao seu pai “sem qualquer tipo de incidentes” (sublinhado nosso).
31. Mais, o arguido no dia 20/08/2021, aos agentes da GNR que estiveram no local NUNCA referiu que foi agredido, nem mencionou o alegado ferimento - cfr. autos de ocorrência n.º ...1 e ...21 (sublinhado nosso).
32. O arguido apresenta um registo fotográfico de um ferimento que já tinha e apoderou-se do mesmo para dizer que foi agredido, ora o ferimento até já apresenta sinais de cicatrização, sem hemorragia e já com um hematoma com uma coloração amarelada e esverdeada, que se denota que o hematoma já apresentava vários dias (cfr. processo n.º 2685/21...., fls. 30)!!!
33. O arguido conseguiu manipular e criar uma versão falsa dos factos que foi acolhida pelo Tribunal a quo, de modo a posicionar-se como vítima nos presentes autos.
34. Sucede que, o Tribunal a quo proferiu a decisão de despacho de não pronúncia e referiu que “as assistentes prestaram declarações em sede de instrução, sendo que a sua versão        não é corroborada por nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de inquérito”.
35. Atentos às provas produzidas em sede de inquérito e no requerimento de abertura de instrução, nomeadamente os depoimentos das testemunhas JJ a fls. 55 e FF a fls. 59 e os documentos juntos aos presentes autos corroboram as declarações das assistentes, assim verificamos que o Tribunal a quo, decidindo como decidiu, não fez uma correta análise dos factos concretos em causa, que impunham uma solução de direito diversa, isto é, decisão de despacho de pronúncia do arguido (sublinhado nosso).
36. O arguido ameaçou e agrediu as assistentes, agiu de forma livre, deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e que os factos por si praticados constituíam crime, o mesmo apresentou sempre uma conduta autoritária, ameaçadora e agressiva perante as assistentes.
37. Face ao exposto, requer-se a V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, que revoguem a decisão instrutória recorrida e seja substituída por uma decisão de despacho de pronúncia do arguido, uma vez que há indícios suficientes que o arguido praticou os crimes que as assistentes lhe imputam, os dois crimes de ameaça, p.e.p pelo artigo 153.º do Código Penal e os dois crimes de ofensa à integridade física, p.e.p pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.
38. As diligências probatórias requeridas pelas assistentes no requerimento de abertura de instrução, não foram produzidas nos autos e, ainda, assim foram indeferidas pelo o Tribunal a quo.
39. O Tribunal a quo, devia, ter complementado e levado a cabo os meios de prova indicados pelas assistentes no RAI, uma vez que é uma prova fulcral para a descoberta da verdade dos factos e à boa decisão da causa.
40. Ora, na fase de instrução, a atividade de averiguação processual desenvolvida há de ser complementar a que foi levada a cabo durante o inquérito, destinando-se a uma indagação mais aprofundada dos factos, da sua imputação ao agente e do respetivo enquadramento jurídico-penal (...).
41. Assim, o Tribunal a quo ao indeferir as provas requeridas pelas assistentes, violou o preceito legal 287.º, n.º 2 do Código do Processo Penal.
42. Nestes termos, requer-se a V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, que revoguem a decisão instrutória recorrida, a qual deve ser substituída por outra que o Tribunal a quo determine a realização das diligências probatórias requeridas pelas assistentes CC e BB no requerimento de abertura de instrução, designadamente a acareação das testemunhas arroladas pelo arguido em sede de inquérito, a inquirição dos dois trabalhadores que acompanhavam o arguido na realização da obra, os depoimentos dos três agentes KK, Guarda-principal, número ...; LL, Guarda-principal, número ... e MM, Guarda, número ... e a inquirição da testemunha NN e, por conseguinte, seja proferido despacho de pronúncia.
43. A decisão instrutória recorrida carece de fundamentação, uma vez que nada consta quanto aos motivos de facto e de direito que justificaram a decisão de não pronúncia quanto ao arguido.
44. Segundo o disposto no art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
45. Conforme o disposto no art.º 97.º, n.º 1, al. b) e n.º 5 do Código de Processo Penal, os atos decisórios dos Juízes, têm inevitavelmente de ser fundamentados, o que significa que neles devem ser especificados os motivos de facto e de direito da respetiva decisão, de forma a permitir a sua impugnação.
46. É entendimento    constante        da        jurisprudência que      da interpretação conjugada dos artigos 308.°, n.° 2, e 283.°, n.° 3, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, o despacho de não pronúncia deve enumerar os factos indiciados e não indiciados, pois a sua falta comina em nulidade.
47. O Tribunal a quo tem a tarefa de sanar a irregularidade apontada, colmatando as omissões referidas, no caso, a falta de fundamentação da decisão instrutória por omissão da análise crítica, segundo  as regras da experiência, dos diferentes elementos de prova produzidos no inquérito e na instrução (...).
48. Ora, a decisão instrutória recorrida só faz referência ao depoimento da testemunha DD em sede de inquérito, não fundamenta e não faz uma análise crítica dos meios de prova produzidos na fase de            inquérito e no  RAI, nomeadamente as declarações das assistentes, o depoimento do arguido, os depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido, os depoimentos das testemunhas JJ e FF, mais, não são feitas referências aos documentos juntos pelas assistentes, designadamente os episódios de urgência n.º ...03 e ...04, os exames médicos que as assistentes foram sujeitas, os relatórios de perícia de avaliação de danos corporais das assistentes e os autos de ocorrência n.º ...1 e ...21.
