Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
| Processo: |
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| Relator: | CARLA OLIVEIRA | ||
| Descritores: | FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO NULIDADE PROCESSUAL RECLAMAÇÃO RECURSO TRÂNSITO EM JULGADO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 11/16/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I- A arguição da nulidade ao abrigo do disposto no art.º 195º, do NCPC só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou a autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente. II- Nesses casos, a nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve comunica-se ao despacho ou decisão proferidos, pelo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso dessa decisão, caso a mesma o admita, sob pena de passar a mesma a ter força obrigatória dentro do processo, conforme determina o art.º 620º, do NCPC. III- A falta de fundamentação de facto e de direito é causa geradora de nulidade das sentenças e dos despachos, nos termos previstos nos art.ºs 615, nº 1 e 613º, nº 3, do NCPC. IV- Porém, a não fundamentação de um despacho não impede o seu trânsito em julgado, devendo ser arguida a sua nulidade nos prazos legais de recurso. V- Não sendo interposto recurso da decisão, nomeadamente com fundamento em tal vício, a mesma transita em julgado, operando caso julgado formal, tornando-se inatacável e inquestionável intra processualmente, independente da bondade dos fundamentos jurídicos em que o nela decidido se alicerçou. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório AA instaurou, em 19.03.2019, no Cartório Notarial da Exmª Sra. Dra. BB, em ..., processo especial de inventário para partilha de bens por divórcio, tendo indicado como cabeça de casal o requerido CC. Entretanto, a requerente pediu, nos termos do disposto no art.º 12º, nº 2, al. b) da Lei 117/2019 de 13.09, a remessa do processo para o tribunal competente, o que veio a ser deferido, passando este a correr sob o nº 234/20.... no Juízo de Competência Genérica ... do Tribunal Judicial .... Após ter sido apresentada a relação de bens por parte do cabeça de casal CC, foi deduzida reclamação pela interessada AA, acusando a falta de bens móveis e de verbas no passivo (bens e verbas que discrimina e indica os respectivos valores) e pedindo a rectificação do valor da verba nº 2 do activo (indicando igualmente o valor que deve passar a constar) e a exclusão de outras verbas do passivo e activo. Na sequência foi convocada uma audiência prévia, na qual, para além do mais, se tentou obter a conciliação das partes, sem sucesso. E posteriormente, em 29.04.2022, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: “Notifique o cabeça de casal para no prazo de 10 dias completar a relação de bens e corrigir a mesma em conformidade com a oposição apresentada por AA, pois não respondeu à reclamação em causa nos autos – arts. 1105º, nº 1, 574º por aplicação do disposto no art. 587º, nº 1, todos do CPC.”. Não tendo sido dada resposta, o cabeça de casal foi novamente notificado, nomeadamente, nos dias 10.10.2022, 26.10.2022, 7.12.2022, 13.01.2023 para, no prazo de 10 dias, dar cumprimento ao despacho datado de 29.04.2022, sob pena de condenação em multa por falta de colaboração processual. Em 16.03.2023, o cabeça de casal, alegando estar impossibilitado de dar cumprimento ao ordenado no despacho proferido em 29.04.2022, requereu que o tribunal a quo procedesse à realização das diligências instrutórias necessárias para decidir a matéria da reclamação de bens e em seguida fosse proferido despacho de saneamento do processo para determinação dos concretos bens do casal a partilhar. Após ter sido exercido o contraditório, em 19.04.2023, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Reqs. de 16.03.2023 e de 20.03.2023 No nosso ordenamento jurídico está consagrado o princípio do auto-esgotamento do poder jurisdicional no artigo 613º, n.º 1 e 3, do Novo Código de Processo Civil. Desta regra resulta que, uma vez proferida a decisão, fica esgotado imediatamente o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, pelo que em relação ao despacho de 22.04.2022, encontra-se há muito esgotado o poder jurisdicional, pelo que se indefere o requerido por manifesta falta de fundamento legal – art. 613º, nº1 e 3 do CPC. Uma vez que o cabeça de casal, notificado novamente em 16.01.2023 para cumprir os despachos de 26.10.2022, de 10.10.2022 e de 29.04.2022, e apesar de o ter sido sob cominação por falta de colaboração processual caso persistisse na omissão voltou a não o fazer, vai condenado em multa ao abrigo do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPC, fixando-se a mesma em duas UCs. Notifique e insista pelo seu cumprimento, no prazo de 10 dias, sob pena de nova condenação em multa por falta de colaboração processual – art. 417º do CPC.”