Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1/21.7PBBRG.G1
Relator: ANABELA VARIZO MARTINS
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
RECUSA DE DEPOIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I-O art.º 33° da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, prevê um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica de molde a, além do mais, obviar a vitimização secundária e a sujeição da vítima a pressões desnecessárias.
II-Também a vítima especialmente vulnerável, por força do disposto no art.º 21º, nº 2, al. d) da Lei 130/2015, de 04 de Setembro, tem direito a prestar declarações para memória futura nos termos previstos no artigo 24.º, da mesma Lei.
III-Assim, pese embora a tomada de declarações para memória futura não seja obrigatória, nos casos de vítimas especialmente vulneráveis (menores de idade) de crimes violência doméstica, o Juiz não pode deixar de atender ao regime especial consagrado, onde o direito de audição e de protecção tem uma relevância crucial na defesa do superior interesse da criança.
IV-Por esse motivo a jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a considerar que, nesses casos, o art.º 33.º da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro não poderá ter outra interpretação que não seja a de que a regra é o deferimento do pedido de declarações para memória futura da vítima.
V- Essa regra não pode ser postergada pela circunstância da vítima não ter capacidade para “compreender o significado do exercício da faculdade de recusar o depoimento” e/ou existir um conflito de interesses entre o menor e os titulares das responsabilidades parentais, que os impeça de o representarem, uma vez que poderá sempre ser suprida pelos meios legais adequados.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I.1. No âmbito do Processo nº2260/23...., do Juízo de Instrução Criminal de Braga - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no dia 15 de Janeiro de 2024, foi proferido despacho, em que se decidiu indeferir a tomada de declarações para memória futura ao menor AA.

I.2. Inconformado com aquele despacho, dele veio o Ministério Público interpor o presente recurso, apresentando a respectiva motivação, que finalizou com as conclusões que a seguir se transcrevem:

“ I - Está em investigação a prática de factos que integram a prática de três crimes de violência doméstica, por parte do arguido.
II — A recusa para prestar depoimento por parte da criança - que não percebe o alcance desta faculdade - deve ser exercida pela mãe da criança, mesmo quando a mãe seja também vítima de violência doméstica por parte do pai da criança.
III — Caso assim não se entenda deve ser nomeado curador à criança, para que este exerça, em sua representação esta faculdade.
IV - Nas situações de vítimas de violência doméstica deve ser deferida a tomada de declarações para memória futura, excepto quando se mostre totalmente desnecessária.
V- O despacho faz uma interpretação desconforme aos artigos 2.° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro e 67°-A do Código de Processo Penal, 8.° e 69.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa.
VI - A Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, estabelece no seu artigo 19. 0, um poder dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/jovem.
VIl—Ainda que assim não se entenda, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 26.° e 28.° da Lei n.° 93/99, de 14 de Julho por não considerar os menores vítimas especialmente vulneráveis.
VIII - lermos em que deve ser revogado o despacho recorrido, substituindo-o por outro que determine a realização da prestação de declarações para memória futura de BB, assim se fazendo JUSTIÇA.”

I.3. Não foi apresentada resposta.

I.4. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente, aderindo na íntegra às considerações expostas na motivação de recurso apresentada pela Exma. Procuradora da República, acrescentando criteriosos e pertinentes argumentos.

 I.5. Cumprido o art.º 417º, nº 2 do C. P. Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.

I.6. Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da conferência, por o recurso aí dever ser julgado.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1 – OBJECTO DO RECURSO

A jurisprudência do STJ [1] firmou-se há muito no sentido de que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso.[2]
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir cinge-se em determinar se mostram, ou não, reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a audição do menor BB, em declarações para memória futura.