49. Assim, requer-se  a V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, que julguem nula a decisão instrutória recorrida, pelo que deverá ser substituída por outra decisão, que proceda à reparação da irregularidade consistente da falta de fundamentação, uma vez que a decisão instrutória recorrida não enumera os factos indiciados e não faz a análise crítica das provas produzidas em sede de inquérito e no requerimento de abertura de instrução e, por consequência, seja proferido despacho de pronúncia, sendo que há indícios suficientes da prática pelo arguido dos crimes que as assistentes lhe imputam.
50. O Tribunal a quo proferiu despacho com a referência n.º ...02, de 28/10/2022, tendo o mesmo Tribunal julgado expressamente tempestivo e legalmente admissível o requerimento de abertura de instrução e declarado aberta a fase de        instrução criminal requerida pelas   assistentes (sublinhado nosso).
51. Ora, o despacho que admitiu o RAI e declarou aberta a instrução foi notificado ao Ministério Público, às assistentes, a mandatária das assistentes, ao arguido e à sua defensora, de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 287.º do Código de Processo Penal,  não foi interposto qualquer recurso ou impugnada a respetiva validade ou eficácia, pelo que o mesmo se considera legalmente transitado em julgado.
52. As assistentes indicaram no RAI todos os elementos (cfr. art. º 287.º, n.º 2 do CPP), os actos de instrução, diligências probatórias que pretendiam que a Mm.ª Juiz de Instrução Criminal leva-se a cabo, nomeadamente os meios de prova que não tinham sido considerados em sede de inquérito e que se tornam indispensáveis para a descoberta da verdade.
53. O Tribunal a quo depois de receber o requerimento de abertura de instrução, julgá-lo legalmente admissível, declarou aberta a instrução, posteriormente, em sede de decisão instrutória, reverte a sua anterior decisão e declara a inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução    já julgado legalmente admissível por decisão anterior, já transitada em julgado (sublinhado nosso).
54. Assim, por via da decisão recorrida, foi violado o caso julgado formal, formado pelo despacho com a referência n.º ...02,     de 28/10/2022 e violado o princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança, firmado ao princípio do Estado de Direito Democrático (sublinhado nosso).
55. Cabia apenas ao Tribunal a quo, decidir se existiam ou não indícios suficientes da prática dos crimes pelo arguido, ao invés do Tribunal a quo proferir decisão de não pronúncia do arguido, atenta a não indiciação dos factos constantes no RAI.
56. A decisão instrutória recorrida é inconstitucional, por violação dos princípios fixados nos artigos, 3.º, n.º 2, 13.º, 18.º, 20.º, 32.º, 202.º e 266.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
57. Assim, nos termos do art.º 613.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil (aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal), proferida a sentença (ou o despacho), fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa.
58. Conforme o disposto no art.º 620.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
59. O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de     determinação  da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito – Ac. do STJ de 18-9-2013, proc. n.º 438/08.....
60. Ora, o despacho proferido pelo Tribunal a quo, com a referência n.º ...02, passou a ter força de caso julgado dentro do processo e fora dele, nos termos do disposto nos artigos 619.º a 621.º do Código de Processo Civil.
61. Assim, nestes termos e segundo o disposto nos artigos 620.º, n.º 1 e 625.º, n.ºs 1 e 2 ambos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal, requer-se a V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, que revoguem a decisão instrutória recorrida, a qual deverá ser substituída por outra decisão que determine ao Tribunal a quo, nos termos dos artigos 307.º e 308.º ambos do Código de Processo Penal, profira decisão instrutória, de despacho de pronúncia, uma vez que há indícios suficientes da prática pelo arguido dos dois crimes de ameaça, p. e. p pelo artigo 153º, n.º 1 do Código Penal e dos dois crimes de ofensa à integridade física, p. e. p pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal que as assistentes lhe imputam.
Nestes termos e nos demais direito, requer-se a V.Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, que seja dado provimento ao presente recurso, e por via dele, deve ser revogada a decisão instrutória recorrida e,em consequência, deve ser proferida decisãoinstrutória de despacho de pronúncia do arguido, pela prática dos dois crimes de ameaça, p.e.p pelo artigo 153.º, n.º 1 doCódigo Penal e dos dois crimes de ofensa à integridade física, p.e.p pelo artigo 143.º, n.º1 do Código Penal, uma vez que estãoreunidos indícios suficientes      na fase de inquérito e no requerimento de abertura deinstrução da prática pelo arguido dos crimes que as assistentes lhe imputam.
Fazendo-se,    assim,  a habitual e inteira JUSTIÇA!
3. O M.P., na primeira instância, respondeu ao recurso, tendo concluído no sentido de que deverá negar-se provimento ao recurso interposto pelas assistentes e, consequentemente, confirmar-se a decisão recorrida.
4. O arguido não respondeu ao recurso.
5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procuradora-Geral Adjunto emitiu o seu parecer, tendo concluído, no sentido (transcrição):
“-Que deverá ser revogado o despacho recorrido na parte relativa à rejeição do R.A.I., por violação do caso julgado formal;
-Que deverá ser declarada a nulidade da decisão recorrida, com fundamento na falta de narração dos factos indiciados e não indiciados, ordenando-se, em consequência, a remessa dos autos ao juiz de instrução criminal, para o seu suprimento, nos termos do artigo 122º do CPP.”.
6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.Penal, sem que tenha sido apresentada qualquer resposta.
7. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso[2] do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP.

