Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ALCIDES RODRIGUES | ||
Descritores: | ESTABELECIMENTO COMERCIAL DIREITO DE PROPRIEDADE CESSÃO DE EXPLORAÇÃO DEVER DE RESTITUIÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I – Nada impede que uma acção tendente ao reconhecimento do direito de propriedade sobre um estabelecimento comercial seja fundamentada na presunção estabelecida no n.º 1 do art. 1268º do Cód. Civil e que, consequentemente, seja nela reconhecido o correspondente direito de propriedade (e feita restituir o estabelecimento, se disso se tratar). II – A locação de estabelecimento comercial é um negócio de transmissão a título temporário e oneroso de um estabelecimento (art. 1109.° do C. Civil), pelo qual o titular do estabelecimento proporciona a outrem, temporariamente e mediante retribuição, o gozo e fruição do estabelecimento, ou seja, a sua exploração mercantil. III – Findo o contrato de cessão de exploração, pelo decurso do prazo convencionado, a cessionária fica obrigada a restituir ao cedente o estabelecimento (arts. 405.º, n.º 1, e 406.º, n.º 1, do C.Civ). IV – Trata-se de uma obrigação do cessionário que se vence com a extinção do vínculo, sendo, em princípio, um dever de execução pós-contratual. V – O incumprimento do dever de restituição é fonte de obrigação indemnizatória, a cargo do cessionário. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório. AA, BB e CC e marido DD instauraram a presente ação, sob a forma de processo comum, contra «EMP01..., Lda», pedindo: «A) Declarar-se, e condenada a reconhecer a ré, os autores e a sua falecida mãe como únicos e universais herdeiros de EE; B) Declarar-se, e condenada a reconhecer a ré, os autores como únicos e universais herdeiros de seus falecidos pais FF e de EE, acima identificados; II – A) declarar-se, e condenada a reconhecer a ré, que os autores são os únicos e exclusivos proprietários do estabelecimento comercial de drogaria e ferragens, instalado em dois compartimentos (um de loja de venda ao público, outro de armazém de retém) do rés-do-chão-frente e cave do prédio inscrito na matriz predial urbana de ... com o artigo ...77 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...91 daquela freguesia, sito na Rua ..., da ... por o terem adquirido por via do contrato de trespasse junto aos presentes autos e por usucapião nos termos já alegados nos artigos 1º a 5º da presente pi; B) condenar-se a ré a restituir o estabelecimento comercial, no seu arrendado, aos autores, livre e desocupado de pessoas e bens; III – condenar-se a ré no pagamento das indemnizações devidas pelos prejuízos provocados aos autores, no valor global de €43.841,00 (quarenta e três mil oitocentos e quarenta e um euros): A) a título de danos patrimoniais, uma indemnização no montante de €29.841,00 (vinte e nove mil oitocentos e quarenta e um euros), liquidada e calculada até setembro de 2023; B) a título de danos patrimoniais, uma indemnização correspondente a todos os montantes mensais de €343,00 (trezentos e quarenta e três euros), que se forem vencendo desde 01 de outubro de 2023 até à entrega efectiva aos AA. Do referido estabelecimento comercial no arrendado; C) a título de danos não patrimoniais, uma indemnização correspondente aos danos decorrentes da actuação ilícita da ré, em valor não inferior a €14.000,00 (doze mil euros); IV – subsidiariamente, a título de enriquecimento sem causa, condenar-se a ré no pagamento de indemnização de igual montante ao pedido iii – a) – ou seja: €29.841,00 (vinte e nove mil oitocentos e quarenta e um euros), calculada até setembro de 2023, acrescida dos montantes mensais de €343,00 (trezentos e quarenta e três euros), até à entrega efectiva do referido estabelecimento comercial no arrendado. V – condenar-se a ré a pagar aos autores os juros já vencidos e devidos, à taxa legal aplicável, sobre a quantia peticionada em iii-a), liquidados até 30 de setembro de 2023, no total de €8.754,45 (oito mil setecentos e cinquenta e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos), e correspondentes juros vincendos sobre aquela quantia. VI – condenar-se a ré a pagar aos autores juros vincendos devidos, à taxa legal aplicável, sobre a quantia peticionada em iii-b), desde 01 de outubro de 2023 até à entrega efectiva do referido estabelecimento comercial no arrendado. VII – condenar-se a ré a pagar aos autores juros devidos sobre todas as quantias peticionadas, à taxa legal aplicável, desde a data de citação até integral pagamento. VIII – condenar-se a ré em sanção pecuniária compulsória, nos termos do art.º 829º-a do código civil, por cada dia de atraso na entrega definitiva aos autores do estabelecimento comercial objecto da presente acção, no seu arrendado». Alegaram, em síntese, que os AA. são os únicos e universais herdeiros de EE e de FF, falecidos, respetivamente, em ../../2000 e em ../../2021. No dia 12 de abril de 1977, por contrato de trespasse celebrado entre EE, casado em comunhão geral de bens com FF, como adquirentes, e GG, casado em comunhão geral de bens como HH, como trespassantes, os primeiros adquiriram o estabelecimento comercial de drogaria e ferragens instalado em dois compartimentos (um de loja de venda e outro de armazém de retém) do rés do chão frente e cave do prédio inscrito na matriz predial urbana de ... com o art. ...77 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...91, sito na Rua ..., da .... A aquisição do estabelecimento comercial foi efetuada como todo o ativo, alvará, existências e o direito ao arrendamento dos dois locais ocupados pelo estabelecimento. Desde a data do trespasse os pais dos autores sempre utilizaram os espaços e ali exerceram a atividade comercial. No dia 1 de junho de 2001, por escrito particular, a mãe dos autores, a título próprio e como viúva de EE, cedeu a exploração do identificado estabelecimento a II, casado com JJ, sócios da ré «EMP02..., Lda», da qual eram sócios gerentes. Essa cessão terminou a 31/05/2006. Em 11/05/2006, os autores e a sua falecida mãe, a título próprio e como herdeiros de EE, cederam à ré «EMP01..., Lda» a exploração do referido estabelecimento comercial pelo período de 10 anos. Essa cessão terminou a 1 de junho de 2016. Nos termos da cedência a ré pagava aos autores e à sua mãe a quantia anual de 6.000,00 € a pagar em duodécimos mensais de 500 € cada um. Dessa importância os autores destinavam a quantia de 157,00 € ao pagamento da renda devida ao senhorio pelo arrendamento do imóvel em que funcionava o estabelecimento. Com vista a facilitar o pagamento da renda mensal, os autores autorizaram a que os representantes da ré, com o conhecimento e concordância dos senhorios, passassem a entregar diretamente a estes o valor correspondente à renda devida. Assim, passou a ré a entregar diretamente ao senhorio a quantia devida pelos autores a título de renda e aos autores e sua mãe o remanescente, ou seja, 343,00 €, o que sucedeu até ao fim do mês de maio de 2016. A partir de 1 de junho de 2016, a ré nada mais pagou aos autores, continuando a entregar aos senhorios por nome e por conta dos autores o valor destinado ao pagamento da renda. A ré não entregou aos autores o estabelecimento comercial nem o arrendado em que aquele se encontra instalado, permanecendo de forma ilícita e abusiva a ocupar um imóvel que não lhe foi arrendado e a explorar um estabelecimento que não lhe pertence. Os senhorios nunca emitiram recibos em nome da ré, embora esta lho tenha solicitado. Com o seu comportamento, a ré tem causado aos autores danos patrimoniais e não patrimoniais. * Citada, a ré apresentou contestação (cfr. ref.ª ...75), pugnando pela ineptidão da petição inicial e, caso assim não se entenda, pela improcedência da acção.Não pôs em causa a qualidade de herdeiros nos termos invocados pelos autores. Admite que as partes convencionaram no contrato de cessão de exploração que este se extinguiria a 1 de julho de 2016, o que veio a suceder. A falecida FF e JJ, gerente da ré até meados de 2020, formalizaram a liquidação do contrato de cessão de exploração comercial, que teve o seu termo a 1 de julho de 2016, o que ocorreu a 13 de dezembro de 2016, tendo sido pago pela sócia gerente da ré a FF a quantia de 2.500,00 €. Depois deste acordo a ré apenas passou a pagar a renda como inquilina e criou o seu estabelecimento comercial com mais mercadorias, mais clientela, proporcionando melhorias no seu estado físico tudo com prévio conhecimento e sem oposição do senhor KK, passando a depositar o valor da renda numa conta indicada por este. * Procedeu-se à audiência prévia, na qual se fixou o valor da causa; foi proferido despacho a que alude o art. 596º, do Cód. Proc. Civil, tendo sido identificado o objeto do litígio, enunciados os temas da prova e admitidos os meios de prova (ref.ª ...59).* Teve lugar a audiência de julgamento (ref.ª ...17).* Posteriormente, a Mm.ª Julgadora “a quo” proferiu sentença (ref.ª ...54), nos termos da qual, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu:a) Reconhecer os autores como herdeiros de seus pais FF e EE; b) Condenar a ré a restituir aos autores o estabelecimento comercial de drogaria e ferragens instalado em dois compartimentos (um de venda ao público e outro de armazém de retém) do rés do chão frente e cave do prédio inscrito na matriz predial urbana de ... com o art. ...77º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...91, sito na Rua ..., da ..., o que deve fazer livre de pessoas e de bens que não o integrem; c) Condenar a ré a pagar aos autores a quantia de 34.986,00 € (trinta e quatro mil novecentos e oitenta e seis euros) a título de indemnização pela ocupação indevida do estabelecimento comercial dos autores desde 1 de junho de 2016 a dezembro de 2024; d) Condenar a ré a pagar aos autores a quantia mensal de 343,00 € (trezentos e quarenta e três euros), por cada mês que decorra até à entrega do estabelecimento. e) Sobre as mencionadas quantias acrescem juros desde a citação e até efectivo e integral pagamento. Absolver a ré do demais peticionado. * Inconformada com a sentença, dela interpôs recurso a Ré (ref.ª ...27), tendo formulado, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem): «I. Os Autores/Recorridos configuraram a sua ação como de reivindicação, peticionando a restituição de um estabelecimento comercial e o pagamento de um ror de indemnizações associadas. II. Para o efeito, na alínea c) do artigo 2.º da petição inicial alegaram ter adquirido um estabelecimento comercial por sucessão mortis causa dos seus antecessores, em cuja posse dizem ter sucedido, alegando, cumulativa e simultaneamente, nos artigos 3.º e 4.º da mesma peça processual, ter adquirido o estabelecimento comercial de forma originária, por via do instituto da usucapião – ou seja, invocaram formas de aquisição substancialmente incompatíveis e mutuamente excludentes. III. Mas mais: na formulação do pedido, pede-se que a Ré seja condenada a reconhecer que os Autores são os únicos e exclusivos proprietários de um estabelecimento comercial, “por o terem adquirido por via do contrato de trespasse junto aos presentes autos e por usucapião”. Ou seja, ao contrário do que figura como causa de pedir (aquisição por via de sucessão mortis causa e também por usucapião), no pedido consta a aquisição por via de um contrato de trespasse e também por usucapião!!! IV. Ou seja: os Recorridos, para além de na causa de pedir estribarem a sua pretendida propriedade sobre um estabelecimento comercial em formas opostas e inconciliáveis de aquisição (sucessão mortis causa e usucapião), no pedido que formulam já não invocam a aquisição mortis causa, mas a aquisição por via de um contrato de trespasse – mas mantendo sempre, de forma cumulativa, tanto na causa de pedir como no pedido, a aquisição por via da usucapião! V. A cumulação real (e não a mera cumulação subsidiária ou alternativa de pedidos incompatíveis) de causas de pedir ou de pedidos substancialmente incompatíveis gera a ineptidão da petição inicial, determinativa da nulidade de todo o processado [cfr. artigo 186.º, n.º 2, alínea c), do CPC]. VI. A nulidade por ineptidão da petição inicial decorrente de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis é insuprível e de conhecimento oficioso, pelo que o Tribunal recorrido devia dela ter conhecido no despacho saneador ou, não o tendo feito nesse momento processual, na sentença. VII. Impõe-se à Relação conhecer da antedita nulidade, nos termos do disposto no artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC, revogando a sentença recorrida e absolvendo a Ré da instância [cfr. artigo 576.º, n.º 1 e 2, e 577.º, alínea b), do CPC] – o que se requer. Ademais, VIII. A Ré, nos artigos 28.º e 31.º da contestação, invocou factos impeditivos (ou extintivos) do direito de propriedade sobre um estabelecimento comercial alegado pelos Autores na petição inicial. IX. Não obstante, nada foi dado como provado ou como não provado relativamente aos factos alegados pela Ré nos citados artigo 28.º e 31.º da contestação, afigurando-se essencial que ocorresse essa pronúncia factual por banda do Tribunal de 1.ª instância. X. A factualidade omitida no sentenciamento sub censura reveste caráter de essencialidade para a decisão da causa, tendo em vista os pedidos formulados e a contestação deduzida, à luz do próprio objeto do litígio e dos temas da prova. XI. De acordo com o disposto na parte final da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto, em decorrência da insuficiência da matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, e não constem do processo os elementos probatórios necessários e suficientes a esse respeito. XII. Nos termos da alínea c) do n.º 3 do mesmo inciso, a ampliação da matéria de facto implica a anulação da sentença recorrida e – dada a insuficiência probatória a respeito da facticidade em causa – a repetição parcial do julgamento. Por outro lado, e sem prescindir: XIII. A douta sentença efetuou um errado julgamento da matéria de facto, dando como provados factos que deveria ter dado como não provados. O douto areópago recorrido julgou incorretamente a facticidade vertida no ponto 14 dos Factos Provados, dando-a como provada, quando se lhe impunha dá-la como não provada. Com efeito, XIV. Os Recorridos juntaram, com a petição inicial da presente ação (documentos 14, 15 e 16), cópia da anterior ação que intentaram contra a mesma Ré, aqui Recorrente, sobre o mesmo assunto. XV. Logo no artigo 1.