Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
28/40.4T8MAC.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: CONTA BANCÁRIA SOLIDÁRIA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A propriedade dos fundos depositados numa conta bancária colectiva solidária titulada por pluralidade de sujeitos activos só pode ser eficaz e definitivamente decidida se estiverem na acção todos os contitulares inscritos no contrato de abertura de conta, impondo-se uma situação de litisconsórcio necessário natural (art. 33º, n.º 2, do Cód. de Processo Civil).
II - Numa situação de litisconsórcio necessário, a falta de qualquer parte, activa ou passiva, determina sempre a ilegitimidade das partes intervenientes na acção.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA intentou contra BB, no Juízo Local Cível ... - Juiz ... - do Tribunal Judicial da Comarca ..., acção declarativa sob a forma de processo comum, pedindo que se declare que todas as quantias depositadas na conta bancária à ordem n.º ...00, da Banco 1..., são propriedade em comum e partes iguais da Autora e da Ré, dado que esta quantia lhes foi doada em vida de seu tio CC; se condene a Ré a restituir à Autora metade daquela quantia, ou seja, € 36.230,00 e a pagar-lhe os juros legais moratórios vencidos no valor de € 5.566,50 e juros vincendos até efetivo e integral pagamento.
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Citada, contestou a Ré, pugnando pela total improcedência da acção (ref.ª ...38).
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Por despacho de 28-09-2020, foi declarada a incompetência em razão do valor do Juízo Local Cível ... para a tramitação da acção, tendo esta sido remetida ao Juízo Central Cível ....
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Realizada audiência prévia, na qual se fixou o valor da causa, foi proferido despacho saneador onde se afirmou a validade e regularidade objetiva e subjetiva da instância; de seguida, foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova, bem como foram admitidos os meios de prova (ref.ª ...64).
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Procedeu-se a audiência de julgamento (ref.ª ...54).
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Posteriormente, a Mm.ª Julgadora “a quo” proferiu sentença (ref.ª ...51), nos termos da qual, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu:
«i) declarar, e condenar a Ré a reconhecê-lo, que 1/3 (um terço) da quantia de € 72.400,00 (setenta e dois mil e quatrocentos euros), depositada em 21.12.2015 na conta bancária à ordem n.º ...00, da Banco 1..., pertence à Autora; e
ii) condenar a Ré a restituir à Autora a importância de € 24.133,33 (vinte e quatro mil, cento e trinta e três euros e trinta a três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento».
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Inconformada com a sentença, dela interpôs recurso a Ré (ref.ª ...01), tendo formulado, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1ª. – Como resulta da petição inicial apresentada pela recorrida, AA, foram por esta formulados apenas os seguintes pedidos:
a) – Declarar-se que todas as quantias depositadas na conta bancária à ordem n.º ...00, do Banco Banco 1..., agência de ..., nomeadamente da quantia de 72.460,00€, é propriedade em comum e partes iguais de Autora e Ré; dado que esta quantia lhes foi doada em vida de seu tio CC:
b) – Por tal, condenar-se a Ré a restituir à Autora metade daquela quantia, seja 36.230,00€, já que da mesma se apoderou em benefício próprio, quer por levantamento quer por transferência;
c) – Condenar-se a Ré a restituir à Autora os juros legais moratórios vencidos que nesta data ascendem a 5.566,50€ e bem assim nos juros vincendos até efetivo e integral pagamento.
2ª. – A instância manteve-se a mesma quanto aos pedidos e à causa de pedir, bem como quanto aos intervenientes chamados ao pretório não tendo sido formulados quaisquer pedidos de alteração do que se fez constar da petição inicial.
3ª. – Através da análise e leitura dos pedidos formulados pela Autora, compreendemos o alcance da tutela jurídica pretendida (1/2 do dinheiro para cada uma das partes), bem como a causa de pedir em que fundamentou a sua pretensão (alegada doação verbal dos dinheiros) e o Tribunal não poderia deixar de proferir decisão que se contivesse nos estritos limites delineados pela Autora, AA.
4ª. – Todavia, o Tribunal a quo veio a decidir o seguinte, por sentença datada de 24-04-2023 e de agora se recorre:
Por todo o exposto, julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, decido:
i) - declarar, e condenar a Ré a reconhecê-lo, que 1/3 (um terço) da quantia de € 72.400,00 (setenta e dois mil e quatrocentos euros), depositada em 21.12.2015 na conta bancária à ordem n.º ...00, da Banco 1..., pertence à Autora; e
ii)  - condenar a Ré a restituir à Autora a importância de € 24.133,33 (vinte e quatro mil, cento e trinta e três euros e trinta a três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
5ª. – O Tribunal decidiu não só para além do pedido, como contra a própria causa de pedir invocada pela Autora. O Tribunal decidiu com base em invocada presunção legal, a qual foi – ab initio – afastada pela autora (que alega que o dinheiro é de duas pessoas) e pela própria ré (que alega que o dinheiro é da mãe, a outra titular da conta bancária aqui em crise), pelo que a sentença é nula nos termos do art. 615º., nº. 1, als.d) e e) do C.P.C., o que expressamente se argui.
