Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6872/24.6YIPRT.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral.
II – A convenção de arbitragem constitui um sinal de proibição: há convenção de arbitragem, é plausível que ela vincule as partes no litígio, então, quanto ao litígio entre elas, o tribunal judicial não pode intervir senão em sede de impugnação da decisão arbitral
III - Com efeito, o tribunal arbitral, como qualquer outra jurisdição, pode e deve verificar, antes de mais, a sua competência para conhecer de determinado litígio submetido à sua apreciação.
IV - O contrato deve ser visto no seu todo e ter em conta o complexo contratual.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I- Relatório

A requerente EMP01... - Indústria de Ferro e Alúminio, Lda, NIF: ...40, com sede no Lugar ... - ... e ..., ... ..., veio instaurar procedimento de Injunção contra o requerido EMP02... - Construção e Reabilitação, Lda, com sede na Urbanização ..., ... - ..., ... ..., invocando ter fornecido os bens e prestado os seus serviços à requerida, sem que esta tivesse efectuado o pagamento dos preços acordados e na respectiva data, apesar de ter sido reclamado várias vezes o seu pagamento, encontrando-se em débito a quantia de €9.041,00 (€3.244,00 + €4.500,00+ €2.797,00 - €750,00 - €750,00), cujo valor peticiona.
Como fundamento, em suma, referiu que, por contratos escritos celebrados nos dias 05.10.2020 e 12.05.2021, a Requerida deu de subempreitada à Requerente os trabalhos de fornecimento e montagem de caixilharias, de caixas de correio e de claraboia em caixilharia, no âmbito da empreitada de reabilitação do Bairro ..., e de caixilharias, de caixas de correio, de estendal exterior e de pala exterior, no âmbito da empreitada de reabilitação do Bairro ..., que realizou, assim como os trabalhos a mais executados a pedido da requerida, que discriminou.
Aduziu, ainda, que todos os serviços prestados pela requerente foram recebidos pela requerida sem que tivessem sido, alguma vez, objecto de qualquer reclamação, pois que se encontravam em perfeitas condições e satisfaziam o que fora acordado e contratado.
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Em sede de oposição, para além do mais, a requerida veio arguir a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, invocando que na cláusula 10.ª dos dois referidos contratos aludidos pela requerente, as partes acordaram em submeter qualquer litígio emergente de tais contratos, à apreciação de Tribunal Arbitral, pelo que defende que o tribunal a quo é absolutamente incompetente, verificando-se a preterição de tribunal arbitral (cfr. arts. 96.º, alínea b), 97.º, n.º1, ambos do CPC), que implica a absolvição da requerida da instância, o que se requer (cfr. art. 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC).
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Notificada a Requerente para se pronunciar, fê-lo alegando, em síntese, que a convenção de arbitragem abrange apenas os litígios relacionados com a interpretação, aplicação e execução dos contratos. No caso concreto, o que está em causa é o pagamento de quantias que são devidas no cumprimento dos contratos e o pagamento devido pela execução de outros trabalhos, a mais, no valor de € 4.500,00 que não se encontram contemplados nos referidos contratos, pelo que deve ser julgada improcedente a excepção invocada.
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Foi proferida decisão que julgou procedente a excepção de incompetência absoluta por preterição do Tribunal Arbitral Voluntário, tendo, em consequência, sido absolvida a Requerida da instância, nos termos do disposto nos art.ºs 96º, al. b), 99º, nº 1, 278º, nº 1 e 577º, al. a) do CPC e art.º 5º, nº 1 da Lei da Arbitragem Voluntária.
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II- Objecto do recurso

Inconformada com essa decisão, veio a requerente interpôr o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

DAS RAZÕES DE DISCORDÂNCIA

I- DA NULIDADE DA SENTENÇA
1. Peticionou a Autora na presente acção o pagamento dos trabalhos contemplados nos contratos de subempreitada de reabilitação do Bairro ... e do Bairro ..., e dos trabalhos extra ou adicionais (não contemplados nos contratos referidos) que foram acordados entre as partes.
