Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | CARLA OLIVEIRA | ||
Descritores: | NOTIFICAÇÃO DO FIADOR EM PRAZO CERTO CADUCIDADE DO DIREITO DE EXIGIR O PAGAMENTO DAS RENDAS CITAÇÃO COMO MEIO DE INTERPELAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 12/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I - Por via do afastamento do benefício da excussão prévia, responde o fiador perante o credor em termos solidários com o devedor, sendo a responsabilidade deste a medida da responsabilidade daquele (art.º 640º do CC). II – O art.º 1041º, nºs 5 e 6 do CC, na redacção introduzida pela Lei nº 13/2019, de 12.02 veio introduzir a necessidade de notificação do fiador em determinado prazo como condição para o senhorio o poder demandar ao cumprimento da dívida afiançada. III - Estando o exercício deste direito sujeito a prazo certo, definido por lei, são-lhe aplicáveis as regras da caducidade, atento o disposto no art.º 298º, nº 2 do CC. IV – Incumprido que seja o prazo fixado no art.º 1041º, do CC, para a notificação do fiador, caduca o direito do senhorio lhe exigir o cumprimento das rendas vencidas há mais de 90 dias. V - A citação do fiador na acção intentada pelo senhorio para cobrança das rendas em dívida, satisfaz o dever de notificação e interpelação ao pagamento exigidos pelos nºs 5 e 6 do art.º 1041º, do CC, dado que transmite todos os elementos a tanto necessários, como inclui a própria interpelação ao pagamento. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I. Relatório AA e BB, vieram propor ação de processo comum contra CC; e DD, formulando os seguintes pedidos: “1 – Decretar-se a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre Autores e o primeiro Réu, condenando o primeiro Réu a despejar o imóvel arrendado identificado no artigo 1º desta P.I. e entregá-lo aos Autores desocupados de pessoas e bens e em perfeito estado de conservação. 2 – Ser o Réu condenado a pagar à Autora as rendas já vencidas respeitantes aos meses de Março, Abril, Maio, Junho, Julho Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2023 e Janeiro de 2024 no montante de € 3.099,49 (três mil e noventa e nove Euros e quarenta e nove cêntimos); 3 - Ser o primeiro Réu condenado a pagar aos Autores as rendas que se vencerem doravante até efetiva entrega aos autores do imóvel locado desocupado de pessoas e bens. 4 - Ser o primeiro Réu condenado a pagar aos Autores juros de mora á taxa legal que se vencerem sobre a totalidade das sobreditas quantias mencionadas em 2 e 3 supra até efetiva entrega do prédio arrendado, livre de pessoas e bens. 5 - Ser a segunda Réu solidariamente condenada a pagar aos Autores supra quantias peticionadas, em conformidade com o previsto na cláusula nona do contrato de arrendamento objeto dos presentes autos. Para fundamentar a sua pretensão invocou o incumprimento do contrato de arrendamento para habitação por falta de pagamento pontual das rendas e ainda a garantia de fiança prestada pela 2ª ré. Regularmente citados, apenas a 2ª ré contestou, impugnando parte da factualidade por desconhecimento e invocando que não tendo os autores, efectuado à 2ª ré, fiadora, a notificação exigida pelo nº 5 do art.º 1041º do CC, não podem, conforme decorre do nº 6, exigir dela a satisfação dos direitos de crédito invocados na presente acção. Após terem sido notificados para o efeito, responderam os autores, por escrito, à matéria de excepção peremptória deduzida pela ré contestante. Foi proferido despacho saneador que relegou para final a apreciação da aludida excepção. Designou-se o dia 13.06.2024 para a realização da audiência final, no âmbito da qual o 1º réu confessou o pedido, pelo que, conforme consta da respectiva acta, foi proferida sentença com o seguinte teor: “Nos presentes autos de despejo, declaro, por esta sentença, válida a confissão do pedido feita pelo réu CC, considerando o seu objeto e a qualidade das partes, a disponibilidade do direito em