2.- DECISÃO RECORRIDA (transcrição):
“Requer o MP a tomada de declarações para memória futura aos menores CC (nascido a ../../2013 – com 10 anos) e a AA (nascida ../../2016 – com 7 anos) afirmando que são vitimas especialmente vulneráveis (artigo 67.º-A/1-b) do CPP) e artigo 2.º/-b) da Lei 112/2009, de 16/09) e que são testemunhas especialmente vulneráveis (artigo 26.º da Lei 93/99, de 14/07).
Como o MP não elabora um requerimento com factos (e quanto à necessidade da sua elaboração por parte do MP, do qual devem constar os factos sobre os quais deve recair a produção antecipada de prova, pode ver-se o estudo Declarações para memória futura - elementos de estudo do senhor Desembargador Cruz Bucho, p. 64 e ss), ao que se depreende do que elabora o fundamento será por os menores viverem em contexto de violência doméstica.
E na verdade, tendo o arguido sido submetido a interrogatório judicial, vistos os factos que constam do despacho, e dados como fortemente indiciados, constata-se que o menor CC pediu ajuda e que o arguido terá verbalizado que iria tratar da saúde da família da esposa, bem como ia matar a esposa (DD).
Neste percurso, mesmo que uma criança de tenra idade (e AA, de 7 anos, não deixa de o ser) tenha capacidade para narrar factos, o certo é que não tem capacidade para “compreender o significado e trancendência do exercício da faculdade de recusar o depoimento” – cfr, A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo), do Senhor Desembargador Cruz Bucho.

Como diz o referido autor:

Assim, por exemplo, um menor de 5 ou 6 anos de idade, em princípio é plenamente capaz de relatar em tribunal aquilo que viu o arguido, seu pai, fazer a uma irmã do menor, a uma colega desta, ou à sua mãe, mas não é capaz de exercer conscientemente a faculdade de recusar depor contra seu pai, acusado da prática de um crime de abuso sexual de crianças ou de um crime de violência doméstica.
E citando mais uma vez o referido estudo “Nesta última situação a decisão de declarar ou de se recusar o depor compete ao representante legal do menor ou, na sua falta ou impedimento por ser o agente do crime, a um curador”.
Ora, no caso concreto, o representante legal do menor são os próprios progenitores – os dois.
Acontece que um deles é arguido outro ofendido.
Pelo que não faz sentido ser o consentimento ou não para prestar declarações deferido à ofendida, em representação do menor.
Ademais, quanto a este menor, o chamamento a prestar declarações, comporta um claro quadro de vitimização, resultante da colocação da criança no conflito interior de decisão contra quem vê como protetor e incapacidade de se decidir.
Neste quadro de entendimento, não se vê que importe a nomeação de curador ao menor AA, de 7 anos, tal como não se vê que importe nomear patrono ao mesmo (artigo 22.º/3 da Lei 130/2015, de 04/09), pelo que devendo o mesmo ser inquirido quando seja estritamente necessário às finalidades do inquérito e do processo penal – artigo 17.º/2 da Lei 130/2015, de 04/09) – como não resulta do requerimento do MP essa estrita necessidade, indefere-se a tomada de declarações ao referido menor.”