Assim, tendo o M.P. proferido despacho de arquivamento e as assistentes reagido, requerendo abertura de instrução, as questões a decidir reconduzem-se a saber se:

- A decisão instrutória não se encontra fundamentada por falta ou insuficiência de análise critica da prova e por não ter indicado os factos suficientemente indiciados e não indiciados;  
- As diligências de prova requeridas pelas assistentes no requerimento de abertura de instrução, as quais foram indeferidas pelo Exmo. Sr. Juiz de Instrução, deveriam ter sido realizadas;   
- A decisão instrutória violou o caso julgado formal, por inicialmente ter admitido o requerimento de abertura de instrução e depois ter decidido rejeitá-lo;  e se
- Os indícios recolhidos são suficientes quanto à pronúncia do arguido pela prática dos crimes de ameaça e de ofensa à integridade física, que lhe foram imputados no requerimento de abertura de instrução e em que são ofendidas as assistentes.   

2. A decisão recorrida

O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):

DECISÃO INSTRUTÓRIA

Foi proferido despacho de arquivamento pelo detentor da ação penal a fls. 94 e ss, relativamente a eventuais factos praticados pelo arguido.
Inconformadas com tal despacho, as assistentes vieram requerer abertura de instrução a fls. 126 e ss, alegando, em suma, que foram ameaçadas e agredidas pelo arguido, pelo que pugnam pela prolação de despacho de pronúncia do crime pelos crimes de ofensa à integridade física e pelo crime de ameaça.
Cumpre, antes do mais, apreciar uma questão que é de conhecimento oficioso e que deveria ter já sido alvo de conhecimento em sede de recebimento de instrução, facto pelo qual nos penitenciamos, mas que não podemos deixar de o fazer neste momento.
Na verdade, o RAI tem que constituir uma autêntica acusação, devendo conter os factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes que imputa ao arguido.
Compulsado o presente RAI, constata-se que o mesmo não contem nenhum facto integrador do elemento subjetivo dos crimes que imputa ao arguido.
A jurisprudência é unânime ao considerar que nestes casos não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, no sentido do decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 12/05/2005.
A entender de outra forma estar-se-ia a transferir para o Juiz de Instrução Criminal o exercício da ação penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e transformar a natureza da instrução de contraditória em inquisitória.
Assim sendo, o RAI que não contenha a descrição dos factos imputados ao arguido (no caso os seus elementos subjetivos) torna-se legalmente inadmissível em instrução e é por isso nulo, devendo ser objeto de rejeição, o que desde já se decide.
Neste sentido, e a título meramente exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 25/11/2022 proferido no processo 4043/16.t9VNG.p1 (disponível em www.dgsi.pt) .
Não obstante, não podemos deixar de nos pronunciar também quanto à existência de indícios, uma vez que teve lugar o debate instrutório, pelo que não o deixaremos de fazer.
Na verdade, as assistentes prestaram declarações em sede de instrução, sendo que a sua versão não é corroborada por nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de inquérito, designadamente a testemunha que elas próprias colocam na hora e local dos factos, de seu nome DD, que prestou declarações a fls. 85 e 86 e narra uma versão diametralmente oposta aquela que foi relatada pelas assistentes.
Ora, a instrução trata-se de sopesar a existência de indícios que terão de ser suficientes no sentido de existir uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição, e no presente caso, na falta de quaisquer outros elementos coligidos, não nos parece que tais indícios sejam de molde a determinar essa condenação, em sede de julgamento, do arguido, já que atenta a contradição entre as versões valerá sempre o principio in dubio pro reo. E na dúvida, haverá que absolver o arguido.
Pelo exposto decide-se pela não pronúncia do arguido atenta a não indiciação dos factos constantes no RAI, determinando-se o oportuno arquivamento dos autos.
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Custas pelas assistentes, com taxa de justiça que se fixa em uma UC cada e a liquidar a final - Artº 8º, nº 9 do RCP e tabela III anexa.
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Transitado em julgado, determino o arquivamento dos autos.
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3. Apreciação do recurso