º da primitiva petição inicial (correspondente ao documento 14 que acompanha a petição inicial que deu origem aos presentes autos), consta o seguinte: “A R. tem instalado no R/C do prédio sito na Rua ..., em ..., um estabelecimento comercial destinado à comercialização de drogaria e ferragens denominado “EMP01..., Ldª”. XVI. No artigo 3.º dessa mesma petição inicial, diziam os aí e aqui (na presente ação) Autores e ora Recorridos: “Os A.A. são, por via de contrato verbal de arrendamento, desde 1971, arrendatários deste identificado R/C no qual a R. tem instalado o referido estabelecimento comercial, e onde os A.A. (ora Recorridos) exploraram, até Maio de 2001 o estabelecimento comercial de drogaria e ferragens denominado EMP03... – DROGARIA”. XVII. Trata-se de prova documental que contém factos admitidos por acordo, pelo que a desconsideração feita pelo Tribunal a quo dos mencionados elementos documentais não impugnados (mormente do documento junto pelos Autores com a petição inicial sob o n.º 14), tendo presente o regime legal decorrente do artigo 376.º, n.º 1, do Código Civil, e dos artigos 574.º, n.º 2, e 587.º, do CPC, é ilegal. XVIII. Também a prova testemunhal produzida em julgamento impunha decisão diversa a este respeito, nos termos e com o sentido já referido supra (considerando não provado o ponto 14 dos Factos Provados). XIX. Neste domínio, assume particular importância o depoimento da testemunha LL, advogado, que teve o ensejo de explicar em juízo as circunstâncias em que foi por si elaborado o documento que a Ré juntou com a sua contestação sob o n.º 1, qual a motivação da FF ao subscrever tal documento e o que é que ele significou para a FF e para a JJ. XX. Resultou cristalino do depoimento da testemunha LL que a intenção subjacente à elaboração e subscrição do sobredito documento foi a de transmitir a titularidade do estabelecimento comercial que se mantinha na esfera jurídica dos herdeiros do EE para a sociedade ora Ré. XXI. O teor do depoimento desta testemunha prefigura-se, relativamente ao sentido e alcance deste documento, como uma espécie de interpretação autêntica. A menos que a testemunha não lograsse obter a confiança ou a credibilidade do Tribunal (e isso não aconteceu, evidentemente), então tem necessariamente de se confiar nas respetivas declarações produzidas em juízo, que não deixam margem de dúvida sobre o significado que aquele documento assumiu para a FF e para a JJ, bem como sobre o que se passou a partir dessa data (13/12/2016) em diante quanto à titularidade do único estabelecimento comercial que funciona e está instalado no rés-do-chão do n.º ...2 da Rua ..., em .... XXII. Para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, consigna-se que são as seguintes as passagens da gravação do depoimento da testemunha (prestado na sessão de 26/09/2024, com início às 15:52 e fim às 16:39, gravado na sistema de gravação digital integrado em uso no Tribunal recorrido) em que se funda o presente recurso sobre o erro na apreciação da prova gravada e que, na perspetiva da Recorrente, impunham (per se e juntamente com a prova documental já referida) decisão diversa sobre o ponto 14 dos Factos Provados, (assinala-se o início temporal, por referência à gravação, de cada passagem, sendo certo que se incluem passagens respeitantes à Meritíssima Juíza de Direito e ao Advogado da Ré, para melhormente se compreenderem as respostas da testemunhas às perguntas que lhes foram formuladas): [00:08:16]; [00:08:42]; [00:13:20]; [00:13:52]; [00:22:22]; [00:22:37]; [00:22:43]; [00:22:46]; [00:22:51]; [00:23:59]; [00:24:03]; [00:24:10]; [00:24:13]; [00:24:25]; [00:24:49]; [00:25:02]; [00:25:22]; [00:25:31]; [00:25:54], [00:26:07], [00:33:21]; [00:33:40]; [00:33:43]; [00:34:45]; [00:34:49]; [00:34:50]; [00:34:59]; [00:35:05]; [00:35:10]; [00:35:12]; [00:35:22]; [00:35:23]; [00:35:24]; [00:35:24]; [00:35:26]; [00:35:29]; [00:35:31]; [00:35:33]; [00:35:38]; [00:35:41]; [00:35:42]; [00:35:50]; [00:35:59]; [00:36:56]; [00:37:12]; [00:37:24]. Seguimento: XXIII. A ação de reivindicação intentada e assim configurada pelos Autores é uma ação destinada à defesa da propriedade (no caso, de um estabelecimento comercial), sendo a respetiva causa de pedir integrada pelo direito de propriedade dos reivindicantes sobre o estabelecimento e pela violação desse direito pela reivindicada – que detém a posse ou a mera detenção, segundos os Autores, do estabelecimento. O pedido consiste no reconhecimento do direito de propriedade dos Autores reivindicantes sobre um estabelecimento comercial e a sua restituição. XXIV. Posta uma ação de reivindicação, incumbe aos Autores provar que, efetivamente, são titulares do direito de propriedade sobre um estabelecimento comercial. XXV. Acontece que da sentença recorrida nada consta, em termos de materialidade fáctica (nem nos Factos Provados, nem nos Factos não Provados, nem na parte dispositiva da sentença), sobre a titularidade de um estabelecimento comercial pelos Autores, em termos de direito de propriedade – sendo a consequência da falta deste requisito básico, necessário e inarredável de uma ação de reivindicação, o respetivo naufrágio ou improcedência. XXVI. Salvo o devido respeito, e que é muito, entendemos que o Tribunal recorrido se deixou impressionar pela circunstância de a Ré estar a ocupar um espaço físico, onde funciona o estabelecimento comercial, contra a vontade do senhorio, e pelo facto de a Ré não possuir um título ortodoxo, ou convencional, de transmissão da titularidade do estabelecimento. XXVII. Acontece que a relação que intercede entre a sociedade Recorrente e o senhorio do espaço físico correspondente ao rés-do-chão do n.º ...2 da Rua ..., em ..., nomeadamente no que diz respeito a uma eventual oposição dos proprietários do espaço à utilização dele por banda da Ré, é para os Autores res inter alios acta. XXVIII. Se os proprietários do espaço físico pretendem a sua restituição, têm de reagir contra a sociedade Recorrente, podendo fazê-lo pela via de uma ação de despejo ou por via de uma ação de reivindicação, consoante o enquadramento que façam da situação de facto subjacente. XXIX. Contudo, já lá vão mais de oito anos após a cessação do contrato de cessão de exploração comercial a que se reporta o ponto 7 dos Factos Provados e os proprietários do espaço físico em causa nunca reagiram, pelas vias de que lidimamente poderiam dispor, para obter para si o espaço. XXX. Sendo certo que as rendas têm sido pontualmente depositadas pela sociedade Recorrente, em conta adrede indicada pelos donos do espaço físico, e nunca foram devolvidas, num hiato temporal de mais de oito anos, período durante o qual os Autores não efetuaram qualquer pagamento à laia de rendas ao senhorio. XXXI. A posição de inquilina por parte da Ré resultou de pagar esta, a partir da data do entendimento entre FF e JJ, nos idos de 2016, as rendas à medida que se fossem vencendo. E assim passou a ser, com conhecimento do senhorio (testemunha MM) e dos Autores. XXXII. O Tribunal recorrido entende que a transmissão do estabelecimento para a Ré, a título definitivo, teria de ser feita através da figura jurídica do trespasse – sendo apodítico que no caso sub judicibus não foi efetuado um trespasse de estabelecimento. XXXIII. Contudo, os estabelecimentos comerciais não têm vocação de perenidade. Ou seja, lá porque um dia existiu um estabelecimento comercial, isso não significa que ele não termine, não acabe, não morra, não cesse! XXXIV. E pode cessar porque, pura e simplesmente, deixa de ter qualquer atividade, como no caso dos autos, em que o estabelecimento comercial que outrora pertenceu aos pais do Autores se extinguiu no dia 13/12/2016. A mãe dos Autores quis por ali fim ao estabelecimento que lhe havia pertencido. Acertou contas, relativas às existências, com a JJ e deu por acabado o estabelecimento a que soía chamar-se “EMP03... – Drogaria”. XXXV. O “recibo” a que corresponde o documento 1 junto com a contestação não é um documento formal de transmissão de um estabelecimento: ele marca, apenas, o fim do estabelecimento denominado “EMP03... – Drogaria”. XXXVI. No caso em apreciação foi elaborado este “recibo”, dele constando o pagamento da quantia de 2 500 euros por parte da sociedade “EMP01..., Ld.ª” a FF. Mas esse pagamento podia muito bem ter sido efetuado sem um correlato documento de suporte e o estabelecimento denominado “EMP03... – Drogaria” teria cessado na mesma. O documento é um “plus”, um acréscimo em termos de segurança entre as partes, no sentido de documentarem o que foi pago e a que título. XXXVII. O que releva é o que de facto aconteceu dali em diante. E o que aconteceu foi bem expresso tanto pela testemunha LL, como pela testemunha JJ: passou a haver um “novo estabelecimento”, a funcionar no mesmo espaço, mas com materiais diversificados, mais “stock”, mais mercadorias e outra dinâmica. XXXVIII. É matéria assente que o contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial cessou em 2016. A partir daí, só haveria obrigação de entrega do estabelecimento se não tivesse existido uma convenção em contrário. XXXIX. Assim, não podem vir agora os Autores arrogar-se a qualidade de titulares de um estabelecimento comercial extinto, quer fáctica, quer juridicamente. XL. A partir daquele marco temporal, a sociedade Ré iniciou o seu próprio estabelecimento, apresentando-se, em todo o lado, como dona do estabelecimento, sem qualquer vínculo ou ligação ao anterior estabelecimento. XLI. A asserção, constante da decisão ora impugnada, de que a retenção que a Ré faz do estabelecimento não pode deixar de se considerar ilícita e contrária à lei, não tem, como necessário e inarredável respaldo, nenhuma norma nem qualquer preceito legal de onde dimane tal ilicitude. XLII. Trata-se, outrossim, de uma conclusão “ad hoc”, sem suporte fático, nomeadamente, através da concretização, com factos (e não com base em meras “perceções”), dos requisitos da responsabilidade civil – pois que, se são arbitradas indemnizações, é mister concretizar os respetivos requisitos e os correspondentes factos que corporizam esses requisitos. XLIII. Como consequência, as pretensões indemnizatórias formuladas pelos Autores, a que a douta sentença, erradamente, deu provimento [alíneas c) e d) da parte dispositiva da sentença recorrida], deveriam improceder. XLIV. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 342.º, n.º 1 e 2, e 376.º, n.º 1, ambos do Código Civil, e nos artigos artigo 186.º, n.º 2, alínea c), 200.º, n.º 2, 574.º, n.º 2, 576.º, n.º 1 e 2, 577.º, alínea b), 587.º e 608.º, n.º 2, parte final (ex vi artigo 663.º, n.º 2), todos do Código de Processo Civil. Nestes termos e com o douto suprimento, deve ser concedido provimento ao presente recurso, com todas as consequências daí decorrentes – assim se fazendo, como costumadamente, JUSTIÇA!». * Contra-alegaram os Autores, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida (ref.ª ...95).* O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (ref.ª ...02).* Foram colhidos os vistos legais.* II. Delimitação do objecto do recurso O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho]. No caso, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber: i. Da ineptidão da petição inicial; ii. Da ampliação da matéria de facto e anulação da sentença recorrida; iii. Da impugnação da decisão da matéria de facto; iv. Da reivindicação do estabelecimento comercial; v. Do contrato; vi. Da indemnização pelo incumprimento da obrigação de restituir o estabelecimento comercial. * III. FundamentosIV. Fundamentação de facto 1. A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos: 1. Os autores são únicos e universais herdeiros de EE e FF falecidos, respetivamente, em ../../2000 e em ../../2021. 2. No dia 12 de abril de 1977 no Cartório Notarial ... por via de contrato de trespasse celebrado entre EE casado na comunhão geral de bens com FF, como adquirentes, e GG casado na comunhão geral de bens com HH, como trespassantes, adquiriram o estabelecimento comercial de drogaria e ferragens, instalado em dois compartimentos (um de loja de venda ao público e outro de armazém de retém) do rés do chão frente e cave do prédio inscrito na matriz predial urbana de ... com o artigo ...77 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...91. 3. Nesse seguimento EE declarou o início da sua atividade fiscal no Serviço de Finanças ... em 15 de abril de 1977. 4. Desde a data do trespasse que os falecidos pais dos autores utilizaram e exploraram o identificado estabelecimento comercial. 5. A aquisição do estabelecimento comercial foi realizada com todo o ativo, alvará, existências e o direito ao arrendamento dos dois locados ocupados pelo estabelecimento. 6. No dia 01/06/20011 a mãe dos autores por si e na qualidade de representante do seu falecido marido cedeu a exploração do identificado estabelecimento comercial a II casado com JJ, cessão essa que terminou a 31/05/2006. 7. No dia 11/05/2006 os autores e a sua falecida mãe cederam. Por escrito particular, à ré «EMP01..., Lda», por escrito particular, a exploração do referido espaço comercial pelo período de 10 anos, ou seja, até 1 de junho de 2016. 8. À data II e JJ eram sócios da ré. 9. Essa cedência foi feita mediante a contraprestação do pagamento pela ré da quantia global de 6.000 € anuais, paga em duodécimos mensais de 500 € e cada um. 10. Da importância de 500 € paga pela ré, os autores destinavam a quantia de 157 € ao pagamento da renda devida aos senhorios pelo arrendamento do imóvel onde se encontra instalado o estabelecimento. 11. Com vista a facilitar os pagamentos e ré, com a concordância e consentimentos dos autores e do senhorio passou a entregar a este a quantia devida pelos autores a título de renda, entregando depois aos autores e à sua mãe o montante remanescente, ou seja, 343,00 €. 12. Desde 1 de junho de 2016 e até à presente data a ré nunca mais procedeu ao pagamento aos autores nem à sua mãe o montante de 343,00 € correspondente à parte da contraprestação que seria devida pela contraprestação da cessão de exploração do estabelecimento comercial. 