litígio, sopesando-se ainda tratar-se de uma hipótese de litisconsórcio voluntário passivo entre o devedor de rendas e o seu fiador. Condeno o réu a despejar o imóvel arrendado livre de pessoas e bens em estado de conservação, no prazo de 15 (quinze) dias partir da presente data, entregando a chave do referido imóvel da pessoa da Ilustre Mandatária do autor. Mais fica condenado a pagar à autora as rendas já vencidas, montante liquidado, no valor de € 3.099,49, as rendas que se vierem a vencer até o momento da entrega do locado, tudo conforme o pedido confessado. Fica ainda condenado no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos até à data de entrega do bem, tudo conforme o pedido confessado. Em face do disposto no art.º 277º, al. d) e art. 288.º do CPC (tratando-se de litisconsórcio voluntário), julgo extinta a instância no que ao réu CC diz respeito. Valor: € 3.099,49 (três mil e noventa e nove euros e quarenta e nove cêntimos). Custas a fixar a final – art. 528.º do Código de Processo Civil. Registe e notifique.”. Foi determinado ainda que os autos prosseguissem para a prolação de sentença por escrito quanto à 2ª ré. Seguidamente foi proferida sentença, decidindo-se: “Pelo exposto, julgo parcialmente procedente, por provada, a presente ação e, em consequência, condeno a 2.ª R. a pagar aos AA, solidariamente com o 1.º R., apenas o montante de €2.675,97 (dois mil, seiscentos e setenta e cinco euros e noventa e sete cêntimos) que será acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma das rendas em dívida, sobre o respetivo montante, designadamente sobre a renda de Dezembro de 2023, vencida no 1.º dia útil de Novembro, e assim sucessivamente, com términus em 3.7.2024, com o vencimento da renda de Agosto, no 1.º dia útil de julho de 2024, até efetivo e integral pagamento. Em tudo o demais peticionado, absolvo a 2.ª R. do pedido. Valor da causa: o fixado em sede de despacho saneador. Custas pelos RR., consignando-se que o 1º. R. beneficia de apoio judiciário na modalidade de despensa do pagamento de taxa de justiça e que, no tocante ao pedido formulado contra a 2.ª R., o decaimento da 2.ª R. foi apenas parcial, ou seja, na percentagem de 52%, tendo os AA. decaído, no seu pedido contra a 2.ª R., em 48% (art. 527.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil). Registe e notifique.”. Inconformada com tal sentença, dela apelou a 2ª ré, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos: «1. Consta da matéria de facto dada como provada que os AA./recorridos não notificaram a fiadora das rendas em dívida previamente a esta acção que intentaram para resolver o contrato de arrendamento e cobrar as rendas vencidas e vincendas; 2. Apesar desta omissão pelo senhorio, a sentença recorrida condenou a fiadora (2ª R./recorrente) ao pagamento das rendas vencidas nos 90 dias anteriores à sua citação e nas rendas vincendas até à entrega do arrendado; 3. O art. 1041º, nº 5 e 6, do CCivil, impõe que o senhorio, caso o arrendatário não faça cessar a mora no prazo de oito dias a contar do seu começo, nos 90 dias seguintes, notifique o fiador da mora e das quantias em dívida, não permitindo, desta forma, que este seja surpreendido, com o pagamento de mais de 4 meses de rendas, como condição para exigir judicialmente deste o pagamento das rendas vencidas e vincendas; 4. Ora, a falta da referida condição de exigibilidade da demanda do fiador para obter a condenação do mesmo no pagamento das rendas vencidas e vincendas e demais acréscimos legais, em termos processuais corresponde a uma condição objetiva específica de procedibilidade da pretensão para demandar o fiador; 5. Se assim não fosse, mas como foi decidido, na sentença recorrida, retirava-se a possibilidade que foi concedida, na redacção dada pela Lei nº 13/2019, de 12/02, ao fiador de extrajudicialmente puder fazer cessar a mora e pagar as rendas em dívida, que nunca ultrapassariam 4 meses; 6. Mas, antes, segundo a