3.1. As recorrentes alegam que a decisão recorrida (despacho de não pronúncia) não se encontrar fundamentada por falta de análise crítica da prova e por não ter elencado os factos suficientemente indiciados e não indiciados.
3.1.1- No que concerne à questão da falta de enunciação dos factos indiciados e não indiciados, cumpre notar que o despacho de não pronúncia quando conheça do mérito, como ato decisório que é, deve ser fundamentado, devendo ser especificados os fundamentos de facto e de direito, cfr. artigo 97, nº 1 al. b) e nº 5 do CPP. Apenas desse modo é possível o seu escrutínio em sede de recurso. A enumeração dos factos indiciados e não suficientemente indiciados no despacho de não pronúncia é também fundamental para a definição dos termos e efeitos do caso julgado, constituindo a garantia última da segurança jurídica do arguido. Neste sentido, vide v.g.  Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição atualizada, pág. 779. 
Na verdade, relativamente aos factos descritos no despacho de não pronúncia forma-se caso julgado, com força vinculativa dentro e fora do processo, não podendo o processo ser reaberto face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova.
O despacho de não pronúncia não produz os mesmos efeitos que o despacho de arquivamento proferido pelo M.P. no final do inquérito, o qual pode ser reaberto se forem descobertos factos novos, cfr. artigo 279º, nº 1 do CPP.
O despacho de arquivamento constitui uma decisão do Ministério Público, que põe termo ao inquérito, que constitui, como é sabido, uma fase processual dominada pelo princípio do inquisitório e pela falta de contraditório. Pelo contrário, a decisão de não pronúncia é uma decisão jurisdicional proferida por um juiz, após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado.
O despacho de não pronúncia que não especifique os factos suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados afeta o valor da decisão nele tomada e inviabiliza que o tribunal de recurso se pronuncie sobre ele.
Nesta conformidade, a jurisprudência tem seguido, de forma pacífica, o entendimento segundo o qual o despacho de não pronúncia deve enumerar ou especificar os factos suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados.
Mas o mesmo já não sucede quanto ao vício de que padece o despacho que não cumpra tal exigência, defendendo uns que se trata de uma nulidade sanável, defendendo outros  que ocorre nulidade insanável, e ainda outros que se verifica uma irregularidade e, dentro destes, uns entendem que a irregularidade em questão é sanável se não for arguida em conformidade com o disposto no nº 1 do artigo 123º do CPP, e outros que a irregularidade é de conhecimento oficioso na medida em que puder afetar o valor do ato, nº 2 do citado preceito legal[3].
Quanto a nós, entendemos ser de seguir esta última orientação – irregularidade de conhecimento oficioso - porquanto, face à ratio legis da exigência de enunciação dos factos indiciados e não indiciados – possibilidade de reexame em sede recurso e definição dos efeitos do caso julgado –  o seu não cumprimento é suscetível de afetar o valor despacho de não pronúncia. 
Acresce dizer que trata-se de uma irregularidade e não de uma nulidade, sanável ou insanável, porque:
1) A remissão feita pelo n.º 2 do artigo 308º do CPP para o artigo 283º, n.º 3 do CPP - cuja al. b) comina de nulidade a acusação que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança -, só pode respeitar ao despacho de pronúncia, face ao teor das várias alíneas daquele n.º 3 do artigo 283º do CPP, na medida em que as exigências contidas nas alíneas a) a f) não fazem qualquer sentido num despacho de não pronúncia, restando apenas a inócua al. g), que se reporta à data e assinatura, obrigatórias em qualquer despacho;
2) O legislador, com a referida remissão, disse mais do que pretendia, já que a mesma só se justifica em relação ao despacho de pronúncia, e já nunca ao despacho de não pronúncia, porquanto só o primeiro deve conter os requisitos formais de uma acusação, previstos nas alíneas do n.º 3 do art. 283º do CPP, entre eles a descrição dos factos imputados ao arguido (al. b)).
3) Tal como acontece com a acusação que não contenha a narração desses factos, que a lei fulmina com a nulidade, também o despacho de pronúncia que não descreva a factualidade suficientemente indiciada e não indiciada padece de nulidade, a qual é insanável, não obstante o artigo 283º, n.º, 3 do CPP, não o referir expressamente nem a mesma figurar do elenco do artigo 119º do CPP. Tal conclusão decorre da conjugação com o disposto no artigo 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b) do CPP, que prevê a rejeição da acusação que não contenha a descrição dos factos, por ser manifestamente infundada, consequência essa aplicável ao despacho de pronúncia por força da remissão feita pelo artigo 308º, n.º 2 do CPP;
4) O despacho de não pronúncia que seja omisso quanto à descrição dos factos considerados indiciados e não indiciados não padece de nulidade, por tal não estar legalmente previsto, mas sim de mera irregularidade. Com efeito, de acordo com o princípio da legalidade, só são nulos os atos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência, cfr. artigo 118º, n.º 1 do CPP, sendo que, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular, cfr. nº 2 do mesmo preceito legal[4]:
No caso em apreço, as recorrentes não suscitaram a irregularidade no prazo do nº 1 do artigo 123º do CPP, mas apenas no presente recurso. Todavia, porque a irregularidade suscitada, a verificar-se, pode afetar o valor da decisão recorrida, é de conhecimento oficioso, não carecendo, por isso, de ser invocada pelo interessado, podendo ordenar-se a sua reparação no momento em que dela se tomar conhecimento, conforme prevê o n.º 2 do referido preceito legal.
Acresce que, tendo ocorrido despacho de arquivamento do M.P., a instrução requerida pelas assistentes visava a pronúncia do arguido pela prática dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução e dos crimes de ameaça e de ofensa à integridade física simples p. e p. respetivamente pelos artigos 153º, nº 1 e 143º, nº 1, ambos do CP.
Na decisão recorrida, como decorre do seu texto, não foram elencados os factos indiciados e não indiciados, com referência naturalmente ao requerimento de abertura de instrução. No entanto, da sua fundamentação decorre ter-se concluído que o requerimento de abertura de instrução é completamente omisso no que se refere à descrição dos factos que integram o elemento subjetivo dos imputados crimes de ameaça e de ofensa à integridade física simples. Apesar disso, ou seja, pese embora se ter concluído que, por falta de alegação, no requerimento de abertura de instrução, de factos suscetíveis de integrar o elemento subjetivo dos crimes imputados ao arguido, não seria legalmente possível pronunciar o arguido pelos referidos crimes, na decisão recorrida foi apreciada a indiciação dos factos (objetivos)  imputados (sendo que o conhecimento desta questão mostrava-se prejudicado, como explicaremos infra), tendo-se concluído pela não indiciação dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução que corresponde à acusação alternativa deduzida pelas assistentes.
Pese embora existindo o dever de fundamentação de todos os atos decisórios (artigo 97.º do C.P.P.), que assume particularidades quanto à decisão instrutória, a imposição de fundamentação, de facto e de direito, o despacho de não pronúncia, que permita conhecer os factos suficientemente indiciados e não indiciados, não tem de assumir, em todos os casos, a nosso ver, uma mesma configuração prática, podendo bastar-se, num caso como o presente, com a indicação, de forma percetível, ainda que por remissão, dos factos que o tribunal considerou suficientemente indiciados e aqueles que assim não considerou.
Por isso, julgamos que, não obstante não se mostrarem elencados, no despacho de não pronúncia, os factos indiciados e não indiciados, a verdade é que os mesmos foram indicados por remissão[5]   para o requerimento de abertura de instrução. A Senhora Juíza pronunciou-se, por forma inequívoca, sobre eles. Tal não sucederia caso o despacho recorrido se encontrasse fundamentado quanto à suficiência dos indícios com base exclusivamente em considerações de concordância com a argumentação usada pelo M.P. aquando da prolação do despacho de arquivamento.   
Importa reconhecer que esta não é, seguramente, a melhor técnica de elaboração de um despacho de não pronúncia (indicação dos factos não indiciados por remissão, genérica ou na sua globalidade, para o requerimento de abertura de instrução), até porque, com este método, há um risco acrescido de o juiz omitir a realização de uma análise individualizada dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, com as consequências negativas daí decorrentes.
Ora, face à falta de alegação de factos integradores do elemento subjetivo dos tipos legais de crime imputados, e uma vez que os factos (objetivos) não indiciados foram indicados por remissão para o requerimento de abertura de instrução, e porque os factos em causa são simples, resumindo-se, às condutas alegadamente tidas pelo arguido para com as assistentes no dia 20.08.2021, pelas 14.00 horas, conforme descrito no RAI, não se colocando, consequentemente,  qualquer questão relativa à definição dos limites do cado julgado, julgamos não ocorrer a irregularidade apontada.
Por conseguinte, quanto esta questão, não assiste razão às recorrentes.     

