Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2968/20.1T8GMR.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRATO PROMESSA DE CESSÃO DE QUOTAS
ERRO DE CÁLCULO
DECLARAÇÃO DE VONTADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O vicio de deficiência de matéria de facto, que pode até ser conhecido oficiosamente pela Relação (cfr. artigo 662º n.º 2, alínea c) do CPC), podendo implicar a anulação do julgamento quando não constam do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, não determina a nulidade da sentença.
II - O erro material é uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real, apenas relevando para efeitos do artigo 249º do Código Civil, dando direito a retificação, o erro material que seja manifesto; e é manifesto o erro material que se revele no contexto do teor da declaração ou através das circunstâncias em que é feita.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA e BB intentaram contra CC e DD, a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo a condenação dos Réus a pagarem aos Autores a quantia de €549.824,58, acrescida dos juros de mora contados desde a citação para a presente ação, à taxa legal de 4% até efetivo e integra pagamento.
Para tanto alegam, em síntese, que o Autor e o Réu maridos eram sócios da sociedade EMP01..., Limitada (doravante: EMP01...), tendo o segundo prometido vender ao primeiro a quota de €125.000,00 de que era titular pelo preço de €1.400.000,00; esse negócio foi formalizado através de contrato-promessa celebrado em ../../2010, onde se convencionou que o preço seria pago, entre o mais, através das quantias de €400.000,00 e €248.093,28; essas quantias resultariam do vencimento, em 29/07/2010 e em 11/08/2010, de aplicações financeiras (designadas por ... 2 e ... Ltd), de que Autores e Réus eram titulares no Banco 1..., SA (doravante: Banco 1...)
Mais alegam que o contrato-promessa enferma de manifesto lapso ou vício de cálculo, uma vez que, sendo titulares e possuindo os Autores e os Réus, em comum e partes iguais, essas duas aplicações financeiras, com o montante total de €1.099.649,15, aqueles eram donos, cada um, do montante de €549.824,575; os Réus, após a utilização de €648.098,28 para pagamento aos Autores, retiveram a quantia remanescente das ditas aplicações financeiras, no total de €451.555,87.
Concluem, assim, que os Réus se apropriaram da quantia de €549.824,575, correspondente a metade do valor das aplicações financeiras, sua propriedade.
Regularmente citados, os Réus apresentaram contestação na qual, em súmula, alegaram que beneficiando de uma menor eficiência do sistema tributário, o Autor e o Réu maridos abriram, em nome pessoal, contas paralelas à sociedade comercial EMP01..., por eles constituída; que os montantes depositadas nessas contas eram fruto de proveitos da identificada sociedade e nessas contas, eram realizados movimentos do interesse mercantil da sociedade.
Que ao longo do tempo, por força do seu incremento, o Autor marido decidiu aplicar parte do dinheiro em contas de depósitos a prazo e poupanças: em 25/01/2010, a sociedade, através da conta paralela dos sócios aberta no Banco 1..., era titular em carteira das aplicações ... 2 (no valor de €550.000,00) e ... Ltd (no valor de €554.008,13).
Que as relações entre os sócios (Autor e Réu maridos), entretanto, degradaram-se e foram estabelecidas negociações entre as partes que desembocaram no contrato-promessa de cessão de quotas aludido na petição inicial, tendo sido trocadas, no decurso dessas negociações, propostas entre as partes, que incluíram o valor das aplicações financeiras e que os Autores apenas aceitaram celebrar a escritura definitiva de cessão de quotas após terem obtido o recebimento dos quantitativos acordados no mencionado contrato-promessa, após terem garantido a extinção das contas caucionadas e os valores que haveriam de receber no futuro e, bem assim, depois de formalizado o contrato de arrendamento e estipulado o valor de renda referente ao pavilhão de que os Réus maridos são comproprietários e que sempre foi utilizado pela sociedade EMP01....
Mais alegam que o Autor marido nunca insistiu nem equacionou que os valores das aplicações financeiras eram pertença dos sócios (em igual medida) e nunca esteve equivocado quanto aos termos do negócio celebrado, tanto assim que, em 22/10/2010, dirigiu uma comunicação à gerência da referida a solicitar o levantamento das suas responsabilidades e apenas o valor em falta de €1.800,00; mais tarde, o Autor marido dirigiu outras comunicações, numa delas tendo reclamado o pagamento da quantia de €277.100,00, correspondente a metade do valor da aplicação financeira de €554.200,00, e não já sobre a outra aplicação de €550.000,00.
Que o Autor marido, após a resposta do Réu, veio ainda, por intermédio de Ilustre Causídico, reclamar dos Réus a quantia de €677.100,00, correspondente aos €277.100,00 (de metade da aplicação da qual já teria recebido €248.093,28) e ainda €400.000,00 da venda do pavilhão, verificando-se que, agora, os Autores alegam já que não são credores desses montantes, mas antes da quantia de €549.824,575.
Nessa sequência, pediram a condenação dos Autores como litigantes de má-fé, por, no seu entender, os Réus virem reclamar uma pretensão que sabem não ter direito, no pagamento de multa e de uma indemnização a favor dos Réus no montante de €10.000,00.
Os Autores apresentaram o articulado de resposta onde reiteraram que o dinheiro/aplicações financeiras aludidas na petição inicial eram propriedade dos Autores e dos Réus em partes iguais, por força de o Autor e o Réu maridos, ao longo dos anos e de comum acordo, sempre terem feito seus, retirando para si e para o seu agregado familiar, parte dos lucros produzidos pela sociedade, uma vez que não tinham outra fonte de rendimento, tendo optado, também de comum acordo, por terem aqueles seus dinheiros em conta conjunta, para assim reunirem uma maior quantia e, dessa forma, beneficiarem de melhores condições e maiores taxas de juros, auferindo maior rentabilidade.
Disseram ainda que a sociedade não foi avaliada com tal dinheiro, mas apenas com o património que tinha nos termos da contabilidade e com o valor do negócio que gerava, que sempre foi muito bom e rentável.
Por fim, exerceram o contraditório quanto ao pedido de condenação como litigantes de má-fé e pronunciaram-se sobre os documentos juntos com a contestação.
Foi proferido despacho saneador, em 08/11/2020, e foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, sem que tenha havido reclamação das partes.
Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:
“Em face do exposto:
i) Julga-se a ação totalmente improcedente, absolvendo-se, em consequência, os Réus do pedido;
ii) Julga-se improcedente o pedido de condenação dos Autores como litigantes de má-fé.
Por força do respetivo decaimento, as custas da presente ação são da responsabilidade dos Autores (cfr. artigo 527.º/1/2, do CPCiv).
Registe e notifique.”
Inconformados, apelaram os Autores da sentença concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“1. Na fixação da matéria de facto provada, não pode o Julgador atender apenas aos factos que suportam a versão que considera aplicável, mas sim a todos os factos relevantes, para a boa decisão da causa;
2. O Tribunal a quo expurgou da matéria em discussão todos os factos alegados pelos AA., uns fundamentais da causa de pedir, outros instrumentais, que abstratamente pudessem permitir o recurso a presunções legais e judiciais sobre a titularidade dos dinheiros existentes nas aplicações financeiras identificadas no artigo 1.º da petição inicial, designadamente a matéria dos artigos 7.º a 10.º da petição inicial e os artigos 5.º, 6.º e 12.º a 17.º da resposta à contestação;
3. Deve, em consequência, anular-se a douta sentença recorrida, com vista ao aditamento à matéria de facto dos artigos 7.º a 10.º da petição inicial e dos artigos 5.º, 6.º e 12.º a 17.º da resposta à contestação;
4. Os AA. impugnam a decisão da matéria de facto das alíneas a), k) e l) dos factos provados e m) e n) dos factos não provados, desde já consignando que este conjunto de factos não pode ser apreciado separadamente, havendo necessidade da sua impugnação em conjunto já que os meios de prova que impõem decisão distinta são exatamente os mesmos;
5. Entendem os AA., pelas razões plasmadas nas conclusões infra, que aquela matéria foi incorretamente julgada pela 1.ª instância, impondo as regras do ónus da prova e a prova produzida uma decisão bem diferente, a saber:
a) Provado que, em 31 de Março de 2010, os AA. e os RR. possuíam, em comum e partes iguais, duas aplicações financeiras, sediadas no Banco 1..., a saber:
- ...04,  ...         2,        no montante de €550.000,00, com início em 29/07/2009 e vencimento em 28/07/2010;
- ...77, ... Ltd 11/02/2041, no montante de €549.649,15; - Cfr. teor do documento que se junta sob o n.º 1;
k) Não provado.
l) Não provado.
m) Provado que, o A. e o R. marido, ao longo dos anos e de comum acordo, sempre fizeram seus, retirando para si e para o seu agregado familiar, parte dos lucros produzidos pela sociedade, uma vez que não tinham outra fonte de rendimento (artigo 8.º da resposta)
n) Provado que, optaram o A. e o R. marido, também de comum acordo, por terem aqueles seus dinheiros em conta conjunta, para assim reunirem uma maior quantia e, dessa forma, beneficiarem de melhores condições e maiores taxas de juros, auferindo maior rentabilidade (artigo 9.º da resposta)
6. A presunção de contitularidade em partes iguais do dinheiro depositado, embora se não encontre genericamente afirmada na lei para os casos de depósitos bancários com pluralidade de titulares, pode retirar-se do regime definido pelos art.os 512.º e 516.º do Código Civil, relativos às “obrigações solidárias”, de tal ordem que, em caso de pluralidade de credores solidários, nas relações entre si, presume-se que os credores solidários comparticipam em parte iguais no crédito;
7. Sendo os AA. e RR. titulares nas aplicações financeiras identificadas em a) dos factos provados, e alegando os RR., em sua defesa, que a propriedade da quantia depositada é de terceiro (no caso, a sociedade “EMP01...”), os AA. beneficiam da presunção da compropriedade de tais quantias, sendo os RR. que estão onerados com a sua elisão.