sentença recorrida, ficar à mercê do entendimento do senhorio e, em vez de ter a oportunidade de pagar as rendas em dívida voluntariamente, sem ultrapassar os 4 meses, sujeita-se a ter de pagar as rendas vencidas nos 90 dias anteriores à citação, acrescidas das rendas vincendas; 7. O que, não é o que se pretende com o disposto nos normativos elencados nos números 5 e 6 do art. 1041º do CCivil, mas, antes, evitar que o fiador seja surpreendido com valores elevados e proceda ao pagamento voluntariamente ou, pelo menos, que lhe seja dada essa oportunidade; 8. Mais, nos termos da sentença recorrida, retira-se ao senhorio as rendas que ultrapassam os 90 dias anteriores à citação, mas concede-se-lhe o direito de exigir as rendas vincendas até que o arrendatário entregue o locado; 9. Não permitindo que o fiador, de forma voluntária, ponha fim à mora e pague as rendas em dívida, nunca ultrapassando estas 4 meses; 10. Se a redacção dada pela Lei nº 13/2019, de 12/02, ao obrigar o senhorio a notificar o fiador, caso o arrendatário não cesse a mora, nos 90 dias seguintes, veio proteger este, a sentença recorrida, “dá com uma mão e tira com a outra”, ao eximir o fiador do pagamento de rendas para lá dos 90 dias anteriores à citação, mas por outro lado obriga-o a pagar as rendas vincendas até à entrega do locado; 11. O que retira ao fiador a oportunidade de fazer cessar a mora e pagar as rendas correspondentes a um período que não ultrapassaria os 4 meses, sujeitando-se ao tempo de decurso de uma acção judicial.”. Terminou pedindo que a sentença recorrida seja revogada e proferido acórdão que considere a acção improcedente, absolvendo-se a ré/recorrente do pedido. Não foram apresentadas contra-alegações. Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir. * II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir * O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal). * A questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, é apenas a de determinar se a notificação do fiador nos termos e para os efeitos previstos no art.º 1041º, nºs 5 e 6 do CC corresponde, em termos processuais, a uma condição objectiva específica de procedibilidade para demandar o fiador a pagar as rendas vencidas e vincendas.* III. Fundamentação* 3.1. Fundamentação de facto O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos: «1) Os autores são donos e legítimos proprietários e possuidores da fração autónoma destinada a habitação, sito na Avenida ..., inscrita respetiva matriz sob o artigo ...45- J, que teve origem nos artigos ...54-J e no artigo 851-B da freguesia ... (extinta), e descrita na conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19 da freguesia .... 2) Em 1 de Abril de 2014, os Autores deram de arrendamento ao primeiro Réu a fração mencionada na cláusula anterior, em conformidade com o contrato de arrendamento que se junta como Doc. 2 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido. 3) O arrendamento mencionado em 2 supra foi celebrado pelo prazo de 1 ano renovável automaticamente por iguais e sucessivos períodos de tempo, mediante o pagamento da renda mensal de € 280,00 (duzentos e oitenta euros), a pagar pelo Réu arrendatário aos Autores, até ao primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar, paga diretamente aos senhorios. 4) Sendo a renda atualmente de €299,49 após aplicação do índice de 6,94%, de acordo com o Aviso ...23 que atualizou as rendas para o ano de 2024, aumento esse que lhe foi comunicado. 5) Resulta que o Réu deixou de pagar a renda aos Autores em Novembro e Dezembro de 2022 e Janeiro e Fevereiro de 2023. 6) Após envio de carta a reclamar o pagamento das rendas, Autores e Réu acordaram verbalmente no pagamento das rendas então devidas, pagando cada mês e até ao dia 8 o montante referente a dois meses de rendas, ou seja, € 560,00 (quinhentos e sessenta Euros). 