. Inconformado, por requerimento datado de 12.05.2023, o cabeça de casal apelou do aludido despacho, tendo formulado as seguintes conclusões: “1º Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido pela Mma. Juiz do Tribunal a quo, datado de 19/04/2023, que indeferiu a reclamação do requerente, datada de 16/3/2023, nos termos da qual foi peticionado, que fosse dado cumprimento aos artigos 1109º e 1110º do CPC: “realização das diligências instrutórias necessárias para decidir a matéria da reclamação de bens e em seguida seja proferido despacho de saneamento do processo para determinação dos concretos bens do casal a partilhar.” 2º Entendeu a Mma. Juiz do Tribunal a quo, no despacho datado de 19/04/2023 que, nos termos do princípio do auto-esgotamento do poder jurisdicional previsto no artigo 613º, n.º 1 e 3, do Novo Código de Processo Civil, “resulta que, uma vez proferida a decisão, fica esgotado imediatamente o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, pelo que em relação ao despacho de 29.04.2022, encontra-se há muito esgotado o poder jurisdicional, pelo que se indefere o requerido por manifesta falta de fundamento legal – art. 613º, nº1 e 3 do CPC.” Isto porque, 3º Por despacho datado de 29 de abril de 2022 foi o cabeça de casal notificado para no prazo de 10 dias completar a relação de bens e corrigir a mesma em conformidade com a oposição apresentada por AA, porquanto não respondeu à reclamação em causa nos autos. 4º Despacho que o cabeça de casal se encontra impossibilitado de concretizar, porquanto, 5º após a realização da audiência prévia, nos termos do artigo 1109º n.º 3 do CPC, na falta de obtenção de acordo entre as partes, “deveria o Juiz proceder à realização das diligências instrutórias necessárias para decidir as matérias que tenham sido objeto de oposição”. 6º E, nos termos do artigo 1110º n.º 1 alínea a) do CPC, “Depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias, o juiz profere despacho de saneamento do processo em que: a) Resolve todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar.”. 7º Salvo o devido respeito e opinião contrária, tendo havido extensa e complexa reclamação à relação de bens apresentada pela interessada AA e não tendo havido acordo entre as partes na audiência prévia, deveria ter sido dado cumprimento ao disposto nos referidos artigos 1109º n.º 3 e 1110º n.º 1 alínea a) do CPC, de forma a que o cabeça de casal consiga elaborar a correta relação dos bens comuns do casal. 8º O que não sucedeu no processo. 9º Após ter sido apresentada a Relação de Bens nos autos por parte do cabeça de casal e depois de ter sido a mesma reclamada pela interessada AA e de ter sido convocada uma audiência prévia realizada no dia 19/4/2022 na qual não se logrou obter a conciliação das partes, a Meritíssima Juiz à quo proferiu despacho datado de 29/4/2022 em que ordenou a “notificação do cabeça de casal para no prazo de 10 dias completar a relação de bens e corrigir a mesma em conformidade com a oposição apresentada por AA, pois não respondeu à reclamação em causa nos autos.” 10º Posteriormente a essa data, o cabeça de casal foi novamente notificado no dia 10/10/2022, 26/10/2022, 7/12/2022, 13/1/2023 e agora mais recentemente em 19/4/2023, para no prazo de 10 dias, dar cumprimento ao despacho datado de 29 de abril de 2022 sob pena de condenação em multa por falta de colaboração processual – artigo 417º do CPC. 11º Só agora, o cabeça de casal se apercebeu que a sua dificuldade em dar cumprimento ao despacho datado de 29/4/2022 se deve ao facto de estar em falta a prática de formalidade essencial no processo, a qual foi devidamente reclamada no processo no dia 16/3/2023. Na verdade, conforme já referido, 12º A Meritíssima Juiz a quo, salvo o devido respeito e opinião contrária, deveria ter dado cumprimento ao estatuído nos artigos 1109º n.º 3 e 1110º n.º 1 al. c) do CPC, e, não o tendo feito, cometeu a Meritíssima Juiz à quo NULIDADE por preterição de formalidade processual, nos termos do artigo 195º do CPC, sendo essa formalidade essencial para o exame ou decisão da causa, encontrando-se a impedir o correto desenvolvimento do processo, porquanto impede o cabeça de casal de corrigir a relação de bens em conformidade com a reclamação apresentada. Na verdade, 13º Na reclamação apresentada pela interessada AA, foram apresentados documentos e alegados factos que urge apreciar e decidir da sua admissibilidade, trabalho que compete à Meritíssima Juiz à quo executar e não ao cabeça de casal, que não tem poderes nem conhecimentos para esse efeito. 14º E que impedem o cabeça de casal de proceder à correta elaboração da relação de bens em conformidade com a dita reclamação apresentada. 15º Nulidade que se deixa invocada para todos os efeitos legais e que já foi reclamada no processo. 16º E que, contrariamente ao doutamente alegado no douto despacho recorrido de 19/4/2023, o cabeça de casal está em tempo para suscitar, não se encontrando esgotado o poder jurisdicional, quanto ao despacho de 29.04.2022, nos termos alegados do art. 613º, nº1 e 3 do CPC, porquanto o despacho enferma de nulidade também nos termos do artigo 615º do CPC já que, conforme anteriormente se referiu, não contém quaisquer fundamentos de facto ou de direito quanto à reclamação apresentada no processo pela interessada AA. Acresce que, 17º Na sequência dos despachos proferidos em 29/4/2022, 10/10/2022, 26/10/2022, 7/12/2022, 13/1/2023 e agora mais recentemente em 19/4/2023, mais foi o cabeça de casal condenado em multa, por falta de colaboração processual, o que se requer seja devidamente corrigido e anulado, em consequência da nulidade agora detetada e reclamada no processo. 