6ª. – Ao decidir, como decidiu, a Mer. Juíza violou, por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 3º. (nº.s 1, 2, e 3), 4º., 5º., 552º., 573º., 574º., 609º., nº. 1 e 615, nº. 1, alíneas d) e e), todos do Código do Processo Civil, que deviam ser interpretados no sentido de que, não tendo a autora feito prova dos fundamentos da acção, tal como esta a estruturou, deve a mesma ser declarada totalmente improcedente, não podendo o Julgador lançar mão de presunções judiciais para, alterando o pedido e a causa de pedir, concluir que a quantia monetária em crise pertence, em três partes iguais, à autora, à ré e a uma terceira pessoa que não foi chamada ao pleito.
7ª. - A sentença recorrida viola igualmente, de forma frontal, as normas substantivas relativas às presunções legais, ínsitas nos artigos 349º e 350º. do C.C. O Tribunal interpretou e aplicou erroneamente as disposições legais supracitadas, as quais deveriam ter sido interpretadas no sentido de não poder ser aplicada a presunção legal em causa (art. 516º. do C.C.), não apenas porque a sua aplicação extravasava por completo o pedido e a causa de pedir, pronunciando-se sobre questões que não foram submetidas à sua apreciação. mas igualmente porque a sua aplicação contrariava frontalmente a alegação da própria autora (e da ré). Como corolário lógico, o Ilustre Julgador deveria ter decidido no sentido da improcedência total da acção por não provada, com as legais consequências.
8ª. – SE ASSIM NÃO SE ENTENDER: deverá então o Tribunal da Relação de Guimarães decidir no sentido da ilegitimidade passiva da ré, porque desacompanhada da outra titular da conta bancária onde se encontrava depositado o dinheiro que o Tribunal a quo diz agora pertencer a três titulares, em partes iguais.
9º. – Salvo o devido respeito por opinião contrária, da própria configuração da acção, na petição, e dos documentos que foram juntos aos autos – pensamos com toda a segurança – que a presente acção nunca poderia ter sido intentada e muito menos decidida sem a chamada à acção de DD, mãe de autora e ré. Nunca poderia ter sido proferida decisão-surpresa que viesse atribuir dinheiros ou retirar dinheiros a quem não foi chamada à demanda.
10ª. – A Meritíssima Senhora Drª. Juíza do Tribunal “a quo” deveria ter declarado a ilegitimidade da ré, porque desacompanhada da outra titular da conta bancária e deveria ter decretado a consequente absolvição da ré da instância. Como o não fez, foram violadas, por errada interpretação e falta de aplicação, as disposições atrás citadas: art 516º. do C.C. e artigos 3º., nº.s 2 e 3, 33.º, 278.º, n.º 1, alínea d), 576.º, n.º 2, 577.º., corpo e al. e) e ainda 578.º, estes do CPC.) pelo que – com todo o respeito e sempre salvo melhor opinião - a sentença da Senhora Juíza “a quo” deve ser revogada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, substituindo-a por outra que decida no sentido da ilegitimidade da ré, pelas razões expostas, decretando a absolvição do ré da instância.
Sem conceder e quanto à matéria de facto, dir-se-á o seguinte:
11ª. - Não se levou aos factos provados (nem aos factos não provados) que o tio da recorrente e da recorrida, era o único e exclusivo dono da quantia de 72.500,00€, posteriormente transferida por sua irmã, DD. Todavia, neste ponto, autora e ré são unânimes em admitir e aceitar que tal dinheiro pertencia, em exclusivo, ao tio, CC. Aliás, a fls17 da fundamentação, é a própria Mer. Juíza que aceita ser incontroversa a pertença dos dinheiros a CC.
12ª. – Tratando-se de facto admitido por acordo das partes e sendo essencial ao desfecho dos autos, deveria o mesmo ter sido incluído no elenco dos factos provados, o que expressamente se pugna.
Tal matéria de facto seria sempre essencial ao desfecho da acção, pois, como corolário logico e imperioso, o Julgador teria depois meios ou condições de definir quem era o verdadeiro proprietário dos dinheiros em causa, sem necessidade de recorrer a presunções judiciais.
13ª- Face ao exposto, deverá ser levada tal matéria aos factos provados, admitida por autora e ré, sugerindo-se a seguinte redacção para o referido ponto nº. 5: “CC foi 1.º titular da conta n.º  ...00 da Banco 1... e o dinheiro aí depositado pertencia, em exclusivo, a CC”.
14ª. – Salvo o devido respeito por opinião contrária, a Mer. Juíza erra na apreciação e valoração do testamento junto aos autos, outorgado por CC, nos termos do qual instituiu a sua irmã, DD (mãe de autora e da ré) única herdeira do remanescente da sua herança. Não tendo sido posta em causa a validade e eficácia do testamento, cujo teor foi até levado aos factos provados (ponto 16), não conhecendo assim qualquer impugnação, o teor de tal documento autêntico não poderá ser beliscado pelo que as testemunhas referiram.
15ª. – Nãos se tendo provado qualquer doação de tais dinheiros, pertença de CC, sempre deveria ser dado como provado que tais dinheiros pertencem à herdeira testamentária e, portanto, ser levado aos factos provados, passando a constituir o ponto 17, o seguinte aditamento: “- o remanescente da herança que, por testamento, CC deixou à sua irmã DD inclui todos os dinheiros e saldos bancários de que era dono;”
16ª. – Ao decidir, como decidiu, a Mer. Juíza violou, por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 349º, 350º. e 516º do C.C. O Tribunal interpretou e aplicou erroneamente as disposições legais supracitadas, as quais deveriam ter sido interpretadas no sentido de não poder ser aplicada a presunção legal em causa, não apenas porque a sua aplicação extravasava por completo o pedido e a causa de pedir mas igualmente porque a sua aplicação contrariava frontalmente a alegação da própria autora (e da ré) e porque o decidido vai contra a própria matéria de facto dada como provada (ponto 16 dos factos provados). O Tribunal da Relação, na sequência de respostas de PROVADO, que não deixará de dar à matéria de facto atrás mencionada (alterando-se assim os pontos 5 e 17), deve revogar a sentença, substituindo-a por outra decisão no sentido atrás aludido ou seja no sentido da improcedência total da acção.