7) Assim, o Réu procedeu ao pagamento das rendas referentes aos meses de Novembro de Dezembro de 2022 no dia 11 de Abril de 2023, 8) Tendo procedido ao pagamento das rendas dos meses de Janeiro e Fevereiro de 2023 no dia 8 de Maio de 2023. 9) Depois dessa data não procedeu ao pagamento de qualquer renda em dívida, estando assim por liquidar as rendas relativas aos meses de Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2023, e Janeiro de 2024. 10) Num total de 11 (onze) meses de rendas em atraso, num total de € 3.099,49 (três mil e noventa e nove Euros e quarenta e nove cêntimos). 11) Convencionaram Autores e 1.º Réu no aludido contrato de arrendamento, cláusula quarta, nº 5, constituir causa de resolução do mesmo e consequente despejo do Réu a falta de pagamento das rendas por período igual ou superior a 1 (um) mês. 12) O Réu, não obstante, ter sido interpelado pelos Autores para o efeito, não fez cessar a sua mora, mantendo em dívida as sobreditas rendas. 13) A 2.ª Ré intervém no contrato de arrendamento na qualidade de fiadora, assumindo solidariamente com o primeiro Réu o cumprimento de todas as cláusulas do contrato em causa. 14) Tendo a mesma renunciado ao benefício da excussão prévia, conforme cláusula nona do contrato de arrendamento junto como Doc. 2 Mais se provou: 15) A 2.ª R. foi citada para a presente ação no dia 12.1.2024. 16) O 1.º R. na sequência da sentença proferida nestes autos, entregou o locado aos AA. no dia 3.7.2024. Provou-se ainda que: 17) Previamente à citação nos presentes autos, os AA. não comunicaram à 2ª R., aqui e agora, contestante, a dívida das rendas por parte do R. arrendatário. 18) Previamente à citação na presente ação, A 2ª R. não foi interpelada, pelos AA., para pagar o que quer que seja. 19) Previamente à propositura da presente ação, os AA. não interpelaram a 2ª R. para pagar as quantias em dívida ou para pôr termo à mora. 20) Previamente à presente ação, a 2ª R. não foi notificada da mora e das quantias em dívida.”. * 3.2. Fundamentação de DireitoO presente recurso não tem por objecto a reapreciação da decisão relativa à matéria de facto, que, por isso, se tem por consolidada, estando apenas em causa verificar se o tribunal recorrido incorreu em errónea subsunção dos factos ao direito quanto à condenação da 2ª ré, demandada na qualidade de fiadora. Concretamente alega a recorrente que o tribunal a quo interpretou erradamente o regime actualmente estabelecido no art.º 1041º, nºs 5 e 6, do CC, defendendo a recorrente que a notificação do fiador prevista na citada norma corresponde, em termos processuais, a uma condição objectiva específica de procedibilidade para demandar o fiador a pagar as rendas vencidas e vincendas, ou seja, deveria ter sido efectuada previamente à interposição da presente acção (na qual os autores peticionam a resolução do contrato de arrendamento e o pagamento das rendas vencidas e vincendas). Posição esta que corresponde à sufragada nos acs. da RE de 27.06.2024, proferidos nos processos nºs 345/23.1T8PTG.E1 e 94/20.2T8FAR.E1 e consultáveis in www.dgsi.pt e jurisprudência.pt, respectivamente. Diferentemente foi decidido pelo tribunal “a quo” que entendeu que ao prazo de 90 dias estabelecido para a realização da notificação pelo senhorio ao fiador se aplicam as regras da caducidade e que a citação da fiadora para a acção equivale à notificação a que se refere o nº 5 do art.º 1041º, do CC, tendo assim condenado a fiadora, ora recorrente, a pagar aos autores apenas as rendas vencidas a partir dos 90 dias anteriores à citação para a acção (seguindo, assim, de perto os ensinamentos plasmados no ac. da RP de 8.05.2023, proferido no processo nº 1242/22.3T8PRT.P1 e acessível in www.dgsi.pt). A resolução da questão colocada no presente recurso – se o referido art.º 1041º, nºs 5 e 6, do CC estabelece (ou não) uma condição objectiva específica de procedibilidade da pretensão para demandar o fiador - passa, pois, pela análise e interpretação do regime jurídico da fiança no contrato de arrendamento. Sendo que, para tanto, não podemos igualmente perder de vista o regime geral da fiança previsto no art.