2. Acontece, porém, que, apesar do Tribunal a quo ter considerado no despacho que proferiu no dia 10.02.2025, que era competente para o julgamento do litígio, no que respeita aos trabalhos a mais, e
3. na sentença proferida no dia 17.03.2025 ter entendido que apenas através do conhecimento do mérito da causa é que seria apurado se os alegados trabalhos a mais estão ou não contemplados nos contratos celebrados,
4. acabou por concluir que era absolutamente incompetente para a apreciação e decisão do presente litígio, por ser da competência exclusiva do tribunal arbitral convencionado pelas partes,
5. tendo julgado procedente a excepção de incompetência absoluta por preterição do Tribunal Arbitral Voluntário e, em consequência, absolvido a Ré da instância.
6. Do que resulta que entre a fundamentação da sentença (subsunção jurídica) e a decisão existe contradição lógica.
7. Na verdade, o Tribunal a quo ao concluir que era absolutamente incompetente para a apreciação e decisão do presente litígio, por ser da competência exclusiva do tribunal arbitral convencionado pelas partes, e julga procedente a excepção de incompetência absoluta por preterição do Tribunal Arbitral Voluntário,
8. quando considerou anteriormente, i) no despacho que proferiu no dia 10.02.2025, que era competente para o julgamento do litígio, no que respeita aos trabalhos a mais, e
9. ii) na sentença proferida no dia 17.03.2025 que apenas através do conhecimento do mérito da causa é que seria apurado se os alegados trabalhos a mais estão ou não contemplados nos contratos celebrados,
10. entra em contradição, atento que a fundamentação de direito aponta para um sentido, que lógica e formalmente não é comportado pela decisão, estando com ela em frontal colisão.
11. Pelo que, a decisão proferida pelo Tribunal a quo enferma do vício de nulidade, por se encontrarem os fundamentos em oposição com a decisão, devendo ser julgada improcedente a excepção de incompetência absoluta por preterição do Tribunal Arbitral Voluntário, e declarada a competência do tribunal para o julgamento do litígio, no que diz respeito aos trabalhos a mais, não contemplados nos contratos em apreço nos autos, sem prejuízo do que infra se discorre no item “II – DA PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL”.(Art.os 615.º e 617.º CPC)

II – DA PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
12. A competência atribuída a tribunal arbitral pode ser exclusiva ou concorrente com a do tribunal estadual legalmente competente.
13. A preterição de tribunal arbitral resulta da infracção da competência convencional de um tribunal arbitral que tem competência exclusiva para apreciar determinado objecto.
14. Para que haja preterição de tribunal arbitral é necessário que seja intentada em tribunal comum acção cujo objecto as partes convencionaram submeter exclusivamente a tribunal arbitral.
15. Pela presente acção pretende a Autora seja a Ré condenada no pagamento de quantias que são devidas em cumprimento dos contratos de subempreitada que celebrou, por escrito,
16. mas também pela execução de outros trabalhos, a mais, no valor de €4.500,00 que não se encontram contemplados nos referidos contratos.
17. Estaremos, portanto, fora do âmbito dos contratos que incluem tais cláusulas compromissórias.
18. Tal implica a improcedência da excepção deduzida, posto que é pelo modo como a Autora formula a causa de pedir que há-de aferir-se da competência do tribunal.
19. Não obstante, sempre se dirá que, nos termos das cláusulas dos contratos aqui em apreço, cada uma das partes poderá a todo o momento recorrer à arbitragem.
20. Com efeito, atenta a terminologia usada, a competência do tribunal arbitral foi estabelecida concorrencialmente e não exclusivamente à dos tribunais comuns.
21. Logo, tendo o recurso a tribunal arbitral sido clausulado como uma faculdade e não como uma obrigação, qualquer das partes, em caso de diferendo, poderá optar, ou pelo recurso aos tribunais do Estado, ou a tribunal arbitral.
22. As cláusulas em apreço apenas prevêem a faculdade e não a obrigatoriedade de requerer a intervenção do tribunal arbitral pelo que, fosse qual fosse o tema do litígio, não haveria preterição que determinasse a incompetência deste Tribunal.