Nestes termos e nos mais de direito que os Senhores Desembargadores suprirão se fará
Justiça».
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Contra-alegou a autora, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida (ref.ª ...16).
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (ref.ª ...38).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Delimitação do objeto do recurso             

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do(a) recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal, por ordem lógica da sua apreciação[1], consistem em saber:    
           
i. Da ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário passivo;
ii. Da(s) nulidade(s) da sentença;
iii. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
iv. Da reapreciação da matéria de direito.
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III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto.
A. A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
1. Autora e Ré são irmãs, sendo ambas filhas de EE e de DD.
2. Por sua vez, são também sobrinhas de CC, irmão da mãe, falecido em .../.../2016 e residente que foi na localidade de ..., em ....
3. CC não deixou cônjuge, ascendentes ou descendentes.
4. DD nasceu em .../.../1929 e casou catolicamente com EE em .../.../1951.
5. CC foi 1.º titular da conta n.º  ...00 da Banco 1....
6. Tal conta tinha um saldo de € 72.500,00.
7. No dia 21.12.2015, a Autora, a Ré e DD deslocaram-se à agência da Banco 1... de ... e, uma vez aqui, foi aberta, na modalidade de conta colectiva solidária, a conta bancária à ordem n.º ...00 cujas titulares são a Autora, a Ré e DD.
8. Porque também constasse como titular dessa conta ou estivesse autorizada a movimentá-la, DD, nesse dia 21.12.2015, por forma não concretamente apurada e por motivos não concretamente apurados, procedeu ao movimento bancário que debitou da conta identificada em 5. a quantia de € 72.500,00 e creditou-a na conta identificada em 7..
9. Nessa mesma data da abertura de conta, a quantia de € 72.500,00 foi objecto de um depósito a prazo pelo período de 3 anos.
10. No dia 30.03.2016, em circunstâncias não concretamente apuradas e por motivos não concretamente apurados, ocorreu o resgate da referida aplicação financeira e o levantamento, da conta identificada em 7., em numerário, da quantia de € 5.000,00, a qual foi depositada, nessa mesma data, na conta n.º  ...17 do Banco 2..., S.A..
11. No dia 31.03.2016, em circunstâncias não concretamente apuradas e por motivos não concretamente apurados, DD ordenou a transferência da quantia de € 67.400,00 para a conta identificada em 10., deixando apenas a quantia de € 100,00, dos quais foram levantados € 60,00 e o remanescente foi absorvido pela manutenção da conta.
12. A conta identificada em 10. é titulada pela Ré, por FF e por EE.
13. No dia 01.04.2016 foi constituído um depósito a prazo no valor de € 72.400,00 e pelo período de um ano.
14. CC tinha uma relação umbilical com a irmã DD, com quem viveu durante mais de 30 anos.
15. DD foi, durante tal período temporal, a confidente, a amiga, a cuidadora e protectora de seu irmão.
16. No dia 14.12.2015, CC outorgou o testamento que se encontra junto a fls. e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, no Cartório Notarial do Notário GG, sito em de ..., no qual deixou pequenos legados, traduzidos em deixas de alguns prédios rústicos à irmã HH e aos sobrinhos II e JJ, e instituiu a sua irmã DD como sua única herdeira do remanescente da herança.
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B. E deu como não provados os restantes factos, designadamente, que:
Nenhum dos restantes factos alegados com relevância para a decisão da causa resultou provado, nomeadamente que:
- sempre foi intenção do tio CC contemplar as sobrinhas, ora Autora e Ré, fazendo-lhes doação de parte dos seus bens, o que veio a acontecer;
- no dia 21.12.2015, o tio CC deslocou-se, com a Autora, a Ré e a irmã DD, à agência da Banco 1... de ...;
- a abertura de tal conta foi feita com o único e específico propósito de aí ser depositada a quantia de € 72.500,00 que o tio CC, naquele dia, entregou/doou às sobrinhas, ora Autora e Ré;
- o tio sempre referiu que “tudo deixaria” à sua irmã DD;
- o remanescente da herança que, por testamento, CC deixou à sua irmã DD inclui todos os dinheiros e saldos bancários de que era dono;
- a Autora não acarinhava CC nem com ele privava;
- quando em inícios de .../.../2015, o falecido tio soube que padecia de doença fatal e de desfecho galopante, cuidou de outorgar tal documento notarial;
- o CC permitiu que a irmã DD tomasse posse de todos os seus bens, a quem, já há muito tempo, os doara, incluindo do saldo da conta bancária que então possuía na Banco 1..., onde estava depositada a mencionada quantia de € 72.500,00;
- esta conta bancária tinha como titulares o tio CC e a sua irmã, DD e como autorizada, dada a relação de grande proximidade com sua mãe e seu tio, a Ré;
- para evitar problemas com a movimentação do dinheiro após o falecimento de CC, o que se sabia ser iminente, DD decidiu abrir uma nova conta bancária na Banco 1... para onde ordenou a transferência do saldo existente na conta pertencente àquele;
- essa transferência foi ordenada por DD, assim cumprindo as instruções que o irmão lhe havia dado;
- no dia 21.12.2015, DD fez-se acompanhar das duas filhas porque pretendia que estas também passassem a figurar como titulares na nova conta bancária, muito embora todo o saldo bancário lhe pertencesse em exclusivo.