3.1.2- Vejamos agora a questão da ausência ou da insuficiência de fundamentação da decisão recorrida por falta de análise crítica da prova.    
No que concerne à fundamentação das decisões dos tribunais o artigo 205º, nº 1 da CRP refere que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Todavia, as exigências de fundamentação e as consequências da falta ou insuficiência da fundamentação não são as mesmas para todos os atos decisórios: existe um regime geral (definido nos artigos 97.º e 118.º a 123.º do Código de Processo Penal) e regimes específicos para a sentença (artigos 374.º e 379.º), para os despachos que aplicam medidas de coação e de garantia patrimonial (artigo 194.º), para a acusação pelo Ministério Público, pelo assistente e acusação particular (artigos 283.º, n.º3, 284, n.º2 e 285.º, n.º3, respetivamente), para o despacho de pronúncia ou de não pronúncia e decisão instrutória (artigos 308.º, n.º2 e 309.º).
No caso vertente, está em causa um despacho de não pronúncia. O despacho de não pronúncia constitui obviamente um ato decisório, ao qual não se aplica o regime dos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1 al. a) do CPP, previstos especialmente para a sentença /acórdão, sendo antes aplicável a exigência geral de fundamentação dos atos decisórios de acordo com o disposto no artigo 97º, nº 5, do CPP. A falta de análise ou de apreciação dos indícios dos factos imputados no requerimento de abertura de instrução, porque não se encontra prevista como nulidade constitui uma irregularidade processual, cfr. artigo 118º, nºs 1 e 2 do CPP. Neste sentido, vide v.g. Ac RL de 02.11.2006, processo 6988/06-9, citado por Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 278., e Ac. TRL de 17-02-2010, CJ, 2010, T1, pág.143, segundo o qual “A falta de fundamentação de um despacho só gera a sua nulidade nos casos como tal tipificados”. 
O regime de arguição das irregularidades encontra-se previsto no artigo 123º do C.P.P., pelo que, no caso, as assistentes deveriam ter suscitado a irregularidade perante o tribunal que proferiu a decisão no próprio ato, cfr. nº 1 do aludido preceito legal.
Mas não foi isso que sucedeu, porquanto as assistentes, para além de não terem suscitado a referida irregularidade no referido momento, apenas em sede do presente recurso suscitaram tal questão. Assim, a ter ocorrido a irregularidade suscitada, a mesma encontra-se sanada.
Nestes termos, quanto à questão mencionada, não assiste razão às recorrentes. 

3.2- Segundo as recorrentes, a Exma. Sr. Juíza de Instrução deveria ter determinado a realização das diligências de prova por elas requeridas no requerimento de abertura de instrução.
As referidas diligências de prova são: a acareação das testemunhas arroladas pelo arguido em sede de inquérito; a inquirição dos dois trabalhadores que acompanhavam o arguido na realização da obra; os depoimentos dos três agentes KK, Guarda-principal, número ...; LL, Guarda-principal, número ... e MM, Guarda, número ...; e a inquirição da testemunha NN. As recorrentes indicam como  tendo sido violado o disposto no artigo 287º, nº 2 do CPP.
Relativamente às diligências de prova a efetuar na instrução, o juiz de instrução pratica todos os atos necessários à realização das finalidades da instrução, ou seja, com vista a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, cfr. 290º, nº 1 e 286º, nº 1, ambos do CPP.
Porém, a lei confere ao juiz de instrução o poder de praticar os atos de instrução que entenda dever levar a cabo, com exceção daqueles que estejam tipificados na lei como obrigatórios, de que é exemplo o interrogatório do arguido e audição da vítima, a requerimento destes, cfr. 289º, nº 1 e 292º, nº 2, ambos do CPP.
O juiz, por despacho irrecorrível - mas que admite reclamação - indefere os atos requeridos que entenda não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente queles que considerar úteis, cfr. artigo 291º do CPP.
Acresce dizer que em processo penal, no que concerne às nulidades, vigora o princípio da legalidade ou tipicidade, pois que a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei, cfr. nº 1 do artigo 118º do C. P. Penal. A irregularidade processual tem carácter residual, uma vez nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular, cfr. nº 2 do aludido preceito legal.
No caso vertente, sendo verdade que as assistentes requereram as diligências referidas, cuja realização foi indeferida pela Exma. Senhora Juíza de Instrução,  este despacho é irrecorrível. Todavia, as assistentes não reclamaram de tal despacho.
No sobredito contexto, em virtude da não realização das referidas diligências de prova, as recorrentes - que não invocaram ter sido cometida qualquer nulidade ou irregularidade - defendem ter sido violado o disposto no artigo 287º, nº 2 do CPP, com o argumento de que não foram realizados meios de prova não considerados no inquérito.
A instrução foi requerida pelas assistentes, com vista à pronúncia do arguido pelos factos e pelos crimes que aquelas lhe imputam no requerimento de abertura de instrução. 
Acontece que as diligências de prova que as assistentes pretendem ver realizadas e que, como dissemos, foram indeferidas pela Exma. Senhora Juíza de Instrução,  não constituem atos que o juiz de instrução obrigatoriamente tivesse de levar a cabo, caso em que teria sido cometida a nulidade do artigo 120º, nº 2 al. d) do CPP. Mas ainda que assim não fosse, tal nulidade estaria sanada, porquanto deveria ter sido invocada até ao encerramento do debate instrutório e não apenas em sede do presente recurso, o que nem sequer sucedeu, cfr. artigo 120º, nº 3 al. c) do CPP.
Nesta conformidade, também quanto a esta questão não assiste razão às recorrentes.

3.3- Segundo as recorrentes a decisão recorrida violou o caso julgado formal, por inicialmente ter admitido o requerimento de abertura de instrução e depois ter decidido rejeitá-lo. Assim, na tese por elas defendida, nos termos em que foi admitida a instrução, a questão oficiosamente suscitada no despacho recorrido não poderia ter sido apreciada por estar coberta pelo caso julgado formal.
Porém, não lhes assiste razão.
Relativamente à questão suscitada, está em causa o despacho que admitiu o requerimento de abertura de abertura de instrução, o qual, na parte que para aqui releva, tem o seguinte teor:
“Por não se verificar nenhum dos circunstancialismos previsto no nº 3 do artigo 287 do Código de Processo Penal, sendo que o Tribunal é o competente (cfr. artigo 19º do Código do Processo Penal), as requerentes têm legitimidade (cfr. artigo 287º, nº 1 al. b), do Código de Processo Penal e o despacho de arquivamento proferido, está em tempo (cfr. artºs 287º, nº 1 113, admito o requerimento de abertura de instrução formulado pelas assistentes e, em consequência, declaro aberta a instrução.
Autue como instrução.
Notifique nos termos legais (artigo 287º, nº 5, do Código de Processo Penal).”