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Cumpre apreciar a questão objecto de recurso, que, como já referimos, consiste em determinar se mostram reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a audição do menor  BB em declarações para memória futura.
O recorrente sustenta que está em causa a investigação de três crimes de violência doméstica, sendo que a AA é-lhe conferido o direito a prestar declarações para memória futura porque, para além de menor (nasceu a ../../2016), é também ele uma vítima especialmente vulnerável atenta a natureza do ilícito em investigação, pelo que o despacho recorrido ao indeferir essas declarações faz uma interpretação desconforme dos artigos 2.° da Lei n.°112/2009, de 16 de Setembro e 67°-A do Código de Processo Penal, 8.° e 69°, n.°1 da CRP, e viola os arts 26º e 28º, da Lei nº 93/99 de 14 de Julho e a convecção Sobre Direitos da Criança ratificada por Portugal a 21 de Setembro de 1990.
Conclui que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que designe data para inquirição da vítima em declarações para memória futura.
Vejamos.
As declarações para memória futura constituem uma produção antecipada de prova, um meio cautelar de prova, que tem em vista assegurar a obtenção e conservação de determinada prova pessoal, com vista ao respectivo aproveitamento em sede de julgamento- cfr. artigo 271.º do Código de Processo Penal.
A recolha de declarações para memória futura foi inicialmente pensada pelo legislador português como meio preventivo de recolha de prova susceptível de perder-se ou inviabilizar-se antes do julgamento[3], tendo contudo ampliado o respectivo âmbito para protecção das vítimas, especialmente das menores[4].
No caso está(ão) em investigação crime(s) de violência doméstica.
No que respeita ao crime de violência doméstica importa atentar na Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência às suas Vítimas, designadamente, no seu art.º 33°, que prevê um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, que estipula:
«1— O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 — O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 — A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo tribunal.
 4 — A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5 — É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.
6 — O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.
7 — A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar. “
Temos, pois, que, neste regime jurídico autónomo, no caso de inquérito por crime de violência doméstica, como sucede no ajuizado caso, o objectivo do legislador foi, essencialmente, reforçar a tutela judicial da vítima de violência doméstica, com o propósito de alcançar um grau de protecção mais elevado do que o que decorre da aplicação das regras gerais, tentando obviar à vitimização secundária e à sujeição da vítima a pressões desnecessárias.
Efectivamente no processo por crime de violência doméstica, a jurisprudência dos tribunais superiores[5] tem entendido que a produção antecipada de prova não se deve tanto ao perigo adveniente da impossibilidade da sua produção na audiência de julgamento, mas antes tem por finalidade a protecção da própria vítima, a fim de minimizar a vitimização secundária e repetida, prevenir quaisquer formas de intimidação e de retaliação, permitindo que ela encerre o episódio de que foi vítima, já que só será prestado novo depoimento em casos excepcionais, e evitar também que as repercussões decorrentes do trauma se reflictam negativamente na aquisição da prova.
Citando-se a título ilustrativo o Ac. desta Relação de 26-10-2020[6] , com o seguinte sumário:
“ I - A tomada de declarações para memória futura das vítimas dos crimes de violência doméstica encontra-se especialmente regulada no art.º 33º, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece um regime de excepção à regra geral de que todos os depoimentos e declarações devem ser prestados em audiência de discussão e julgamento.
II - Na apreciação do requerimento para a tomada de declarações para memória futura, em consonância com o aludido preceito legal, deve o juiz ter em especial consideração a protecção dos direitos da vítima, de molde a, além do mais, se evitar uma vitimização secundária da mesma.”
De notar que todas as vítimas de violência doméstica são titulares dos direitos e medidas de protecção consagrados nas Leis n.º 112/2009 de 16/09 e n.º 130/2015 de 04/09.
Deve ainda ter-se presente, como também invoca o Ministério Público no requerimento e depois no recurso, o conceito de «vítima especialmente vulnerável» previsto tanto na Lei 112/2009, de 16 de Setembro, bem como no artigo 67.º-A do Código de Processo Penal.
Efectivamente, no art.º 2º da citada Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro na redacção conferida pela Lei n.º 57/2021, de 16 de Agosto (que alarga a protecção das vítimas de violência doméstica), para efeitos de aplicação da presente lei, considera-se:
“ a) Vítima» a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica;
b) «Vítima especialmente vulnerável» a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;”
Também o art.º 67º A do C. P. Penal, considera, em termos gerais, como vítima: “A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica”; (cfr. nº 1 al. a) iii);
b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;”
Como prevê o art.º 17.º n.°1, da Lei 130/2015, de 04 de Setembro,
diploma que: aprovou o Estatuto da Vítima, “ A vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização. secundária e para evitar que sofra pressões.”