13. Continuando a entregar aos senhorios o valor correspondente à renda do espaço. 14. Permanecendo a explorar o estabelecimento comercial. 15. Os senhorios nunca emitiram os recibos da renda em nome da ré, não obstante esta o ter solicitado. 16. A conduta da ré tem causado incómodos e aborrecimentos aos autores. 17. Por documento escrito datado de 13 de dezembro de 2016 FF por si e na qualidade de representante dos demais herdeiros de EE, declara ter recebido da ré sociedade comercial por quotas «EMP01..., Lda» a quantia de 2.500,00 € referente à liquidação do contrato de cessão de exploração comercial celebrado com esta sociedade comercial em ... com início em 1 de junho de 2006 e termo em 1 de junho de 2016 de que é conferida integral quitação. * Com relevância para a decisão nada mais se provou, designadamente que:a) «EMP01..., Lda» desde 13 de dezembro de 2016 passou a revestir a qualidade de inquilina do espaço comercial. * V. Fundamentação de direito.1. Da ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis [art. 186º, n.ºs 1 e 2, al. c) do CPC]. 1.1. A Ré invocou, na sua contestação, a excepção de ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis. Não obstante ter realizado audiência prévia, o Tribunal recorrido não prolatou despacho saneador, nem conheceu da antedita excepção dilatória, pelo que, nos termos estabelecidos no n.º 3 do art. 595.º do CPC, não opera caso julgado formal quanto à referida excepção. Donde se imponha conhecer da mencionada excepção, nos termos do disposto no art. 608.º, n.º 2, parte final, “ex vi” do art. 663.º, n.º 2, do CPC, * 1.2. A ineptidão da petição inicial é uma nulidade principal, cuja ocorrência cabe ao juiz verificar oficiosamente no despacho saneador, podendo, porém, ser objecto de arguição pelos interessados, até à contestação ou neste articulado; integra uma exceção dilatória, geradora da nulidade de todo o processo, e que, a verificar-se, importa a absolvição do réu da instância, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa (arts. 186º, 198º, n.º 1, 200º, n.º 2, 278º, n.º 1, al. b), 576º, n.ºs 1 e 2, 577º, al. b), 578, 595º, n.º 1, al. a), todos do CPC).Nos termos do art. 186º do CPC, diz-se inepta a petição inicial, sendo nulo todo o processo [n.º 1], entre outras, quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis [n.º 2, al. c)]. “Se é certo que o autor pode visar obter, numa única demanda, a satisfação de mais do que uma pretensão, formulando tantos pedidos quantos os efeitos desejados, o art. 555º, nº 1, faz depender tal cumulação da compatibilidade substancial entre os pedidos formulados; caso haja incompatibilidade substancial dos pedidos, isso significa que os mesmos se excluem reciprocamente, levando a que, no limite, inexista pedido algum (haverá ineptidão se, perante o incumprimento de um contrato-promessa pelo promitente vendedor, for pedida a execução específica do contrato e a restituição do sinal em dobro; outrossim quando o autos, com base nos mesmos factos, peça a declaração de nulidade do contrato e o cumprimento de uma cláusula do mesmo; ou ainda quando se cumula o pedido de reconhecimento do direito de preferência com o da anulação da compra e venda a que se refere a preferência). De notar, porém, que a incompatibilidade entre pedidos não impede que estes sejam formulados num mesmo processo, desde que a título subsidiário (art.º 554.º, n.º 2), caso em que o próprio autor exprime a sua vontade de obter determinado efeito jurídico apenas se o pedido principal for julgado improcedente (…)”[1]. Importa atentar, ainda, que, de acordo com o n.º 4 deste art. 186º, no «caso da alínea c) do n.º 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo». Preceitua, por sua vez, o art. 555.º, n.º 1, do CPC que “[p]ode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação”. De realçar que a incompatibilidade entre os pedidos não impede que estes sejam formulados no mesmo processo, desde que a título subsidiário, e não cumulativo (art. 554.º, n.º 2, do CPC), porquanto neste caso o autor declara que pretende obter determinado efeito (subsidiário) apenas se o pedido principal não proceder. Como é sabido, o objeto da ação consubstancia-se numa pretensão processualizada integrada pelo pedido e causa de pedir. Com efeito, nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 552.º do CPC, exige-se que o autor, na petição inicial, exponha os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação e formule o pedido, respectivamente. Do disposto no n.º 3 do artigo 581.º do CPC extrai-se que o pedido consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, o qual expressa a concreta tutela jurisdicional que o demandante solicita ao propor a ação. O pedido deve ser claro e inteligível, bem como preciso, determinado e idóneo, devendo constar da parte final da petição inicial. O pedido deduzido na conclusão da petição representa o corolário lógico dos factos descritos na narração, os quais são precisamente o fundamento do pedido. O pedido não só conforma ou molda o objeto do processo, como condiciona o conteúdo da decisão de mérito, a emitir pelo tribunal, porquanto o juiz, na sentença, «deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação», não podendo «ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras» (art. 608º, n.º 2 do CPC) e «não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir» (art. 609º, n.º 1 do CPC), sob pena de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, por excesso de pronúncia ou por condenação “ultra-petitum”, respetivamente (art. 615º, n.º 1, als. d) e e) do CPC)[2]. No caso em apreço, os autores pediram, além do mais, a condenação da ré a reconhecer «que os autores são os únicos e exclusivos proprietários do estabelecimento comercial (…) de drogaria e ferragens, instalado em dois compartimentos (um de loja de venda ao público, outro de armazém de retém) do rés-do-chão- frente e cave do prédio inscrito na matriz predial urbana de ... com o artigo ...77 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...91 daquela freguesia, sito na Rua ..., da ... por o terem adquirido por via do contrato de trespasse junto aos presentes autos e por usucapião nos termos já alegados nos artigos 1º a 5º da presente pi» (II – A). E, para tanto, alegaram, na petição inicial, que, no dia ../../1977, por via de contrato de trespasse celebrado por escritura pública, os seus antecessores adquiriram um estabelecimento comercial de drogaria e ferragens que identificam, sendo que os AA. adquiriram o referido estabelecimento por sucessão mortis causa dos seus antecessores, em cuja posse sucederam (art 2.º/A e C da petição inicial), mais alegando que, desde a data da celebração da escritura de trespasse (../../1977), sempre os falecidos pais dos AA., seus imediatos antecessores, e os AA., possuíram e aproveitaram o identificado estabelecimento comercial, directamente ou através de terceiros, de boa-fé, como coisa sua e na convicção fundada de lhes pertencer e, por isso, de não estarem a lesar quem quer que seja com a sua fruição, com o conhecimento da generalidade das pessoas do concelho ..., pois que à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e ininterruptamente, por mais de 15, 20, 30 e 40 anos, pelo que adquiriram o referido estabelecimento de forma originária, por via do instituto da usucapião (arts. 3.º e 4.º do mesmo articulado). Pois bem, contrariamente ao propugnado pela Ré, os pedidos formulados pelos Autores não se excluem mutuamente, embora assentem em causas de pedir distintas, que não inconciliáveis. Não estamos perante uma situação de incompatibilidade intrínseca, em que os pedidos (e respetivas causas de pedir) se repelem e se incompatibilizam. O que os AA. invocaram foram duas formas distintas de aquisição do direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial (uma aquisição derivada, como seja por via de sucessão mortis causa; e uma aquisição originária, que iniciando-se naquela deu origem à usucapião). Em bom rigor, no pedido formulado os Autores não tinham sequer de invocar o concreto fundamento do reconhecimento do direito sobre o estabelecimento comercial, visto tal emergir da causa de pedir aduzida nos autos. Em alternativa, poderiam ter formulado tais pedidos de modo subsidiário, para que um dos fundamentos apenas fosse atendido/conhecido no caso de improcedência do outro. Contudo, dessa circunstância não resulta a incompatibilidade intrínseca de pedidos, até porque o efeito jurídico que através deles se pretende é similar ou concordante, qual seja o reconhecimento do direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial identificado nos autos. É certo que, na objeção deduzida, a Ré se centraliza no facto de os Autores, para além de na causa de pedir estribarem a sua pretendida propriedade sobre um estabelecimento comercial em formas – que qualifica de – opostas e inconciliáveis de aquisição (sucessão mortis causa e usucapião), no pedido que formulam deixam cair a aquisição mortis causa e invocam um contrato de trespasse – mas mantêm, cumulativamente, tanto na causa de pedir como no pedido, a aquisição por via da usucapião. Sucede, porém, que os chamados limites do petitório não podem depender de sacralização de palavras, e, por isso, importa mais o sentido do pedido do que o seu literalismo. Segundo o Ac. da RL de 1/06/2010 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), in www.dgsi.pt., o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor não se restringe necessariamente ao seu enunciado literal, podendo ser interpretado em conjugação com os fundamentos da acção com eventual suprimento pelo tribunal de manifestos erros de qualificação, ao abrigo do disposto no artigo 664.º, 1ª parte, do CPC (leia-se atual art. 5º, n.º 3 do CPC), desde que se respeite o conteúdo substantivo da espécie de tutela jurídica pretendida e as garantias associadas aos princípios do dispositivo e do contraditório. Em suma, a relação entre o “pedido” e o “decidido” não tem de se caracterizar por uma correspondência ipsis verbis. Decisiva é a correspondência entre a manifestação da vontade do requerente, ainda que implícita mas inquestionavelmente contida na pretensão, e a decisão proferida[3]. Donde se conclua que, no caso concreto, é irrelevante ou despiciendo o concreto fundamento invocado no petitório para ver obtido o reconhecimento do direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial, visto que por referência à causa de pedir resulta inequívoco terem os AA. aduzido as duas formas distintas de aquisição desse direito (a derivada e a originária). Nesta conformidade, embora se reconheça que a formulação do referido pedido padeça de incorreção/imprecisão na sua redacção, não será viável concluir pela ocorrência de pedidos substancialmente incompatíveis. Consequentemente, é de julgar inverificada a invocada excepção de ineptidão da petição inicial. * 2. Da ampliação da matéria de facto e anulação da sentença recorrida. Diz – e bem – a recorrente que a procedência de uma acção de reivindicação se encontra sujeita à demonstração, cumulativa, de dois pressupostos: a) Que o autor seja titular do direito invocado; e b) Que o réu tenha a coisa em seu poder, seja à laia de possuidor ou à guisa de detentor. Às duas mencionadas condições de procedência de uma acção de reivindicação acresce uma terceira: que o réu não prove ser titular de um direito que legitime a sua posse ou detenção sobre a coisa. Nesta pressuposição, sustenta a ré que, na sua contestação, invocou factos impeditivos (ou extintivos) do direito de propriedade sobre um estabelecimento comercial alegado pelos Autores na petição inicial, reportando-se aos arts. 28º e 31º. Acrescenta estarmos perante factos essenciais (art. 5.º n.º 1, do CPC), que, embora articulados, não foram objeto de pronúncia/julgamento pelo Tribunal recorrido. Neste caso, e de acordo com o disposto no art. 662.º n.º 2, al. c), parte final, e n.º 3, do CPC, a consequência da omissão de pronúncia sobre as mencionadas questões de facto é a anulação da decisão proferida em primeira instância, seguida da repetição do julgamento sobre tais questões (uma vez que os autos não dispõem de matéria fáctica suficiente a respeito da materialidade fáctica em causa). Os pontos que a recorrente pretende ver refletidos no rol dos factos provados têm a seguinte redação: «Artigo 28.º Os A.A. não são os donos do estabelecimento comercial a funcionar no espaço físico sito na Rua ..., em .... O dono é a ora R., o senhorio é MM e eventuais outros herdeiros que haja por morte de NN e esposa, OO. (...) Artigo 31.º Não existe, há anos, na esfera jurídica dos A.A., qualquer estabelecimento comercial, contrariamente ao que é dito em II B) do pedido: restituição do estabelecimento comercial, no seu arrendado, aos A.A., livre e desocupado de pessoas e bens. Este arrazoado quererá significar que pedem os A.A. a restituição do que não existe na sua esfera jurídica – um estabelecimento comercial que dizem ter sido adquirido por via de um contrato de trespasse e…por usucapião!!! E, em outro momento, que o contrato que evocam ter sido resolvido com produção de efeitos a partir de 1 de julho de 2016!!!». Nos termos do disposto no art. 