23. Se existe dissídio as partes têm a faculdade ou o direito de recorrer aos tribunais, não porque as partes acordem nesse direito ou faculdade, mas porque esse direito ou faculdade é atribuído por lei e pela Constituição. (Art.º 20.º n.º 1 e 202.º n.º 1 CRP)
24. Sendo que os tribunais arbitrais são alternativos ou subsidiários em relação aos tribunais estaduais e não o contrário, conforme resulta clarividente da comparação entre o disposto nos n.os 1, 2 e 4 do art.º 202.º da CRP.
25. Existe competência residual sim, mas dos tribunais judiciais por referência aos demais tribunais estaduais e não dos tribunais estaduais em relação aos tribunais arbitrais, conforme resulta claramente do disposto na parte final do art.º 64.º CPC. (Vide, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, do dia 12.11.2020, proc. n.º 923/2016).
26. Por outro lado, as referidas cláusulas dos contratos sub judice não prevêem a hipótese de recurso aos tribunais estaduais pela simples e evidente razão de que as partes não podem acordar sobre a competência material dos tribunais estaduais. (Art.º 95.º n.º 1 CPC)
27. Existe o julgamento arbitral necessário ou voluntário.
28. E o julgamento arbitral necessário é apenas o que resulta da lei (art.º 1082.º CPC). (Art.º 1.º n.º 1 da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro)
29. As cláusulas em apreço interpretadas no sentido de imporem às partes o recurso ao tribunal arbitral em caso de dissídio, como se de arbitragem necessária se tratasse, apesar de constarem apenas de contrato e não de lei, sempre serão, de resto, nulas, por contrariarem precisamente a referida norma do n.º 1 do art.º 1.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, conforme resulta do art.º 3.º do mesmo diploma.
30. Em todo o caso, as próprias cláusulas excluem inequivocamente a intervenção do tribunal arbitral quando está apenas em causa, como aqui sucede, dissídios respeitantes à facturação emitida pela Autora e à sua falta de pagamento.
31. O que está aqui em causa, nos termos do requerimento de injunção, é a cobrança de valores em dívida, não sendo necessário proceder a qualquer interpretação, aplicação ou execução do clausulado dos contratos, mas a subsunção dos factos ao Direito e ao clausulado.
32. As questões que possam estar relacionadas com a interpretação, aplicação e execução dos contratos sub judice apenas surgem na defesa apresentada pela Ré.
33. Devendo aferir-se a competência do Tribunal pela relação jurídica controvertida tal como é configurada pela Autora, de acordo com o entendimento pacífico acima exposto, forçoso é concluir, também por esta via, que o Tribunal estadual, em concreto o Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, é o competente para conhecer em 1ª Instância do presente litígio.
34. O tribunal estadual, como aqui sucede, não só pode como deve conhecer da questão da sua própria competência, nos termos desta norma.
35. E deve conhecer sem necessidade de prévia definição da competência pelo tribunal arbitral.
36. Primeiro porque não existe essa determinação em norma legal nenhuma, sobre competência ou repartição de competências.
37. Depois porque seria reconhecer uma posição de subalternidade dos tribunais estaduais em relação aos tribunais arbitrais que, como vimos, não existe.
38. Com efeito, o tribunal arbitral tem competência para se pronunciar sobre a sua própria competência. (Art.º 18.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro).
39. No entanto, em termos de mera faculdade, como qualquer intérprete medianamente diligente e sagaz bem percebe, a partir do termo “pode”.
40. Mas também os tribunais estaduais são competentes para decidir sobre a sua própria competência.
41. E não se trata de mera faculdade, antes de um claro e expresso dever consignado na lei. (Art.os 96.º e 78.º CPC)
42. E, por todo o exposto, o Tribunal é o competente para decidir a presente acção. (No sentido propugnado, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, do dia 02.06.2021, proc. n.º 00424/18.7BEMDL)
43. Pelo que, deveria ter sido julgada improcedente a excepção de incompetência absoluta por preterição de tribunal arbitral.