Por sua vez, a vítima especialmente vulnerável, por força do disposto no art.º 21º, nº 2, al. d) deste último diploma,  tem direito a prestar declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24.º, que dispõe no nº 1 que “ o juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal.”
Assim, pese embora a tomada de declarações para memória futura não seja obrigatória, nestes casos não podemos deixar de atender ao regime especial consagrado, onde o direito de audição e de protecção das vítimas especialmente vulneráveis de crimes violência doméstica tem uma relevância crucial na defesa do superior interesse da criança.
No caso, como sustenta o recorrente, existe a suspeita de que o menor AA (nascido ../../2016), cujas declarações para memória futura se pretendem, é também vítima directa da actuação do arguido, porquanto do auto de notícia (referência citius 15520109) consta a sua identificação como vítima de violência física e psicológica e na descrição dos factos é afirmado que aquando da chegada da OPC à residência as vítimas estavam no quarto com o arguido e este afirmou “ter agredido as vítimas e sendo eles sua família podia infligir-lhe maus tratos sempre que lhe apetecesse…”
E se tal se vier a confirmar, então também ela própria é considerada vítima, por ter estado exposta a contexto de violência doméstica, como o considera expressamente o artigo 67.º-A, n.º 1, al. iii), do Código de Processo Penal.
Na verdade, admitindo a sua especial vulnerabilidade, quer do ponto de vista formal, quer pela sua diminuta idade, quer pelo facto de ter de depor contra o seu progenitor, aqui arguido, que pode exercer sobre ele pressões de diversa ordem, entendemos que a tomada de declarações para memória futura se justifica em razão da especialidade do regime da violência doméstica, por ser este um tipo de ilícito criminal particularmente susceptível de provocar nocivos e duradouros efeitos para a sua vida e seu bem-estar (artigo 16.º e 20.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro).
A tomada de declarações antecipada pretende, além disso, assegurar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, e, também, obstar a pressões ou manipulações prolongadas no tempo prejudiciais à liberdade de declaração da vítima.
É sabido que quanto mais tardiamente são prestadas as declarações pelas vítimas, mais se intensificam as perturbações da memória fruto do trauma, pelo que que deve ser admitido e concretizado o depoimento da vítima, antecipadamente para memória futura.[7]
Resulta, por sua vez, indubitável do artigo 33.º, n.º 7, da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, que a presença da vítima em julgamento, de acordo com a letra da lei e com o seu espírito, deve ser assumida sempre como uma excepção.
Por esse motivo a jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a considerar que o art.º 33.º da Lei n.º 112/2009 não poderá ter outra interpretação que não seja a de que a regra é o deferimento do pedido de declarações para memória futura da vítima, só tal não acontecendo quando dos autos resultarem razões relevantes que objectivamente desaconselhem essa recolha antecipada de prova.[8]
Assim, estando os autos em fase de inquérito, cuja direcção é legalmente atribuída ao Ministério Público, como estabelece o artigo 53.º, n.º 1, al. b), 262º, 263º e 267º, todos do Código de Processo Penal, tem de se reconhecer que é precisamente o Ministério Público, embora orientado por critérios de legalidade, quem saberá a melhor forma de promover a obtenção e conservação das respetivas provas indiciárias.
Tendo por referência a orientação da jurisprudência acima exposta, que perfilhamos, entendemos que não existem nos autos razões relevantes que objectivamente desaconselhem a diligência requerida pelo Ministério Público de tomada de declarações para memória futura ao menor AA.
Pelo contrário, a prestação antecipada de declarações pelo menor, pode não só evitar a perda de memória dos acontecimentos que presenciou e vivenciou (e que tenderá a esquecer), como essencialmente a salvaguardará de futura exposição em julgamento, minimizando a sua vitimização secundária.
Por outro lado, não vislumbramos em que medida a alegada eventual incapacidade do menor de compreender o significado do exercício da faculdade de recusar o depoimento, nos termos do artigo 134º, nº 1, al. a) e nº 2 do Código de Processo Penal, poderá ser considerada impeditiva para deferir aquela pretensão do recorrente, uma vez que a questão iria sempre colocar-se em julgamento, sendo certo que, face à natureza urgente destes autos, a sua realização nunca será muito dilatada no tempo.
Como é consabido a lei processual penal estabelece, como regra, a capacidade para depor, apenas estando excluída aos interditos por anomalia psíquica (cf. artigo 131.º n.º 1 do C. P. Penal), inexistindo qualquer impedimento ou proibição da audição de menores de idade (independentemente de os seus pais/representantes legais serem, ou não, arguido e/ou vítima).
A recusa em depor representa o exercício de um direito pessoal, exclusivamente dependente da vontade do seu titular.
Ora, nos termos do artigo 1881.º nº1 do Código Civil, o poder de representação implica que o representante exerça os direitos e cumpra as obrigações do filho, excepto no que concerne a actos puramente pessoais, praticados livre e pessoalmente.
E, caso a entidade competente, no caso o Mmº JIC, acompanhada de técnicos especializados, depois de explicar e clarificar ao menor as consequências que advêm tanto do depoimento, como da recusa em prestá-lo, venha verificar que o menor em questão não tem capacidade para “compreender o significado e transcendência do exercício da faculdade de recusar o depoimento” ( como se refere no despacho recorrido), e existir um conflito de interesses entre o menor e os titulares das responsabilidades parentais, que os impeça de o representarem,  poderá sempre ser suprida pelos meios legais adequados, com a nomeação de curador/patrono à criança, que por ela possa decidir pela recusa, ou não, de prestar depoimento ( cfr. art.º 1881º, nº 2 do C. Civil).
Deste modo pelos motivos supra expostos, entendemos que não existem impedimentos de ordem formal ou substancial, para a indeferir a audição do menor BB, em declarações para memória futura.
Procede, pois, o recurso.