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V. Fundamentação de direito.

1. Da ilegitimidade processual, por preterição de litisconsórcio necessário passivo.
Na apelação interposta, pugna a Ré/recorrente no sentido da ilegitimidade passiva, porquanto desacompanhada da outra titular da conta bancária onde se encontrava depositado o dinheiro, que o Tribunal “a quo” diz agora pertencer a três titulares, em partes iguais.
Acrescenta que, da própria configuração da acção, na petição, e dos documentos que foram juntos aos autos, a presente acção nunca poderia ter sido intentada e muito menos decidida sem a chamada à acção de DD, mãe de autora e ré, pois que nunca poderia ter sido proferida decisão-surpresa que viesse atribuir dinheiros ou retirar dinheiros a quem não foi chamada à demanda.
Conclui, por isso, pela verificação da apontada excepção dilatória, com a sua consequente absolvição da instância.
Nas contra-alegações de recurso, a Autora/recorrida sustenta a inexistência da invocada ilegitimidade da Ré/recorrente; caso assim não se entenda, defende que este Tribunal da Relação, sobrestando no conhecimento do objecto do recurso, deverá ordenar as diligências que considere necessárias, designadamente determinando que seja chamada para a acção a referida DD.
Vejamos.
A falta de legitimidade das partes processuais é, no nosso direito processual civil, uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que, verificada, obsta a que o juiz conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (arts. 30º, 576º, n.ºs 1 e 2, 577º, n.º 1, al. e), 578º e 278º, n.º 1, d), todos do CPC).
Segundo Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora[2], “ser parte legítima na ação é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível”.
Para aferir da legitimidade processual o que importa é apurar qual a posição da parte perante o objeto do processo e não se o mesmo é titular do direito que se arroga. A legitimidade processual é, por conseguinte, uma posição exigida às partes em relação ao concreto objeto processual[3].
Trata-se, por conseguinte, de um dos chamados pressupostos processuais relativo às partes, requisito essencial de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida.
Diversamente da personalidade e da capacidade judiciárias que assentam em qualidades pessoais das partes relativamente à generalidade das ações ou a uma determinada categoria de ações, a legitimidade processual (que pressupõe aqueles dois pressupostos processuais) prende-se com a posição da parte relativamente a uma determinada e concreta ação, posição essa que lhe permite dirigir a pretensão formulada ou a defesa que contra esta possa ser oposta[4].
O critério aferidor do conceito de legitimidade encontra-se previsto no art. 30º do CPC.
Diz-nos o n.º 1 que o “autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”.
O critério- base para aferir da legitimidade é, portanto, o do interesse direto.
O interesse, seja em demandar, seja em contradizer, terá, pois, de ser direto, não bastando que seja indireto, reflexo ou derivado[5], nomeadamente de natureza afetiva, parental ou moral[6].
Para avaliar desse interesse de que resulta a legitimidade, prescreve o n.º 2 do art. 30º do CPC que o “interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha”.
O critério da utilidade ou prejuízo previsto no normativo citado, concretizando ou aprofundando o critério-regra, afere-se “em face da petição e segundo um juízo de prognose: supondo-se que o pedido seja procedente”.
Ou seja, o autor é parte legítima sempre que a procedência da ação (previsivelmente) lhe venha a conferir (para si e não para outrem) uma vantagem ou utilidade e o réu será parte legítima sempre que se vislumbre que tal procedência lhe venha a causar (a si e não a outrem) uma desvantagem[7].
Nesta confluência, terá legitimidade passiva a parte com interesse direto em contradizer, o qual se exprime pelo prejuízo derivado da procedência da pretensão e que coincide, em regra, com o titular passivo da relação jurídica material configurada no requerimento inicial
Residualmente, ou seja, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como esta é configurada pelo autor (n.º 3 do art. 30º do CPC).
Trata-se da consagração do critério formal da titularidade, nos termos do qual “a titularidade da alegada relação material surge como modo de descobrir o interesse directo na acção, sendo uma forma «implícita» de aferição de legitimidade[8].
A regra, no processo é a da dualidade das partes legítimas (autor e réu, exequente e executado) mas, muitas vezes, em lugar de um só autor ou de um só réu, a acção é proposta por vários autores ou contra dois ou mais réus, o que se traduz, portanto, numa pluralidade das partes ou em legitimidade plural[9].
Um dos casos de pluralidade é o de litisconsórcio (activo se tratar de mais de um autor, passivo se a plura­lidade disser respeito aos demandados), que pode ser voluntário ou conveniente, quando a intervenção, na relação processual, da pluralidade de sujeitos é meramente consentida (art. 32º do CPC) ou necessário, se imposto por lei ou pelo negócio jurídico em apreço (art. 33º, n.º 1) ou, ainda, quando, pela própria natureza da relação jurídica, a inter­venção de todos os interessados seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (art. 33º, n.º 2), sendo que “a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado” (n.º 3 do citado normativo).