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, devendo indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. Igualmente há que ter presente a regra geral enunciada no art. 5º do CPC, donde resulta que o tribunal deverá considerar os factos articulados pelas partes que sejam essenciais, sendo que estes tanto podem constituir a causa de pedir e ter sido alegados pelo autor, como dizerem respeito a excepções invocadas pelo réu. Assim, na enunciação dos factos provados como dos não provados cabe necessariamente uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa) sobre os factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a acção ou a excepção proceda[4]. Acontece que, como refere Abrantes Geraldes[5], a decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, podendo – e devendo – algumas delas ser solucionadas de imediato pela Relação, ao passo que outras poderão determinar a anulação total ou parcial do julgamento. Como concretização de tais patologias enuncia o citado autor que as decisões sob recurso “podem revelar-se total ou parcialmente deficientes”, “resultante da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, “de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”. Verificado esse vício, para além de o mesmo ser sujeito a apreciação oficiosa da Relação, poderá esta supri-lo a partir dos elementos que constam do processo ou da gravação. Pode, assim, “revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo”, faculdade esta que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objetiva de factos relevantes”; nesse caso, ao invés de anular a decisão da 1ª instância, se estiverem acessíveis todos os elementos probatórios relevantes, “a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas”. O vício em causa será eventualmente subsumível ao regime específico previsto no art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC, do qual resulta que a Relação deve, mesmo oficiosamente anular “a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”. Com efeito, a deficiência da decisão da matéria de facto poderá decorrer da omissão de pronúncia quanto a algum facto controvertido, sendo de destacar que todos os factos controvertidos devem ser apreciados pelo tribunal, sem que entre eles possa ser estabelecida qualquer relação de prejudicialidade que dispense a pronúncia sobre outros[6]. Com relevância, dispõe o art. 607.º, n.º 4, aplicável “ex vi” do art. 663º, n.º 2, ambos do CPC, que, na fundamentação da sentença, o juiz tomará «em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência». No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o art. 646.º, n.º 4, previa, ainda, terem-se «por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes». Muito embora esta norma tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos[7]. O que significa que, quando tal não tenha sido observado pelo tribunal “a quo” e este se tenha pronunciado sobre afirmações conclusivas ou de direito, considerando-as provadas ou não provadas, deve tal pronúncia ter-se por não escrita. Como é sabido, a distinção entre matéria de facto e matéria de direito tem sido controversa, quer na doutrina quer na jurisprudência. Na formulação de Alberto dos Reis[8], «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei». Nas palavras de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora[9], dentro da vasta categoria dos factos (processualmente relevantes), cabem não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírica-sensível, diretamente captável pelas perceções do homem), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (a vontade real do declarante – art. 236º, n.º 2 do Cód. Civil; o conhecimento dessa vontade pelo declaratório; as dores físicas ou morais provocadas por uma agressão corporal ou por uma injúria). Deste modo, “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”[10]. Conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, os juízos conclusivos ou de valor não retratam ocorrências da vida real, quer internas, quer externas, mas sim o efeito e consequência dessas mesmas ocorrências, conclusões essas que cabe ao julgador extrair na prolação da sentença, dos factos dados como provados. Trata-se de matéria que não se cinge ao elencar do facto, mas tem em si, explicita ou implicitamente, considerações valorativas sobre esse facto, ou seja, apreciações que ultrapassam a objetividade do facto e trazem consigo a subjetividade da análise valorativa de uma determinada ocorrência da vida real. Dito de outro modo, só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova[11]. “A natureza conclusiva do facto pode ter um sentido normativo quando contém em si a resposta a uma questão de direito ou pode consistir num juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real. No primeiro caso, o facto conclusivo deve ser havido como não escrito. No segundo, a solução depende de um raciocínio de analogia entre o juízo ou conclusão de facto e a questão de direito, devendo ser eliminado o juízo de facto quando traduz uma resposta antecipada à questão de direito”[12]. Contudo, como salienta Abrantes Geraldes[13], no atual figurino do Código de Processo Civil, “devem ser admitidas com mais naturalidade asserções que, não correspondendo, no contexto da concreta ação, a puras “questões de direito”, sejam algo mais que puras “questões de facto” no sentido tradicional”. No caso em apreço está em causa a matéria supra enunciada objeto dos pontos 28º e 31º da contestação. Constata-se, por outro lado, que o objeto do litígio foi delineado pelo Tribunal recorrido nos termos seguintes: «Ocupação pela ré do estabelecimento comercial de drogaria e ferragens instalado em dois compartimentos, (um de loja de venda aberto ao público e outro de armazém de retém) do rés do chão frente e cave, do prédio inscrito na matriz predial urbana de ..., com o art. ...77 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...91, daquela freguesia, na Rua ..., ...». E, em termos de temas da prova, importava provar: «a) Se a autora é titular do estabelecimento comercial de drogaria e ferragens instalado em dois compartimentos, (um de loja de venda aberto ao público e outro de armazém de retém) do rés do chão frente e cave, do prédio inscrito na matriz predial urbana de ..., com o art. ...77 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...91, daquela freguesia, na Rua ..., .... b) A ocupação pela ré do estabelecimento comercial e do espaço em que o mesmo se encontra instalado sem qualquer título que o justifique. c) Danos causados à autora com a referida ocupação». Dito isto e atendo-nos à materialidade objeto dos arts. 28.º e 31.º da contestação, diremos que a mesma é manifestamente conclusiva, comportando em si a solução jurídica denegatória do litígio na perspetiva da defesa por exceção invocada pela Ré. Na verdade, a pretensão preconizada pela recorrente – de que: i) os A.A. não são os donos do mencionado estabelecimento comercial; ii) o dono é a ora R., o senhorio é MM e eventuais outros herdeiros que haja por morte de NN e esposa, OO; iii) não existe, há anos, na esfera jurídica dos A.A., qualquer estabelecimento comercial – mais não corporiza do que a alegação de juízos de valor eminentemente conclusivos/jurídicos. Tal como fica, naturalmente, arredada a possibilidade de dar como demonstrado que os A.A. são os donos do mencionado estabelecimento comercial, por não se traduzir num facto jurídico-concreto, mas consubstanciar uma pura qualificação jurídica a extrair de factos concretos, de igual modo a pretendida versão contrária – de que os A.A. não são os donos do aludido estabelecimento comercial – não poderá dar-se como provada pelas mesmas razões antes expendidas. Com efeito, os mencionados artigos traduzem a alegação de matéria de direito, contendo matéria conclusiva, já que não se reportam a factos, antecipando, sim, a solução da questão jurídica em litígio. Pelo exposto, por se traduzirem em juízos conclusivos ou de direito, entendemos inexistir fundamento para a sua sujeição à prova a produzir, visto que os mesmos sempre se teriam arredados da factualidade a apurar. Termos em que se julga improcedente este fundamento da apelação. * 3. Da impugnação da decisão da matéria de facto.3.1. Em sede de recurso, a apelante/Ré impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância. Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente a recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no art. 640º do CPC, o qual dispõe que: “1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)». Aplicando tais critérios ao caso constata-se que a recorrente indica qual o facto que pretende que seja decidido de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redação que deve ser dada quanto à factualidade que entende estar mal julgada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que, na sua ótica, o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que faz assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua concreta ou exacta identificação, procedendo inclusivamente à respetiva transcrição de trechos do depoimento testemunhal prestado que considera relevante para o efeito, pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o triplo ónus de impugnação estabelecidos no citado art. 640º. * 3.2. Por referência às suas conclusões, extrai-se que a Ré/recorrente pretende a alteração da resposta positiva para negativa do ponto 14 dos factos provados da decisão recorrida.O mencionado item impugnado tem o seguinte teor: «14. Permanecendo a explorar o estabelecimento comercial». Diz a recorrente que este ponto não pode ser lido de forma desgarrada, devendo ser visto em articulação com o ponto 12 dos Factos Provados e lido nos seguintes termos: “Permanecendo a Ré, desde 1 de junho de 2016 e até à presente data, a explorar o estabelecimento comercial”. Sustenta que, de acordo com a prova testemunhal e documental produzida, impunha-se dar o ponto 14 da matéria de facto como não provado. A recorrente iniciou a impugnação deduzida fazendo menção à prova documental junta aos autos, que, no seu entendimento, impõe decisão diversa sobre o ponto de facto impugnado. Argumenta para tanto que: i) Os Recorridos juntaram, com a petição inicial da presente acção (documentos 14, 15 e 16), cópia da anterior acção que intentaram contra a mesma Ré, ora Recorrente, sobre o mesmo assunto; ii) No art. 1.º da primitiva petição inicial consta o seguinte: “A R. tem instalado no R/C do prédio sito na Rua ..., em ..., um estabelecimento comercial destinado à comercialização de drogaria e ferragens denominado “EMP01..., Ldª”; iii) No art. 3.º dessa mesma petição inicial, diziam os aí e aqui (na presente ação) Autores e ora Recorridos: “Os A.A. são, por via de contrato verbal de arrendamento, desde 1971, arrendatários deste identificado R/C no qual a R. tem instalado o referido estabelecimento comercial, e onde os A.A. (ora Recorridos) exploraram, até Maio de 2001 o estabelecimento comercial de drogaria e ferragens denominado EMP03... – DROGARIA”; iv) Trata-se de prova documental que contém factos admitidos por acordo, pelo que a desconsideração feita pelo Tribunal a quo dos mencionados elementos documentais não impugnados (mormente do documento junto pelos Autores com a petição inicial sob o n.º 14), tendo presente o regime legal decorrente do art. 376.º, n.º 1, do Código Civil, e dos arts. 574.º, n.º 2, e 587.º, do CPC, é ilegal. Com o devido respeito, dissentimos da argumentação aduzida pela recorrente posto que, independentemente da versão fáctica alegada na petição inicial apresentada na primitiva acção n.º 72/18.1T8ALJ, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de ..., Comarca de Vila Real – petição essa julgada inepta no despacho saneador, mercê da cumulação de causas de pedir substancialmente incompatíveis, com a consequente absolvição da Ré da instância –, a materialidade fáctica que serve de causa de pedir na presente acção não constitui uma reiteração daqueloutra, pelo que é carecido de fundamento falar em factos admitidos por acordo. E tendo eventualmente procedido a uma incorreta ou menos adequada alegação do quadro fáctico e do próprio enquadramento jurídico que serve de base ao litígio que opõe as partes, não estão os demandantes impedidos de, na ulterior acção, corrigirem esses ditâmes de modo a espelhar a efetiva realidade fáctica vivenciada. Quando muito, por referência à indicada prova documental junta, poderia ter sido dado como provado o que naquela primitiva acção foi alegado na petição inicial, o que sempre seria irrelevante, visto, para efeitos de fundo da causa, não relevar a mera reprodução do articulado. Acresce que a Ré rejeita que os AA. sejam os arrendatários do prédio onde está instalado o estabelecimento comercial objeto da cessão de exploração, pelo que estaria excluído falar-se em factos admitidos por acordo. De todo o modo, mesmo que se atendesse à facticidade alegada na primitiva petição inicial a mesma jamais teria a virtualidade para justificar a não demonstração da factualidade objeto do ponto 14 dos factos provados. Por conseguinte, por não impor decisão diversa a esse respeito, conclui-se que a invocada prova documental não é idónea ao efeito pretendido pela impugnante. Vejamos, de seguida, a prova testemunhal, sendo que a recorrente invoca em seu abono o depoimento da testemunha LL; contrapõem os AA., em obediência ao disposto no art. 640º, n.º 2, al. b) do CPC, fazendo menção aos depoimentos das testemunhas MM, PP e QQ. Afirma a Ré que a testemunha LL assume uma posição central na economia dos factos com relevância para a correta dilucidação jurídica do caso em apreço, visto que «teve o ensejo de explicar em juízo as circunstâncias em que foi por si elaborado o documento que a Ré juntou com a sua contestação sob o n.º 1, qual a motivação da FF ao subscrever tal documento e o que é que ele significou para a FF e para a JJ». Acrescenta que «resultou cristalino do depoimento da testemunha LL que a intenção subjacente à elaboração e subscrição do sobredito documento foi a de transmitir a titularidade do estabelecimento comercial que se mantinha na esfera jurídica dos herdeiros do EE para a sociedade ora Ré». O teor do depoimento desta testemunha funciona, relativamente ao sentido e alcance deste documento, como uma espécie de interpretação autêntica. A menos que a testemunha não lograsse obter a confiança ou a credibilidade do Tribunal (…), então tem necessariamente de se confiar nas respetivas declarações produzidas em juízo, que não deixam margem de dúvida sobre o significado que aquele documento assumiu para a FF e para a JJ, bem como sobre o que se passou a partir dessa data (13/12/2016) em diante quanto à titularidade do único estabelecimento comercial que funciona e está instalado no rés-do-chão do n.