8. O depoimento de EE é um exercício de “opinião” e um “depoimento de favor” às pessoas (no caso, os RR.) que ainda atualmente usam dos seus serviços de contabilista, sendo os seu depoimento “imprestável”, na medida em que não teve qualquer intervenção nas negociações entre os sócios e nem sequer avaliou a sociedade “EMP01...” à data da cessão de quotas;
9. Quanto à origem e titularidade do dinheiro utilizado na constituição das aplicações financeiras descritas em a) dos factos provados, é o próprio Tribunal a quo que relativiza a importância dos depoimentos de FF, GG e HH, quando depois de analisar os movimentos financeiros das contas bancárias de onde provieram os saldos, domiciliadas no Banco 2... e Banco 1..., tituladas por AA. e RR., conclui que existiam muitos outros movimentos, não associados à atividade da empresa, designadamente, a favor dos próprios AA. e dos RR.;
10.Não têm os AA. forma de apresentar, como pretendido pelo Tribunal a quo, documentos comprovativos da distribuição de lucros, pois esta distribuição ocorria à margem da contabilidade da empresa e da administração fiscal;
11.Aliás, conclusão a que também chegou o Tribunal a quo, quando acredita na versão dos RR. de que “o Autor e Réu marido abriram contas em seu nome pessoal, que serviam tanto para depósitos de receitas não declaradas da sociedade EMP01... como para a realização de despesas à margem da contabilidade da empresa e da administração fiscal (o que designou por recebimentos / pagamento por fora”, o que, no fundo, é exatamente o mesmo que fora alegado pelos AA. de que estes, conjuntamente com os RR., retiravam para si os lucros ou proventos da atividade da EMP01... (precisamente à margem da contabilidade da empresa e da administração fiscal);
12.Contrariamente ao plasmado na motivação, os depoimentos de GG e HH, em nada abonaram a tese dos RR., pois enquanto esta expressamente admitiu que por si só passava o giro comercial objeto de fracturação, sendo os demais dinheiros processados pela colega GG, esta expressamente afirmou que o dinheiro existente nas contas do Banco 2... e do Banco 1... eram propriedade dos AA. e dos RR., dinheiro que estes amealharam durante a vida deles;
13.A motivação do Tribunal a quo, a preceito da decisão da matéria de facto das alíneas a), k) e l) dos factos provados e m) e n) dos factos não provados, é um contra-senso:
a. O Tribunal a quo conclui que os saldos bancários das contas do Banco 2... e Banco 1... são da sociedade “EMP01...”, quando aquelas são tituladas por AA. e RR. e revelam inúmeros movimentos, não apenas associados à sociedade “EMP01...”, mas também à vida quotidiana dos AA. e dos RR.;
b. O Tribunal a quo conclui que os AA. e RR. não tinham outra atividade e também não retiravam para si os lucros ou proveitos da sociedade “EMP01...”, pelo que ficamos sem saber do que viviam…
c. O Tribunal a quo conclui que dos juros das aplicações financeiras referidas em a), os Autores e os Réus retiravam as mesadas para os filhos, mas ainda assim considera “normal” que seja a aludida sociedade a pagar a dita mesada;
d. Veja-se a motivação nas páginas 8 a 10 da douta sentença recorrida, que levou aos factos provados a), i) e p) e, a conclusão a que o Tribunal a quo chegou, na página 12, quando afirma que os recursos canalizados para as aplicações tiveram origem, pelo menos quanto aos montante de €550.000,00 e de €400.000,00, em contas tituladas pelos AA. e RR. (e não pela sociedade”;
e. O Tribunal a quo olvidou por completo que entre os AA. e os Réu foi celebrado um contrato de cessão de quotas, mediante o qual os AA. cediam ao Réu a sua quota na sociedade “EMP01...”;
f. Se o dinheiro das aplicações financeiras é da “EMP01...”, temos que quem pagou o preço da cessão de quotas não foi o Réu, mas a sociedade;
g. Não há, nas cláusulas que compõem o contrato promessa de cessão de quotas, qualquer alusão no sentido de que o dinheiro das referidas aplicações financeiras seja da “EMP01...”, ou de que seria esta sociedade a pagar o preço da cessão em substituição dos RR..
14.O raciocínio expendido na motivação (que levou aos factos provados a), k) e l) é absolutamente irracional, desprovido de lógica, pois quem estava a “comprar” a quota dos AA. era o Réu, não era a sociedade.
15.Nos termos do contrato-promessa, o Réu é que tinha de pagar o preço da sessão, não era a sociedade.
16.É evidente que, no contexto das negociações havidas entre os AA. e os RR., que culminaram no contrato-promessa de cessão de quotas descrito em c) dos factos provados, os meios de pagamento não foram considerados ativos da sociedade, pois quem paga o preço da cessão é o adquirente da quota;
17.A prova produzida pelos RR. foi assim inidónea à elisão da presunção da titularidade e compropriedade das referidas contas bancárias;
18.Não obstante, os AA. produziram prova sólida no sentido de que o contrato promessa de cessão de quotas enferma de manifesto lapso e vício de cálculo, uma vez que, sendo titulares e possuindo os AA. e os RR., em comum e partes iguais, as duas aplicações financeiras descritas em a) dos factos provados, no montante total de €1.099.649,15, os AA. e os RR. eram titulares e donos, cada um, do montante de €549.824,575:
a. O depoimento de GG, que afirmou que o dinheiro existente nas contas do Banco 2... e do Banco 1... eram propriedade dos AA. e dos RR., dinheiro que estes amealharam durante a vida deles;
b. O depoimento do Réu marido, incapaz de explicar a origem do dinheiro das aludidas contas;
c. O depoimento de II, que não obstante ser filha dos RR., explicou de forma clara, detalhada e precisa que os AA. (seus pais) e os RR. (seus tios), tiravam e distribuíram entre si os lucros da sociedade “EMP01...” e, ainda, tinham atividade imobiliária própria, à margem daquela sociedade, o que tudo lhes permitiu, ao longo da        vida, amealhar as avultadas quantias           de dinheiro que, eventualmente, deram origem às aplicações financeiras identificadas em a) dos factos provados, cujos juros gerados serviam, designadamente, para as mesadas dos respetivos filhos;
d. O depoimento de JJ, filho dos RR., que expressamente admitiu que os seus tios (AA.) e os seus pais (RR.), faziam seus os lucros e proventos da “EMP01...”, pois não tinham outra fonte de rendimento.
19.Tudo somado, impõe-se a alteração da decisão das alíneas a), k) e l) e m) e n) da matéria de facto nos termos e com a redação constante da conclusão 5.;
20.De acordo com o princípio contido no artigo 249.º do Código Civil, o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, dá direito à retificação desta.
21.Tal erro pode ser retificado (ao abrigo do cit. art.º 249.º do Código Civil) se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto: é preciso que, ao ler o texto logo se veja que há erro e logo se entenda o que o interessado queria dizer.
22.O contrato promessa de cessão de quotas celebrado entre AA. e RR. enferma de manifesta lapso e vício de cálculo:
a. Os AA. celebraram com os RR. um contrato de cessão de quotas.
b. Nos temos desse contrato, os RR. adquiriram aos AA. uma quota que estes detinham em sociedade comercial, por determinado preço que se obrigaram a pagar.
c. Em contratos onerosos, como o em causa nos autos, quem paga o preço é o “adquirente” ou “cessionário”.
d. Não pode, obviamente, fazê-lo com dinheiro que é do “alienante” ou “cedente”.
23.Sendo titulares e possuindo os AA. e os RR., em comum e partes iguais, as duas aplicações financeiras supra descritas no artigo 1.º, no montante total de €1.099.649,15, os AA. e os RR. eram titulares e donos, cada um, do montante de €549.824,575;
24.Como tal, os RR. não podiam pagar aos AA., com dinheiro proveniente das aludidas aplicações financeiras, quantia superior a €549.824,575, mas o certo é que utilizaram para o efeito montante total de €648.098,28, assim utilizando €98.273,705 que eram propriedade dos AA.;
25.Tratando-se de um contrato-promessa de cessão de quota, ao ler o seu clausulado logo se vê que há erro e logo se entende que os AA. não pretenderam “pagar a si próprios” o preço da cessão que fizeram aos RR., mas antes quiseram receber dos RR. o respetivo preço;
26.Os RR. não só “pagaram” aos AA. o preço da cessão com dinheiro que era destes, como ainda retiveram a quantia remanescente das ditas aplicações financeiras, no total de €451.555,87, que ficou na sua posse, quando tal montante também é propriedade dos AA.;
27.Ou seja, do preço da cessão de quotas (€1.400.000,00) os RR. apenas pagam aos AA. a quantia de €850.180,425 (€76.906,72 + €150.000,00 + €125.000,00 + €400.000,00 + €98.273,705);
28.Pelo que os RR. ainda devem aos AA. a quantia de €549.824,575, que corresponde, simultaneamente, à metade das aplicações financeiras supra descrita no artigo 1.º, de que os RR. se apropriaram e que é propriedade dos AA.
29.A douta sentença recorrida viola o artigo art.º 607.º, n.º 4 do CPC e os art.os 249.º, 349.º, 350.º, n.º 1, 512.º e 516.º do Código Civil.”
Pugnam os Recorrentes pela integral procedência do recurso, e pela revogação da sentença recorrida, a qual deve ser substituída por acórdão que julgue a ação totalmente procedente, condenando os Réus a pagar aos Autores a quantia de €549.824,58, acrescida dos juros de mora contados desde a citação para a presente ação, à taxa legal de 4% até efetivo e integra pagamento, com as legais consequências.
Pelo tribunal a quo foi admitido o recurso e proferido o seguinte despacho:
“Por a decisão ser recorrível, por ser tempestivo e ter sido apresentado por quem tem legitimidade e interesse em agir para o efeito e, ainda, ter sido autoliquidada a respetiva taxa de justiça, admite-se o recurso interposto pelos AA da sentença proferida a 01.12.2023, que não mereceu resposta (contra-alegações) dos RR, recurso esse que é de apelação, com subida imediata e nos próprios autos e com efeito devolutivo, tudo nos termos e ao abrigo do disposto nos art.ºs 629.º, n.º1, 638.º,  644.º, n.º1, al. a), 645.º, n.º1, al. a), e 647.º, n.º1, do Código de Processo Civil.  Mais considera-se não haver nulidades a suprir, designadamente a apontada omissão de pronuncia sobre factualidade alegada nos articulados, dado a mesma não assumir, contrariamente ao defendido, relevância para a boa decisão da causa, como se escreveu na sentença.  
Notifique.