º 627º e seguintes do CC. Como é sabido, a fiança é a garantia pessoal típica ou nominada, regulada no art.º 627º, e seguintes, do CC, pela qual um terceiro (fiador) assegura com o seu património o cumprimento da obrigação do devedor, ficando pessoalmente obrigado perante o credor deste. Prestada a fiança, o credor passa a beneficiar da garantia especial do património do fiador e da garantia comum de todas as obrigações do devedor, constituída pelo património deste, em pé de igualdade com todos os credores (art.º 601º, do CC). A obrigação do fiador é acessória da obrigação do devedor principal – nº 2, do art.º 627º, do CC. Constituída a fiança fica a existir, juntamente com a obrigação do devedor, a obrigação acessória do fiador, cobrindo a primeira e tutelando o seu cumprimento. O fiador constitui-se no dever de cumprir a obrigação do devedor, quando este não o faça, sob pena de ser executado o seu património. Além de acessória, a obrigação do fiador é em regra subsidiária, goza do benefício de excussão, que consiste no direito de recusar o cumprimento enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor (art.º 638º, nº 1, do CC), salvo em certas hipóteses, uma das quais a de haver renunciado ao benefício da excussão e, em especial, ter assumido a obrigação de principal pagador, conforme previsto no art.º 640º, do CC. Por outro lado, a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor, conforme determina o art.º 634º do CC. E, quanto ao seu âmbito, a fiança não pode exceder a dívida principal nem ser contraída em condições mais onerosas (art.º 631º, nº 1, do CC), sendo que a responsabilidade do fiador abrange tudo aquilo a que o devedor principal está obrigado, não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo (art.º 798º do CC) ou a pena convencional que, porventura, se haja estabelecido (art.º 810º do CC). Em suma, pode o credor exercer “perante o fiador os mesmos direitos que tem perante o devedor, quer respeitem à ação de cumprimento, quer à indemnização por incumprimento, mora ou cumprimento defeituoso” [vide, Luís Teles M. Leitão in “Garantia das Obrigações”, edição de 2016, p. 109] Sendo que, quando ocorra afastamento do benefício da excussão prévia, nos termos previstos no art.º 640º, do CC, o fiador responde perante o credor em termos solidários com o devedor, sendo a responsabilidade deste a medida da responsabilidade daquele (cfr., ac. da RP de 14.12.2022, processo nº 1647/21.7T8MAI-A.P1, acessível in www.dgsi.pt). Porém, a Lei nº 13/2019, de 12.02 (que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, aplicando-se consequentemente, ao caso sob apreciação), veio introduzir uma significativa alteração ao regime da fiança no contrato de arrendamento. Com efeito, reza assim o art.º 1041º, nºs 5 e 6 do CC: “5 - Caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora nos termos do n.º 2, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida. 6 - O senhorio apenas pode exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efectuar a notificação prevista no número anterior.”. Por via deste regime legal, a jurisprudência tem afirmado de forma unívoca que estamos perante uma nova condição para a exigibilidade da prestação do fiador, ou seja, que “a mora não purgada do arrendatário, enquanto elemento constitutivo da responsabilização do fiador, constitui assim uma condição da ação, ou seja, elemento necessário para a procedência da pretensão deduzida, sendo que a exigibilidade do cumprimento das obrigações a cargo do fiador do arrendatário depende da notificação do senhorio ao fiador a que alude o artigo 1041.º, n.