º ...2 da Rua ..., em ...». Antes de iniciarmos a análise da prova testemunhal importa deixar consignado que, com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à audição integral da gravação dos depoimentos testemunhais invocados na apelação como justificadores da impugnação da matéria de facto, não nos tendo restringido aos trechos parcelares e restritos assinalados pela apelante e pelos apelados. Tendo-se, portanto, procedido à integral audição dos assinalados depoimentos prestados, importa dar nota dos seguintes pontos. A testemunha LL, primo do pai dos Autores, com quem teve relações de proximidade, advogado, mas presentemente reformado – afirmando não ter intervindo naquela qualidade –, no seu depoimento referiu ter sido ele quem elaborou o documento datado de 13/12/2016[14], a pedido da FF e da JJ a fim de arrumarem um assunto pendente, sendo que a intenção ao elaborarem o referido documento – nele apondo a quantia de 2.500 euros referente à liquidação do contrato de cessão de exploração – foi a de transmitir a titularidade do estabelecimento comercial que se mantinha na esfera jurídica dos herdeiros do EE, constituindo uma espécie de trespasse (um trespasse “com algumas aspas”). E que a partir desse momento a EMP01..., Lda. passou a assumir-se como dona, como proprietária, como titular do estabelecimento comercial. Em termos físicos, a diferença que reportou foi a de ter começado a haver mais mercadoria, o stock começou a aumentar, houve mais dinâmica. Embora aludindo ao problema que teria de ser resolvido com o senhorio – atinente, entre o mais, ao arrendamento –, certo é que a testemunha não esclareceu em que moldes o mesmo foi resolvido. Aludiu, aliás, a um episódio em que acompanhando os legais representantes da Ré se encontrou com um dos herdeiros do senhorio, em que este abandonou a reunião, por não reconhecer a Ré como arrendatária do espaço em causa. Mas a ser aquele o efetivo propósito da elaboração do referido documento – a transmissão da titularidade do estabelecimento comercial –, a testemunha tão pouco esclareceu o motivo por que no referido documento apenas interveio a FF, cabeça de casal, e não também os demais herdeiros do seu falecido marido, dado alegadamente estar em causa a alienação do estabelecimento comercial que fazia parte da herança indivisa. Sendo a testemunha advogado de profissão, embora reiterando que não interveio nessa qualidade pois nenhum dos intervenientes lhe conferiu procuração ou o mandatou para o efeito, aquela circunstância não seria indiferente, sendo que a alegada justificação apresentada pela cabeça de casal, FF, segundo a qual, por ser cabeça de casal e representar todos os filhos, o que fizesse estaria bem feito – no sentido de que mereceria a anuência dos demais herdeiros –, não se mostra plausível, posto, de facto, não os vincular juridicamente e disso não poder aquela testemunha desconhecer. Admite-se antes que o propósito da referida testemunha, advogado e conhecedor das leis, ao elaborar o referido documento nos moldes em que o fez terá sido o de obstar à possibilidade do senhorio preferir no caso de trespasse do estabelecimento comercial (art. 1112º, n.º 4, do CC), Tais circunstâncias revelam que a referida testemunha não era tão desinteressada quanto ao desenlace da lide como tentou transmitir em audiência de julgamento. Que essa questão não era consensual resulta, aliás, do depoimento da testemunha QQ, marido da Autora AA, o qual interpelou a sogra (FF) ao saber que esta havia sido abordada para assinar um documento, tendo ela negado ter assinado algum documento. O referido interveniente QQ reconheceu que, findo o contrato da cessão de exploração, e tendo proposto a renovação desse contrato ou, em alternativa, a restituição do estabelecimento, a Ré recusou devolver (sair) do estabelecimento, tendo continuado a explorá-lo como se fosse dela. Abordou por diversas vezes os legais representantes da Ré sobre o assunto, os quais diziam nada ter a pagar (excepto o valor da renda devido ao senhorio, o que se justifica sob pena de os AA. poderem ser confrontados com uma acção de despejo que também afetaria os interesses da Ré, que continuava a explorar o estabelecimento sem que a sua posição de inquilina fosse reconhecida) e arrogando-se donos do estabelecimento. Perante essa persistente postura da ré, os AA. decidiram recorrer à via judicial. Releva, também, o depoimento da testemunha MM, herdeiro da herança à qual pertence o prédio dado de arrendamento onde está instalado o estabelecimento comercial, o qual emite os recibos de renda do locado há 40 anos. Confirmou que jamais lhes foi comunicado qualquer trepasse por parte da Ré referente ao estabelecimento em causa – e a verdade é que a própria Ré reconhece que não foi formalmente celebrado qualquer contrato de trespasse –, sabendo que é a Ré quem atualmente o explora. Indicou como se processava o pagamento das rendas, explicando que foi o seu pai, fruto da boa relação que mantinha com a RR e para “lhe facilitar a vida”, poupando-a a deslocações, quem permitiu que as pessoas que exploravam o estabelecimento “descontassem o valor da cedência da exploração, o valor da renda, e que entregassem esse valor ao (…) pai e o remanescente entregariam ao verdadeiro arrendatário”. Mais confirmou que tal ainda se processa actualmente, esclarecendo serem as pessoas que exploram o estabelecimento que continuam a proceder ao depósito do dinheiro no banco, embora não as reconheça como arrendatárias e não lhes emita o competente recibo. O dinheiro recebido é declarado como se fossem os arrendatários (AA.) a proceder ao pagamento das rendas. Referiu que a JJ chegou a abordá-lo na sua residência, para este passar a emitir os recibos em nome dela (leia-se sociedade Ré) e comunicar às Finanças o modelo 44 em conformidade, passando a constar como arrendatária, o que foi recusado pela testemunha, por não a reconhecer como arrendatária. Confirmou também ter sido interpelado por via postal para o mesmo efeito (documentos 9 e 10 juntos com a p.i.). Abordou diretamente os arrendatários (AA.) sobre o assunto, os quais lhe comunicaram que nunca trespassaram o negócio, havendo tão só uma cedência temporária do estabelecimento. Relatou ainda uma reunião ocorrida no seu escritório, em que os legais representantes da ré, juntamente com um advogado de Lisboa – reporta-se à testemunha LL, atento o teor depoimento deste –, lhe apresentaram uma proposta de venda da casa (esclareceu referir-se ao trespasse do estabelecimento), o que foi entendido pela testemunha como uma tentativa de burla, posto que lhe pretendiam vender algo que não era deles (o estabelecimento). Rejeitou que a exploração do estabelecimento tenha, entretanto, sofrido qualquer alteração, afirmando que “aquilo até já está a cair, aquilo é em soalho, aquilo qualquer dia vai cair”. Por fim, a testemunha PP, advogado aposentado, cliente do estabelecimento em causa, revelou conhecer “a casa” (leia-se estabelecimento) desde os seus primórdios, referindo os antecessores que exploraram o estabelecimento, em especial o Sr. EE, conhecido pelo SS, marido da FF, que o adquiriu por trespasse; após o falecimento do Sr. EE o estabelecimento passou a ser explorado pelo senhor rapadoura, II, marido da JJ. Confirmou não ter percepcionado qualquer alteração de configuração do local onde está o estabelecimento, pois a clientela manteve-se, o interior não foi objeto de alteração, sendo as mesmas pessoas com quem se cruzava. Concluiu – por reporte aos factos que assistia e via – que o proprietário daquele estabelecimento comercial é a herança dos herdeiros da Dona FF e do EE. A FF chegou a relatar-lhe que havia cedido a exploração do estabelecimento, facto este conhecido em ... inteiro e nunca constou que a Ré tivesse passado a ser dona do estabelecimento. Pelo exposto, ouvida, auditada e apreciada a indicada prova (testemunhal) gravada, é nossa firme convicção ser de manter inalterado o ponto 14 dos factos provados. Na verdade, não oferece dúvidas que, findo o acordado prazo da cedência da exploração do estabelecimento (1 de junho de 2016), a Ré continuou a explorá-lo nos mesmos moldes que anteriormente vinha fazendo, E, com o devido respeito, é infundada a alegação de que o Tribunal recorrido se deixou impressionar, essencialmente, por dois factores: «a) A circunstância de a Ré estar a ocupar um espaço físico, onde funciona o estabelecimento comercial, contra a vontade do senhorio; b) A circunstância de a Ré não possuir um título (…)de transmissão da titularidade do estabelecimento». A nosso ver, o que é decisivo é que a Ré não logrou convencer da aquisição do estabelecimento comercial, quer mediante um contrato formal, quer através da prova testemunhal e documental produzida. É certo que a relação que intercede entre a sociedade Recorrente e o senhorio do espaço físico correspondente ao rés-do-chão do n.º ...2 da Rua ..., em ..., nomeadamente no que diz respeito a uma eventual oposição dos proprietários do espaço à utilização dele por banda da Ré, é para os Autores res inter alios acta. Contudo, no caso dos autos, não é essa questão litigiosa que está em causa. O presente litígio centra-se, sim, entre os Autores e a Ré, nomeadamente quanto à questão da titularidade do estabelecimento comercial, bem como quanto ao apuramento de eventuais prejuízos resultantes da retenção ilícita do referido estabelecimento por parte da cessionária. Nesta acção quem pretende (e reivindica) a restituição do estabelecimento são os AA. – cedentes da exploração –, e não os senhorios do prédio onde aquele está instalado. O facto de os proprietários do espaço físico em causa nunca terem reagido à detenção do estabelecimento feito pela Ré para obter para si o espaço, não obstante terem decorrido mais de oito anos após a cessação do contrato de cessão de exploração comercial celebrado entre os AA. e a Ré, em nada releva para a sorte da acção, visto aqueles não serem partes nesta. Igualmente não releva o facto de as rendas terem sido pontualmente depositadas pela sociedade Recorrente, em conta indicada pelos donos do espaço físico, e nunca terem sido devolvidas, num hiato temporal de mais de oito anos. Repete-se que os senhorios não são parte nesta acção, pelo que esse fundamento não é oponível aos AA.. Sempre se dirá que, a não serem pagas as rendas, bem sabia a recorrente que tal poderia constituir fundamento da resolução do contrato de arrendamento celebrado entre os donos do espaço físico e os AA., com o inevitável despejo, o que, por consequência, teria reflexos na posição da Ré, cujo vínculo da cessão de exploração do estabelecimento foi unicamente estabelecido com os AA.; poderia igualmente constituir fundamento de uma acção de reivindicação, neste caso sim podendo ser demandada a Ré por esta deter um espaço pertença dos donos do prédios. Os «Autores não estão a efetuar qualquer pagamento à laia de rendas» porque esse pagamento é efetuado pela Ré, sob pena de, não o fazendo, legitimar os donos do espaço físico a instaurar acções quer contra os arrendatários (no caso os AA., em sede de acção de despejo), quer contra a sociedade recorrente (por via de uma acção de reivindicação). Diversamente do propugnado na apelação, da prova produzida não resulta evidenciada a posição de inquilina por parte da Ré. O contexto subjacente ao pagamento da renda por parte da Ré não corresponde à assunção da posição de inquilina, tendo o mesmo tido origem num momento em que o contrato de cessão de exploração ainda se mostrava em vigor e a sua razão de ser radicou na boa relação que o Sr. EE mantinha com FF, tendo em vista poupar-lhe deslocações (ida de ..., onde vivia, a ..., para pagar a renda). Como asseverou a testemunha MM, foi um precedente que o pai abriu para facilitar a vida à verdadeira e real e legítima arrendatária, FF. Com efeito, o então proprietário do prédio permitiu que as pessoas que exploravam o estabelecimento descontassem o valor da cedência da exploração, o valor da renda, e lhe entregassem directamente esse valor, entregando o remanescente aos arrendatários (cfr. ponto 11 dos factos provados). Definido esse concreto contexto do pagamento, não se vê como possa a Ré dele pretender retirar dividendos para se arrogar uma alegada posição de inquilina, que tem sido veemente rejeitada pelos senhorios. Aliás, essa facticidade, mostrando-se controvertida, obteve a resposta de não provado (alínea a) dos factos não provados[15]), não tendo sido sequer impugnada. Quanto ao segundo equívoco, dir-se-á que a prova produzida é imprestável para poder concluir que o estabelecimento comercial que outrora pertenceu aos pais do Autores terminou naquele dia 13/12/2016 e que a mãe dos Autores quis colocar fim ao estabelecimento que lhe havia pertencido denominado “EMP03... – Drogaria”. Da factualidade apurada – em função da prova produzida – não é legítimo retirar que essa exploração subsequente a 1 de junho de 2016 – ou a partir de 13/12/2016, por referência à data aposta no documento aludido no ponto 17 dos factos provados – foi distinta da que anteriormente ali vinha sendo exercida, visto não resultar ter existido alteração do exercício, no prédio, de outro ramo de comércio, nem o estabelecimento foi afecto a outro destino. A eventual dinamização da exploração do estabelecimento e a angariação de novos clientes –não comprovada, diga-se –, sendo perfeitamente natural no âmbito de uma adequada gestão de exploração comercial, é por si só manifestamente insuficiente para se poder concluir pelo fim de um estabelecimento comercial e pelo surgimento de um estabelecimento distinto. Como já antes explicitámos, cremos que o propósito subjacente a essa alegação seria o de obstar ao exercício do direito de preferência que assistiria ao senhorio nos termos do disposto no art. 1112º, n.º 4, do Cód. Civil. No tocante ao recibo que atesta o pagamento da quantia de 2.500 euros por parte da sociedade “EMP01..., Ld.