No litisconsórcio necessário, todos os interessados devem demandar ou ser demandados. A falta de qualquer parte, activa ou passiva, numa hipótese de litisconsórcio necessário determina sempre a ilegitimidade das partes intervenientes na acção (art. 33º, n.º 1, do CPC). O mesmo será dizer que os intervenientes na acção não têm legitimidade, se desacompanhados dos restantes que nela deviam figurar.
No caso de litisconsórcio necessário, há uma única ação com pluralidade de sujeitos; no litisconsórcio voluntário, há uma simples acumulação de ações, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes” (art. 35º do CPC).
De harmonia com a definição legal, o efeito útil normal da decisão é atingido quando sobrevém uma regulação definitiva da situação concreta das partes – e só delas – quanto ao objecto do processo e, por isso, o efeito útil normal pode ser conseguido ainda que não estejam presentes todos os interessados e em que, portanto, a ausência de um deles nem sempre constitui um obstáculo a que esse efeito possa ser atingido, conclusão que é imposta pelo facto de a lei admitir expressamente a não vinculação de todos os interessados (art. 33º, n.º 3, do CPC).
Assim, deve concluir-se que na determinação do litisconsórcio releva apenas a eventualidade de a sentença não compor definitivamente a situação jurídica das partes, por esta poder ser afectada pela solução dada numa outra acção entre outras partes.
Portanto, o litisconsórcio natural verifica-se, seguramente, quando sem a participação de todos os interessados, não é possível uma composição definitiva dos seus interesses[10].
É o que ocorre, por exemplo, na acção de divisão de coisa comum, na acção de prestação de contas e na acção de revindicação de uma fracção autónoma de um imóvel em propriedade horizontal, com fundamento, na sua ocupação como parte comum, pelos condóminos que tem de ser proposta contra todos eles.
Todavia, a jurisprudência tem decidido que o litisconsórcio natural também se impõe quando a presença em juízo de todos os interessados seja necessária para garantir uma decisão uniforme entre eles, isto é, quando a ausência de qualquer dos interessados possibilite uma nova acção sobre a mesma relação e possa originar decisões contraditórias entre eles. Segundo esta orientação, o litisconsórcio natural é imposto, por exemplo, na acção de declaração de nulidade da venda de um imóvel que deve ser proposta por todos os herdeiros do vendedor[11] na acção de declaração de nulidade, por simulação de alienação de um lote de acções que deve instaurada contra todos os simuladores[12], na acção de preferência que deve ser proposta por todos os comproprietários[13], na acção de anulação de contrato promessa de compra e venda, que deve ser promovida por todos os promitentes-compradores[14] e na acção na qual se pede a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda, em que é necessário demandar todos os intervenientes nesse negócio[15].
Quer dizer, o litisconsórcio natural é imposto quer por razões de compatibilidade lógico-jurídica, quer por motivos de coerência prática, isto é, o litisconsórcio necessário deve constituir-se não apenas nos casos em que a repartição dos vários interessados por acções distintas impeça uma composição definitiva entre as partes na causa, mas também nas situações em que a repartição dos interessados por acções distintas possa obstar a uma solução uniforme entres todos eles[16].
Será em função de cada litígio (numa ponderação casuística) que poderá determinar-se se uma projectada sentença de mérito tem ou não virtualidade para, de modo definitivo, resolver o litígio entre as partes, ainda que porventura esteja pendente ou venha a estar instaurada outra acção com outros sujeitos do lado activo ou passivo[17].
Noutra vertente, o depósito bancário pode designar-se como a “convenção acessória do contrato de conta bancária através do qual o cliente (depositante) entrega uma quantia pecuniária ao banco (depositário), ficando este investido no direito de dela dispor livremente e no dever de restituir outro tanto da mesma espécie e qualidade nos termos acordados[18].
O depósito bancário é configurado como um contrato atípico, que reúne elementos comuns da conta corrente mercantil (art. 347.º do C. Comercial) e de contrato de mandato. (art. 1157.º do Código Civil - CC), e cujo objecto se desdobra em actividades próximas do mútuo oneroso (1142.º e ss. do CC) e do depósito (art. 1185.º do CC).
Não corresponde ao típico contrato de depósito, porque transfere para o Banco a propriedade da quantia depositada, ficando o titular da conta com apenas um direito de crédito sobre o Banco[19].
No fundo, pode dizer-se que o depósito bancário, sendo um negócio indireto, tem a natureza jurídica de um depósito irregular, por ter por objecto coisas fungíveis, pois que em regra é constituído por depósito de dinheiro (art. 1205º do CC).
O depósito bancário está regulado, em geral, pelo Dec. Lei n.º 430/91, de 2/11 (alterado pelo Dec. Lei n.º 88/2008, de 29/05).
Importa ter também presente que as contas à ordem podem ser singulares (as que só têm um titular) e colectivas (com mais do que um titular); estas, por sua vez, atendendo à distribuição dos poderes de gestão e movimentação entre os contitulares, podem ser solidárias, conjuntas[20] ou mistas[21].
Nas contas coletivas solidárias (as que relevam na situação ajuizada), também chamadas “contas ou”, qualquer um dos credores – depositantes ou titulares da conta – tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral, ou seja, o reembolso de toda a quantia depositada (acrescida dos respetivos juros, se os houver), ficando o banco liberado para com todos eles, contanto que restitua a totalidade dos montantes a um deles (art. 512º do CC)[22].