º 5, do Código Civil.” (vide, os ac. da RP, de 08-05-2023 e da RE de 27.06.2024, acima citados; os acs. da RL, de 21.05.2020, processo nº 2804/18.9T8CSC.L1-2 e de 04.07.2023, processo nº 1202/22.4T8SXL.L1-7; o ac. da RC de 19.03.2024, processo nº 522/20.7T8LMG.C1; e o ac. da RG, de 24.11.2022, processo nº 629/21T8CHV.G1, todos em www.dgsi.pt). Com efeito, «[d]a leitura conjugada dos nºs 5 e 6 do artigo 1041º do CC vindos de citar, infere-se que a sanção prevista pelo legislador para a não notificação do fiador por parte do senhorio em caso de incumprimento do inquilino (que não faz cessar a mora nos termos do nº 2 deste artigo) é a da impossibilidade de exigir o cumprimento da obrigação em falta junto do fiador. Preceituando o nº 2 deste artigo 1041º: “Cessa o direito à indemnização ou à resolução do contrato, se o locatário fizer cessar a mora no prazo de oito dias a contar do seu começo.”. A notificação que o senhorio deve fazer ao fiador implica, portanto, a observância do prazo de 90 dias após o decurso dos 8 dias de mora mencionados neste nº 2, para que ao mesmo possa exigir o cumprimento da obrigação do seu inquilino desde o início da mora.» (cfr. o citado ac. da RP de 8.05.2023). Isto assente, a dúvida que se levanta [e neste ponto a jurisprudência diverge, como vimos] é saber se a falta de notificação do fiador nos termos dos nºs 5 e 6 do art.º 1041º do CC, corresponde a uma condição objectiva de procedibilidade que constitui uma causa impeditiva do direito do credor (senhorio) a instaurar acção. Importa, pois, interpretar os referidos normativos legais, ou seja, determinar o seu sentido a fim de se entender a sua correcta aplicação ao caso concreto. Como sabemos, na interpretação da lei, o seu aplicador não deve cingir-se à letra da lei, mas o pensativo legislativo a que o intérprete chegue tem de conter um mínimo de correspondência verbal (art.º 9º do CC). A interpretação jurídica realiza-se através de elementos, meios, factores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente. O primeiro são as palavras em que a lei se expressa (elemento literal); os outros a que seguidamente se recorre, constituem os elementos, geralmente, denominados lógicos (histórico, racional e teleológico). O elemento literal, também apelidado de gramatical, são as palavras em que a lei se exprime e constitui o ponto de partida do intérprete. A letra da lei tem duas funções: a negativa (ou de exclusão) e positiva (ou de selecção). A primeira afasta qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão); a segunda privilegia, sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem. Temos de pensar que o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento e se serviu do vocábulo jurídico adequado e que o legislador se dirige a todos os cidadãos, sendo necessário que o entendam (sobre esta matéria, vide: Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, p. 163; Castanheira Naves, Interpretação Jurídica, p. 362/363; Baptista Machado, Introdução ao Direito, p. 182; Oliveira Ascensão, O Direito, p. 406/407; Santos Justo, Introdução ao Estudo de Direito, 4ª ed., p. 334 e seguintes). O nosso legislador, no art.º 9º, do CC consagra o elemento literal como ponto de partida da interpretação ao referir que “a interpretação deve…reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo” (nº 1), estabelecendo a função negativa ao afirmar que o intérprete não pode considerar aquele pensamento “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal” (nº 2) e reconhecendo a função positiva, quando determina que o intérprete presumirá que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (nº 3) - cfr. Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão, Introdução ao Estudo de Direito, 2ª ed., p. 57 e 58. Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, “o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal…” (in, Código Civil Anotado, vol. 1º, 4ª ed, p. 58 e 59). Mas além do elemento literal, o intérprete tem de se socorrer algumas vezes dos elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a lógica. Estes elementos lógicos agrupam-se em três categorias: a) elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei e occasio legis [circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada]; b) o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema; c) elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser (ratio legis). Expostas estas ideias genéricas sobre a interpretação das normas passamos a apurar o sentido das normas em questão. Vamos começar pela interpretação literal, pois é a primeira etapa da interpretação. Efectivamente, o texto da lei forma o substrato de que se deve partir e em que deve repousar. E partindo da letra da lei, afigura-se-nos claro que da mesma não deriva que o senhorio tenha de proceder à notificação do fiador antes de interpor a acção a exigir as rendas, sob pena de ficar impedido de a instaurar. Na verdade, o que resulta dos aludidos normativos legais é tão só que a notificação do fiador tem de ser efectuada em determinado prazo (90 dias após os 8 dias previstos no nº 2, do art.º 1041º, do CC). Os arestos que defendem estarmos perante uma condição impeditiva do direito do senhorio propor a acção a exigir as rendas estabelecem um paralelo com o regime do PERSI previsto no DL nº 227/2012, de 25.10, em relação às notificações exigidas pela lei para integração do cliente bancário em PERSI e para a extinção deste procedimento legal. Porém, enquanto no art.º 18º, nº 1, b) do Decreto-Lei nº 227/2012 se estabelece expressamente que, verificados que sejam os respectivos pressupostos da integração do devedor no PERSI, a acção judicial destinada a satisfazer o crédito, só poderá ser intentada pela instituição de crédito contra o cliente bancário, devedor mutuário, após a extinção do procedimento, nas normas ora em apreciação não consta qualquer impedimento à propositura da acção judicial. Ou seja, a interpretação propugnada pela recorrente não encontra na lei um mínimo de correspondência verbal. Se o legislador tivesse tido intenção de estabelecer tal impedimento em decorrência da falta da notificação do fiador, não deixaria de o consagrar de forma explícita. Neste conspecto, afigura-se-nos que, do texto da lei, resulta apenas a necessidade de notificação do fiador em determinado prazo como condição para o senhorio o poder demandar ao cumprimento da dívida afiançada. Assim sendo, “[e]stando o exercício deste direito sujeito a prazo certo, definido por lei, são-lhe aplicáveis as regras da caducidade, atento o disposto no artigo 298º nº 2 do CC” (cfr., o ac. da RP de 8.05.2023 supra citado e ainda no mesmo sentido, o ac. da RC de 19.03.2024, processo nº 522/20.7T8LMG.C1, acessível in www.dgsi.pt). Efectivamente, diz o referido art.º 298º, nº 2, do CC que “Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.”. Por conseguinte, segundo esta interpretação, que se nos afigura a mais correcta, incumprido que seja o prazo fixado no art.º 1041º, do CC, para a notificação do fiador, caduca o direito do senhorio lhe exigir o cumprimento das rendas vencidas há mais de 90 dias. Mas se dúvidas houvesse, o que já não acontece, as mesmas dissipar-se-iam ao socorrermo-nos do elemento racional ou teleológico. Este elemento, como já se referiu supra, constitui a ratio legis, ou seja, a razão de ser, o fim ou objectivo prático que a lei se propõe atingir. A Lei nº 13/2019, de 12.02 alterou vários diplomas legais, entre eles o Código Civil e o NRAU aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27.02, assumindo o legislador que visou aprovar «Medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade.» (art.º 1º). À redacção dos nºs 5 e 6 do art.º 1041º do CC preside o mesmo objectivo de protecção, pois, introduzem uma tutela específica ao fiador do arrendatário e, na medida dessa especificidade, para além de afastarem as regras gerais da fiança, impõem uma específica exigência em relação à notificação do fiador no que concerne ao teor da notificação e ao prazo em que a mesma deve ser efectuada. A propósito desta notificação, diz-se no ac. da RP de 07.12.2023 (processo nº 8632/19.7T8VNG.P1, disponível in www.dgsi.pt): “Conforme refere Pinto Furtado, «os n.