ª” a FF e a propósito de saber se existiu uma qualquer forma de extinção do contrato de trespasse outorgado por EE e FF, subscreve-se o aduzido na sentença recorrida, designadamente quando nela se refere que: «Ora, do referido documento resulta apenas e só a liquidação do contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial. A ré estrutura a sua defesa no referido documento que se encontra junto aos autos. De acordo com o art. 236º, do Cód. Civil a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contra com ela. Do teor do referido documento, resulta que após a extinção do contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial procederam à sua liquidação, ou seja, terão “acertado as contas” decorrentes dessa cessão. Aliás, nem sequer seria tal documento idóneo a permitir a ocupação por parte da ré da posição de arrendatária em relação ao espaço em que labora o estabelecimento comercial, uma vez que não intervém no referido ato o sujeito com legitimidade para tal Deste modo, da literalidade do documento resulta a existência de um acerto de contas e não qualquer outro tipo de negócio. Acresce que nenhuma da prova produzida permitiu concluir pela existência de um sentido distinto». O mesmo se diga da firmada conclusão final, nos termos da qual, mesmo «o documento assinado pela mãe das autoras, em que liquida e acerta as contas com a ré, não tem a virtualidade de a constituir como arrendatária do espaço sem o consentimento e contra a vontade do senhorio e proprietário do espaço». Infundada, pelas razões já antes expressas, a argumentação que a recorrente pretende retirar do depoimento da testemunha LL, bem como da testemunha JJ – sem que quanto a esta interveniente acidental tenha sequer cumprido o ónus da indicação com exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, o que sempre tornaria imprestável esse depoimento (art. 640º, n.º 1, parte final e n.º 2, al. a) do CPC). O que significa que a prova produzida, ao contrário do propugnado pela recorrente, aponta precisamente no sentido de que, após o termo do contrato de cessão de exploração, a Ré continuou a explorar o estabelecimento comercial nos mesmos moldes que antes o fazia, com a diferença de ter deixado de pagar a contrapartida pela cessão da exploração (343,00€/mensais), pagando apenas o valor correspondente à renda devida (157,00€/mensais). A fundamentação que serviu de base às conclusões dadas pela 1.ª instância – que subscrevemos, nos termos explicitados –, baseando-se na livre convicção e sendo uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, revela-se convincente e sustentada à luz da prova auditada e não se mostra fragilizada pela argumentação probatória da impugnante, não se impondo decisão sobre os referidos pontos da matéria de facto diversa da recorrida (art. 640º, n.º 1, al. b) do CPC). Como tem sido salientado, baseando-se a decisão factual do tribunal da 1ª instância numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com benefício da imediação e oralidade – apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum. Nesta conformidade, por referência à prova produzida nos autos, não se evidenciam razões concretas e circunstanciadas capazes de infirmar a apreciação crítica feita pelo tribunal recorrido sobre o ponto 14 dos factos provados da sentença recorrida. Pelo exposto, coincidindo integralmente a convicção deste Tribunal quanto ao facto impugnados com a convicção formada pela Mm.ª juíza “a quo”, impõe-se-nos confirmar a decisão da 1ª instância e, consequentemente, concluir pela total improcedência da impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré, mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida. * 4. Da reivindicação do estabelecimento comercial.Está aqui em causa a questão da pretensa titularidade sobre a propriedade do estabelecimento comercial de drogaria e ferragens, que os A.A. se arrogam. Aduz a recorrente que da sentença recorrida nada consta em termos de materialidade fáctica (nem nos factos provados, nem nos factos não provados, nem na parte dispositiva da sentença), sobre a titularidade de um estabelecimento comercial pelos Autores, em termos de direito de propriedade – “sendo a consequência da falta deste requisito básico, necessário e inarredável de uma ação de reivindicação, o respetivo naufrágio ou improcedência”. Os AA. pedem, entre o mais, o reconhecimento de que são os únicos e exclusivos proprietários do estabelecimento comercial identificado nos autos, bem como a condenação da ré a restituir o estabelecimento comercial, no seu arrendado, aos autores, livre e desocupado de pessoas e bens; Não oferece, pois, controvérsia que no tocante a tais pedidos a presente acção consubstancia uma típica acção de reivindicação, na qual a alegação do direito de propriedade dos autores constitui um pressuposto do seu direito à restituição do estabelecimento comercial reivindicado. Segundo a doutrina corrente, o estabelecimento comercial como universalidade de direito é passível de posse, de usucapião e de reivindicação da propriedade, mesmo sem o restringir aos simples objetos corpóreos[16]. O Código Civil (abreviadamente CC) não define o direito de propriedade, mas o art. 1305º concretiza-o, dizendo que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”. Os modos de aquisição do direito de propriedade estão enunciados no art. 1316º do CC, e nele se prevê a aquisição “por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei”. A acção de reivindicação constitui um meio de defesa do domínio e encontra-se regulada no art. 1311º, do CC, onde se estatui: «1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence. 2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei». Conforme resulta do n.º 1 do citado normativo, a acção de reivindicação é uma acção petitória, na qual se identificam dois elementos/pedidos: o pedido de reconhecimento do direito real e o pedido de restituição da coisa objeto desse direito[17]. Tem sido, porém, entendido que o verdadeiro e específico pedido, na acção de reivindicação, é o de condenação a restituir a coisa; o primeiro pedido funciona como preparatório ou premissa do segundo, tanto assim que se tem considerado o mesmo como implícito, quando não expressamente formulado[18]. Na verdade, neste tipo de acção, o tribunal não pode condenar o demandado no pedido de restituição da coisa sem antes se certificar da existência e violação do direito de propriedade do demandante e, por isso, há que considerar o pedido de reconhecimento do domínio implicitamente abrangido no pedido de restituição da coisa. Significa isto que, na acção real de reivindicação, as duas operações, apreciação e condenação, não gozam de independência, sendo o reconhecimento da existência do direito um pressuposto e não um pedido a acrescer ao pedido da entrega da coisa, pelo que tal não configura uma cumulação real de pedidos[19]. Na acção de reivindicação, como acção real que é, a causa de pedir é complexa, compreendendo tanto o acto ou facto jurídico concreto de que deriva o direito real cujo reconhecimento se peticiona, nos parâmetros traçados pela teoria da substanciação consagrada no art. 581º, n.º 4, do CPC, como a alegação e prova da ocupação abusiva ou esbulho por parte do demandado[20], este último como pressuposto que é do efeito restituitório[21]. Nesta acção, os autores/reivindicantes alegam a titularidade de um direito real de gozo, indicam o facto aquisitivo do seu direito e pedem ao tribunal que condene a ré a restituir-lhe o estabelecimento comercial que havia sido dado de cessão de exploração. Para que a ação seja procedente, contudo, os reivindicantes devem provar o facto aquisitivo do direito e que a ré tem a coisa em seu poder[22]. Caso a ré detenha a coisa por título legítimo (por ex. como locatária, como cessionária, como comodatária, como credora pignoratícia), recai sobre ela o ónus de alegar e provar o facto jurídico em que assenta a sua detenção, pois só assim evitará a procedência do pedido de entrega ou restituição formulado pelos autores. A solução não podia ser outra, pois, nos termos do art. 342º do CC, àquele que invoca um direito cabe fazer a prova do direito alegado (n.º 1), incumbindo àquele contra quem a invocação é feita a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito (n.º 2)[23]. A procedência da acção de reivindicação encontra-se, assim, sujeita à demonstração cumulativa de três condições de procedência e que são as seguintes[24]: - O autor seja titular do direito real de gozo invocado; - O réu tenha a coisa em seu poder, como possuidor ou detentor; - O réu não prove ser titular de um direito que lhe permita ter a coisa consigo. No âmbito das acções de reivindicação tem-se entendido, de forma quase pacífica, que não basta ao autor invocar ser proprietário da coisa reivindicada, uma vez que também é indispensável que o autor alegue e prove uma das formas de aquisição originária; quando a aquisição for derivada, terão de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária (até onde for necessário para completar o prazo de usucapião)[25]. Esta tese apoia-se, fundamentalmente, no disposto no art. 581.º, n.º 4, do CPC, segundo o qual, à luz do princípio da substanciação, a causa de pedir, no domínio das acções reais, se corporiza no facto jurídico de que procede o direito real. Ora, como é sabido, os negócios jurídicos, como a compra e venda, a doação, o testamento, etc., não criam o domínio, apenas o transmitem. Com efeito, as formas de aquisição derivada não geram, por si próprias, esse direito, sendo apenas translativas dele, operando simplesmente a sua modificação subjetiva. O que constitui o direito e determina de certo modo o seu conteúdo é a causa originária de que ele provém. Assim, como ninguém pode transferir para outrem mais do que o próprio possui – “nemo plus alio transferre potest quam ipse habet” –, a invocação, apenas, de um negócio translativo da propriedade, não basta para caracterizar a causa de pedir nas ações de reivindicação. O reivindicante, pelo menos quando não beneficia de qualquer presunção legal de propriedade, terá de invocar factos dos quais resulte a aquisição originária do domínio por parte dele ou de um transmitente anterior. Esta atividade probatória tem como limite a aquisição originária do direito. Provando-se um facto aquisitivo originário do direito real (a usucapião, a acessão, a ocupação, etc.), não há que recuar mais atrás, pois esse é o momento da constituição do direito adquirido pelo autor[26]. Como dizem Pires de Lima e Antunes Varela[27], “se o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião ou a acessão, apenas precisará de provar os factos de que emerge o seu direito. Mas, se a aquisição é derivada, não basta provar, por exemplo, que comprou a coisa ou que esta lhe foi doada. Nem a compra e venda nem a doação se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito (...). É preciso, pois, provar que o direito já existia no transmitente (...), o que se torna, em muitos casos, difícil de conseguir”. Considerando, contudo, que tal prova da aquisição originária, mormente a da usucapião, será por vezes de difícil consecução – pois o autor está obrigado a uma “probatio diabolica” –, o nosso ordenamento jurídico consente o recurso a determinadas presunções legais da existência e titularidade do direito real, designadamente a presunção da titularidade desse direito no possuidor, seja qual for a duração da respetiva posse, ao abrigo do art. 1268º, n.º 1, do CC, bem como a presunção da sua existência a favor do titular inscrito no registo predial, nos termos do disposto no art. 7º do Código Registo Predial. Tais presunções legais (a que acresce a presunção da titularidade da posse prevista no art. 1252º, n.º 2, do CC) dispensam o beneficiário delas de provar o facto presumido, como decorre do art. 350.º, n.º 1, do CC. Deste modo, socorrendo-se o pretenso proprietário de qualquer daquelas presunções legais, caberá ao(s) demandado(s) ilidi-la mediante prova em contrário, como preceitua o n.º 2 do art. 350º do CC. Isto porque, verificada a presunção legal, o ónus da prova inverte-se, cabendo ao réu demonstrar que o autor não é titular do direito invocado. Naquelas hipóteses, não obstante o disposto no art. 581.º, n.º 4, do CPC, a causa de pedir satisfaz-se com a invocação de factos que servem de base à presunção legal – o exercício do poder de facto sobre uma coisa, a posse ou o registo do facto aquisitivo, conforme o caso –, sendo dispensável a alegação da aquisição originária[28], se bem que uma ação real estruturada apenas na base dessas presunções legais corre maior risco de insucesso mediante a sua ilisão por banda do réu[29]. Como decorre do n.º 2 do art. 1311º do CC, a última condição de procedência da acção de reivindicação liga-se à existência, ou não, de um direito do demandado a ter a coisa em seu poder. Se o autor da reivindicação faz a prova de que é titular do direito real de gozo invocado na acção e de que o réu tem a coisa em seu poder – seja possuidor seja detentor, o que para o efeito é irrelevante –, o réu apenas pode evitar a procedência da acção se invocar na contestação (em defesa por exceção ou mediante reconvenção) e provar ser titular de um direito que legitime a posse ou detenção da coisa [por ex., direito real, de gozo ou de garantia (penhor, direito de retenção), ou um direito de outra natureza, como um direito pessoal de gozo (por ex., arrendamento, comodato)], e obste, assim, à entrega da coisa ao reivindicante[30]. Nesse caso, o tribunal reconhece o direito de propriedade do autor, mas não pode ordenar a restituição da coisa, pelo que a acção de reivindicação deverá improceder. Na hipótese inversa, a coisa deve ser restituída ao seu legítimo proprietário, a expensas do esbulhador (art. 1312º do CC). No caso concreto, os autores/recorridos arrogam-se proprietários do estabelecimento comercial identificado nos autos por sucessão mortis causa dos seus antecessores, em cuja posse sucederam. Mais alegaram que, no dia 12 de abril de 1977, por via do contrato de trespasse celebrado entre EE e FF (como adquirentes) e GG e HH (como trespassantes), os indicados antecessores dos AA. adquiriram o referido estabelecimento comercial de drogaria e ferragens. E que desde a data da celebração da escritura de trespasse (../../1977), sempre os falecidos pais dos AA., seus imediatos antecessores, e os AA., possuíram e aproveitaram o identificado estabelecimento comercial, directamente ou através de terceiros, de boa-fé, como coisa sua e na convicção fundada de lhes pertencer e, por isso, de não estarem a lesar quem quer que seja com a sua fruição, com o conhecimento da generalidade das pessoas do concelho ..., pois que à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e ininterruptamente, por mais de 15, 20, 30 e 40 anos, pelo que o adquiriram de forma originária pela usucapião. O trespasse[31] e a sucessão mortis causa são modos legítimos de adquirir o direito de propriedade do estabelecimento comercial e têm, em consequência, em abstracto, eficácia real para transmitir, a favor do possuidor, o direito ao qual se refere a posse. Contudo, tendo a R./recorrente contestado a titularidade daquela quanto ao direito real invocado, os autores/recorridos para fazer valer o(s) seu(s) direito(s) sobre o estabelecimento comercial reivindicado não lhe basta a demonstração da aquisição derivada, tendo ainda de provar as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária (sendo que, na aquisição derivada, o adquirente, apenas e tão somente, adquire o direito de que o transmitente seja titular) ou alguma das presunções legais [as fundadas na posse previstas nos arts. 1252º, n.