44. Por último, sempre se dirá em abono da verdade que, caso se entenda que, em relação aos trabalhos contemplados nos contratos celebrados, existe incompetência do tribunal, face à convenção de arbitragem constante dos referidos contratos e que atribuiu competência ao Tribunal Arbitral, 45. o mesmo já não se poderá dizer no que diz respeito aos trabalhos a mais, não contemplados nos referidos contratos, que será competente o Tribunal a quo para o julgamento do litígio.
46. E, por isso, deveria o Tribunal a quo ter ordenado o prosseguimento dos autos para apreciação e decisão do presente litígio, no que concerne aos trabalhos a mais, não contemplados nos referidos contratos
47. Destarte, ao assim não entender, violou o tribunal recorrido o disposto nos art.os 96.º al. b), 99.º n.º 1, 278.º n.º 1 e 577.º al. a) CPC e 5.º n.º 1 da Lei da Arbitragem Voluntária.
Termos em que, e no que mais Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se a decisão na parte em apreço nos termos expostos, revogando-se a sentença proferida, substituindo-se por outra, tudo de molde a que seja declarada a competência do Tribunal a quo para apreciação e decisão do presente litígio e ordenado o prosseguimento de ulteriores termos até final dos presentes autos.
Caso assim se não entenda, seja declarada a competência do Tribunal a quo para apreciação e decisão do presente litígio, no que diz respeito aos trabalhos a mais, não contemplados nos contratos em apreço, e ordenado o prosseguimento de ulteriores termos até final dos presentes autos, com o que se fará INTEIRA JUSTIÇA.
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III- O Direito
Como resulta do disposto nos art..ºs 608.º, nº. 2, ex vi do artº. 663.º, n.º 2, 635.º, nº. 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.
Assim, face às conclusões das alegações de recurso, importa apurar se a decisão padece de nulidade e se se verifica preterição, ou não, do tribunal arbitral.
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A – Fundamentação de facto
- a materialidade jurídico-processual constante do relatório desenvolvido no ponto I, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
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B – Fundamentação Jurídica
Começa a recorrente por invocar existir contradição lógica entre a fundamentação da sentença (subsunção jurídica) e a decisão.
Alega, nesse sentido, que o Tribunal a quo entrou em contradição quando considerou anteriormente, no despacho que proferiu no dia 10.02.2025, que era competente para o julgamento do litígio, no que respeita aos trabalhos a mais, e na sentença proferida no dia 17.03.2025 que apenas através do conhecimento do mérito da causa é que seria apurado se os alegados trabalhos a mais estão ou não contemplados nos contratos celebrados.
Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, al. c) do C.P.C. “é nula a sentença quando (…) os fundamentos estejam em oposição com a decisão (…)”.
É pacífico na doutrina e jurisprudência o entendimento segundo o qual a nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão aí contemplada pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la: a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente (cf. nesse sentido, na doutrina Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, , Vol. V, pág. 141, Coimbra Editora, 1981, Amâncio Ferreira, Manual de Recursos no Processo Civil, 9ª edição, pág. 56 e Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª edição, pág. 736-737, e na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.10.2010, Procº nº 2375/18.6T8VFX.L1.S3, 21.3.2018, Proc.º n.º 471/10.7TTCSC.L1.S2, e 9.2.2017, Proc.º n.º 2913/14.3TTLSB.L1-S1).
É igualmente pacífico o entendimento de que a divergência entre os factos provados e a decisão não integra tal nulidade reconduzindo-se a erro de julgamento.
Ora, se atentarmos na primeira decisão, proferida a 10.2.2025, constatamos que o tribunal aí se pronunciou sobre a ineptidão da petição inicial, e, na segunda decisão, proferida a 17.03.2025, pronunciou-se sobre a competência do tribunal.
Depois, como igualmente se conclui, a recorrente não aponta uma contradição lógica interna existente entre a fundamentação (subsunção jurídica) e a decisão de uma das referidas questões, mas sim uma contradição entre o inicialmente decidido na primeira e o que depois foi veio a ser decidido na segunda.