Nessas contas, que resultam de vontade das partes e a que o Banco é, em regra estranho, permite-se a qualquer co-titular delas poder movimentá-las, total ou parcialmente, independente de ser seu depositante (de fundos), assentando as mesmas normalmente numa relação de confiança (“fidutia”) existente entre os seus co-titulares e é escolhida por estes para facilitar a movimentação da conta em ordem a prosseguir um objetivo comum. Porém, essa solidariedade só se verifica do lado ativo, e já não do lado passivo.
Logo que sejam satisfeitas as condições de mobilização da conta, o Banco terá de cumprir.
A conta solidária tem, assim, um elemento fiduciário bastante vincado, posto que qualquer um dos titulares pode proceder ao levantamento da quantia por inteiro, mesmo quando nas relações internas só parte dela lhe pertencer.
Com efeito, a titularidade da conta não predetermina a propriedade dos fundos nela contidos, que pode pertencer apenas a algum ou alguns dos seus titulares ou mesmo até porventura a um terceiro, não havendo, assim, que confundir a titularidade da dita conta com a propriedade dos valores/importâncias nela depositadas[23].
O problema da titularidade do depósito ou conta aberta não se confunde, pois, com o da propriedade do dinheiro depositado, e que poderá ser levantado por qualquer dos meios contemplados na lei, por qualquer dos contitulares da conta à ordem. O direito de crédito dimanando da relação obrigacional ou creditícia, oriunda do contrato ou acordo de depósito, que pode ser exercido por qualquer dos titulares da conta ou depósito, sendo o Banco o devedor, distingue-se do direito real sobre a mercadoria-dinheiro, que fora depositado.
Uma coisa são as regras de movimentação da conta, outra a titularidade ou a propriedade das quantias nela depositadas (ou, melhor dizendo, o direito à sua restituição). De facto, são inconfundíveis e independentes a legitimidade para movimentação da conta, inerente à qualidade de contitular inscrito no contrato de depósito e dela directamente decorrente, e a legitimidade para dispor livremente das quantias que a integram, esta indissociável do direito de “propriedade” sobre as quantias depositadas[24].
O direito de crédito de que é titular cada um dos depositantes solidários – que se traduz num poder de mobilização do saldo – não se confunde com o direito real que incide sobre o dinheiro depositado, que pode pertencer a um só ou apenas a alguns dos titulares da conta ou até a um terceiro[25].
Sucede que a característica de solidariedade da conta bancária, por força do recurso ao regime geral das obrigações solidárias previsto no art 512º e segs. do CC, remete, necessariamente, para a consideração do disposto no art. 516º do CC, nos termos do qual: «Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito».
Perante esta norma não oferecerá dúvidas que a questão da repartição da propriedade do dinheiro respeita às relações internas dos titulares da conta bancária ou aos respectivos herdeiros, em caso de sucessão mortis causa, sendo por isso matéria a que o Banco é alheio[26].
No caso, estamos perante uma típica acção declarativa condenatória, sob a forma de processo comum, que tem por objecto averiguar se a quantia de € 72.460,00, depositada na conta bancária à ordem n.º ...00, da Banco 1... - Agência de ..., pertence, em comum e em partes iguais, à Autora e à Ré, por lhes ter sido doada, em vida, pelo tio de ambas, CC.
Na petição inicial, a Autora/recorrida formulou os seguintes pedidos:
«a) – Declarar-se que todas as quantias depositadas na conta bancária à ordem n.º ...00, do Banco Banco 1..., agência de ..., nomeadamente da quantia de 72.460,00€, é propriedade em comum e partes iguais de Autora e Ré; dado que esta quantia lhes foi doada em vida de seu tio CC:
b) – Por tal, condenar-se a Ré a restituir à Autora metade daquela quantia, seja 36.230,00€, já que da mesma se apoderou em benefício próprio, quer por levantamento quer por transferência;
c) – Condenar-se a Ré a restituir à Autora os juros legais moratórios vencidos que nesta data ascendem a 5.566,50€ e bem assim nos juros vincendos até efetivo e integral pagamento».
Para tanto alegou, como causa de pedir, que as quantias depositadas na conta bancária à ordem n.º ...00, da Banco 1..., cujos titulares são a Autora, a Ré e a mãe de ambas, DD, são propriedade, em comum e partes iguais, da Autora e da Ré, dado que esta quantia (no valor de 72.500,00€) lhes foi doada em vida de seu tio CC, sendo que, sem o conhecimento ou autorização e contra a vontade da autora, a Ré apoderou-se em benefício próprio da quase totalidade dos ditos 72.460,00€, pelo que pede a sua condenação a restituir-lhe metade da quantia apoderada.
Em sede de contestação, alegou a Ré que o dinheiro depositado na referida conta bancária era da mãe, DD, na medida em que, por testamento outorgado a 14.12.2015, o tio CC instituiu a referida DD como sua única herdeira do remanescente da herança, onde se incluía todos os dinheiros e saldos bancários de que era dono, designadamente o saldo da conta que então possuía na Banco 3..., no valor de 72.500,00€, sendo que o falecido nada deixou às duas sobrinhas, a autora e a Ré.
Trata-se, inegavelmente, de um conflito entre cotitulares de uma conta bancária coletiva solidária, no qual um dos cotitulares levantou dessa conta a quase totalidade dos fundos monetários, arrogando-se um dos outros cotitulares (no caso, a Autora/recorrida) proprietária de metade dessa quantia (ou, na sequência da prolação da sentença impugnada, de um terço do dinheiro depositado). É, pois, manifesto a existência de um conflito entre os cotitulares da conta quanto à propriedade dos fundos nela existentes.