*
Subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães para apreciação da instância recursiva.”.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo Recorrente, são as seguintes:

1 - Saber se há erro no julgamento da matéria de facto, concretamente quanto aos pontos a), K) e l) dos factos provados e os pontos m) e n) dos factos não provados e se deve ser anulada a sentença para ampliação da matéria de facto;
2 - Saber se há erro na subsunção jurídica dos factos.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:

Oriundos da petição inicial e da resposta:
a) Em 31.03.2010, os Autores e os Réus eram titulares de duas aplicações financeiras, sediadas no Banco 1..., com a seguinte identificação:
1.ª- ...04, ... 2, no montante de € 550.000,00, com início em 29.07.2009 e vencimento em 28.07.2010;
2.ª- ...77, ... Ltd 11/02/2041, no montante de € 549.649,15.
b) Por documento particular denominado “contrato promessa de cessão de quotas”, com o conteúdo que consta de fls. 9 a 11, datado de 14.05.2010, os Autores prometeram ceder ao Réu marido, que, por sua vez, lhes prometeu adquirir, uma quota do valor nominal de € 125.000,00, na sociedade comercial por quotas EMP01..., NIPC ...22, de que era titular o Autor marido na referida sociedade comercial.
c) Na cláusula 3.ª do acordo mencionado em b) consta o seguinte:
“O preço da prometida cessão será de 1.400.000,00 € (um milhão e quatrocentos mil euros), que os primeiros e o segundo outorgante contratante marido acordaram ser pago da seguinte forma:
-  € 76.906,72, de imediato, através da retirada de suprimentos que o primeiro outorgante marido detém na sociedade EMP01..., Limitada.
- € 150.000,00, através da venda das frações ..., ... e ..., localizadas no prédio urbano situado na Praça ..., ..., da freguesia ... (...), do concelho e ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... ... (...), afeto ao regime da propriedade horizontal, que se encontram registadas a favor da sociedade comercial por quotas com a firma “EMP02..., Lda.”, .... ...99, com sede no Lugar ..., lote ..., da freguesia ..., do concelho ..., de que os primeiro e segundo contratantes maridos são os únicos sócios gerentes, a favor do primeiro contratante marido, titulada por contrato promessa de compra e venda celebrado nesta data, cuja cópia se anexa e ficará a fazer parte integrante deste contrato.
- €125.000,00, que serão pagos pelo segundo contratante marido aos primeiros outorgantes, na data da celebração da escritura definitiva de que este contrato é promessa.
- €400.000,00, através do vencimento em 29.07.2010 de uma aplicação financeira de €550.000,00 que o primeiro e o segundo outorgantes maridos detêm no Banco 1..., e cujo montante de €400.000,00, acrescido dos juros vencidos referentes à aplicação de €550.000,00, na data do seu vencimento reverterá a favor dos primeiros contratantes, comprometendo-se o segundo outorgante marido a assinar os documentos necessários junto do aludido Banco para esse fim;
- €248.093,28, através do vencimento em 11.08.2010 de uma aplicação financeira de €554.200,00 que primeiro e segundo outorgantes maridos detêm no Banco 1..., e cujo montante de €248.093,28 na data do seu vencimento reverterá a favor dos primeiros contratantes, comprometendo-se o segundo outorgante marido a assinar os documentos necessários junto do aludido Banco para esse fim.
- €400.000,00, que serão pagos pelo segundo outorgante marido aos primeiros contratantes até ao dia ../../2011.”
d) Nos termos da cláusula 9.ª do acordo mencionado em b), a escritura definitiva de cessão de quotas seria celebrada até ao final do mês de maio de 2010.
e) Na cláusula 10.ª do acordo mencionado em b) consta o seguinte:
“O preço da escritura da cessão de quotas será feita pelo seu valor nominal, isto é: a cessão da quota dos primeiros contratantes ao segundo será feita por 125.000,00 €; e a cessão da quota dos segundos contratantes ao terceiro e quarto outorgantes, respetivamente, será feita por 25.000,00 € cada.”
f) Os Autores e os Réus celebraram a escritura definitiva de cessão de quotas no dia 17.05.2010, exarada de fls. 109 a 110 verso, do Livro n.º ...0-C, do Cartório Notarial da notária KK, situado na Praceta ..., ..., concelho ....
g) Os Autores receberam o montante total de € 648.098,28, proveniente das aplicações referidas em a), nos termos da cláusula 3.ª referida em c).
h) Após o mencionado em g), os Réus retiveram a quantia remanescente das ditas aplicações financeiras.
i) O dinheiro utilizado para a constituição de uma das aplicações financeiras referida em a) inicialmente estava no Banco 2... (doravante: Banco 2...), tendo sido transferido para o Banco 1....
j) Dos juros das aplicações financeiras referidas em a), os Autores e os Réus retiravam as mesadas para os filhos.
Oriundos da contestação:
k) Os quantitativos monetários que permitiram a constituição das aplicações mencionadas em a) resultaram de proveitos da atividade da sociedade EMP01....
l) Nas negociações do acordo mencionado em b), as aplicações aludidas em a) foram consideradas enquanto ativo da sociedade EMP01....
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:

Oriundos da petição inicial e da resposta:

m) O Autor e o Réu maridos, ao longo dos anos e de comum acordo, sempre fizeram seus, retirando para si e para o seu agregado familiar, parte dos lucros produzidos pela sociedade EMP01....
n) O Autor e o Réu marido, também de comum acordo, por terem aqueles seus dinheiros em conta conjunta, para assim reunirem uma maior quantia e, dessa forma, beneficiarem de melhores condições e maiores taxas de juros, auferindo maior rentabilidade.
o) Os Autores já por diversas vezes solicitaram aos Réus a entrega daquelas quantias, no montante total de € 549.824,575.
p) A totalidade do valor utilizado na constituição das aplicações financeiras referidas em a) proveio de uma conta sediada no banco Banco 2....
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3.2. Da modificabilidade da decisão de facto
Sustentam os Recorrentes, arguindo a nulidade da sentença, que o tribunal a quo não selecionou todos os factos relevantes da causa de pedir, atentas todas as soluções de direito plausíveis, não constando da fundamentação de facto a matéria dos artigos 7º a 10º da petição inicial e dos artigos 5º, 6º e 12º a 17º da resposta.
Entendem os Recorrentes que a sentença recorrida deve ser anulada e aditar-se a matéria dos referidos artigos.
Vejamos se lhes assiste razão.
Dispõe o artigo 607º n.º 4 do CPC, que, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; que o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
A violação desta disposição não se encontra, por remissão expressa, contemplada nas hipóteses de nulidades da sentença previstas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 615º, do CPC.
Na verdade, o Recorrente também nada invoca por referência a este preceito.
 Dispõe o n.º 1 do referido artigo 615º que é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.
As causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas neste artigo 615º, conforme se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2017 (Processo n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1, Relator Conselheiro Alexandre Reis, disponível em www.dgsi.pt), “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei”.
As decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respetiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respetiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido artigo 615º.
As nulidades da sentença não se confundem, por isso, com o chamado erro de julgamento.
Ora, os Recorrentes, não obstante arguirem no ponto A) das suas alegações a nulidade da sentença, referem-se apenas ao facto de, em seu entender, a sentença recorrida não dar resposta a factos por si alegados que consideram relevantes, atentas todas as soluções de direito plausíveis.
No entanto, o vicio de deficiência de matéria de facto, que pode até ser conhecido oficiosamente pela Relação (cfr. artigo 662º n.º 2, alínea c) do CPC), podendo implicar a anulação do julgamento quando não constam do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, não determina a nulidade da sentença.
A eventual omissão da decisão de factos que fossem relevantes para a boa decisão da causa segundo as possíveis soluções jurídicas da causa poderia implicar uma necessidade de ampliação e até uma anulação da decisão da matéria de facto, e repetição do julgamento, mas já não a nulidade da sentença, pois trata-se de circunstâncias, de vícios e de regime diversos da nulidade da sentença.
O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem na nulidade da sentença, mas em erros de julgamento (v. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/03/2017, Processo n.º 7095/10.7TBMTS.P1.S1, Relator Conselheiro Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt). Ora, como já referimos, as nulidades da sentença não se confundem com o chamado erro de julgamento.
Não está, por isso, em causa, mesmo do ponto de vista da alegação dos Recorrentes e da sua pretensão, qualquer nulidade da sentença, mas um eventual vicio de deficiência de matéria de facto, que importa então apreciar.
Vejamos.
Os artigos 7º a 10º da petição inicial têm a seguinte redação:
“7 – O contrato promessa descrito nos artigos 2.º a 6.º da petição inicial enferma de manifesto lapso e vício de cálculo, uma vez que, sendo titulares e possuindo os AA. e os RR., em comum e partes iguais, as duas aplicações financeiras descritas no artigo 1.º da petição inicial, no montante total de €1.099.649,15, os AA. e os RR. eram titulares e donos, cada um, do montante de €549.824,575;
8 – Os RR. não podiam pagar aos AA., com dinheiro proveniente das aludidas aplicações financeiras, quantia superior a €549.824,575, mas o certo é que utilizaram para o efeito o montante total de €648.098,28, assim utilizando €98.273,705 que eram propriedade dos AA.;
9 – Os RR. ainda retiveram a quantia remanescente das ditas aplicações financeiras, no total de €451.555,87, que ficou na sua posse, quando tal montante também é propriedade dos AA.;
10 – Do preço da cessão de quotas (€1.400.000,00) os RR. apenas pagam aos AA. a quantia de €850.180,425 (€76.906,72 + €150.000,00 + €125.000,00 + €400.000,00 + €98.273,705).”
Conforme se constata da simples leitura destes artigos, os mesmos não encerram matéria de facto, mas matéria conclusiva, uma vez que se trata, no essencial, de conclusões a retirar dos concretos factos provados.
Atente-se, aliás, que nos pontos g) e h) dos factos provados consta já expressamente que os Autores receberam o montante total de €648.098,28, proveniente das aplicações e que, após, os Réus retiveram a quantia remanescente das mesmas.
A este propósito cumpre referir que não consta do Código de Processo Civil preceito equivalente ao anterior artigo 646º n.º 4 que considerava “não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito”; atualmente prevê-se que a produção de prova em audiência tenha por objeto “temas da prova” e a opção recaiu em inscrever a decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, decidindo-a no momento da elaboração desta (artigo 607º n.º 3), eliminando o prévio julgamento da matéria de facto.
Conforme refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, 2014, p. 248 e 249) em face “desta modificação e ainda da opção de na mesma sentença se proceder à respetiva integração jurídica, segundo o método pendular que implica a ponderação conjugada de elementos de facto e de questões de direito, parece-nos defensável uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais que deixem a justiça à porta do tribunal. (…) Por isso a patologia da sentença neste segmento apenas se verificará em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como “matéria de facto provada” pura e inequívoca matéria de direito (…)”.