18º Deve pois: 1- o despacho proferido em 29/4/2022 ser anulado e substituído por outro que dê cumprimento ao estatuído nos artigos 1109º e 1110º do CPC, sendo proferido em conformidade despacho saneador do processo e consequentemente, 2- serem anulados também os despachos datados de 29/4/2022, 10/10/2022, 26/10/2022, 7/12/2022, 13/1/2023 e agora mais recentemente em 19/4/2023, que condenaram o cabeça de casal em multa.”. Nas contra-alegações, a recorrida veio defender que o despacho de 19.04.2023 não é recorrível, por se tratar de despacho de mero expediente ou proferido ao abrigo de poder discricionário (cfr. art.º 630º, nº 1, do NCPC) e que, mesmo que se entendesse que o mesmo seria de atender interposto ao abrigo do disposto no art.º 1223º, nº 3 do NCPC, o mesmo sempre teria que subir em separado e o requerido efeito suspensivo devidamente fundamentado. Por outro lado, defende que, ao se aplicarem as disposições gerais relativas aos recursos ao processo de inventário, o presente recurso só poderia cair na previsão das als. d) ou e) do art.º 644º, nº 2, do NCPC, pelo que deveria ter sido interposto no prazo de 15 dias, o que não sucedeu, sendo intempestivo. Por fim, pugnou pela improcedência do mérito do recurso, dizendo que a nulidade invocada não foi arguida em devido tempo e que os despachos anteriores ao recorrido transitaram em julgado. Mais requereu a condenação do recorrente como litigante de má-fé. O tribunal recorrido admitiu o recurso nos próprios autos e com efeito suspensivo. Atento o invocado nas contra-alegações, foi o recorrente notificado para se pronunciar sobre a inadmissibilidade e intempestividade do recurso interposto e também sobre o erro quanto ao efeito e modo de subida do mesmo, nos termos e para os efeitos previstos nos art.ºs 654º, nº 2 e 655º, nº 2, do citado diploma legal. Após resposta, foi proferido despacho a considerar a decisão recorrida susceptível de apelação autónoma, ao abrigo do disposto no art.º 644º, nº 2, al. e) do NCPC, tendo, na sequência, sido ordenado o cumprimento ao disposto no nº 6, do mesmo art.º 139º, do NCPC e uma vez paga a multa respectiva, a instrução do recurso em separado. Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir. * II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir * O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal). Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, importa decidir se foi arguida de forma tempestiva a nulidade do processado, nos termos do art.º 195º, do NCPC, por incumprimento do disposto nos art.ºs 1109º e 1110º do NCPC e a nulidade do despacho proferido em 29.04.2022, nos termos do art.º 615º, do NCPC, por falta de fundamentação de facto e de direito; e tendo-o sido, a sua eventual repercussão nos despachos datados de 29.04.2022, 10.10.2022, 26.10.2022, 7.12.2022, 13.01.2023 e no despacho recorrido, que condenaram o cabeça de casal em multa. Uma vez que se trata de questão do conhecimento oficioso, atento o invocado nas contra-alegações, importa também averiguar se se verificam os pressupostos para a condenação do recorrente como litigante de má-fé. * III. Fundamentação* 3.1. Fundamentação de facto Como factualidade relevante interessa aqui ponderar os trâmites processuais consignados no relatório do presente acórdão e o teor da decisão recorrida que supra se transcreveu e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais. * 3.2. Fundamentação de direitoComo decorre do relatório da presente decisão, mas sobretudo das conclusões recursórias, o apelante invoca primordialmente o cometimento pelo tribunal a quo - a montante da decisão apelada, datada de 19.04.2023 - de nulidade processual, nos termos do art.º 195º, do NCPC, por preterição de formalidades legalmente prescritas. Com efeito, no presente caso, entende o recorrente que o tribunal a quo omitiu actos e/ou formalidades que a lei prescreve e que influenciam a boa decisão da causa, pedindo em consequência a anulação de toda a tramitação processual posterior aos actos omitidos. Em concreto, invoca que antes da prolação do despacho datado de 29.04.2022 - decisão que recaiu sobre a reclamação deduzida à relação de bens - o tribunal de 1ª instância não observou o regime prescrito nos art.ºs 1109º e 1110º do NCPC, do NCPC, como se lhe impunha, o que determina a nulidade do dito despacho, bem como de todos os subsequentes em que foi condenado em multa (por não ter apresentado a relação de bens em conformidade com o determinado naqueloutro despacho). Mas não só. O recorrente invoca ainda que a decisão, datada de 29.04.2022, é igualmente nula por falta de fundamentação de facto e de direito, estando em tempo de a suscitar. A recorrida, por sua vez, veio pugnar pela improcedência da presente apelação, sustentando que a arguição da aludida nulidade processual é intempestiva e que o despacho de 29.04.2022 já transitou em julgado, pelo que o despacho recorrido – prolatado em conformidade com aquele – não sofre de qualquer vício. Vejamos, então. É sabido que a nulidade processual consiste num desvio ao formalismo processual prescrito na lei. Além das nulidades típicas previstas nos art.