A ser assim, estar-se-ia antes perante decisões entre si contraditórias, enquadrável no art. 625.º, do Cód. Proc. Civil, que estabelece a prevalência da primeira decisão e a ineficácia da segunda, a ser "desconsiderada" ou "inutilizada” e, não, “nula" – cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 774, e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª Edição, pág. 766.
Daqui decorre à evidência que a especificação determinada no âmbito da apreciação da excepção da ineptidão da petição inicial não pode vincular o tribunal quanto à posterior decisão proferida tendo por objecto a incompetência decretada.
Ainda que aí se aborde a questão dos trabalhos abrangidos nos contratos celebrados entre as partes e os trabalhos alegadamente executados a mais, o certo é que se não pode concluir existir contradição quanto ao decidido em cada uma das referidas decisões, quanto a questões diferentes.
Efectivamente, os fundamentos invocados pelo juiz em cada uma dessas decisões não conduziu logicamente a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.
Pelo contrário, os fundamentos invocados conduziram logicamente ao resultado expresso em cada uma das decisões.
Entende-se, assim, não se verificar a arguida nulidade.
Passando à segunda questão, importa ter em conta que a competência do tribunal é entendida como a medida do respectivo poder jurisdicional. A contrario sensu, existe incompetência do tribunal nos casos em que no seu âmbito de poderes jurisdicionais não cabe o de julgar certo litígio ou categoria de litígios – cfr. PRATA, Ana, Dicionário Jurídico, 4ª edição, Almedina, 2005, p. 259.
Como nos diz o art. 202.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, os tribunais são os órgãos da soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, estabelecendo-se no n.º 1 do artigo 209.º a categoria de tribunais que existem, para além do Tribunal Constitucional, como sendo os do Supremo Tribunal de Justiça e Tribunais Judiciais de 1ª e 2ª instância, do Supremo Tribunal Administrativo e demais tribunais administrativos e fiscais e do Tribunal de Contas.
Já, por sua vez, o n.º 2 desse mesmo preceito prescreve que podem ainda existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz.
E, assim, na lei da arbitragem voluntária - Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro -, preceitua-se no seu n.º 1 do artigo 1.º, que desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros.
A convenção de arbitragem pode ter por objecto um litígio actual, ainda que afecto a um tribunal do Estado (compromisso arbitral), ou litígios eventuais emergentes de determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (cláusula compromissória) – n.º 3 deste último preceito.
Convenção de arbitragem essa que deve ser reduzida a escrito (n.º 1 do artigo 2 º da LAV) e determinar o objecto do litígio, especificando-se a relação jurídica a que os litígios respeitem (n.º 6 do artigo 2 º da LAV).
Como tal, atento o exposto, podemos referir que os tribunais arbitrais, “embora não sejam órgãos de soberania como os tribunais estaduais, não deixam de ser entidades jurisdicionais a quem cabe definir o direito nas situações concretas que lhes são submetidas” (Acórdão do STJ, de 20/01/2011, consultável em www.dgsi.pt).
Como refere Manuel Pereira Barrocas, o tribunal arbitral exerce uma actividade de natureza privada que resulta do poder das partes em o constituir. “(…) A referência que o artigo 209.º, número 2, da Constituição faz aos tribunais arbitrais não visa integrá-los no sistema jurisdicional estadual, pois não fazem parte do aparelho estadual, mas apenas conferir dignidade constitucional à sua existência e, seguramente, permitir que não seja arguido de inconstitucionalidade o artigo 42.º, n.º 7, da LAV que reconhece à sentença arbitral a mesma força executiva da sentença judicial” - Manual de Arbitragem, 2ª. edição, pág.35.
Assim, a preterição de tribunal arbitral voluntário resulta da infração da competência convencional de um tribunal arbitral que tem competência para apreciar determinado objecto, de tal modo que seja instaurada num tribunal comum uma acção que devia ser proposta num tribunal convencionado pelas partes (Acórdão do STJ, de 4/05/2005).