º 2 e 1268º, n.º 1, do CC ou a derivada do registo prevista no art. 7º do Código de Registo Predial (CRP)]. Como é sabido, a posse, nos termos do art. 1251º do CC, manifesta-se quando alguém actua (corpus) por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (animus)[32]. A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem, embora, em caso de dúvida, se presuma a mesma naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do art. 1257.º do CC (art 1252º do Código Civil). Exercendo alguém poder de facto sobre uma coisa, deve presumir-se a sua posse. Esta presunção deve funcionar porque, mostra a experiência, o corpus está, na falta de outra explicação, associado à verdadeira posse. Normalmente aquele que tem corpus é também possuidor (seja essa posse formal ou causal). Consagra-se a tutela da aparência. A dúvida é resolvida a favor de quem, publicamente (uma vez que exerce o corpus), aparente ser possuidor. Presume-se a posse em nome próprio em quem exerce o poder de facto[33]. Segundo o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 14.05.1996, proferido no processo n.º 85 204, publicado no DR 144/96, SÉRIE II, de 1996-06-24, “[p]odem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”. Na sua fundamentação este AUJ também refere que o “acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá assim de conter dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insuscetível de conduzir à dominialidade” e “[s]ão havidos como detentores ou possuidores precários os indicados no art. 1253, ou seja, todos aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com animus de exercer o direito real correspondente”. A posse pode ser titulada, de boa ou de má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta – art. 1258.º do CC. Adquire-se a posse pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor, por constituto possessório, por inversão do título de posse (art. 1263.º do CC). Mantida a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, por certo lapso de tempo, é facultada ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação. Trata-se da usucapião – art. 1287.º do C.C. Sob a epígrafe “Presunção da titularidade do direito”, prescreve o citado art. 1268º do CC: «1. O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse. 2. Havendo concorrência de presunções legais fundadas em registo, será a prioridade entre elas fixada na legislação respectiva». A presunção da titularidade do direito constitui, porventura, um dos efeitos mais importantes da posse. Na medida em que aquele que exerce o domínio de facto é, normalmente e na realidade, titular do direito correspondente (posse causal), será admissível partir deste pressuposto sempre que alguém é possuidor. Como se dá nota no Ac. do STJ de 21/06/2016 (relator José Rainho), in www.dgsi.pt., «[n]uma visão restritiva do alcance desta norma, a presunção da titularidade do direito esgotar-se-ia no campo da posse (tutela da posse) em benefício daquele contra quem viesse exigido o reconhecimento do direito de propriedade (ou da posse) e a restituição da coisa, e não dispusesse de meios de fazer a prova direta da aquisição do direito. A ideia subjacente é a de que a simples posse não é, salvo verificando-se a usucapião, constitutiva do direito de propriedade, pelo que não poderia fundamentar uma ação de reivindicação alicerçada no art. 1311º do CCivil ou uma ação tendente simplesmente ao reconhecimento do direito de propriedade (defesa da propriedade)». Todavia, como se defende no supra mencionado Acórdão do STJ de 21/06/2016[34] é de rejeitar essa visão restritiva. Diversamente do que sucede com a usucapião, em que feita a respetiva prova da posse boa para a usucapião e da correspondente aquisição fica provada a titularidade do direito, verificando-se um fenómeno constitutivo do direito, que leva então à demonstração efetiva do direito de propriedade, «a presunção possessória (e a registral) atua por via diversa, fazendo-o mediante a inversão do ónus da prova. Se o reivindicante beneficiar da presunção, cabe a quem se arrogue dono da coisa fazer a prova que a ilida. Neste caso não pode falar-se, obviamente, num fenómeno constitutivo do direito que leva à demonstração efetiva do direito de propriedade, mas sim num fenómeno presuntivo. Ora, tal situação presuntiva, não sendo ilidida a presunção, não tem por que não poder vale[r] para todos os efeitos como se o direito de propriedade tivesse sido provado constitutivamente. Na realidade, a função de qualquer presunção legal é precisamente a de conferir o direito (até demonstração do contrário) sem que o beneficiário o tenha de provar (tem que provar é a base da presunção, o que é uma coisa muito diferente)». Diz José Alberto Gonzalez a este propósito[35]: “(…) não se vê razão para impedir que tal demonstração [do direito de propriedade em ação de reivindicação] se faça através da presunção derivada do registo (artigo 7º, Cód. Reg. Predial) ou através da presunção assente na posse (artigo 1268º/ nº 1/1ª parte). A presunção é um meio de prova como outro qualquer (artigos 341º e segs.). Por isso somente quando ele se não admita ou quando a presunção seja ilidida, deverá o autor proceder à demonstração positiva da sua titularidade. O que supõe o estabelecimento do chamado trato sucessivo material - ou seja, supõe a prova da existência, da validade e da eficácia dos sucessivos factos aquisitivos dos quais dependa a prova da existência da titularidade atual na pessoa do demandante”. Em suma: nada parece obviar a que (tal como sucede no caso da presunção fundada no registo) uma acção tendente ao reconhecimento do direito de propriedade, como é a acção ora em causa proposta pelos Autores, seja fundamentada na presunção estabelecida no n.º 2 do art. 1252 e/ou no n.º 1 do art. 1268º do CC e que, consequentemente, seja nela (acção) reconhecido o correspondente direito de propriedade (e feita restituir a coisa, se disso se tratar). Tendo presente tais premissas, é altura de regressar ao caso dos autos. Mostra-se provado que: - Os autores são únicos e universais herdeiros de EE e FF falecidos, respetivamente, em ../../2000 e em ../../2021. - No dia 12 de abril de 1977, no Cartório Notarial ..., por via de contrato de trespasse celebrado entre EE e FF, como adquirentes, e GG e HH, como trespassantes, aqueles adquiriram o estabelecimento comercial de drogaria e ferragens, instalado em dois compartimentos (um de loja de venda ao público e outro de armazém de retém) do rés do chão frente e cave do prédio inscrito na matriz predial urbana de ... com o artigo ...77 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...91. - Nesse seguimento, EE declarou o início da sua atividade fiscal no Serviço de Finanças ... em 15 de abril de 1977. - Desde a data do trespasse que os falecidos pais dos autores utilizaram e exploraram o identificado estabelecimento comercial. - A aquisição do estabelecimento comercial foi realizada com todo o activo, alvará, existências e o direito ao arrendamento dos dois locados ocupados pelo estabelecimento. - No dia 01/06/2001, a mãe dos autores por si e na qualidade de representante do seu falecido marido cedeu a exploração do identificado estabelecimento comercial a II casado com JJ, cessão essa que terminou a 31/05/2006. - No dia 11/05/2006, os autores e a sua falecida mãe cederam à ré «EMP01..., Lda», por escrito particular, a exploração do referido espaço comercial pelo período de 10 anos, ou seja, até 1 de junho de 2016, mediante a contraprestação do pagamento pela ré da quantia global de 6.000 € anuais, paga em duodécimos mensais de 500 € e cada um. Ora, estes factos ou comportamentos dos Autores, por si e antecessores, traduzem manifestações claramente inseríveis no conceito de posse, neste caso posse à imagem do direito de propriedade. Pois que, como resulta do art. 1251º do CCivil, posse “é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (…)”. No caso concreto, pode concluir-se que os autores têm a posse do estabelecimento comercial em causa – corpus (o exercício material do direito) –, extraindo-se o animus do exercício desse poder de facto (o sentimento psicológico ou intenção de exercer o direito como sendo o seu titular), em termos de propriedade –, com a configuração ou realidade física que descreve, e que essa posse se verifica há tempo suficiente e de forma contínua, por forma a poder concluir-se que os autores têm a seu favor a presunção da titularidade do direito de propriedade sobre esse prédio. De resto, como vimos, a posse presume-se naquele que exerce o poder de facto (n.º 2 do art. 1252º do CC), e sempre seria o caso. Com efeito, a cedência da exploração do estabelecimento comercial, efetivada em primeiro lugar, a 01/06/2001, ao II e JJ, que terminou a 31/05/2006, e, subsequentemente à Ré, a 11/05/2006, com termo a 1/06/2016, constitui uma manifestação do direito de fruição do referido bem. Dito por outras palavras, traduz a manifestação da actuação material à imagem do direito de propriedade sobre o dito estabelecimento comercial por parte dos AA.. Ora, resulta do citado n.º 1 do art. 1268º do CC que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse. Deste preceito legal resulta que, para que não funcione a presunção derivada da posse, será necessário que exista a favor de outrem presunção fundada em registo anterior ao início da posse, isto é, havendo conflito de presunções, uma derivada do registo, isto é, do art. 7.º do Cód. do Registo Predial e a outra emergente da posse, ou seja, do art. 1268.º, n.º 1, do CC, prevalece esta última, designada por presunção da propriedade, que só cede em confronto com a presunção derivada do registo anterior ao do início da posse. E assim, no caso dos autos, conforme resulta da factualidade supra descrita, sendo os Autores possuidores do dito estabelecimento comercial à imagem do direito de propriedade, gozam da presunção de que dele são donos. Presunção esta que não se mostra ilidida pela Ré mediante a prova do contrário. De facto, tendo obtido o gozo do estabelecimento comercial no âmbito do contrato de cessão de exploração, a ré é uma mera detentora ou possuidora precária ou em nome alheio (art. 1253º, al. a), do CC). A Ré é detentora ou possuidora em nome dos cedentes. Possuidores são os AA. que exercem a sua posse por intermédio de terceiro, no caso a Ré. Como é sabido, para que o detentor se transforme em possuidor terá de haver uma inversão do título da posse, seja através da sua oposição, ao titular do direito ou acto de terceiro capaz de transferir a posse (art. 1265º do CC). Na primeira hipótese “torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía” e na segunda “a inversão por facto de terceiro há-de resultar de um acto capaz de transferir a posse”[36]. Sucede que da facticidade apurada não resulta comprovada a situação de inversão do título da posse expressa por factos materiais ou factos jurídicos concludentes. De facto, não basta o incumprimento do acordo inicial, pois esse incumprimento deve ser resolvido no âmbito obrigacional e não real (ex., locatário deixa de pagar a contrapartida pela cessão da exploração); tão pouco se verifica qualquer um dos fundamentos da perda da posse, previstos no art. 1267º do CC. Nestas condições, deve entender-se que os recorridos gozam da presunção de que são titulares do direito real alegado do reivindicado estabelecimento comercial. Como tal presunção não foi objecto de ilisão, há que concluir que os apelados são titulares do direito real de propriedade sobre o identificado estabelecimento comercial. Consequentemente, tem-se como lícito o segmento decisório objeto do item b) da sentença recorrida, que condenou a ré a restituir aos autores o aludido estabelecimento comercial livre de pessoas e de bens que não o integrem, o qual tem implícito ou ínsito o reconhecimento do direito de propriedade sobre o estabelecimento. Termos em que, uma vez que os autores se devem considerar, presuntivamente, titulares do direito de propriedade sobre o identificado estabelecimento comercial, improcede este fundamento da apelação da Ré. * 5. Do contrato (breves considerações gerais)Está provado nos autos que, a 11/05/2006, os autores e a sua falecida mãe cederam à ré «EMP01..., Lda», por escrito particular, a exploração do identificado estabelecimento comercial pelo período de 10 anos, ou seja, até 1 de junho de 2016. Sob a epígrafe “Locação de estabelecimento”, dispõe o art. 1109.º, n.