ºs 186º, 187º, 191º, 193º e 194º do NCPC, outras irregularidades que se constatem na tramitação processual só constituirão nulidade se a lei assim o determinar ou quando o vício possa influir no exame ou decisão da causa, ou seja, quando se repercutem na sua instrução, discussão ou julgamento ou, em processo executivo, na realização da penhora, venda ou pagamento – cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, p. 235; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, p. 381. Trata-se das nulidades secundárias, inominadas ou atípicas que podem emergir da prática de um acto que a lei não admita, da omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva ou da prática de um acto admitido ou a sua omissão em violação da sequência processual fixada pelo juiz ao abrigo do disposto no art.º 547º do CPC – cfr. art.º 195º, nº 1 do NCPC. A nulidade do acto processual repercute-se nos actos subsequentes da sequência que dele dependam absolutamente (ver nº 2, do citado art.º 195º). “Assim, sempre que a prática de um ato da sequência pressuponha a prática de um ato anterior, a invalidade deste tem como efeito, indirecto mas necessário, a invalidade do primeiro, se entretanto tiver sido praticado, pelo que a invalidade do ato processual é mais uma invalidade do ato enquanto elemento da sequência do que do ato em si mesmo considerado” – cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 381. Por sua vez, as decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art.º 615º do NCPC. Nesta sede, julgamos pertinente trazer à colação a esclarecida distinção efectuada por Miguel Teixeira de Sousa, entre nulidade processual e nulidades da decisão judicial (sentença ou despacho): “Todo o processo comporta um procedimento, ou seja, um conjunto de actos do tribunal e das partes. Cada um destes actos pode ser visto por duas ópticas distintas: -- Como trâmite, isto é, como acto pertencente a uma tramitação processual; -- Como acto do tribunal ou da parte, ou seja, como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte. No acto perspectivado como trâmite, considera-se não só a pertença do acto a uma certa tramitação processual, como o momento em que o acto deve ou pode ser praticado nesta tramitação. Em contrapartida, no acto perspectivado como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte, o que se considera é o conteúdo que o acto tem de ter ou não pode ter. Do disposto no art.º 195º, nº 1, NCPC decorre que se verifica uma nulidade processual quando seja praticado um acto não previsto na tramitação legal ou judicialmente definida ou quando seja omitido um acto que é imposto por essa tramitação. Isto demonstra que a nulidade processual se refere ao acto como trâmite, e não ao acto como expressão da decisão do tribunal ou da posição da parte. O acto até pode ter um conteúdo totalmente legal, mas se for praticado pelo tribunal ou pela parte numa tramitação que o não comporta ou fora do momento fixado nesta tramitação, o tribunal ou a parte comete uma nulidade processual. Em suma: a nulidade processual tem a ver com o acto como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do acto praticado pelo tribunal ou pela parte. É, aliás, fácil comprovar, em função do direito positivo, o que acaba de se afirmar: -- A única nulidade processual nominada que decorre do conteúdo do acto é a ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º); mas não é certamente por acaso que esta nulidade é também a única que constitui uma excepção dilatória (cf. art. 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), e 577.º, al, b), CPC); -- As nulidades da sentença e dos acórdãos decorrem do conteúdo destes actos do tribunal, dado que estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podem ter (cf. art. 615.º, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC); também não é por acaso que estas nulidades não são reconduzidas às nulidades processuais reguladas nos art.ºs 186.º a 202.º CPC.” – in, O que é uma nulidade processual? in Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual. A arguição da nulidade processual deve ter lugar na própria instância em que é cometida e no prazo geral de 10 dias, por aplicação do disposto no art.º 149º, nº 1 do NCPC. Porém, é sabido que “a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou a autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.” – cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra 1945, p. 507. Em idêntico sentido pronuncia-se Anselmo de Castro: “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por um qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso […]” – cfr. Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, p. 134. Neste mesmo sentido, podemos ver ainda na doutrina: Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 183; Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 393; e na jurisprudência: o ac. do STJ de 5.07.2022 (relatado por Ricardo Costa), o ac. da RL de 11.07.2019 (relatado por Ana Azeredo Coelho); o ac. da RC de 3.05.2021 (relatado por Moreira do Carmo); o ac. da RP de 13.09.2022 (relatado por Ana Lucinda Cabral); o ac. da RE de 9.02.2023 (relatado por Paula do Paço) e o ac. desta Relação de Guimarães de 21.05.2015 (relatado por Ana Cristina Duarte, aqui adjunta), todos consultáveis in www.dgsi.pt]. No caso em apreço, como vimos, o recorrente insurge-se contra o facto do tribunal a quo ter decidido a reclamação contra a relação de bens sem que previamente tenha procedido a quaisquer diligências instrutórias, conforme previsto nos art.ºs 1109º, nº 3 e 1110º, nº 1, al. a), do NCPC. Ainda que o conteúdo da alegação do recorrente possa não primar pela clareza, não deixa de ser possível constatar que este dirige a sua impugnação ao conteúdo do despacho, datado de 29.04.2022 que decidiu da reclamação contra a relação de bens (aplicando o cominatório previsto nos art.ºs 574º e 587º, do NCPC, face à ausência de resposta à dita reclamação), considerando-o ilegal porque foi proferido sem que “o tribunal a quo procedesse à realização das diligências instrutórias necessárias para decidir a matéria da reclamação de bens”, impedindo de “proceder à correta elaboração da relação de bens” (o sublinhado é nosso). Veja-se, no entanto, que a reclamação apresentada no processo de inventário apenso – através do requerimento de 11.01.2022 – não apresenta especial complexidade, tendo a interessada AA se limitado a acusar a falta de bens móveis e de verbas no passivo (bens e verbas que não só discrimina, como indica os respectivos valores) e a pedir a rectificação do valor da verba nº 2 do activo e a exclusão de outras verbas do passivo e activo; pelo que não se vislumbra especial dificuldade do cabeça de casal em apresentar nova relação de bens. Do que deixamos dito, na situação em apreço, a discordância do recorrente não tem tanto que ver com a omissão de uma formalidade, mas antes contra o conteúdo do despacho proferido em 29.04.2022 que, sem que produzir qualquer diligência de prova – antes aplicando o efeito cominatório estabelecido no Código de Processo Civil para os processos e incidentes em geral -, ordenou que o recorrente apresentasse nova relação de bens em conformidade com a reclamação deduzida contra a relação de bens. A recorrida defende que a arguição da nulidade processual está vedada ao ora recorrente por ter renunciado à sua arguição (por ter requerido e lhe ter sido concedido, por diversas vezes, prazo para apresentar a relação de bens completada e corrigida) e que a mesma deveria ter sido suscitada no prazo de 10 dias (perante o tribunal a quo, ao que se depreende, embora nada diga a esse respeito). Ao mesmo tempo defende que a decisão de 29.04.2022 e as subsequentes já transitaram em julgado. Ora, na verdade, o que verdadeiramente foi posto em causa no recurso interposto é saber se o mencionado despacho de 29.04.2022 está de acordo com as consequências processuais a retirar da tramitação ocorrida até ao momento e em conformidade com as normas aplicáveis. Estando em causa um despacho que entendeu ser aplicável o efeito cominatório à falta de resposta à reclamação deduzida contra a relação de bens, [e estando a decisão expressamente fundada nesse pressuposto], não podemos deixar de concluir que o tribunal a quo entendeu não ser necessária a realização de quaisquer diligências instrutórias para decidir da referida reclamação. Ou seja, considerou admitidos por acordo os factos alegados na aludida reclamação e, consequentemente, julgou esta procedente, pois, ordenou ao cabeça de casal que apresentasse nova relação de bens em conformidade. E, assim sendo, a questão suscitada pelo recorrente deixa de ser regulada pelo regime das nulidades processuais para seguir o regime do erro de julgamento, por a infracção praticada passar a estar coberta pela decisão, ao menos de modo implícito – cfr. neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra cit., p. 384 a 385. Ou seja, o que se realmente está em causa é a legalidade desta decisão e das consequências da respectiva eventual ilegalidade, designadamente, para o despacho recorrido. Com efeito, ainda que na generalidade das nulidades processuais a sua verificação deva ser objecto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre esta incidir, tal solução é inadequada quando estão em causa situações em que o próprio juiz, ao proferir a decisão, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório ou implicitamente dá cobertura a essa omissão, como vimos. Nesses casos, a nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve comunica-se ao despacho ou decisão proferidos, pelo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso dessa decisão, caso a mesma o admita (sob pena de passar a mesma a ter força obrigatória dentro do processo - cfr. art.