Ocorrendo preterição de tribunal arbitral (necessário ou voluntário) tal importa a incompetência absoluta do tribunal (alínea b) do artigo 96.º do Código de Processo Civil), que pode ser arguida pelas partes, mas não pode ser suscitada oficiosamente pelo tribunal judicial (n.º 1 do artigo 97.º do Código de Processo Civil), pelo que, sendo uma excepção dilatória (alínea a) do artigo 577.º do Código de Processo Civil) obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal (n.º 2 do artigo 576.º do Código de Processo Civil).
Em conjugação com o aí preceituado, decorre do disposto no art.º 21.º n.º 1 da LAV, que «o tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre a sua competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela insira, ou a aplicabilidade da referida convenção»”.
Vigora, como tal, entre nós, o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, designado em idioma germânico por Kompetenz-kompetenz e que, na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral.
Como refere Lopes dos Reis, “a[A]quele princípio (“Kompetenz-kompetenz) acarreta o efeito negativo de impor à jurisdição pública o dever de se abster de pronunciar sobre as matérias cujo conhecimento a lei comete ao árbitro, em qualquer causa que lhe seja submetida e em que se discutam aquelas questões, antes que o árbitro tenha tido a oportunidade de o fazer. Isto é, do aludido princípio não decorre apenas que o árbitro tem competência para conhecer da sua própria competência, decorre também que tal competência lhe cabe a ele, antes de poder ser deferida a um tribunal judicial.(…) Todas estas cautelas da lei significam que ela quis que o tribunal judicial olhasse a convenção de arbitragem como um sinal de proibição: há convenção de arbitragem, é plausível que ela vincule as partes no litígio, então, quanto ao litígio entre elas, o tribunal judicial não pode intervir senão em sede de impugnação da decisão arbitral. Para que esse limite fique claro, para que fique nitidamente delimitada essa fronteira estabelecida ao poder do juiz, questões relativas à própria convenção, como a sua validade, a sua eficácia, a sua aplicabilidade, só podem ser apreciadas pelo tribunal judicial depois de o árbitro proferir a sua decisão final. Só se ocorrer nulidade da convenção de arbitragem é que o tribunal judicial pode decidir de outro modo” – cfr. ‘A Excepção da Preterição do Tribunal Arbitral’.
Com efeito, o tribunal arbitral, como qualquer outra jurisdição, pode e deve verificar, antes de mais, a sua competência para conhecer de determinado litígio submetido à sua apreciação. A fortiori, este controlo impõe-se quando a sua competência for contestada por uma das partes.
No caso presente, de harmonia com a posição das partes sobre a questão e o acervo documental junto aos autos, designadamente os contratos celebrados, resulta que Requerente e Requerida celebraram dois contratos intitulados respectivamente “Contrato de fornecimento de serviços nº 2020.00...” e “Contrato de fornecimento de serviços nº 2021.00...”, e que tinham por objecto o fornecimento e aplicação de material, mormente, fornecimento e montagem de caixilharias, caixas de correio, estendais e palas exteriores, no âmbito das obras de reabilitação do Bairro ... e Bairro ....
Nesses referidos contratos que foram reduzidos a escrito, consta uma cláusula intitulada de “resolução de conflitos” em que as partes convencionam que, em caso de litígio emergente dos acordos celebrados, relativo à sua interpretação, aplicação e execução, será o mesmo decidido em Tribunal Arbitral, com sede em ... (cláusula 10ª, nº 10.1 e 10.2).
Também neste campo, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil); sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (nº2 do artigo 236º do Código Civil).
Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 1 do artigo 238.º do Código Civil); esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (n.º 2 do artigo 238.º do Código Civil).

Como refere Menezes Cordeiro, “interpretação e integração da convenção de arbitragem seguem as regras gerais aplicáveis aos negócios: 236.º a 239.º, do CC (…). Todavia, as inerentes operações devem recair sobre o contrato (no seu todo) onde, porventura, se contenha a convenção em causa; cabe ir ainda mais além e ter em conta o complexo contratual (vários contratos) onde se insira” - Tratado da Arbitragem, 2016, pág.88.
Ora, da análise da cláusula constante da convenção celebrado pelas partes resulta uma obrigatoriedade de submeter qualquer litígio existente entre as partes, quer quanto à interpretação, aplicação e execução dos contratos firmados entre as partes, ao crivo do tribunal arbitral.