Outrossim, no despacho recorrido acima transcrito referiu-se, nomeadamente,  que: “Cumpre, antes do mais, apreciar uma questão que é de conhecimento oficioso e que deveria ter já sido alvo de conhecimento em sede de recebimento de instrução, facto pelo qual nos penitenciamos, mas que não podemos deixar de o fazer neste momento.
Na verdade, o RAI tem que constituir uma autêntica acusação, devendo conter os factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes que imputa ao arguido.
Compulsado o presente RAI, constata-se que o mesmo não contem nenhum facto integrador do elemento subjetivo dos crimes que imputa ao arguido.
A jurisprudência é unânime ao considerar que nestes casos não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, no sentido do decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 12/05/2005.
A entender de outra forma estar-se-ia a transferir para o Juiz de Instrução Criminal o exercício da ação penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e transformar a natureza da instrução de contraditória em inquisitória.
Assim sendo, o RAI que não contenha a descrição dos factos imputados ao arguido (no caso os seus elementos subjetivos) torna-se legalmente inadmissível em instrução e é por isso nulo, devendo ser objeto de rejeição, o que desde já se decide.
Neste sentido, e a título meramente exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 25/11/2022 proferido no processo 4043/16.t9VNG.p1 (disponível em www.dgsi.pt).”
Seguidamente, no despacho recorrido, foi apreciada a suficiência de indícios, tendo concluído pela não pronúncia do arguido atenta a não indiciação dos factos constantes no RAI, determinando-se o oportuno arquivamento dos autos.
Ora, como começamos por dizer, não assiste razão às recorrentes, desde logo porque o despacho que admitiu a instrução é meramente tabelar, genérico, quanto aos pressupostos da amissibilidade da instrução, pelo que nenhuma questão nele foi especificamente apreciada. Por este motivo, esta decisão não faz caso julgado formal quanto à questão da falta de alegação de factos que integram o elemento subjetivo dos crimes imputados no requerimento de abertura de instrução apreciada pela primeira e única vez no despacho recorrido.
A propósito do caso julgado formal resultante de decisões tabelares ou genéricas o STJ, relativamente a questões diversas daquela que está aqui em apreciação, uniformizou jurisprudência no sentido de que «A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento», cfr. AUJ 2/95 de 16-05-1995, DR 135/95 Série I-A, de 12-06-1995; bem assim que  «O despacho genérico ou tabelar de admissão de impugnação de decisão da autoridade administrativa, proferido ao abrigo do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, não adquire força de caso julgado formal», cfr. AUJ n.º 5/2019, de 04-07-2019, DR 185/2019, Série I de 2019-09-26,       
Neste último aresto, refere-se, nomeadamente, que:
«O caso julgado formal constitui noção separada do caso julgado que, como categoria geral (caso julgado material) está construída para a decisão definitiva do direito do caso, nas condições da sua existência, conteúdo e modalidades de exercício; no processo penal respeita à declaração sobre a culpabilidade e determinação da sanção, bem como da não culpabilidade (seja por não pronúncia ou por absolvição).
«O caso julgado formal respeita ao efeito da decisão no próprio processo em que é proferida».
«O caso julgado material consubstancia a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objecto» e «tem um valor impeditivo da renovação da apreciação judicial sobre a mesma matéria» - cf. Cavaleiro de Ferreira, loc. cit., p. 25.
O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos materiais quanto à definição e concretização judicial da relação controvertida ou objecto material do processo, é o caso julgado material - fixado e estável com fundamento na vinculação às decisões e na realização dos valores da justiça, certeza e segurança, também no âmbito do exercício do direito de punir do Estado em relação ao cidadão arguido da prática de uma infracção penal.
Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.
O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial.
Há caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati) - cf. acórdão do Supremo Tribunal de 23 e Janeiro de 2002, proc. 3924/01.
O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade - a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, mas supondo a inalterabilidade subsequente dos pressupostos de conformação material da decisão.
No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta.
O procedimento é dinâmico, sequencial e, como contínuo instrumental, subsiste até ao momento em que o processo atinja a sua finalidade - a obtenção de uma decisão que lhe ponha termo, seja decisão final sobre pressupostos negativos de procedimento ou sobre a verificação de condições extintivas, seja decisão final de determinação, positiva ou negativa, da culpabilidade ou de aplicação da sanção que couber. Mas no contínuo dinâmico e instrumental, submetido a regras próprias, o procedimento pode sempre cessar por motivo que produza esse efeito - v. g., a prescrição.
Mas, assim, na perspectiva instrumental e no espaço de garantias que é o processo, mudando os pressupostos de que depende a realização da finalidade a que está vinculado - a realização da justiça do caso, no respeito por regras materiais e de acordo com princípios estruturantes - deixa de subsistir a razão do caso julgado formal que não pode impedir a realização da finalidade que justifica a sua razão instrumental.» 
Como é sabido, no Código de Processo Penal não existe qualquer norma relativa ao caso julgado. Por isso, estamos perante uma lacuna, pelo que de acordo com o disposto no seu artigo 4º, importa para o efeito recorrer às normas do Código de Processo Civil, o qual no seu artigo 595º, nº 3 estabelece que “No caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas”. Em face do teor desta norma, em processo civil, é entendimento pacífico segundo o qual o caso julgado apenas se forma relativamente a questões ou exceções dilatórias que tenham sido concretamente apreciadas e nos limites dessa apreciação, não valendo como tal a mera declaração genérica sobre a ausência de alguma ou da generalidade das exceções dilatórias.
Acresce dizer que, no caso em apreço, relativamente à decisão instrutória, seja despacho de pronúncia ou de não pronúncia, o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer, cfr. nº 3 do artigo 308º do CPP.
Porém, é evidente que a Exma. Senhora Juíza de Instrução podia e devia ter conhecido, desde logo, no despacho de abertura da instrução a questão posteriormente apreciada no despacho recorrido, como aliás aí foi por ela reconhecido, o que apenas por lapso não sucedeu, não admitindo a instrução, por inamissibilidade legal, em conformidade com o disposto no artigo 287º, nº 2 in fine do CPP.
Mas, o certo é que depois de declarada a aberta a fase de instrução, o processo não podia “fazer marcha atrás”. Isto só sucederia caso tivesse sido declarada alguma nulidade suscetível de produzir este efeito.  Neste sentido pode falar-se de caso julgado formal quanto à questão da abertura da instrução, pois que o juiz depois de a ter declarado aberta não pode dar o dito por não dito. Assim sendo, estava a Senhora Juíza de Instrução obrigada a realizar debate instrutório, mas na decisão instrutória, que obrigatoriamente tinha de proferir, não estava impedida, bem pelo contrário, de analisar qualquer pressuposto indispensável à realização da instrução que anteriormente apenas tenha sido enunciado de forma tabelar, liminar e genérica.
Aliás, o entendimento que aqui defendemos, segundo o qual por a decisão ser tabelar ou genérica não ocorre caso julgado formal, é o que melhor se compatibiliza com a regra do dever de fundamentação dos atos decisórios contida no artigo 97.º n.º 5, do CPP, enquanto consagração do disposto no artigo 205.º n.º 1, da CRP, e no artigo 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Na verdade, como se salienta numa das declarações de voto do citado AUJ n.º 5/2019, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [«dos direitos humanos»] vem interpretando o artigo 6.º da «Convenção para a protecção dos Direitos do Homem [«dos direitos humanos»] e das liberdades fundamentais» no sentido de que a fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspectos do direito a um processo equitativo protegido por esta disposição, a qual impõe, assim, o dever de os tribunais motivarem adequadamente as suas decisões, de acordo com a sua natureza (por todos, o acórdão de 9 de Julho de 2007, no caso Tatishvili c. Rússia, n.º 1509/02)”, sublinhado nosso.
Por último, e ao contrário do defendido pelas recorrentes, a posição aqui defendida em nada colide com o disposto nos artigos 3º, nº 2, 13º, 18º, 20º, 202º e 266º, todas da CRP, sendo que as recorrentes não concretizam em que medida estes preceitos foram violados, quedando-se por uma alegação genérica. Com efeito, a posição que defende não ocorrer caso julgado formal tem apenas como efeito o reconhecimento de uma situação factual existente ( omissão de factos do requerimento de abertura de instrução, que aliás, nunca foi escamoteada pelas próprias recorrentes)  que não foi apreciada no momento processual próprio, mas que, apesar disso, o próprio processo permite conhecer e de facto foi conhecida ulteriormente.
Em suma, improcede o segmento do recurso em apreço.