Assim, constando da seleção da matéria de facto questões de direito ou conclusivas, devem as mesmas ser consideradas não escritas, à semelhança do que dispunha anteriormente o Código de Processo Civil, o que resulta do disposto no atual artigo 607º, n.º 4, segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os factos que julga provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante suscetível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos (v. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2019, Processo n.º 109/17.1T8ACB.C1.S1, Relator Fernando Samões, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler que “I - Apenas os factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, embora lhe sejam equiparáveis os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, desde que não integrem o objeto do processo. II - Reveste natureza jurídico-conclusiva, cuja utilização não é neutra do ponto de vista valorativo da incapacidade da testadora, para efeitos de anulação do testamento, a afirmação de que esta não dispunha de capacidade para tomar decisões acerca da disposição do seu património, devendo ser havida como não escrita), sendo este o entendimento que tem sido seguido pela jurisprudência”).
Os artigos 5º, 6º e 12º a 17º da resposta têm a seguinte redação:
“5 – O dinheiro / aplicações financeiras descritas no artigo 1.º da petição inicial era dos AA. e dos RR. em partes iguais;
6 – As aplicações financeiras identificadas no artigo 1.º da petição inicial estavam tituladas não só pelo A. e R. marido, mas também pelas respetivas esposas;
“12 – Os AA. e os RR. suportavam o IRS decorrente da perceção dos juros remuneratórios de tais aplicações financeiras;
13 – Os AA. e os RR. foram informados de que o Banco 2... corria o risco de falir;
14 –  Por esse motivo, até considerando que o dinheiro estava aplicado em produtos de risco, os AA. e os RR., de comum acordo, decidiram transferi-lo para o Banco 1...;
15 – A sociedade não foi avaliada com tal dinheiro, mas apenas com o património que tinha nos termos da contabilidade e com o valor do negócio que gerava, que sempre foi muito bom e rentável;
16 – A sociedade tinha património, contas bancárias, dinheiro, equipamentos, clientela, créditos, etc.;
17 – Tendo sido esses os fatores que contribuíram para a sua avaliação.”
Quanto aos artigos 5º e 6º, para além do carater conclusivo que encerra a alegação constante daquele, importa referir que no artigo 1º da petição inicial os Recorrentes alegaram que:
“Em 31 de Março de 2010, os AA. e os RR. possuíam, em comum e partes iguais, duas aplicações financeiras, sediadas no Banco 1..., a saber:
- ...04, ... 2, no montante de €550.000,00, com início em 29/07/2009 e vencimento em 28/07/2010;
- ...77, ... Ltd 11/02/2041, no montante de €549.649,15”.
Pelo tribunal a quo foi julgado provado que em 31/03/2010, os Autores e os Réus eram titulares de duas aplicações financeiras, sediadas no Banco 1..., com a seguinte identificação: 1.ª- ...04, ... 2, no montante de € 550.000,00, com início em 29.07.2009 e vencimento em 28.07.2010; 2.ª- ...77, ... Ltd 11/02/2041, no montante de € 549.649,15 (ponto a).
Não se percebe, por isso, a alegação dos Recorrentes uma vez que a menção a que os Autores e os Réus eram titulares das aplicações, engloba também as mulheres.
Por outro lado, quanto à alegação dos artigos 13) e 14), consta já do ponto i) dos factos provados que o dinheiro utilizado para a constituição de uma das aplicações financeiras inicialmente estava no Banco 2... (doravante: Banco 2...), tendo sido transferido para o Banco 1..., e do ponto p) dos factos não provados que a totalidade do valor utilizado na constituição das aplicações financeiras sediadas no Banco 1... proveio de uma conta sediada no banco Banco 2...; carece pois de qualquer interesse para a decisão a proferir se a transferência do Banco 2... para o Banco 1... ocorreu por terem sido informados de que o Banco 2... corria o risco de falir e o dinheiro estar aplicado em produtos de risco.
Quanto à alegação constante dos artigos 15), 16) e 17) foi julgado provado pelo tribunal a quo (ponto l) que nas negociações do acordo subjacente ao denominado “contrato promessa de cessão de quotas”, as aplicações em causa foram consideradas enquanto ativo da sociedade EMP01..., o que corresponde ao alegado pelos Réus na sua contestação.
A alegação dos Autores, em resposta, de que a sociedade não foi avaliada com tal dinheiro, mas apenas com o património que tinha nos termos da contabilidade e com o valor do negócio que gerava, mostra-se contrária à matéria de facto constante de ponto l), e a alegação constante dos artigos 16) e 17) não se mostra relevante.
 Por último, quanto ao alegado no artigo 12) também não se mostra relevante porquanto resulta já dos factos provados que os Autores e Réus retiravam dos juros as mesadas para os respetivos filhos, beneficiando, por isso, dos mesmos.
Assim, os factos alegados e relevantes para a decisão a proferir, segundo as várias soluções plausíveis, em conformidade com os temas da prova elaborados (v. despacho proferido em 08/11/2020), segundo entendemos, constam da matéria de facto, não se mostrando necessário proceder à sua ampliação e menos ainda anular a sentença recorrida para esse efeito.
Sustentam ainda os Recorrentes que houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos a), k) e l) dos factos provados e os pontos m) e n) dos factos não provados.
Decorre do n.º 1 do artigo 662º do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do CPC, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Analisemos então os motivos da discordância dos Recorrentes quanto aos diversos pontos impugnados.

Os pontos a), k) e l) dos factos provados têm a seguinte redação:
“a) Em 31.03.2010, os Autores e os Réus eram titulares de duas aplicações financeiras, sediadas no Banco 1..., com a seguinte identificação:
1.ª- ...04, ... 2, no montante de € 550.000,00, com início em 29.07.2009 e vencimento em 28.07.2010;
2.ª- ...77, ... Ltd 11/02/2041, no montante de € 549.649,15.
k) Os quantitativos monetários que permitiram a constituição das aplicações mencionadas em a) resultaram de proveitos da atividade da sociedade EMP01....
l) Nas negociações do acordo mencionado em b), as aplicações aludidas em a) foram consideradas enquanto ativo da sociedade EMP01...”.
E os pontos m) e n) dos factos não provados têm a seguinte redação:
“m) O Autor e o Réu maridos, ao longo dos anos e de comum acordo, sempre fizeram seus, retirando para si e para o seu agregado familiar, parte dos lucros produzidos pela sociedade EMP01....
n) O Autor e o Réu marido, também de comum acordo, por terem aqueles seus dinheiros em conta conjunta, para assim reunirem uma maior quantia e, dessa forma, beneficiarem de melhores condições e maiores taxas de juros, auferindo maior rentabilidade”.
Sustentam os Recorrentes que o ponto a) deve ser julgado provado com a seguinte redação:
“a) Provado que, em 31 de março de 2010, os Autores e os Réus possuíam, em comum e partes iguais, duas aplicações financeiras, sediadas no Banco 1..., a saber:
- ...04, ... 2, no montante de €550.000,00, com início em 29/07/2009 e vencimento em 28/07/2010;
- ...77, ... Ltd 11/02/2041, no montante de €549.649,15; -Cfr. teor do documento que se junta sob o n.º 1”.
Os pontos k) e l) devem ser julgados não provados.

E os pontos m) e n) devem ser julgados provados com a seguinte redação:
“m) Provado que, o A. e o R. marido, ao longo dos anos e de comum acordo, sempre fizeram seus, retirando para si e para o seu agregado familiar, parte dos lucros produzidos pela sociedade, uma vez que não tinham outra fonte de rendimento (artigo 8.º da resposta);
n) Provado que, optaram o A. e o R. marido, também de comum acordo, por terem aqueles seus dinheiros em conta conjunta, para assim reunirem uma maior quantia e, dessa forma, beneficiarem de melhores condições e maiores taxas de juros, auferindo maior rentabilidade (artigo 9.º da resposta).”
Vejamos se lhes assiste razão.
Quanto ao ponto a) dos factos provados pretendem os Recorrentes alterar a sua redação apenas para que passe a constar “possuíam, em comum e partes iguais”, em vez de “eram titulares”, reproduzindo na integra o alegado no artigo 1º da petição inicial; porém, saber se as aplicações lhes pertenciam em comum e partes iguais constitui no caso concreto questão de direito, pelo que bem andou o tribunal a quo ao julgar provado que os Autores e os Réus eram os titulares das duas aplicações, conforme prova documental constante dos autos. Como se lê na motivação exposta pelo tribunal a quo “quanto à titularidade da conta à qual se encontravam associadas as aplicações financeiras, resulta do extrato junto como documento n.º ... à petição inicial, de fls. 7 a 8, que ela tinha o NIB  ...3 (doravante, abreviadamente referida por conta n.º ...3).
Segundo as informações prestadas pelo EMP03..., SA (doravante: EMP03...), por ofícios entrados nos autos a 27.06.2022, 06.12.2022 e e-mail de 13.09.2022, que constam de fls. 186, 231 e 231/verso e 204/verso, respetivamente, e ainda tendo em conta as fichas de assinaturas relativas a essa conta, que constam de fls. 253 a 260, resulta que a conta n.º ...3 tinha a tipologia “DO ...” e era titulada pelos Autores e pelos Réus, o que se valorou na resposta à al. a), dos factos provados (na parte relativa à titularidade da conta à qual as aplicações estavam associadas).
No que se refere ao valor das aplicações financeiras em 31.03.2010, sobre que também versa a al. a), dos factos provados, atendeu-se ao extrato junto como documento n.º ... à petição inicial, de fls. 7 a 8, onde se refere, quanto à designada por ... 2, o montante de € 550.000,00 e, no que toca à denominada por ... Ltd, o quantitativo de € 549.649,15 (cfr. maxime fls. 7/verso)”.
Vejamos agora os pontos k) e l) dos factos provados e m) e n) dos factos não provados, os quais efetivamente se encontram diretamente relacionados.
A discordância dos Recorrentes prende-se com o facto do tribunal a quo ter dado como provada a versão apresentada pelos Réus de que os quantitativos monetários que permitiram a constituição das aplicações resultaram de proveitos da atividade da sociedade EMP01... e de que nas negociações do acordo as aplicações foram consideradas enquanto ativo da sociedade EMP01..., em detrimento da versão por si carreada para os autos (diga-se apenas na resposta apresentada à contestação) que o Autor e o Réu marido, ao longo dos anos e de comum acordo, sempre fizeram seus, retirando para si e para o seu agregado familiar, parte dos lucros produzidos pela sociedade, por não terem outra fonte de rendimento optando por terem aqueles seus dinheiros em conta conjunta, para assim reunirem uma maior quantia e, dessa forma, beneficiarem de melhores condições e maiores taxas de juros, auferindo maior rentabilidade.