Por outro lado, a situação não está submetida por lei especial exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, nem se reporta a direitos indisponíveis, encontra-se inserida em documentos escritos (nos contratos) e especifica a relação jurídica a que os litígios respeitam. Nessa medida, os requisitos quanto à arbitrabilidade, à forma e ao conteúdo encontram-se, inequivocamente, verificados no caso em análise, o que permite concluir que, à partida, se mostra totalmente válido o estabelecimento, entre as partes, de uma cláusula compromissória, vinculando, por isso, as partes ao seu acatamento.
Tal como decidido no Ac. do STJ de 03.10.2011, Proc. n.º 5961/09.1TVLSB.L1.S1 (Lopes do Rego), em www.dgsi.pt , «"a convenção de arbitragem produz um efeito negativo, a que também poderia chamar-se reflexo, pois constitui a outra face do elemento positivo. Uma vez que, com o benefício do Estado, os particulares criam, pela sua convenção, um tribunal para conhecimento de um certo ou de incidências, segue-se como importância natural, que os do Estado devem ficar excluídos, temporários ou definitivos, do conhecimento do mesmo litígio” - RAUL VENTURA, Convenção de Arbitragem, Revista da Ordem dos Advogados, ano 46 (Setembro de 1986), pg. 380.
No Ac. do STJ de 09.07.2015, Proc. n.º 1770/13.1 (Mário Mendes), em www.dgsi.pt, defendeu-se que «(...) ao STJ apenas cumprirá (...) verificar se é manifesta e insusceptível de controvérsia séria e consistente a não aplicabilidade da convenção de arbitragem estipulada à relação contratual litigiosa; pelo contrário, em caso de dúvida fundada (sublinhado nosso) sobre o âmbito da referida convenção, deverão as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuirão competência para solucionar o litígio.».
Igual entendimento veio a ser seguido pelos Acs. do STJ de 21.06.2016, no Proc. n.º 301714.0TVLSB.L1.S1 (Fernandes do Vale), bem como no proc. 8927/18.7T8LSB-A.L1.S1, de 2.11.19, com igual concordância de Mariana França Gouveia e Jorge Morais Carvalho (In “Cadernos de Direito Privado”, nº 36, págs. 39 a 49), Mário Esteves de Oliveira (in “Lei da Arbitragem Voluntária”, Almedina - 2014, pags. 251 e segs.) e Manuel Pereira Barrocas (in “Lei de Arbitragem Comentada”, Almedina (2013), pags. 83 e segs.).
Em suma, entende-se que, sempre que se suscitem dúvidas sobre o âmbito de aplicação da convenção de arbitragem, deverão as partes ser remetidas ao tribunal arbitral ao qual atribuirão competência para solucionar o litígio.
Ora, se em relação aos trabalhos executados inicialmente não se suscitam grandes dúvidas, admitindo inclusive a recorrente a possibilidade de poderem estar abrangidos pela alçada do tribunal arbitral, a questão coloca-se essencialmente quanto aos trabalhos a mais executados nas obras objecto dos acordos firmados entre as partes.
Quanto a esses trabalhos não podemos deixar de entender que não são mais do que a ‘extensão’ dos trabalhos anteriormente executados, inseridos no mesmo âmbito contratual.
Tratam-se de tarefas em uma obra ou projecto que não estavam previstas inicialmente, mas que se tornaram necessárias para a sua execução devido a circunstâncias imprevistas.
Tendo sido realizados trabalhos acrescidos, executados e incorporados em obras efectuadas no âmbito da subempreitada contratada, entende-se que devem ser perspectivados no âmbito contratual como um todo.
Acresce que nada permite concluir que as partes tenham querido que se deixasse de respeitar eventuais e futuros litígios emergentes da relação jurídica estabelecida no contrato de subempreitada, o que significa que, não tendo se tendo modificado o objecto convencionado por reporte a litígios emergentes do referido contrato, a temática dos trabalhos extra não extravasa o âmbito da matéria convencionada na cláusula compromissória nem, por consequência, o âmbito de competência do tribunal arbitral, atento o princípio da concentração segundo o qual todas as questões prejudiciais, conexas ou subsequentes, que caibam na convenção de arbitragem, devem ser resolvidas no mesmo processo.