º 1, do Cód. Civil que “[a] transferência temporária e onerosa do gozo de um prédio ou de parte dele, em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado, rege-se pelas regras da presente subsecção, com as necessárias adaptações”. A cessão de exploração – também denominada de concessão de exploração ou locação de estabelecimento – consiste na cedência temporária onerosa do estabelecimento comercial. Não é senão um contrato de locação do estabelecimento como unidade jurídica, isto é, um negócio jurídico pelo qual o titular do estabelecimento proporciona a outrem, temporariamente e mediante retribuição, o gozo e fruição do estabelecimento, ou seja, a sua exploração mercantil. O cedente ou locador demite-se temporariamente do exercício da atividade comercial e quem o assume é o cessionário ou locatário[37]. Constituem pontos de contacto e de comunhão entre o arrendamento comercial e a locação de estabelecimento “a existência de uma transferência com carácter oneroso e de feição temporária, mas ocorre uma distinção essencial e definidora que se radica no seguinte facto: enquanto no arrendamento comercial o locador transfere para o locatário o direito de gozo de um prédio, na locação de estabelecimento o detentor do estabelecimento transfere para o cessionário o gozo e fruição de uma unidade comercial, com todas as marcas e feições distintivas que acompanham esta figura de direito comercial”[38]. Deste modo, na locação do estabelecimento, para além do carácter temporário da cedência, não há locação do imóvel, nem transmissão do arrendamento, pois o cedente, sendo o arrendatário, mantém a titularidade do direito[39]. Em suma, a cessão de exploração importa somente uma mudança de sujeito no que respeita à exploração do estabelecimento, continuando o cedente a manter o arrendamento existente. O arrendatário permanece com os mesmos vínculos, direitos e obrigações. O senhorio em nada vê alterada a sua posição relativamente ao locatário[40]. Como se dá nota no Ac. da RC de 17/04/2012 (relator Henrique Antunes), in www.dgsi.pt., ao contrário do trespasse, é um negócio de transmissão do gozo, e não da propriedade do estabelecimento: ao passo que o trespasse implica uma transmissão do domínio do estabelecimento, a locação envolve apenas a transmissão da fruição da sua exploração, ou seja, diferentemente do trespassário, que é investido num direito real de propriedade sobre o estabelecimento, o locatário é titular de um mero direito obrigacional de gozo, que lhe permite explorar em seu nome e por sua conta o estabelecimento, permanecendo o locador como proprietário – caso o seja – desse mesmo estabelecimento. Diversamente do trespasse, trata-se de uma transmissão meramente temporária: contrariamente ao trespassário, o locatário é um simples titular in tempus, já que o negócio está necessariamente sujeito a um prazo, devendo o locatário, findo o prazo convencionado, restituir o estabelecimento. Do contrato de locação ou de cessão de estabelecimento emerge para o locatário este fundamental direito: o de usar e fruir plenamente o estabelecimento locado, explorando-o e fazendo seus os eventuais lucros resultantes dessa exploração. Mas dele emerge também, para essa mesma parte, este fundamental dever: o de pagar, pontualmente, a remuneração convencionada. No caso em apreço, para além da qualificação jurídica do contrato celebrado entre as partes que não está em discussão, não se mostra igualmente controvertida a asserção explicitada na sentença recorrida de que o contrato cessou, pelo decurso convencionado de 10 anos, no dia 1 de junho de 2016. Isto porque, tendo decorrido o prazo certo convencionado, o contrato terminou. Tão pouco quando nela se refere que o fim do contrato de cessão de exploração do estabelecimento não tem como consequência a “transferência” para o cessionário da qualidade de arrendatário do espaço em que funcionava o estabelecimento comercial. * 6. Da indemnização pelo incumprimento da obrigação de restituir o estabelecimento comercial.Partindo da premissa de que, tendo decorrido o prazo certo convencionado o contrato de cessão de exploração terminou e que a Ré tinha de restituir o estabelecimento comercial aos cedentes autores, a Mm.ª Juíza “a quo” concluiu que o prejuízo causado aos autores com a retenção ilícita do estabelecimento comercial corresponde, pelo menos, ao valor que eles poderiam auferir com a sua cedência, correspondente ao valor destinado à contraprestação da cessão da exploração, ou seja, 343,00 € mensais, pois que a diferença para os 500 € acordados corresponde ao valor da renda pela ocupação do imóvel que a ré tem vindo a liquidar. Contrapõe a recorrente, afirmando que a asserção, constante da decisão impugnada, de que a retenção que a Ré faz do estabelecimento não pode deixar de se considerar ilícita e contrária à lei, não tem, como necessário e inarredável respaldo, nenhuma norma nem qualquer preceito legal de onde dimane tal ilicitude; trata-se de uma conclusão “ad hoc”, sem suporte fático, nomeadamente, através da concretização, com factos (e não com base em meras “perceções”), dos requisitos da responsabilidade civil – pois que, se são arbitradas indemnizações, é mister concretizar os respetivos requisitos e os correspondentes factos que corporizam esses requisitos. Como consequência, defende que as pretensões indemnizatórias formuladas pelos Autores, a que a sentença deu provimento [alíneas c) e d) da parte dispositiva da sentença recorrida], deveriam improceder. Antecipando o juízo decisório, diremos carecer de fundamento tal pretensão recursória. Como antes se disse, não está controvertido que o contrato de cessão de exploração cessou, pelo decurso convencionado de 10 anos, no dia 1 de junho de 2016. Vem provado que, desde 1 de junho de 2016 e até à presente data, a ré nunca mais procedeu ao pagamento aos autores nem à sua mãe o montante de 343,00 € correspondente à parte da contraprestação que seria devida pela contraprestação da cessão de exploração do estabelecimento comercial, apesar de ter permanecido a explorá-lo. Ora, é por demais inequívoco que cabia, nos termos estritos da vinculação contratual a que as partes se quiseram submeter, à R. (cessionária do estabelecimento) entregar/devolver aos AA. (cedentes), finda a relação contratual, o estabelecimento comercial cuja exploração lhe havia sido cedida. Assim lho impunha o disposto nos arts. 405.º, n.º 1, e 406.º, n.º 1, do CCiv. (princípio da liberdade contratual e eficácia vinculante relativa dos contratos). Trata-se de uma obrigação do cessionário que se vence com a extinção do vínculo, sendo, em princípio, um dever de execução pós-contratual. Assim, a R. tem de ser responsabilizada, à luz do contrato celebrado com os AA. – e da lei aplicável, apontando no mesmo sentido –, pelo incumprimento do convencionado e vinculante dever de entrega[41]. Verifica-se, assim, ilicitude, por incumprimento contratual, bem como culpa, de acordo até com o disposto nos arts. 798.º e 799.º do CCiv., tal como o imprescindível nexo de causalidade. Há, pois, responsabilidade contratual, perante os AA., da R. Aliás, em termos paralelos, no âmbito do contrato de locação, estabelecendo para o locatário o dever de indemnização em caso de atraso na restituição do locado, o art. 1045.º do CC, sob a epígrafe “indemnização pelo atraso na restituição da coisa”, dispõe: «1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida. 2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro». Mediante o disposto do n.º 1 visa-se compensar o senhorio pela privação do uso do locado; através do determinado no n.º 2 pretende-se retribuir o locador pela não restituição do bem locado em devido tempo por culpa do locatário. Também aqui o legislador reconheceu ao credor (locador) o direito de indemnização, calculada a forfait, desvinculando-se quer da utilização conferida ao bem durante o período da retenção ilegítima, quer daquela que o locador lhe atribuiria no mesmo período[42]. Pois bem, no caso ajuizado nos autos, a R., na qualidade de cessionária, tem de responder pelos danos causados aos AA. (cedentes) mercê do incumprimento do dever de restituição do estabelecimento findo o contrato. E, secundando o juízo formulado na sentença impugnada, é de aceitar que «o prejuízo causado pela ré aos autores com a retenção ilícita do estabelecimento comercial, corresponde pelo menos ao valor que eles poderiam auferir com a sua cedência», que à data da prolação da sentença na 1ª instância ascendia a 34.986,00 €, acrescido “por todo o tempo que decorra até à entrega do imóvel, à razão de 343,00 € mensais”. Por fim, o facto de os AA. serem equívocos, na petição inicial, quanto ao tipo de responsabilidade civil na qual erigem a sua pretensão indemnizatória, o mesmo sucedendo com a sentença recorrida posto a Mm.ª Juíza “a quo” não se ter vinculado a que tipo de responsabilidade civil imputou tais danos – se responsabilidade contratual ou, ao invés, responsabilidade extracontratual –, não obsta a que o Tribunal, no exercício dos seus poderes de livre qualificação jurídica da factualidade invocada como causa de pedir, possa proceder a uma correção ou adequação da configuração jurídico normativa da pretensão, reconduzindo a matéria facto alegada ao quadro normativo que tenha por adequado. Com efeito, e como resulta do art. 5º, n.º 3 do CPC, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, pelo que, independentemente do seu enquadramento ou qualificação jurídicas (responsabilidade civil contratual/responsabilidade civil extracontratual), ao reconhecer tal crédito com base numa dessas fontes de responsabilidade civil (no caso, a contratual), limitando-nos a lançar mão dos factos provados, inexiste violação dos limites da condenação assinalados no n.º 1 do art. 609º “ex vi” do art. 663º, n.º 2, ambos do CPC. Resta, pois, concluir não merecer censura a sentença recorrida, pelo que improcede a apelação. * Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527º do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as custas da apelação serão da responsabilidade da recorrente (art. 527º do CPC). * VI. DECISÃO Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida. Custas da apelação a cargo da apelante (art. 527º do CPC). * Guimarães, 10 de julho de 2025 Alcides Rodrigues (relator) Maria Luísa Duarte (1ª adjunta) Raquel Baptista Tavares (2ª adjunta) [1] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, 3.ª Ed., 2025, Almedina, pp. 244/245. [2] Cfr. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, p. 81. [3] Cfr., António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., Quid Juris, pp. 63/65, 361 e 365. [4] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, p. 718. [5] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª ed., Almedina, pp. 291/293. [6] Cfr. Henrique Antunes, “Recurso de apelação e controlo da questão de facto”, Colóquio (sobre o novo CPC), acessível através de www.stj.pt. [7] Cfr., neste sentido, Acs. do STJ de 28/09/2017, proc. n.º 659/12.6TVLSB.L1.S1 (relatora Fernanda Isabel Pereira) e proc. n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1 (relatora Fernanda Isabel Pereira), Acs. da RP 24/10/2016 (relator Oliveira Abreu) e de 18/09/2017 (relator Manuel Domingos Fernandes) e Ac. da RE de 3/11/2016 (relatora Maria da Graça Araújo), todos acessíveis in www.dgsi.pt. [8] Cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 206-207. [9] Cfr. Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, pp. 407/409. [10] Cfr. Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, p. 270. [11] Cfr. Acs. do STJ de 28/09/2017 (relatora Fernanda Isabel Pereira), de 29/04/2015 (relator Fernandes da Silva), de 14/01/2015 (relator Fernandes da Silva), de 14/01/2015 (relator Pinto Hespanhol); na doutrina, Tiago Caiado Milheiro, In Nulidades da Decisão Da Matéria de Facto, www.julgar.pt., e Antunes Varela, “Juízos de valor da lei substantiva, o apuramento dos factos na ação e o recurso de revista”, CJ, Ano XX, tomo IV, pp. 7 a 14. [12] Cfr. Acs. do STJ de 9/09/2014 (relatora Maria Clara Sottomayor) e de 1/10/2019 (relator Fernando Samões), in www.dgsi.pt. [13] Cfr. obra citada, pp. 291/292. [14] Cfr. Documento junto com a contestação sob o n.º 1, intitulado recibo. [15] Cujo teor se reproduz: “a) «EMP01..., Lda» desde 13 de dezembro de 2016 passou a revestir a qualidade de inquilina do espaço comercial”. [16] Cfr. Ac. do STJ de 22/02/2018 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), in www.dgsi.pt., com enunciação de variada doutrina. [17] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, 1987, p. 112 e Elsa Sequeira Santos, in Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume II, 2017, Almedina, p. 108. [18] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 113. [19] Cfr. Ac. da RG de 20-10-2009 (relatora Rosa Tching), in www.dgsi.pt. [20] Cfr. Acs. do STJ de 24/10/2006 (relator Sebastião Póvoas) e de 5/05/2008 (relator Nuno Cameira), in www.dgsi.pt. e Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. V, 1997, Editora Rei dos Livros, p. 65. [21] Cfr. Ac. da RL de 22/06/2010 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), in www.dgsi.pt. [22] Cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2017, Almedina, p. 432. [23] Cfr. Henrique Mesquita, Anotação ao Ac. do S.T.J. de 29-4-1992, in R.L.J., Ano 125º, p. 95, nota 1. [24] Cfr. José Alberto Vieira, obra citada, p. 429. [25] Cfr. Acs. do STJ de 10.03.98 (relator Lemos Triunfante), de 5/05/2016 (relator Paulo de Sá) e de 9/11/2017 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), disponíveis in www.dgsi.pt.. [26] Cfr. José Alberto Vieira, obra citada, p. 430 e Henrique Mesquita, Anotação ao Ac. do S.T.J. de 29-4-1992, in R.L.J., Ano 125º, p. 95, nota 1. [27] Cfr. obra citada, p. 115. [28] Cfr. Acs. do STJ de 10/03/98 (relator Lemos Triunfante) e de 24/10/2006 (relator Sebastião Póvoas), disponíveis in www.dgsi.pt. e Ac. da RC de 24/2/82, CJ, Ano VII, T. I, p. 104. [29] Cfr. Ac. do STJ de 9/11/2017 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), disponível in www.dgsi.pt. [30] Cfr. José Alberto Vieira, obra citada, p. 432. [31] O trespasse é a transmissão definitiva e unitária do estabelecimento comercial. Pode operar por via de qualquer contrato, típico ou atípico, que assuma eficácia transmissiva: compra e venda, dação em pagamento, sociedade, doação ou outras figuras diversas. [32] O “corpus”, enquanto elemento material ou empírico, identifica-se com os actos materiais praticados ou com o exercício de certos poderes de facto sobre a coisa. O “animus”, como elemento psicológico-jurídico, traduz-se na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados. – cfr. Mota Pinto, Direitos Reais, lições coligidas por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Almedina, 1971, p. 181. [33] Cfr. Armando Triunfante, Lições de Direitos Reais, Almedina, 2019, p. 135. [34] Cuja fundamentação seguiremos de perto. [35] Apud Ac. do STJ de 21/06/2016 (relator José Rainho), in www.dgsi.pt. [36] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed, Coimbra Editora, 1987, pp. 30/31. [37] Cfr. Pupo Correia, Direito Comercial, 10ª ed., p. 72. [38] Cfr. Ac. do STJ de 19/04/2012 (relator Granja da Fonseca), in www.dgsi.pt. [39] Cfr. Ac. da RP de 06/02/2023 (relator Manuel Domingos Fernandes), in www.dgsi.pt. [40] Cfr. Ac. do STJ de 2/03/2004 (relator Pinto Monteiro), in www.dgsi.pt. [41] Cfr., em sentido similar, Ac. da RC de 21/05/2024 (relator Vítor Amaral), in www.dgsi.pt. [42] Cfr. Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2001, Almedina, p. 13. |