E manifestam os Recorrentes, no essencial, ao longo das suas alegações a sua discordância relativamente à valoração da prova e à convicção formada pelo tribunal a quo, contrapondo a sua própria valoração.
Mas, e diga-se desde já, a prova há-de ser apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, com recurso às regras da experiência e critérios de lógica; “segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 384).
A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza; a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Atualizada, p. 435 a 436).
Está, por isso, em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
A este propósito o tribunal a quo pronunciou-se nos seguintes termos:
“Quanto à proveniência do dinheiro utilizado para a subscrição das aplicações financeiras, seja o mesmo advindo de depósito no Banco 2... seja advindo de depósito no Banco 1..., através das informações bancárias, por si só, não é possível apurar a respetiva origem. A mera referência a cheques, a depósitos, transferências, não permite evidenciar a materialidade da operação que justificou o ingresso de valores nas contas tituladas pelos Autores e pelos Réus.
A este respeito, como acima se mencionou, as partes alegaram, de modo divergente, que as quantias em dinheiro que serviram para a subscrição das aplicações provieram: de lucros retirados da sociedade EMP01... (os Autores) ou de proveitos da atividade comercial dessa sociedade (os Réus).
Nos termos do artigo 21.º/1,a), do Código das Sociedades Comerciais (CSCom), todo o sócio tem direito a quinhoar nos lucros. Por sua vez, o lucro do exercício, após o seu apuramento contabilístico, faz parte do relatório de gestão, o qual, nos termos do artigo 66.º/5,f), do CSCom, deve conter uma proposta de aplicação de resultados devidamente fundamentada. Acresce que, conforme dispõe o artigo 246.º/1,e), do CSCom, a distribuição de lucros depende de deliberação dos sócios.
Significa isto que a quantificação dos lucros obedece a regras contabilísticas e a sua distribuição depende da sua aprovação, tudo constituindo factos cuja demonstração carece de documentos escritos (provindos quer da escrituração contabilística quer da vida societária).
Ora, por um lado, o contabilista da sociedade, ouvido em audiência, EE, referiu que não existiu distribuição de lucros por parte da sociedade EMP01...; por outro lado, os Autores não desenvolveram nenhuma atividade no sentido da demonstração da aprovação e atribuição de lucros, o que redundou na inverificação de que as aplicações resultaram de dinheiros correspondentes a lucros que os sócios fizeram seus [al. m), dos factos não provados].
Acresce ainda que não foi evidenciado pelos Autores a existência de movimentos de dinheiro a crédito com origem em contas da sociedade comercial EMP01... com destino às contas tituladas pelos Autores e pelos Réus ou no Banco 2... (onde foi debitado o cheque de € 550.000,00 que serviu para a constituição da aplicação financeira ... 2), ou no Banco 1... (na conta de onde foi sacado o cheque de € 400.000,00, montante com o qual foi constituída a aplicação ... Ltd, ou na própria conta das aplicações).
Não obstante se ter inverificado a versão alegada pelos Autores quanto à proveniência do dinheiro – lucros provindos da sociedade comercial EMP01... – provou-se que as aplicações financeiras geravam juros que eram utilizados para mesadas dos filhos dos Autores e dos Réus, como alegado pelos Autores [al. j), dos factos provados].
Isso foi referido pela filha do Autor marido (II) e pelo filho do Réu marido (JJ), bem como pela antiga funcionária administrativa GG da sociedade EMP01..., depoimentos que, nessa parte, estão em congruência com o que resulta da leitura dos extratos bancários relativos à conta 940.23 (anteriores ao contrato-promessa), nos quais sobressai o saque regular de cheques no valor de € 600,00 (cfr., p. ex., 220 a 228, 229 e 229/verso, 273/verso a 280/verso; cfr. ainda fls. 533 e ss., para outros períodos temporais). Para além desse movimento regular, nesses extratos, figura ainda o débito do montante de € 250,00, o qual constituía, como mencionado pela testemunha GG, gratificação dos serviços que prestava ao Autor e Réu.
A existência desses movimentos – estranhos aos destinos da sociedade EMP01... – não tem a aptidão de alterar o decidido sobre a inverificação da alegação dos Autores acerca da proveniência do dinheiro canalizado para as aplicações. Não é pelo facto de os Autores e os Réus sacaram montantes regulares a favor dos seus filhos ou de terceiros, ou de existirem outros movimentos a seu favor, que daí se pode inferir que o dinheiro utilizado para as aplicações é decorrente de lucros obtidos na empresa. Uma coisa é o destino que era dado aos frutos gerados pelas aplicações financeiras; outra é a origem do dinheiro utilizado para a constituição das mesmas.
 A falta de demonstração de que o dinheiro aplicado nos produtos bancários provém dos lucros da sociedade não tem, contudo, como consequência automática. a prova da versão inversa alegada nos autos pelos Réus (ou seja, de que aquele foi gerado por força da atividade comercial daquela). Aliás, a indiciar o contrário, está, por um lado, o facto de os recursos canalizados para as aplicações terem origem (pelo menos, quanto aos montantes de € 550.000,00 e de € 400.000,00) em contas tituladas pelos Autores e Réus (e não pela sociedade) e está, por outro lado, a circunstância de a própria conta onde as aplicações foram constituídas ser também titulada por aqueles (e não pela sociedade).
Com vista à elisão da presunção que decorre dessa titularidade (formal) das contas bancárias, sustentaram os Réus que, beneficiando de uma menor eficiência do sistema tributário, o Autor e Réu marido abriram contas em seu nome pessoal, que serviam tanto para depósitos de receitas não declaradas da sociedade EMP01... como para a realização de despesas à margem da contabilidade da empresa e da administração fiscal (o que designou por recebimentos/pagamentos por fora).
O conjunto dos elementos de prova obtido – de natureza documental e de natureza testemunhal –, conjugado com o facto de o Autor e Réu maridos se dedicarem, apenas, à atividade profissional que desempenhavam na EMP01... (como é alegado, em consonância, pelas partes em 42.º, da contestação, e 8.º, da resposta), permite inferir que assim se passava.
Vejamos.
De um lado, como admitido pelas testemunhas ex-secretárias administrativas da EMP01... (GG e HH) fazia parte do arquivo documental da sociedade os elementos bancários relativos às contas domiciliadas no Banco 2... e no Banco 1... e, nesses elementos, essas funcionárias faziam anotações nos registos dos livros de cheques e conferiam os movimentos – é o que também resulta do confronto dos documentos de fls. 73/verso, 79/verso a 82, 84/verso, 87/verso a 94, 100/verso a 100/verso a 102, 106/verso, entre outros.
De referir, nesta sede, que a testemunha GG foi confrontada com os documentos n.º ..., de fls. 87/verso a 88, n.ºs 12 e 13, de fls. 79/verso a 80, e n.º 19, de fls. 73/verso, tendo reconhecido que as anotações constantes do primeiro são da sua autoria e que as constantes dos segundos contêm algumas que também são da sua autoria; foi ainda confrontada com o documento n.º ...0, de fls. 86, tendo reconhecido que o fax foi enviado pela própria. Por sua vez, a testemunha HH, quanto ao documento n.º ...1, de fls. 80 /verso a 82, referiu que os vistos que nele constam eram efetuados por GG; quanto ao documento n.º ...2, de fls. 80, mencionou que continha também anotações da sua colega de trabalho; e, quanto aos canhotos dos livros de cheques que lhe foram exibidos, reconheceu existirem também anotações suas.
Assim, esses depoimentos, que, nessa parte, tiveram por base o exercício de funções na empresa, permitiram a conclusão, acima avançada, de que a documentação relativa às contas debitadas nos montantes que serviram para a constituição das aplicações constava do arquivo da empresa (como também foi referido por JJ, filho dos Réus, que, antes de ser sócio da EMP01..., foi funcionário da mesma).  Aliás, parte dos extratos relativos às contas do Banco 2... (cfr., p. ex., 90/verso, fls. 285, 293/verso, 296/verso) e do Banco 1... (cfr., p. ex., fls. 80/verso a 82, 90, 93/verso a 94, 205 a 229/verso) encontram-se remetidos para “... Lote ...” ou “... 2” ou “LL, 94”, que corresponde à sede primitiva e atual da sociedade [cfr. certidão permanente de fls.  74 a 75, em particular a Insc. 1 Ap. ...08, onde se diz, quanto à sede, “Lugar ..., ...”, e a designação da sede atual (“Rua ...”)].                                                                                                                                                                                     
De outro lado, os saques efetuados sobre as contas do Banco 2... (do qual foi descontado o cheque de € 550.000,00) e do Banco 1... (com o n.º ...21) evidenciam que essas contas estavam afetas à gestão ordinária da empresa; para além das expressões utilizadas nos canhotos dos cheques (“p/sábados”; “p/ subsídios”, “salários”, “p/vendedores”), as testemunhas HH e GG identificaram, por referência a esses designativos, o nome de trabalhadores, prestadores de serviços e fornecedores da sociedade EMP01....
Refira-se que, embora no cimo dos canhotos dos cheques não se encontre mencionados os n.ºs de contas, é possível estabelecer a correspondência entre os mesmos e as contas do Banco 2... (de onde foi sacado o cheque de € 550.000,00 utilizado para a constituição das aplicações) e do Banco 1... (de onde foi debitado o montante de € 400.000,00 utilizado para a constituição das aplicações).
Vejamos.
A conta do Banco 2... em questão, como resulta do cheque de fls. 248, corresponde à que tem o n.º ...01 (doravante designada por n.º 001); e a conta do Banco 1..., conforme acima já referido, tem o n.º 1221.
Cruzando os extratos bancários dessas contas com os registos dos cheques, resulta que estes reportam-se àquelas. Por amostragem, quanto ao Banco 2..., a relação de cheques de fls. 102 (emitidos em dezembro de 2004) encontra-se refletida no extrato da conta do Banco 2..., relativa ao período de 01.12.2004 e 31.12.2004, com o n.º 001, de fls. 356; quanto ao Banco 1..., as anotações constantes do canhoto de fls. 546 (relativas ao ano de 2007/meses de junho a início de setembro), respeitantes ao cheque de € 400.000,00 em 22.06.2006 “P/ ...”, ao cheque de 08.06.2007, “P/ ...”, de € 5.000,00 (cfr. fls. 546) e ao cheque, em 26.11.2007, “P/ ...”, de € 2.000,00, correspondem a débitos registados no extrato da conta com o n.º ...21 nas datas respetivas, como resulta de fls. 505/verso, 520/verso, 524.