º 620º, do NCPC). Com efeito, como lucidamente é afirmado no ac. do STJ de 11.11.2020 (revista 6854/18.7T8PRT-F.P1.S1, in www.dgsi.pt) “Em termos de apreciação objetiva do regime jurídico ordinário, resulta claro que não é admissível a cisão entre o requerimento de arguição de nulidades e a interposição de recurso, uma vez que, segundo o nº 4 do art. 615º do CPC, nos casos em que seja admissível recurso ordinário, as nulidades da sentença devem ser arguidas no âmbito do recurso. Por seu lado, o prazo para a interposição de recurso conta-se a partir da notificação da decisão recorrida (art. 638º, nº 1).” E acrescenta-se ainda nesse aresto que “A solução legal, que foi introduzida ainda no âmbito de aplicação do CPC de 1961, não contende com o direito de acesso aos tribunais nem afeta o princípio geral do processo equitativo, na medida em que obriga o recorrente a concentre numa única peça todos os motivos que sustenta quer para a anulação da decisão, quer para a sua revogação ou modificação. Importa também que na interconexão entre os preceitos ou princípios constitucionais e a margem de discricionariedade que é atribuída ao legislador ordinário não olvidemos os motivos que terão estado subjacentes à modificação do regime legal, ou seja, à inviabilidade de introduzir entre a notificação da sentença ou acórdão e a interposição de recurso ordinário de apelação ou de revista um incidente de arguição de nulidades ou de reforma.”. E, assim sendo, deveria ter o recorrente apresentado recurso da decisão proferida em 29.04.2022, aí suscitando a violação das ditas regras processuais. Com efeito, não se pode olvidar que o aludido despacho – na medida em que decide a reclamação de bens - era susceptível de apelação autónoma, por força do disposto no art.º 1123º, nºs 1 e 2, do NCPC, na versão vigente (vide, art.º 11º, nº 1, da Lei 117/2019, de 13.09). A matéria da admissibilidade e a oportunidade de interposição de recurso nos processos de inventário encontra, actualmente, resposta naquela norma legal, sendo que o art.º 1123º, nº 2, b), do NCPC, dispõe expressamente que “[c]abe ainda apelação autónoma: Das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha”. Por conseguinte, não tendo, para suprimento da propalada nulidade, o cabeça de casal procedido, em devido tempo, à interposição de recurso do aludido despacho – determinativo dos bens a partilhar - o mesmo transitou em julgado. É certo que o recorrente defende que assim não é, porquanto o dito despacho, datado de 29.04.2022, é também nulo por falta de fundamentação de facto e de direito. Mas também sem razão, adianta-se. Não temos quaisquer dúvidas que a falta de fundamentação de facto e de direito é causa geradora de nulidade das sentenças e dos despachos – cfr. art.ºs 615, nº 1 e 613º, nº 3, do NCPC. Porém, afigura-se-nos que a não fundamentação de um despacho não impede o seu trânsito em julgado; se o ora recorrente entende que o despacho de 29.04.2022 padecia e padece de falta de fundamentação deveria ter arguido a sua nulidade nos prazos legais de recurso e não o fez, como vimos; pelo que há muito que o prazo para arguir a invalidade do despacho foi ultrapassado. Como lapidarmente se diz no ac. STJ 10.02.2022, relatado por Fernando Baptista e acessível in www.dgsi.pt “não tendo sido interposto recurso da mesma [decisão], esta transitou em julgado, operando caso julgado formal, tornando-se inatacável e inquestionável intra processualmente, independente da bondade dos fundamentos jurídicos em que o nela decidido se alicerçou.”. E tendo a decisão proferida em 29.04.2022 operado caso julgado formal, é por demais evidente que estava vedado ao tribunal a quo - bem como está a este tribunal ad quem - se pronunciar sobre o mérito das nulidades invocadas. Concomitantemente, nenhuma crítica se pode dirigir ao despacho recorrido. Muito pelo contrário. Na decisão objecto do presente recurso - proferida a 19.04.2023 -, o tribunal recorrido limitou-se a indeferir o requerimento de 16.03.2023 do cabeça de casal, aqui recorrente, (no qual peticionava que o tribunal realizasse as diligências instrutórias necessárias para decidir a matéria da reclamação de bens e em seguida proferisse despacho de saneamento do processo para determinação dos concretos bens do casal a partilhar), dizendo que se encontra esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto a tal questão, face ao decidido no despacho de 22.04.2022 e condenando novamente o mesmo em multa, por não ter apresentado a relação de bens completa e corrigida conforme anteriormente ordenado. * Resta averiguar se o recorrente deve ser condenado como litigante de má-fé por ter interposto o presente recurso, o qual, como vimos, tem de ser julgado improcedente.O modelo processual vigente consagra, como um dos seus princípios fundamentais, o princípio da cooperação, segundo o qual “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.” – cfr. art.º 7º, nº 1, do NCPC. No que respeita às partes, o dever de cooperação vem concretizado no art.º 8º, do NCPC que impõe às partes o dever de agir de boa fé. A violação de tal dever pode traduzir-se em litigância de má fé que tem como consequência a condenação da parte em multa e em eventual indemnização à parte contrária (cfr. art.ºs 542º, nº 1 e 543º, do NCPC). A noção de litigante de má fé encontra-se, por sua vez, plasmada no art.