ºs 5 e 6 preenchem uma lacuna sobre a relação do locador com o fiador, que exista, do locatário, em face da mora deste no pagamento de rendas. No n.º 5, estabelece-se que o senhorio deve dar-lhe conhecimento da mora e da quantia em dívida “nos 90 dias seguintes”. A notificação deve, naturalmente, fazer-se desde a primeira mora e se, após a notificação, se cumularem outras rendas que continuem em falta, certamente deverá dar-se imediatamente conta da dívida acumulada. A notificação é indispensável porque, como se declara no n.º 5, só após ela poderá o senhorio exigir do fiador a quantia em dívida. Isto era o que já se praticava anteriormente ao aditamento destes n.ºs 5 e 6. Apenas se acrescentou agora, à prática adotada, um prazo de notificação, talvez com o objetivo moralizador de evitar que o senhorio prolongue a ocorrência da mora para ir avolumando a dívida.». (o sublinhado é nosso). Ou seja, a lei limitou-se a fixar um prazo para a notificação do fiador, procurando, do mesmo passo, promover a diligência do senhorio e evitar que o fiador só tome conhecimento da dívida quando o seu valor é já muito elevado. Como lapidarmente se diz no ac. da RP de 8.05.2023, que vimos seguindo de perto: “O estabelecimento do prazo ora em análise, acrescenta um outro nível de proteção ao fiador, garantindo, quando respeitado o prazo exigido à sua notificação da mora e quantias em dívida, que à data desta nunca estarão vencidas rendas de período superior a 4 meses [o mês da renda em mora, e – no máximo - as 3 subsequentes rendas que se vencem no período máximo de 90 dias].”. Aqui chegados, importa referir que, ao contrário do que diz a recorrente, estes objectivos da lei não ficam postergados se o senhorio não providenciar pela notificação do fiador antes da propositura da acção para cobrança das rendas e se o fiador apenas tomar conhecimento do incumprimento do arrendatário com a citação para a acção. Independentemente de a notificação do fiador ocorrer antes ou depois da propositura da acção com a citação, a consequência para o fiador é a mesma, o senhorio só poderá exigir do fiador as rendas vencidas nos 90 dias anteriores à notificação ou citação (bem como as que entretanto se vencerem), nada impedindo o fiador de, mesmo após ter sido interposta a acção, querendo, proceder ao pagamento voluntário das rendas reclamadas ou de fazer cessar a mora do arrendatário. Destarte, no caso, nada obsta a que se considere que a citação para os presentes autos, atento o pedido formulado, satisfaz o dever de notificação e interpelação ao pagamento exigidos pelos nºs 5 e 6 do art.º 1041º, do CC, dado que transmite todos os elementos a tanto necessários, como inclui a própria interpelação ao pagamento. Trata-se de uma interpelação judicial. E, assim sendo, não podemos deixar de concluir que o tribunal recorrido decidiu acertadamente ao condenar a fiadora, ora recorrente, solidariamente com o 1º réu a pagar aos autores as rendas vencidas a partir dos 90 dias anteriores à citação para a acção (e as que entretanto se venceram na pendência da acção), dado que quanto a este período foi respeitado o exigido pelos nºs 5 e 6 do art.º 1041º do CC, nos termos que já assinalados. Improcede, pois, a pretensão recursória formulada pela ré fiadora, mantendo-se a sentença recorrida. As custas do presente recurso são da responsabilidade da recorrente (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC). * IV. DecisãoPelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida. As custas do presente recurso são da responsabilidade da recorrente (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC). * * Guimarães, 18.12.2024 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira 1º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Afonso Cabral de Andrade 2ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Eva Almeida |