Pelo que, sendo as anotações dos livros de cheques fidedignas dos movimentos que se processavam nessas contas, resulta da sua leitura, conjugada com o que se adquiriu quer dos depoimentos das ex-secretárias administrativas quer ainda do depoimento do comercial FF (que referiu que, quando recebia o preço de material não faturado, entregava no escritório e que, no tempo do Autor e do Réu maridos na sociedade, recebia uma fatia do seu salário por fora), que as contas do Banco 2... e do Banco 1... estavam afetas à realização de transações relacionadas com a sociedade, mas que escapavam ao crivo da contabilidade e à declaração fiscal.
Isso não é prejudicado pelo facto por existirem, aqui e ali, nesses documentos, o registo de movimentos a favor dos sócios. Essa circunstância impede a afirmação que essas contas eram utilizadas exclusivamente no interesse da sociedade, mas não que a sua destinação essencial e predominante era a realização de transações contendentes com a atividade da sociedade.
Nesta sequência, em virtude de as contas do Banco 1... e do Banco 2..., de onde saíram as quantias de € 550.000,00 e de € 400.000,00 que serviram para a constituição das aplicações, estarem afetas ao giro comercial da sociedade comercial EMP01... [facto que, como se disse, se retira de a maioria dos débitos nelas lançados corresponderem a despesas relacionadas com a atividade da mesma e ainda de as funcionárias da empresa efetuarem o controlo dos movimentos nelas lançados] e em razão de o Autor e Réu exercerem apenas a atividade comercial naquela sociedade (como confessado por ambas as partes – artigo 8.º, da resposta; e artigo 42.º, da contestação), julgou-se provado que os quantitativos monetários utilizados para os produtos financeiros subscritos pelos Autores e Réus provieram da atividade daquela sociedade [al. k), dos factos provados], ainda que não se tenha apurado, quanto ao montante de € 150.000,00, a conta da qual foram sacados os cheques de € 75.000,00 (x2), que completam o valor duma das aplicações financeiras (vd. supra).
De modo muito relevante, concorreu nesse sentido a circunstância de ter sido demonstrado que, nas negociações estabelecidas entre as partes, e que desembocaram na celebração do acordo mencionado em b), as aplicações financeiras foram consideradas como um ativo da sociedade EMP01... [al. l), dos factos provados].
É que se as partes estipularam que, como contrapartida da promessa de cessão, o Autor receberia parte do produto dessas aplicações, ultrapassando a regra de metade [já que € 648.093,28 (€ 400.000,00+€ 248.093,28) supera 50% do valor total das aplicações], é porque o dinheiro utilizado teria de ter uma proveniência distinta daquela que resultava da sua titularidade formal. De outro modo, estar-se-ia a prever o cumprimento de um crédito através de meios pertencentes ao próprio credor (pelo menos na parte em que o montante recebido pelos Autores excedia o valor correspondente a metade das aplicações financeiras).
Não se ignora que os Autores, na petição inicial, interpretam a cláusula da forma de pagamento do preço em sentido inverso ao acabado de expor: segundo os mesmos, a previsão que existiu quanto à entrega ao Autor da quantia total de € 648.098,28 (€ 200.000,00+€ 248.098,28) enfermou, antes, de um erro ou vício de cálculo, já que, estando em causa dinheiro que lhe pertencia, não poderia aquele ser pago com fundos que já era seus.
Nos termos do artigo 249.º, do Código Civil (CCiv), o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que é feita, apenas dá direito à retificação desta.
O erro de cálculo tem de tratar-se de um lapso ostensivo  e de ser revelado no revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que é feita; salvo o devido respeito, o conteúdo das declarações de vontade contidas no contrato-promessa (ou seja, o contexto da declaração) e as circunstâncias em que as mesmas foram produzidas são contrárias à ocorrência de qualquer vício.
Como é consabido, em termos gerais, o sentido e o valor das declarações negociais deve ser alcançado através da hermenêutica jurídica, pontificando, em matéria de interpretação e a integração das declarações negociais, as regras dos artigos 236.º e 238.º, do CCiv.
Preceitua o artigo 236.º/1, do CCiv, que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. Depois, n.º 2, dessa disposição, determina que, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Consagra-se nessa disposição a doutrina da impressão do declaratário, ou seja, e nas palavras de Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 3.ª ed., 1999, p. 447, a doutrina de que “a declaração deve valer com o sentido de que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria; considera-se o real declaratário mas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como um declaratário razoável.”
Entre as circunstâncias a considerar, acrescenta esse autor, pp. 448 e 449, que “serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição de destinatário efectivo, teria tomado em consideração.
E, com apelo a Manuel Andrade, enuncia os seguintes exemplos de circunstâncias atendíveis:  “os termos do negócio; os interesses que estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros), os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (…)”.
Contudo, nos negócios formais – como é o caso –, segundo o artigo 238.º, do CCiv, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 1), a não ser que seja essa a real vontade das partes e não se lhe oponham as razões determinantes da forma (n.º 2).
Por outro lado, na atividade interpretativa, deve ter-se por subjacente o princípio da boa-fé, dado a lei impõe que, quer nos preliminares, quer momento da celebração do contrato (artigo 227.º, do CCiv), quer no seu cumprimento (artigo 762.º, do CCiv), as partes procedam de boa fé.
Isto considerado, atentemos no caso em apreço.
Na cláusula 3.ª, quando se enumera a forma de pagamento e se alude às aplicações financeiras, refere-se que estão em causa produtos detidos no Banco 1... pelos outorgantes maridos (aqui Autor e Réu maridos).
Essa expressão, no contexto em que foi utilizada, não teve, todavia, a aptidão de definir juridicamente a propriedade das aplicações, mas apenas de as identificar.
De uma parte, o significativo montante das aplicações incute que a negociação sobre o seu destino assumia um papel crucial nos termos do negócio, induzindo as regras da experiência comum à conclusão de que as estipulações que sobre elas incidiram foram objeto de ponderação cuidada, o que também se retira da sua precisão (quer quanto ao montante, quer quanto à data do seu vencimento).
De outra parte, interpretando globalmente a cláusula 3.ª, salvo melhor opinião, o que ali se consagra é uma cláusula atinente à divisão de património das sociedades EMP01... e EMP02..., L.da, de que o Autor e o Réu também eram sócios (cfr. certidão de fls. 74 a 75), pois que se prevê, para além da partilha de aplicações financeiras, a entrega de dinheiro resultante da transmissão de bens imóveis pertencentes à sociedade imobiliária (cfr. ainda cláusula 13.ª do contrato-promessa).
O preço propriamente dito a suportar pelo Réu correspondia à quantia de € 125.000,00, único que deveria ser solvido no ato da escritura pública, a realizar logo no mês de maio de 2010 – como o foi –, e antes do vencimento das aplicações e da transmissão dos bens (cfr. cláusulas 3.ª, 9.ª e 13.ª). As restantes parcelas convencionadas pela cessão da sua participação social constituíam crédito por suprimentos sobre a sociedade, de que esta era devedora, e verbas que resultariam da venda e/ou da promessa de venda  de bens da sociedade EMP02... e da divisão das aplicações financeiras, facto que vai de encontro à versão de que estas foram consideradas como um ativo patrimonial da sociedade na data da celebração do contrato-promessa.
Para lá do teor do documento, a respeito das circunstâncias que rodearam as negociações, decorreu da audição do depoente de parte (CC), do filho deste (JJ), da filha do Autor (II) que, a dado passo da vida da sociedade, por incompatibilidades familiares, os sócios decidiram pôr fim à relação societária que mantinham. Resultou também da audição destes, assim como das testemunhas ex-administrativas da EMP01... (GG e HH), que, desde a constituição até à deterioração das relações entre os sócios, o Autor marido liderava a área comercial e económico-financeira e o Réu marido ocupava-se da área de produção. A respeito da competência do Autor marido, quer as testemunhas ex-secretárias da empresa, quer o contabilista (EE), quer o comercial (FF), identificaram-no, sem flutuações, como um profissional astuto, inteligente, atento, difícil de enganar.
Ponderando essas características, e considerando que a celebração do contrato-promessa teve a precedê-la negociações entre as partes, onde os Réus foram representados por advogado (como referido. p.ex., por GG), e onde o Autor, nalgumas vezes, esteve acompanhado pela filha (II), que é advogada (como referido pela própria, embora refutando a sua intervenção nessa qualidade), mais adensa que as estipulações contempladas na promessa de cessão de quotas foram maturadas e precisas, afastando a versão quanto à existência de um vício de cálculo.
Neste sentido ainda, o contabilista da sociedade (EE) disse que, embora não tenha assistido a todas as negociações, que se protelaram por um período de seis meses, acompanhou a sua evolução e esteve presente nalgumas reuniões, tendo restado com a convicção de que as aplicações financeiras faziam parte do negócio, e que, de outro modo, a empresa não teria o valor que foi considerado para efeitos da cessão. Aliás, mencionou que o Autor marido, para indicar a sua avaliação da sociedade, referiu que a empresa tinha contas particulares de valor muito significativo, o que estava incluído no negócio.
Esta testemunha mencionou que, apesar de ter sido contratado como TOC pelo Autor marido, este opôs-se à sua presença numa assembleia geral da sociedade EMP02.... Esse facto não prejudicou a credibilidade que se conferiu ao seu depoimento, porque revelou conhecimento direto e o discurso mostrou-se espontâneo e congruente com os elementos documentais que constam dos autos e a que se foram fazendo referência (de mencionar que esta testemunha disse também que sabia da existência de recebimentos e pagamentos não declarados através de contas paralelas, cujo concreto montante desconhecia, onde inclusive eram efetuados descontos de letras de favor, e que o Autor lhe transmitia que essas contas permitiram acorrer a uma situação de crise).
Pelo que, tanto por força do texto da promessa como em razão das circunstâncias que as declarações foram emitidas, entende-se que as aplicações financeiras foram consideradas com um ativo patrimonial da sociedade EMP01..., o que reforça que, na sua constituição, estiveram proventos da atividade da mesma.