Por outro lado, como nos ensina o brocardo jurídico latino, a maiori, ad minus, de "quem pode o mais, pode o menos" aquilo que é válido para o maior ou mais complexo, também é válido para o menor ou menos complexo. Este princípio justifica a aplicação de poderes e competências maiores.
É uma forma de argumentação jurídica que estabelece que o que é válido para o mais, deve necessariamente prevalecer para o menos, ou "quem pode o mais, pode o menos" – cfr. CASTRO, Aldemário Araújo, sobre ‘O documento electrônico e a assinatura digital in Revista Jus Vigilantibus.
No que respeita à atribuição de competências, o princípio da teoria dos poderes implícitos, derivado da lei, concede à autoridade os meios necessários para exercer suas funções, sujeitando-se apenas às proibições legais.
In casu, resulta do requerimento injuntivo e da petição inicial aperfeiçoada que a pretensão da Requerente se dirige à condenação da Requerida no pagamento dos trabalhos contemplados nos contratos de subempreitada de reabilitação do Bairro ... e do Bairro ..., e dos trabalhos extra ou adicionais também acordados entre as partes.
Na oposição, a Requerida alega que os valores reclamados não são devidos, porque ou não foram executados ou concluídos, e no que respeita aos trabalhos a mais que a Requerente alega não foram acordados, através da sua redução a escrito, aceite e assinado por ambas as partes.
Conforme resulta dos contratos celebrados entre ambas as partes, intitulados de Contratos “Fornecimento de Serviços”, em ambos consta uma cláusula de “Resolução de conflitos” em que ambas as partes acordam o seguinte: “10.1 Em caso de litígio emergente do contrato, quer relativo à sua interpretação, quer à sua aplicação e execução, será o mesmo decidido em Tribunal Arbitral, nos termos do disposto na Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro que aprova a Lei da Arbitragem Voluntária e revoga a Lei nº 31/86, de 29/08, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei nº 38/2003, de 8 de Março, com excepção do disposto no nº 1 do art.º 1º, que se mantém em vigor para a arbitragem de litígios emergentes de ou relativos a contratos de trabalho.”
Ambas as partes reconhecem a existência e validade da cláusula de atribuição da competência a um tribunal arbitral, apenas divergindo sobre a abrangência do presente litígio na referida cláusula.
Acresce que, a cláusula em apreço é formalmente válida, uma vez que se encontra inserta no clausulado dos contratos celebrados, respeitando a forma escrita exigida.
Como o apontou o tribunal a quo, tendo em conta que a Requerida questiona a obrigação do pagamento dos valores que são reclamados pela Requerente, alegando não serem devidos, porque os trabalhos respectivos não foram executados ou concluídos, ou não foram validamente acordados, também se nos afigura que o litígio em apreço respeita directamente à execução dos contratos, sendo através do conhecimento do mérito da causa que será apurado se os alegados trabalhos a mais estão ou não contemplados nos contratos celebrados.
De qualquer das formas, face aos factos controvertidos passíveis, perante a posição das partes, de suscitar ainda dúvidas fundadas sobre a arbitrabilidade do concreto litígio em causa nestes autos, afigura-se-nos, face ao supra explanado, que sempre o tribunal a quo deveria ser considerado absolutamente incompetente para tramitar e julgar a acção, por preterição de tribunal arbitral.
Nestes termos, julgamos, pois, ser de confirmar, consequentemente, o decidido.
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IV. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se nesta 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pela apelante, confirmando-se, consequentemente, o decidido.
Custas pela Apelante.
Notifique.
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Guimarães, 16.10.2025
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária, sem observância do novo acordo ortográfico, a não ser nos textos reproduzidos e transcritos, e é assinado electronicamente pelo colectivo)

Maria dos Anjos Melo(relatora)
Raquel Baptista Tavares(1ª adjunta)
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira (2ª adjunta)