Ora, a questão da propriedade ou compropriedade do dinheiro depositado numa dada conta bancária, portanto, em sede de acção de reivindicação, teria de ser esgrimida entre todos os contitulares dessa conta e só entre eles. É matéria das suas relações internas, enquanto contitulares da conta bancária. Com efeito, estando em causa uma conta coletiva (solidária), bem como saber-se a qual ou a quais dos titulares pertencia o dinheiro depositado, na acção deveriam estar todos os cotitulares da conta. Isto porque, segundo a natureza da relação jurídica em causa, seria necessária a presença na lide de todos os interessados para que a decisão produza os efeitos erga omnes por ela exigidas. Dito de outro modo, para que a decisão a obter possa produzir o seu efeito útil normal seria necessária a intervenção de todos os cotitulares da mencionada conta. De outro modo, a sentença proferida poderá ficar numa situação instável em face de outra eventual sentença que venha a ser proferida noutra acção com intervenção de outros interessados, designadamente com a participação da cotitular que não intervém na presente demanda.
É absolutamente indiscutível a necessidade do litisconsórcio natural, sob pena de a repartição dos vários interessados por acções distintas ser de molde a impedir uma composição definitiva mesmo entre as próprias partes na causa, ficando a própria afectação ou repartição dos bens (dinheiro depositado na referida conta bancária), operada no confronto entre a autora e a Ré, sujeita a uma inevitável e incontornável precariedade, já que tal afectação ou repartição poderá ter necessariamente de ser rediscutida e reapreciada no âmbito de acção que viesse a ser ulteriormente movida pela restante interessada (no caso, a co-titular DD), além de que só assim se logrará uma solução uniforme entre todos os interessados sobre a propriedade das quantias depositadas na referida conta bancária (e a sua repartição ou a quota de cada um dos titulares). Discutindo-se a propriedade das quantias depositadas e a proporção ou a repartição dessas quantias pelos vários cotitulares da conta, tais questões só podem sedimentadas se todos eles estiverem, cumulativa e simultaneamente, em juízo, sob pena de a definição da propriedade e a quota de cada um dos titulares, operada apenas no confronto de alguns, ser posta em causa quando a restante cotitular pretender realizar, em acção por ela desencadeada, o direito de propriedade que se arroga sobre a referida quantia em dinheiro, afectando naturalmente a repartição fixada na presente acção em que das três cotitulares da conta só duas delas intervieram.
Ora, a prevalecer a tese sustentada pela Autora/recorrida – e que foi acolhida na sentença recorrida[27], na parte em que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados pela Autora em a), b) e c), correspondente ao reconhecimento da propriedade do dinheiro depositado na proporção de 1/3 e em que condenou a Ré a restituir à Autora a importância de € 24.133,33, acrescida de juros de mora, à taxa legal – ficaria naturalmente aberta a possibilidade de, em futura acção, a restante co-titular voltar a recolocar em juízo a questão da propriedade do dinheiro depositado – podendo perfeitamente ocorrer que o efeito jurídico material aqui decretado pudesse ser posto em crise, de modo a nessa futura acção poder vir a ser decidido de modo diferente quer sobre a propriedade do dinheiro depositado (sob a alegação de pertencer na totalidade a um dos co-titulares ou a ambos, mas em proporções diversas), como também sobre a ilisão da presunção constante do art. 516º do Cód. Civil[28].
E, como tem sido jurisprudencialmente entendido, em princípio, existe litisconsórcio necessário passivo quando se pretendem exercer direitos relativos a contas solidárias[29].
Afigura-se-nos assim que a sentença a proferir não poderá alcançar o seu efeito útil normal, isto é, declarar o direito de modo definitivo, formando caso julgado material, sem estarem em juízo todos os contitulares inscritos no contrato de abertura de abertura de conta.
Consequentemente, estamos na presença dum caso de litisconsórcio necessário emanado da própria natureza da relação jurídica litigada, no qual, ab initio ou posteriormente, um dos três cotitulares da conta bancária não foi chamado à acção – no caso, a cotitular DD –, que, assim, não teve oportunidade processual de se pronunciar sobre questão que lhe diz directamente respeito e que afecta a respectiva esfera jurídica.
A Mm.ª Juíza “a quo” poderia ter providenciado pelo suprimento da falta desse pressuposto processual, convidando a parte a suprir a mencionada excepção dilatória [arts. 6º e 590º, n.º 2, al. a) do CPC], mas não o tendo feito, não é agora possível.
Em face do exposto, está verificada nos autos a preterição do litisconsórcio necessário natural passivo, nos termos do disposto no art. 33º, nº 2, do CPC, pelo que estamos perante uma situação de ilegitimidade passiva, a qual não foi sanada e não é susceptível de o ser, tendo em conta a fase em que o processo se encontra.
Donde se julgue inviável a pretensão aduzida, pela recorrida, nas contra-alegações, no sentido de, verificada a excepção dilatória de ilegitimidade, competir a este Tribunal da Relação providenciar pelo suprimento da mencionada excepção, designadamente determinar que seja chamada para a acção a referida DD.
A ilegitimidade das partes, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, constitui excepção dilatória, a qual dá lugar à absolvição da instância da ré, ora recorrente – arts. 33º, n.º 2, 576º, n.ºs 1 e 2, 577º, al. e), 578º e 278º, n.º 1, d), todos do CPC –, e obsta a que este Tribunal da Relação conheça do mérito do recurso.