O facto de a interpretação realizada ter anexa falta de rigor da parte dos sócios quanto à definição das esferas patrimoniais das sociedades EMP01... e EMP02... não a põe em crise, na medida em que esse modo de atuar está acorde com a forma como foi efetuada a gestão das contas da sociedade EMP01..., efetuando-se movimentos a crédito e a débito relativos àquela, sem o tratamento contabilístico e legal devido, e por intermédio de contas tituladas em nome pessoal.
De referir, por fim, que não tem a aptidão de afastar a apreciação vinda de realizar sobre a proveniência do dinheiro utilizado nas aplicações financeiras os depoimentos prestados por II, filha dos Autores, nem de GG, ex-secretária administrativa da sociedade EMP01..., no sentido de que as contas tituladas individualmente pelos Autores e Réus eram contas pessoais, com dinheiros próprios, provindos de negócios particulares, designadamente da venda de imóveis, a que se reportaram.
Para além da proximidade com os Autores (a primeira testemunha por força da filiação; a segunda por ter beneficiado da ajuda da filha daqueles quando saiu da EMP01... para não ficar penalizada na reforma), e para além de os Autores terem referido, no artigo 8.º, da resposta, que a sua única fonte de rendimento eram os lucros da sociedade EMP01..., a celebração de negócios de compra e venda de bens de natureza imóvel é, por imperativo legal, reduzida a escrito e envolve, em regra, montantes significativos, cuja realização requer a utilização de meios de pagamento. Desse modo, a ter havido esses negócios, tratar-se-iam, nesse caso, de atos suscetíveis de comprovação documental, que, no entanto, não foram apresentados, pondo em crise a relevação probatória desses testemunhos.
A inverificação de que os quantitativos utilizados para a subscrição das aplicações provinham de lucros distribuídos pela sociedade EMP01... conduziu, do mesmo passo, à indemonstração de que existiu um acordo entre os sócios de os aplicar em produtos financeiros, em conjunto, para conseguir melhor rendimento ou taxas, já que uma coisa pressupunha a outra [e daí a al. n), dos factos não provados]. Acresce que essa versão não se concilia com o facto de existirem duas aplicações financeiras. É que, em caso de separação, qualquer um dos titulares podia subscrever, por si, uma ou outra das aplicações, tal como se encontravam domiciliadas no Banco 1..., uma vez que elas estavam divididas irmãmente, obtendo o mesmo rendimento.(…)”
Começamos por salientar que na motivação constante da decisão recorrida, o tribunal a quo esclareceu de forma crítica e exaustivamente fundamentada a formação da sua convicção, e indicou especificada e justificadamente os fundamentos decisivos para a mesma; de facto, analisou criticamente as provas produzidas e expressou de forma clara os motivos do seu julgamento, com fundamentos que também nós aqui acolhemos, designadamente esclarecendo porque considerou que os quantitativos monetários que permitiram a constituição das aplicações resultaram de proveitos da atividade da sociedade EMP01... e de que nas negociações do acordo as aplicações foram consideradas enquanto ativo da sociedade EMP01....
Ouvidas as declarações prestadas pelos Réus e pelas testemunhas, conjugadas com os documentos juntos aos autos, e analisada a prova de forma critica e à luz das regras da experiência comum, adiantamos desde já que nada permite concluir que a prova produzida aponte em sentido diverso da decisão que foi proferida em 1ª Instância, de forma a poder colocar-se em causa o princípio da livre apreciação da prova por parte do tribunal a quo, e a motivação constante da decisão recorrida.
Pelo contrário, a nossa convicção sobre os pontos de facto impugnados coincide inteiramente com a da 1ª Instância pelo que, perante a análise da prova e fundamentação que da mesma consta nada mais se nos mereceria acrescentar.
De todo o modo, em face das alegações dos Recorrentes, impõe-se-nos tecer algumas considerações, desde logo para esclarecer que efetivamente o “julgador não é ingénuo” e “conhece as regras da normalidade” e “o modo como no tecido empresarial português habitualmente se gerem as sociedades comerciais e os proventos da sua atividade” e a “economia paralela associada”, tal como confessado pelos Recorrentes, o que também ressalta da sentença recorrida.
Tal não significa que o tribunal deva considerar que essa “economia paralela associada” e o modo como no tecido empresarial português habitualmente se gerem as sociedades comerciais é o modo correto e legalmente previsto para essa gestão.
Na verdade, em nosso entender, o equivoco dos Recorrentes, e onde reside ao fim e ao cabo o ponto de discórdia relativamente ao decidido pelo tribunal a quo, é de considerarem que a existência de contas em nome dos sócios que serviam para encaminhar as receitas não declaradas, ou não faturadas, da sociedade ou para realizar despesas à margem da contabilidade da mesma e da administração fiscal, é exatamente igual a considerar-se que nessas contas eram depositados “lucros” retirados à margem da contabilidade.
Conforme convicção do tribunal a quo, que é também a nossa, os quantitativos monetários que permitiram a constituição das aplicações resultaram efetivamente de proveitos da atividade da sociedade EMP01..., ainda que retirados à margem da contabilidade e da administração fiscal; não pode é afirmar-se que correspondem a lucros da sociedade EMP01....
É que o apuramento de lucros e a sua distribuição seguem regras próprias previstas no Código das Sociedades Comerciais, tal como salientado na sentença recorrida, onde também se consignam não só as declarações do contabilista da sociedade, a testemunha EE (tendo-se procedido à sua audição entendemos também que o seu discurso se mostrou espontâneo e congruente com os elementos que constam dos autos, não vemos que de qualquer “depoimento de favor” conforme pretendem os Recorrentes) que afirmou a inexistência de distribuição de lucros, como a circunstância de a mesma não ter sido efetivamente demonstrada, não tendo os Recorrentes diligenciado sequer no sentido de demonstrar a distribuição de lucros, reconhecendo no presente recurso que efetivamente não teriam forma de apresentar documentos comprovativos da distribuição de lucros; é que, afinal, o que os Recorrentes denominam de “lucros” que Autores e Réus retiravam para si, não é mais do que os proveitos da sociedade obtidos à margem da contabilidade e da administração fiscal.
E relativamente às declarações prestadas pelas testemunhas FF, comercial, GG e HH, ex-secretárias administrativas da sociedade, II, filha dos Autores e JJ filho dos Réus não têm também a virtualidade, mesmo na parte respeitante aos pequenos excertos transcritos pelos Recorrentes, de por si só permitirem formar convicção contrária à da 1ª Instância; pelo contrário, analisadas as suas declarações, integralmente e não pequenos excertos, e conjugadas as mesmas com a prova documental constante dos autos, já exaustivamente indicada na motivação do tribunal a quo supra transcrita que, por manifestamente desnecessário, nos abstemos de novamente aqui reproduzir, e à qual os Recorrentes não fazem qualquer menção, é de concluir que as contas do Banco 2... e do Banco 1... estavam afetas à realização de transações relacionadas com a sociedade, mas que escapavam ao crivo da contabilidade e à administração fiscal.
Ao que não obsta, o facto resultado provado em face da prova produzida em audiência, designadamente das declarações das testemunhas II, JJ e GG, e constatado nos extratos bancários, de que os juros gerados pelas aplicações financeiras eram utilizados para mesadas dos filhos dos Autores e dos Réus, tal como alegado pelos próprios Recorrentes.
Tal não revela qualquer contrassenso ou incongruência, apenas vai de encontro ao que os Recorrentes alegam ser “o modo como no tecido empresarial português habitualmente se gerem as sociedades comerciais e os proventos da sua atividade”, e à forma como foi efetuada a gestão das contas e proventos da sociedade, sem o tratamento devido (contabilístico e legal) e por intermédio de contas tituladas em nome pessoal dos Autores e Réus, sendo que, conforme refere o tribunal a quo, não é pelo facto de que os Autores e os Réus sacaram montantes regulares a favor dos seus filhos ou de terceiros, ou de existirem outros movimentos a seu favor, que daí se pode inferir que o dinheiro utilizado para as aplicações é decorrente de lucros obtidos na empresa.
E essa forma de atuação tem ainda correspondência no modo como foi acordada a cessão de quotas e respetivo pagamento, e ainda no próprio texto do documento denominado Contrato Promessa de Cessão de quotas, do qual se não infere a existência de qualquer erro ou lapso, o que, conjugado ainda com as declarações das testemunhas ouvidas, leva a concluir que efetivamente as aplicações financeiras foram consideradas no negócio como um ativo da sociedade EMP01... ou, pelo menos, foram consideradas no acordo e no valor da empresa para a prometida cessão (v. as declarações da testemunha EE que afirmou que de outro modo a empresa não teria o valor que foi considerado para efeitos da cessão).
Na verdade, veja-se que as partes estipularam no acordo o recebimento, como pagamento da cessão, de parte do produto das aplicações em causa que ultrapassa desde logo a própria metade do seu valor, o que se percebe de imediato e de forma linear, pois tendo as aplicações o valor aí declarado de €550.000,00 e de €554.200,00, o valor de €648.093,28 excede os 50%, o que indicia efetivamente, tal como considerado pelo Tribunal a quo, que o dinheiro utilizado teria uma proveniência distinta daquela que resultava da sua titularidade formal, em nome dos Autores e dos Réus; acresce ainda que analisada a cláusula 3.ª do acordo parece efetivamente resultar da mesma a intenção de proceder à divisão de património das sociedades EMP01... e EMP02..., Lda., pois nela se prevê também, como modo de pagamento, a entrega de dinheiro resultante da venda de bens imóveis pertencentes a outra sociedade (sociedade imobiliária EMP02... Lda;  v. ainda cláusula 13.ª do contrato-promessa onde consta que como garantia do bom pagamento da quantia de €400.000,00 foi celebrado um contrato promessa  pelo qual esta sociedade prometia vender ao primeiro outorgante marido o prédio ai identificado).
Daqui decorre ainda que, não só o acordo foi seguramente objeto de grande negociação, como afasta a argumentação dos Recorrentes de que quem comprava era o Réu e não a sociedade, pelo que este é que tinha de pagar o preço da cessão, é que o preço segundo acordado era pago não só com dinheiro das aplicações, mas também com o produto da venda de imóveis pertencentes a outra sociedade, e corrobora a versão de que as aplicações foram consideradas como um ativo patrimonial da sociedade na data da celebração do contrato-promessa de cessão de quotas.