º 542º, nº 2, do mesmo diploma legal. Com efeito, neste preceito estabelece-se o seguinte: “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Por conseguinte, tem-se entendido que a litigância de má fé tanto pode ser substancial (dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ser ignorada, alteração da verdade dos factos e/ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa) como instrumental (seja porque se pratica grave omissão do dever de cooperação, seja porque se faz do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável). Vide, a este propósito, na jurisprudência, entre muitos outros, os acs. do STJ de 28.02.2002, relatado por Vitor Mesquita, da RG de 10.05.2018, relatado por Alcides Rodrigues, da RC de 28.05.2019, relatado por Isaías Pádua e da RP de 24.09.2020, relatado por Manuel Rodrigues, todos acessíveis in www.dgsi.pt. De todo o modo, em qualquer dessas modalidades, importa que se esteja perante uma intenção maliciosa ou, pelo menos, perante uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-se da actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reacção punitiva. Com efeito, ao contrário do que sucedia antes da revisão do Código de Processo Civil operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12.12, actualmente as condutas passíveis de integrar má-fé para este efeito não têm de ser, necessariamente, dolosas, já que o instituto passou a abranger, também, a negligência grave. Instituiu-se uma acrescida e substancial responsabilização das partes pelo cumprimento dos deveres de probidade e de cooperação, alargando o âmbito da litigância de má fé. A condenação como litigante de má fé assenta, pois, num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de direito, como lapidarmente se afirma nos acs. do STJ de 12.11.2020, relatado por Maria Rosário Morgado e de 12.04.2023, relatado por Jorge Dias, ambos disponíveis in www.dgsi.pt. A litigância de má fé surge como um instituto processual, de tipo público, de conhecimento oficioso e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais. Antes corresponde a um subsistema sancionatório próprio, de âmbito limitado e com objectivos muito práticos e restritos. De facto e como assinala Pedro Albuquerque (in, Responsabilidade Processual Por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude De Actos Praticados No Processo, Almedina, p 53), na litigância de má-fé estamos perante uma responsabilidade com cunho próprio, que a distingue da responsabilidade civil [não interferindo uma com a outra, podendo perfeitamente coexistir], assentando em deveres de cooperação e probidade, pressupondo, por isso, violação de obrigações ou situações processuais, autónomas relativamente ao direito substantivo. O instituto não tutela interesses ou posições privadas e particulares, antes procura acautelar um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má fé processual, que transforma a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial (vide, autor e obra cit., p. 55 e 56). Ante o exposto, no essencial, podemos concluir que, na litigância de má-fé não relevam todas e quaisquer violações de normas jurídicas, mas apenas as actuações tipificadas nas diversas alíneas do citado art.º 542º, nº 2, do NCPC; não é requerido dano: a conduta é punida em si, independentemente do resultado; exige-se dolo ou grave negligência, e não culpa lato sensu, em moldes civis; e as consequências são apenas multa e, nalguns casos, indemnização calculada em moldes especiais (cfr. art.ºs 542º, nº 1 e 543º, do NCPC). Cabe dizer ainda ser pacífico que a conclusão no sentido da litigância de má fé não se pode extrair, mecanicamente, da simples alegação de factos pessoais que não se provaram ou da negação de factos pessoais que vieram a provar-se (vide, ac. do STJ de 30.11.2021, relatado por Fernando Baptista de Oliveira e ac. da RP de 10.12.2019, relatado por Eugénia Cunha, ambos disponíveis in www.dgsi.pt). Na verdade e como também se pode ler no ac. do STJ de 11.04.00, processo nº 34786 (citado no aludido ac. do STJ de 30.11.2021), a questão da má fé material não pode ser vista com a linearidade que por vezes lhe é atribuída, sob pena de se limitar o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil e tem foros de garantia constitucional. Na verdade, se é certo que o direito de recorrer aos Tribunais para aceder à Justiça constitui um direito fundamental – cfr. o art.º 20º da Constituição da República, citado pela recorrente – já o mau uso desse direito implica uma conduta abusiva, sancionada nos termos do art.