3.4- Não obstante terem suscitado a sobredita questão do caso julgado formal, o qual como vimos não ocorre, as recorrentes não se insurgiram contra a questão de fundo subjacente ao alegado caso julgado, mas que foi apreciada no despacho recorrido, de o requerimento de abertura de instrução ser completamente omisso quanto aos factos suscetíveis de integrar o elemento subjetivo dos crimes de ameaça e de ofensa à integridade física simples imputados ao arguido.
A verdade é que o reconhecimento da referida ausência de factos prejudica, constituindo uma completa inutilidade, a discussão da suficiência / insuficiência de indícios, uma vez que mesmo a verificar-se a suficiência de indícios dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, estes factos, por serem insuficientes, nunca poderão conduzir à pronúncia do arguido. Na verdade, face à referida insuficiência de alegação, os factos descritos no requerimento de abertura de instrução não constituem crime. 
 No sentido de esta questão ser melhor percecionada, mas apenas na perspetiva de evidenciar a inutilidade da discussão da suficiência / insuficiência de indícios a que o tribunal recorrido procedeu (e que as recorrentes pretendem ver aqui novamente apreciada), importa voltar à questão da omissão, no requerimento de abertura de instrução, de factos suscetíveis de integrar o elemento subjetivo dos crimes de ameaça e de ofensa à integridade física simples imputados ao arguido. 
De acordo com o disposto no nº1 do artigo 286º do CPP “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
No caso vertente, o M.P. arquivou o inquérito por insuficiência de indícios para deduzir acusação contra o arguido.
Por discordar da decisão de arquivamento, as assistentes requereram instrução, apresentando requerimento nesse sentido.
A instrução, apesar de ser facultativa, na medida em que para ter lugar tem de ser requerida em conformidade com o disposto no artigo 286º do CPP, não será de realizar somente porque quem tem legitimidade para o fazer a requer.
No caso em apreço, como vimos, a Exma. Senhora Juíza de Instrução, no momento próprio, podendo e devendo tê-lo feito, não rejeitou o requerimento de abertura de instrução deduzido pelas assistentes por inadmissibilidade da instrução, por falta de objeto legal suficiente (omissão no RAI de facto factos relativos ao elemento subjetivo dos crimes imputados), cfr. nº 3 do artigo 287º do CPP.  Contudo, em sede de decisão instrutória, ainda em tempo, conheceu da referida questão, tendo proferido despacho de não pronúncia do arguido.
A lei é clara quanto aos requisitos a que deve obedecer o requerimento de abertura de instrução. Na verdade, pese embora nela se estabeleça que o mesmo não está sujeito a formalidades especiais, no que para o caso releva, refere que “deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação” (…) “sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º…”, cfr. nº 2 do artigo 287º do CPP.
  O artigo 283º, nº 3 als. b) e c) do CPP refere-se aos factos e às disposições legais que a acusação deverá conter sob pena de ser nula.
De forma que, em face da conjugação das disposições legais acima citadas, resulta que o requerimento de abertura de instrução do assistente em caso de arquivamento do M.P., para além de conter as razões de facto e de direito de discordância relativamente ao arquivamento, tem de ter a estrutura de uma acusação, isto é, a acusação que, no seu entender, o M.P. deveria ter deduzido.
E, sendo assim, o assistente, no requerimento de abertura de instrução, para além de explicar, por forma fundamentada, as razões pelas quais, no seu entender, a decisão mais correta é a decisão de acusar e não de arquivar, deverá, sob a forma de uma acusação, descrever os factos praticados, imputando-os ao arguido, fazendo deles constar todos os elementos típicos (objetivos e subjetivos) dos tipos legais de crime que julgue estar suficientemente indiciados, os quais deverá igualmente imputar, indicando as disposições legais em causa, cfr. v.g. Ac RE de 24.10.2017, processo nº 321/15.8PAPTM.E1, disponível em www.dgsi.pt.
O requerimento de abertura de instrução que não impute os factos típicos do crime, nem as correspondentes disposições legais, padece de nulidade, estando destinado ao insucesso, uma vez que é o requerimento de abertura de instrução que define o objeto do processo, inviabilizando a realização da instrução e um eventual despacho de pronúncia, cfr. artigos 283º, nº 3, 303º e 309º, 1ºal, f), todos do C.P.Penal, cfr. v.g. Ac. RC,  de 13.03.2019, processo 353/16.9T9LRA.C1 e Ac. RL de 12.03.2019, processo 5257/16.2T9SNT.L1-5, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
É esta uma decorrência do princípio do acusatório. Como é sabido, o sistema processual português não é acusatório puro, mas obedece a uma estrutura basicamente acusatória, integrada por um princípio de investigação da verdade material. 
Com efeito, o nº 5 do artigo 32º da CRP diz que “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.
O princípio da acusação significa que o julgador não pode acumular as funções de acusação e investigação, mas pode apenas julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferente (entre nós, MP ou juiz de instrução).
A intencionalidade do princípio é a garantia de imparcialidade do julgador e a igualdade de armas. Por isso mesmo, o MP não pode ser dono do processo nas fases de instrução e julgamento.
O princípio da acusação impõe a vinculação temática e a limitação dos poderes de cognição do juiz de instrução (artigo 309º, nº 1 ) e do juiz de julgamento (artigo 284º, nº1, 359º, nº 1,e, nos crimes particulares, artigo 285º, nº 1, 359º, nº 1), cfr. Paulo Sousa Mendes, Lições de Direito Processual Penal, Almedina 2014, pág. 203-204.
O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento” cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 205-206.
O processo penal de tipo acusatório opõe-se ao processo penal de tipo inquisitório, em que o juiz investiga livremente e sem limitação alguma, independentemente de qualquer acusação e, mesmo que tal acusação exista, ela apenas determina o se da investigação judicial, não o seu como nem o seu quanto, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1984, reimpressão, pág. 136 e segs.
No caso do requerimento de abertura de instrução não imputar factos típicos do crime o juiz está impedido de convidar o assistente a aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução. Efetivamente, na sequência de jurisprudência divergente, o STJ no AFJ nº 7/2005, in DR, I Série A, Nº 212, de 04.11.2005  firmou jurisprudência no sentido de que «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.»
Acresce que o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido de que não é inconstitucional a interpretação do nº 2 do artigo 287º do CPP efetuada pelo STJ no citado AFJ, cfr. Ac TC de 175/2013.
No caso vertente, as assistentes, no requerimento de abertura de instrução, alegam as razões da sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público. Este é, porém, como vimos, apenas o primeiro item que deverá constar do requerimento de abertura de instrução, devendo dele constar também a acusação que, no entender das assistentes, o M.P. deveria ter deduzido em lugar do arquivamento.
Ora, na acusação que deduziram contra o arguido, as assistentes omitiram os factos subjetivos dos crimes que imputaram ao arguido. É que não basta afirmar-se ter o arguido incorrido na prática dos crimes de ameaça e de de ofensa à integridade física simples, indicando as normas legais que os tipificam, com descrição dos factos objetivos, para daí se concluir pela descrição dos elementos do dolo.
Outrossim, se o juiz de instrução está impedido de convidar o assistente a aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, por maioria de razão não poderá ser ele próprio formular a acusação sob a forma de despacho de pronúncia, extraindo os factos de uma acusação deficientemente elaborada.
  A este propósito importa recordar que  segundo o AFJ nº 1/2015, in DR Série I, Nº 18, de 27.01.2015, «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Em caso como o presente, em que falta a alegação de factos que integrem o elemento subjetivo do tipo de ilícito, não tem aplicação o mecanismo da alteração não substancial ou substancial dos factos dos artigos 358º e 359º do CPP, porque não está em causa a imputação de um crime diverso, mas antes a transformação de uma conduta não punível numa conduta punível, numa conduta atípica numa conduta típica. Os factos descritos não constituem crime, cfr. neste sentido vide o citado AFJ 1/2015.   
Por conseguinte, no caso vertente, os factos descritos pelas assistentes no requerimento de abertura de instrução não constituem crime. A falta de alegação no requerimento de abertura de instrução de factos relativos ao elemento subjetivo dos crimes imputados – não questionada pelos recorrentes -  prejudica conhecimento da questão da suficiência / insuficiência dos factos (objetivos) nele descritos, razão perla qual não se procede ao seu conhecimento.
Assim, em face do que fica dito, impõe-se julgar improcedente o presente recurso interposto pelas assistentes e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