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, decide-se revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe data para a tomada de declarações para memória futura ao menor AA, devendo previamente determinar as diligências que se entendam necessárias para a sua concretização.
Sem tributação.
   (Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários - art.º 94º, n.º 2, do CPP)
                                                                
Guimarães, 21 de Maio de 2024
                                                              
Anabela Varizo Martins (relatora)
Paulo Almeida Cunha (1º adjunto)
Florbela Sebastião e Silva (2ª adjunta)


[1] Cfr. arts. 412.º e 417.º do C P Penal e Ac.do STJ de 27-10-2016, processo nº 110/08.6TTGDM.P2.S1, de 06-06-2018, processo nº 4691/16. 2 T8 LSB.L1.S1  e da Relação de Guimarães de 11-06-2019, processo nº 314/17.0GAPTL.G1, disponíveis em www.dgsi.pt  e, na doutrina, Germano Marques da Silva- Direito Processual Penal Português, 3, pag. 335.
[2] Cfr. acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.
[3] Neste sentido Desembargador Cruz Bucho in “Declarações para memória futura (elementos de estudo)”, com vastíssima informação doutrinária e jurisprudencial, pag. 9, disponível no site desta Relação.
[4] Cfr. Maia Costa in C. P. Penal Comentado, 4º edição, pag. 926.   
[5] Neste sentido, entre outros, Acórdãos da Relação de Lisboa de 09.11.2016, proferido no Processo nº 5687/15.7T9AMD-A.L1, 05.03.2020, proferido no Processo nº 779/19.6PARGR.A.L1, 04.06.2020, proferido no Processo nº 382/19.0PASXL.A.L1 e de 07.03.2023, proferido no Processo nº 658/22.0T9LRS-A.L1-5, da Relação de Coimbra de 07.04.2021, proferido no Processo nº 86/20.1T90FR-A.C1 e da Relação do Porto de 03.05.2023, todos acessíveis in www.dgsi.pt disponível www.dgsi.pt.
[6] Processo nº 807/20.2T9GMR-A.G2, disponível www.dgsi.pt.
[7] AC. RL de 30-04-2020, Proc. 14/20.4PBRGR-A.L1 9ª Secção, relatora Maria do Carmo Ferreira, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Neste sentido entre outros, Ac. da Relação de Guimarães de 12.08.2020, proferido no proc. n.º 12/20.8GDVCT-B.G1, relatora Fátima Furtado, Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09.11.2016, proc. n.º 5687/15.7T9AMD-A.L1 relatora Conceição Gonçalves, de 05.03.2020, Proc. n.º 779/19.6PARGR-A.L1-9, relator Almeida Cabral, e de 12 de Outubro de 2023, proc. nº 167/22.7PASXL-A.L1-9  relatora AMÉLIA CAROLINA TEIXEIRA,  da Rel. Coimbra de 21 de Agosto de 2020, relatora Des Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso e da Relação de Évora de 24 de Maio de 2022, Proc 981/21.0PCSTB-A.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.