º 542º do NCPC. Por isso, terá de haver uma apreciação casuística, não cabendo a análise do dolo ou da negligência grave no processo civil em estereótipos rígidos. Por outro lado, não podemos deixar de concordar igualmente com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que vimos citando, quando afirma que a sustentação de posições jurídicas, porventura desconformes com a correcta interpretação da lei, não basta à conclusão da litigância de má fé de quem as sustenta. Ou seja, não basta a comprovação da falta de fundamento da pretensão ou da oposição, necessário é que com ela concorra a clara revelação de que a parte teve perfeita consciência dessa falta de fundamento. A afirmação da litigância de má fé depende, pois, da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má fé. Cfr., neste sentido, os acs. do STJ de 14.03.2002 e 15.10.2002, citados no ac. da RP, de 20.10.2009, relatado por João Ramos Lopes e acessível in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2009:30010.A.1995.P1. Por fim, no que se concerne ao critério para aferir e apreciar a negligência relevante para efeitos deste instituto de responsabilidade processual civil, atentemos ao referido neste último aresto citado: «Atendendo aos fundamentos do instituto (princípio da cooperação e dever de boa fé processual), aos interesses que através dele se pretende afirmar (respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça) e finalidades que se visam alcançar (moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça) e, também, à própria natureza sancionatória do instituto (dele resulta a aplicação de multa), tem de considerar-se que o critério para aferir e apreciar a negligência que ele pressupõe não pode coincidir com o critério para apreciação da culpa na responsabilidade civil extracontratual (critério de apreciação objectiva, em que a culpa se afere pelo confronto com o tipo abstracto de pessoa normalmente diligente e prudente – o bom pai de família, nos termos do art. 487º, nº 2 do C.C.). O que está em verdadeiramente causa é o desrespeito ou violação, pela parte, dos seus deveres de cooperação e probidade (cfr. arts. 266º e 266º-A do C.P.C.), incorrendo assim em ilícito processual. As carências pessoais, seja por falta de conhecimentos, de perícia, de forças físicas ou intelectuais, ou de particulares inaptidões são tidas em conta na configuração normativa do ilícito processual, como resulta do art. 266º, nº 4 do C.P.C.. O dever de cooperação que impende sobre a parte e que lhe legalmente exigido tem de ter correspondência nas suas naturais faculdades para o cumprir. Assim, o critério para apreciação da negligência (tanto mais que estamos a reportar-nos a uma sanção por ilícito processual, diverso do ilícito civil), não pode deixar de ser referenciado ao padrão de conduta exigível ao agente (à parte), ajustado à sua idade, às suas carências pessoais e particulares inaptidões. A prática do ilícito processual pela parte (por aquela concreta pessoa que é parte no processo) só pode ser-lhe imputada a título de negligência quando não proceder com o cuidado e diligência (o padrão de conduta) a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e era capaz. Trata-se de um critério subjectivo e concreto, pois que as capacidades próprias da parte são o limite aos seus deveres de boa fé processual e de cooperação – para lá das capacidades próprias da parte não existe dever de cooperação e logo, não poderá haver negligência (aliás, para lá das possibilidades de ‘diligenciar’ e ‘cuidar’ não pode haver dever de cooperação). Na avaliação e graduação da culpa, para apurar de litigância de má fé, deve atender-se à diligência do bom de família (ao padrão de conduta exigível a uma pessoa razoável, normalmente cuidadosa e prudente) mas atender ainda às circunstâncias do caso concreto. Esta aferição da culpa em função das capacidades pessoais do agente coaduna-se coma exigência legal ‘que deflui imediatamente, como corolário, do axioma antropológico da dignidade da pessoa humana proclamado pelo art. 1º da nossa Lei Fundamental, pois ninguém porá em causa o carácter gravoso e estigmatizante de uma condenação injusta como litigante de má fé’, sendo certo que a má fé processual ‘é, actualmente, uma má fé ética, encontrando os seus limites ou contraponto, na boa fé ética’.». Posto isto, no caso em apreço, julga-se não se poder concluir com segurança que o recorrente – no âmbito do presente recurso - litigou de má fé, uma vez que apenas nos circunscrevemos essencialmente ao âmbito da análise de teor quase exclusivamente juscivilístico que opunha as partes. Defenderam-se e tão só diversas interpretações jurídicas. Assim e sem necessidade de outras e maiores considerações, e não se vislumbrando que o recorrente, tenha actuado com manifesta má-fé substancial ou instrumental, nomeadamente, tendo interposto o recurso consciente da sua falta de fundamento e visando apenas protelar o processo de inventário, não se antevê razões para o condenar como litigante de má-fé, ao abrigo do disposto no art.º 542º e seguintes, do NCPC. * Em conclusão, julgamos totalmente improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.As custas do presente recurso são da responsabilidade do recorrente atento o respectivo decaimento (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC). * IV. Decisão* Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo-se, em consequência, o despacho recorrido. Custas do recurso a cargo do recorrente. * * Guimarães, 16.11.2023 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira 1ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Ana Cristina Duarte 2ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Maria dos Anjos Nogueira |