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VI. DECISÃO
Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a excepção de ilegitimidade passiva da Ré/recorrente, por preterição de litisconsórcio necessário natural, e, consequentemente, absolvem-na da instância, o que obsta ao conhecimento do mérito do recurso.
Custas da acção e da apelação a cargo da Autora/apelada (art. 527º do CPC).
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Guimarães, 16 de novembro de 2023

Alcides Rodrigues (relator)
Alexandra Rolim Mendes (1ª adjunta)
Joaquim Boavida (2º adjunto)



[1] Em função do estabelecido no art. 608º “ex vi” do art. 663º, n.º 2, parte final, ambos do CPC.
[2] Cfr. Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 129.
[3] Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p. 111.
[4] Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, obra citada, p. 131.
[5] Cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., p. 84, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, obra citada, p. 135, e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª ed., Almedina, p. 92.
[6] Cfr. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. I, 2ª ed., Almedina, p. 382.
[7] Cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., 2017, Almedina, p. 74.
[8] Cfr. Rui Pinto, obra citada, p. 114.
[9] Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, obra citada, p. 160.
[10] Como se explicita no Ac. do STJ de 22/10/2015 (relator Lopes do Rego), in www.dgsi.pt., «é absolutamente indiscutível a necessidade do litisconsórcio naqueles casos em que a repartição dos vários interessados por acções distintas fosse de molde a impedir uma composição definitiva mesmo entre as próprias partes na causa, ficando a própria afectação ou repartição dos bens, operada no confronto de A e de B, sujeita a uma inevitável e incontornável precariedade , já que tal afectação teria necessariamente de ser rediscutida e reapreciada no âmbito das acções que viessem a ser ulteriormente movidas pelos restantes interessados: é a situação típica dos juízos divisórios (acção de divisão de coisa comum, rateio de um montante indemnizatório legalmente fixado entre os vários lesados de um mesmo acidente - cfr. assento de 29/5/56), em que o rateio , a repartição ou a divisão de um bem unitário pelos vários consortes ou interessados só pode sedimentar-se se todos elas estiverem, cumulativa e simultaneamente,  em juízo- sob pena de a divisão do bem, operada apenas no confronto de alguns, ser posta em cheque quando os restantes consortes pretenderem realizar, em acção por eles desencadeada,  nova divisão global do bem, afectando naturalmente a quota fixada na acção proposta entre A e B…».
[11] Cfr. Ac. da RL de 18.02.76, CJ, T. I, p. 239.
[12] Cfr. Ac. do STJ de 16.07.85, BMJ n.º 349, p. 405.
[13] Cfr. Ac. da RP de 03.04.1986, BMJ n.º 356, p. 440 e Ac. do STJ de 16/06/2015 (relator Hélder Roque), in www.dgsi.pt.
[14] Cfr. Ac. do STJ de 18.02.88, BMJ n.º 374, p. 410.
[15] Cfr. Ac. da RC de 17.04.90, BMJ n.º 396, p. 447.
[16] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pp. 161/163, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, Almedina,  p. 63 e o Ac. da RC de 08/11/2011 (relator Henrique Antunes), in www.dgsi.pt.
[17] Cfr. Paulo Pimenta, obra citada, pp. 81/82.
[18] Cfr. José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2017, pp. 495/496.
[19] Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Vol. I, Almedina, p. 222.
[20] A conta conjunta só pode ser movimentada a débito por todos ou com a autorização de todos os seus titulares.
[21] Por exemplo, sendo solidária quanto a alguns dos titulares e conjunta quanto a outros.
[22] Cfr. Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, 1998, p.131.
[23] Cfr. Ac. do STJ de 15/12/2017 (relator António Piçarra), in www.dgsi.pt.
[24] Cfr. Acs. do STJ de 4/06/2013 (relator Alves Velho), de 15-03-2012 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), de 31/03/2011 (relator Serra Baptista) e de 26/10/2010 (relator Moreira Alves), in www.dgsi.pt; Paula Ponces Camanho, obra citada, p.134/136 (nota 395) e L. Miguel Pestana de Vasconcelos, obra citada, p. 95.
[25] Citado no Ac. do STJ de 22/02/1981, BMJ, n.º 304, pp. 444/452.
[26] Cfr., neste sentido, Ac. da RE 23/02/2017 (relator Mário Serrano) in www.dgsi.pt.
[27] Com efeito, na decorrência de não ter sido apurada a dita doação verbal dos dinheiros à autora e à ré, a Mm.ª Juíza “a quo”, valendo-se das regras jurídicas atinentes às contas coletivas solidárias e do facto de não ter sido ilidida a presunção estabelecida no art. 516º do Cód. Civil, concluiu, «presuntivamente, pela pertença da importância de € 72.400,00, em partes iguais, à Autora, à Ré e a FF», correspondente aos co-titulares da referida conta bancária em crise e, consequentemente, julgou legítimo que a Autora pudesse exigir da Ré a restituição de uma terça parte de tal montante, ou seja, € 24.133,33.
[28] O STJ decidiu, nomeadamente no Ac. do STJ de 26/10/2004 (relator Afonso Correia), in www.dgsi.pt., que a presunção do art. 516º do CC pode ser ilidida quando se prove que o dinheiro depositado pertence por inteiro a um dos titulares da conta, pelo que só o proprietário poderia fazer sua a totalidade do depósito.
[29] Cfr. Ac. do STJ de 8/11/2012 (relator João Bernardo), in www.dgsi.pt.