Tal como refere o tribunal a quo, a falta de rigor da parte do Autor e do Réu quanto à definição das esferas patrimoniais das sociedades EMP01... e EMP02... vai de encontro à forma como foi “efetuada a gestão das contas da sociedade EMP01..., efetuando-se movimentos a crédito e a débito relativos àquela, sem o tratamento contabilístico e legal devido, e por intermédio de contas tituladas em nome pessoal”  e ao que os Recorrentes consideram ser “o modo como no tecido empresarial português habitualmente se gerem as sociedades comerciais e os proventos da sua atividade”, mas não coloca em causa a análise e convicção formada pelo tribunal a quo, com a qual concordamos integralmente.
Inexiste, por isso, qualquer fundamento para alterar a redação do ponto a) e julgar não provados os pontos k) e l) dos factos provados, e nem para julgar provada a matéria dos pontos m) e n) dos factos não provados, nos termos pretendidos pelos Recorrentes.
Assim, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida pelo Tribunal a quo, conforme com a prova constante dos autos, mantêm-se inalterada a matéria de facto fixada em 1ª instância.
***
3.3. Reapreciação da decisão de mérito da acção

Tendo-se mantido a matéria de facto, tal como decidida pelo Tribunal a quo, importa agora decidir se deve ou não manter-se a decisão de mérito que, na parte que agora releva, julgou a ação totalmente improcedente e absolveu os Réus do pedido.
Na presente ação vieram os Autores peticionar a condenação dos Réus a pagar aos Autores a quantia de €549.824,58 (acrescida dos juros de mora contados desde a citação para a presente ação, à taxa legal de 4% até efetivo e integral pagamento) invocando que o contrato promessa de cessão de quotas enferma de manifesto lapso e vicio de cálculo uma vez que possuindo Autores e Réus as duas aplicações em comum e partes iguais eram titulares, cada um, do montante de €549.824,575, não podendo os Réus pagar a prometida cessão com valor superior a este, e nem reter o remanescente do valor das aplicações.
Vejamos se lhes assiste razão.
Importa começar por referir que a pretensão dos Recorrentes de ver alterada a decisão jurídica, mesmo na perspetiva destes, pressupunha a alteração da decisão de facto nos moldes por si pretendidos, pretensão que, conforme vimos, improcedeu, mantendo-se provado que os quantitativos monetários que permitiram a constituição das aplicações resultaram de proveitos da atividade da sociedade EMP01... (ponto k) e que nas negociações do acordo as aplicações aludidas em a) foram consideradas enquanto ativo da sociedade EMP01... (ponto l), o que desde logo afasta a pretensão dos Recorrentes de receber dos Réus a quantia de €549.824,58, correspondente a metade do valor das duas aplicações financeiras.
Não merece, por isso, qualquer censura a sentença recorrida que assim o decidiu, a qual se pronunciou nos seguintes termos:
“(…) Conforme é consabido, a questão da propriedade do dinheiro depositado é distinta da sua titularidade, assim como do regime da sua movimentação (cfr., entre outros, Acórdão do STJ, de 24.05.2022, proc. n.º 4482/20.6T8LSB.L1.S1; Acórdão do TRG, de 03.02.2022, proc. n.º 1293/20.2T8VRL.G1; Acórdão do TRL, de 21.06.2022, proc. n.º 3840/21.3T8LSB.L1-7, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Conforme se escreve no Acórdão do STJ, de 04.06.2013, proc. n.º 226/11.1TVLSB.L1.S1, também disponível em www.dgsi.pt:
“I - Apesar de qualquer dos contitulares duma conta de depósitos à ordem ter, perante o banco, o direito de dispor da totalidade do dinheiro que constitui o objeto do depósito, na respetiva esfera patrimonial só se radica um direito próprio sobre o numerário se, efetivamente, lhe couber, como proprietário, qualquer parte no saldo de depósito, e só dentro dos limites dessa parte;
II - São inconfundíveis e independentes, a legitimidade para movimentação da conta, inerente à qualidade de contitular inscrito no contrato de depósito e dela diretamente decorrente, e a legitimidade para dispor livremente das quantias que a integram, esta indissociável do direito de “propriedade” sobre as quantias depositadas (desconsiderando-se aqui a natureza irregular do depósito bancário e o seu efeito de transferência para o depositário da propriedade do dinheiro) (…)” (destacado nosso).
Sendo assim, perante a distinção existente entre o direito de propriedade, de um lado, e o direito de crédito resultante da constituição da relação jurídica de depósito bancário, de outro lado, a primeira questão a apreciar consiste na titularidade do dinheiro que foi canalizado para as aplicações financeiras identificadas em a), dos factos provados.
Quanto a essa matéria, na petição inicial, os Autores omitiram a proveniência do dinheiro aplicado nos produtos financeiros; apenas no articulado de resposta, e no seguimento da contestação dos Réus (que alegaram que aquele era resultado de proveitos da sociedade constituída pelo Autor e Réu maridos designada por EMP01...), é que vieram invocar que, ao longo dos anos e de comum acordo, sempre fizeram seus para si e para o seu agregado familiar, lucros produzidos pela sociedade, uma vez que não tinham outra fonte de rendimento.
(…) Outrossim, resultou demonstrado que o dinheiro utilizado para as aplicações financeiras proveio do giro comercial da sociedade, ou seja, do produto de transações comerciais realizadas pela sociedade EMP01..., que não eram relevadas nem fiscal nem contabilisticamente (e, por isso, estava depositado em conta bancária em nome pessoal dos Autores e dos Réus).
Pelo que, à luz dos modos de aquisição do direito de propriedade previstos no artigo 1316.º, do CCiv, os Autores não provaram que os quantitativos em dinheiro utilizados para a subscrição das aplicações tenham constituído resultado de título de aquisição derivada ou outro modo de adquirir previsto na lei e, no inverso, os Réus demonstraram que aqueles constituíram contrapartidas de transações comerciais levadas a cabo pela sociedade de que o Autor e Réu maridos eram sócios.
De notar que é irrelevante que o Autor e Réu maridos, através de movimentos posteriores sobre frutos provenientes das aplicações financeiras, o tenham canalizado, em parte, para fins estranhos à sociedade, designadamente para mesadas dos filhos, já que o instituto da usucapião não tem aplicação no caso de depósitos bancários (Ac. do TRP, de 26.03.2019, proc. n.º 844/12.0TBVCD.P1, disponível em www.dgsi.pt).
Por outro lado, e contrariamente ao alegado pelos Autores, não se apurou que, na celebração do acordo mencionado em b), dos factos provados, tenha havido erro de cálculo na estipulação prevista na cláusula 3.ª do mesm.
Recorrendo às regras da hermenêutica jurídicas previstas nos artigos 236.º a 238.º, do CCiv, a que acima já se fez referência, da ponderação do conteúdo do contrato à luz da teoria da impressão do declaratório, e tendo em conta as circunstâncias que rodearam a sua celebração, antes resultou que, na cláusula 3.ª, as partes previram a divisão das aplicações financeiras, que foram pressupostas enquanto ativo da sociedade cuja quota foi prometida ceder. Consoante supra já se discorreu, só assim se compreende, por um lado, que as partes tenham previsto que o Autor receberia mais de metade do produto das aplicações financeiras e, por outro lado, que as partes tenham estabelecido que a escritura definitiva da cessão seria outorgada (no mês de maio de 2010) antes do vencimento das aplicações e antes da transmissão do dinheiro resultante da venda ou da promessa de venda de bens prevista no contrato-promessa.
Deste modo, o facto de os Réus terem retido a quantia sobrante das aplicações financeiras, após o Autor ter recebido as quantias de € 400.000,00 e € 248.093,28, não constituiu um ato violador do direito de propriedade destes, mas antes traduzindo o cumprimento de um contrato celebrado entre as partes, dotado de força vinculativa (cfr. artigo 406.º/1, do CCiv).
Deste modo, quer porque os Réus elidiram a presunção de que as aplicações financeiras pertenciam aos Autores e Réus em partes iguais, quer porque as partes celebraram, entre si, um contrato que versou sobre a divisão das aplicações financeiras (que já se mostra cumprido), improcede a presente ação.”
Insistem novamente os Autores no presente recurso que o contrato promessa de cessão de quotas celebrado pelas partes enferma de manifesto lapso e vicio de cálculo, alegando que os Réus adquiriram aos Autores uma quota que estes detinham por determinado preço que se obrigaram a pagar, que quem paga o preço é o adquirente e não pode fazê-lo com dinheiro que é do alienante ou cedente.
Ora, a alegação dos Recorrentes falece de imediato num dos seus pressupostos, é que não resultou demonstrado que o preço fosse pago com dinheiro seu: os quantitativos monetários que permitiram a constituição das aplicações resultaram de proveitos da atividade da sociedade EMP01... e que nas negociações do acordo as aplicações aludidas foram consideradas enquanto ativo da sociedade EMP01....
De todo o modo, impõe-se ainda dizer que do referido acordo (contrato promessa de cessão de quotas) não ressalta qualquer manifesto lapso ou vicio de cálculo.
Vejamos.
Nos termos do artigo 249º do Código Civil o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que é feita, apenas dá direito à retificação desta.
O erro material é uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real, apenas relevando para efeitos do referido artigo 249º, dando direito a retificação, o erro material que seja manifesto; e é manifesto o erro material que se revele no contexto do teor da declaração ou através das circunstâncias em que é feita.
O erro de cálculo tem, por isso, de tratar-se de um lapso ostensivo; o qual, face ao referido preceito, é corrigível em face do contexto ou das circunstâncias da declaração quando, ao ler-se o texto, se percebe de imediato que o interessado queria dizer outra coisa e o que queria efetivamente dizer.
Os lapsos materiais passiveis de retificação ao abrigo do referido artigo 249º, têm de resultar do teor do próprio documento em causa, subscrito pelas partes, e não se confundem com o erro obstáculo ou na declaração.
Ora, se as circunstâncias em que a declaração é efetuada não revelam a evidência do erro não há lugar a retificação.
In casu, o conteúdo das declarações de vontade contidas no contrato promessa de cessão de quotas e as circunstâncias em que as mesmas foram produzidas (designadamente que nas negociações do acordo as aplicações aludidas foram consideradas enquanto ativo da sociedade EMP01...) são contrárias à ocorrência de qualquer vício, sendo manifesto que não estamos perante uma hipótese de erro de cálculo ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto, revelado pelo próprio teor do contrato promessa em causa.
Em face de todo o exposto, improcede, pois, a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida.
As custas são da responsabilidade dos Recorrentes em face do seu integral decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
***
IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Guimarães, 23 de maio de 2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Alexandra Rolim Mendes (1ª Adjunta)
Paulo Reis (2º Adjunto)