III- DECISÃO  

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento recurso interposto pelas assistentes e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelas recorrentes, com taxa de justiça que se fixa em 3 Ucs – artigos 515º, nº 1 b) do C.P.P. e artigo 8º, nº 9 do R.C.P. e tabela III anexa a este último diploma legal.
Notifique.

Texto integralmente elaborado e revisto pelo seu relator – artigo 94º, nº 2 do CPP, encontrando-se assinado eletronicamente na 1ª página, nos termos do disposto no artigo 19º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.
Guimarães, 26.06.2023

Armando Azevedo (Relator)
Cândida Martinho (1ª Adjunta)
António Teixeira (2º Adjunto)



[1] Nas transcrições de peças processuais irá reproduzir-se a ortografia segundo o texto original. As conclusões transcritas são aquelas que foram apresentadas pelas recorrentes na sequência de despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 417º, nº 3 do CPP, sob promoção do Exmo. Procurador-Geral Adjunto.
[2] De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr.  Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
[3] Assim, vide, entre outos, Ac. RG de 23.10.2017, processo 781/14.4GBGMR.G1; Ac. RP de 14.06.2017, processo 5726/14.9TDPRT.P1; Ac. RG de 12.10.2020, processo 421/18.2GCVRL.G1; Ac. RG de 22.02.2021, processo 10/15.3T9BGC-A.G1; Ac. RP de 22.09.2021, processo  todos disponíveis em www.dgsi.pt e a jurisprudência neles citada.
[4] Neste particular, aderimos à orientação jurisprudencial aludida, pelo que aqui  seguimos de perto o vertido no Ac. RG  de 12.10.2020, processo 421/18.2GCVRL.G1 disponível em www.dgsi.pt, representativo dessa corrente.  
[5] cfr. Ac. RL de 13.07.2021, processo 5784/18.7T9LSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt