Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
290/23.0T8VRL.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
PANDEMIA
ABUSO DO DIREITO
EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- É inequívoco que a pandemia representa uma alteração das circunstâncias e que integra, em abstrato, o quadro legal do artigo 437.º do Código Civil.
II- Sendo este um instituto de natureza tendencialmente subsidiária, importa previamente saber se a situação em causa não caberá em algum dos inúmeros outros institutos que o nosso ordenamento jurídico consagra para responder a questões relacionadas com perturbações da execução das prestações contratuais, como sejam: a impossibilidade; a frustração do fim da prestação em obrigações finalizadas; a mora do credor; a interpretação do contrato, entre outros.
III- A maior ou menor aplicabilidade do instituto da alteração das circunstâncias àquela crise pandémica/de saúde pública e com reflexos económico-financeiros e contratuais fortíssimos, resultará sempre da alegação levada a efeito, que não deve descurar a enunciação concreta e precisa de nenhum dos elementos, dependerá do risco próprio dos contratos, do seu conteúdo concreto e da legislação existente (de emergência ou não) que regule a matéria.
IV- A alteração anormal significa a imprevisibilidade para um contraente de informação e conhecimentos médios, pelo que pode acontecer que as partes não tenham previsto, mas se ela for previsível para quem tivesse o cuidado de se informar adequadamente, não pode dizer-se que estejamos perante uma “alteração anormal”, tal é o caso sub judicio, quando o estado de emergência era uma realidade presente à data da celebração e execução do contrato e, por essa razão, não era imprevisível.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I. Relatório ( que, em parte, transcrevemos):

“EMP01..., Lda., pessoa coletiva n.º ...93, com sede na ..., Sector ..., ... ..., intentou a presente ação declarativa de condenação contra EMP02... Unipessoal, Lda., pessoa coletiva n.º ...69, com sede no Lugar ..., ..., ..., ..., ... ..., peticionando que a Ré fosse condenada a: a) pagar à Autora a quantia de € 7 573,48 (sete mil quinhentos e setenta e três euros e quarenta e oito cêntimos), correspondente aos 335 kg de café que não adquiriu, acrescida de juros de mora à taxa máxima legal contados desde a data da citação até integral pagamento; b) entregar à Autora as 6 Mesas Interiores, 20 Cadeiras Interiores, 4 Bancos de Balcão, e Publicidade que recebeu a ../../2020, no perfeito estado de conservação em que foram recebidas, ou, em caso de impossibilidade de restituição das coisas no perfeito estado de conservação em que foram recebidas, a pagar à Autora a quantia de € 2 764,88 (dois mil setecentos e sessenta e quatro euros e oitenta e oito cêntimos) correspondente ao valor dessas mesmas coisas acrescida de juros de mora à taxa máxima legal contados desde a citação até integral pagamento.

Para tanto alegou, em síntese, que:

- No dia ../../2020, as partes celebraram um contrato de fornecimento de café e outros produtos, em regime de exclusividade, mediante a entrega antecipada de um desconto global;
- O contrato foi celebrado pelo prazo de 21 meses, tendo a Autora, a título de desconto, entregue à Ré o valor de € 2 698,50 (dois mil, seiscentos e noventa e oito euros e cinquenta cêntimos), correspondente a seis mesas interiores, vinte cadeiras interiores, quatro bancos de balcão e publicidade, somando-se ao valor do desconto € 66,38 (sessenta e seis euros e trinta e oito cêntimos);
- A Ré obrigou-se a adquirir à Autora a quantidade mínima de 420 quilos de café, lote «...», no período total de vigência do contrato, sendo que a Autora, como contrapartida e no pressuposto do cumprimento integral do acordo, concedeu-lhe um desconto de € 2 764,88 (dois mil, setecentos e sessenta e quatro euros e oitenta e oito cêntimos);
- As obrigações do contrato celebrado entre as partes têm subjacente a obrigação de aquisição mínima de café, em quantitativos mensais acordados, sendo, no termo do prazo, caso não seja adquirida a quantidade de café, considera-se incumprido o contrato, tendo a Autora o direito a receber, de imediato, o valor do café em falta, de acordo com os seus extratos de consumos e sem descontos;
- O prazo para aquisição da quantidade mínima de café, 420 quilos, terminou a 29 de fevereiro de 2022, tendo a Ré apenas adquirido 85 quilos, o que motivou a resolução do contrato.
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Após se ter verificado que a matrícula da Ré se encontrava cancelada, determinou-se a citação do seu sócio, AA, para, em sua substituição e ao abrigo do disposto no artigo 162.º do Código das Sociedades Comerciais, prosseguir a ação.
Regularmente citado, o Réu deduziu contestação, na qual alegou que o mobiliário e equipamento identificados pela Autora foram levantados por ... e, no que diz respeito ao consumo de café, confirmou que não adquiriu as quantidades previstas no contrato, no entanto, afirma que tal apenas aconteceu por causa da pandemia provocada pelo Covid-19.
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3. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

“julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência, condena-se o Réu, na qualidade de sócio liquidatário da dissolvida e primitiva Ré, a pagar à Autora a quantia global de € 8 217,76 (oito mil, duzentos e dezassete euros e setenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos desde a citação até efetivo e integral pagamento, absolvendo-se do demais peticionado.
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A responsabilidade pelo pagamento das custas processuais fica a cargo da Autora e do Réu, na proporção do respetivo decaimento, fixando-se em 20,51% para a Autora e em 79,49% para o Réu.
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Inconformado com esta decisão, veio o R interpor recurso, formula as seguintes conclusões (que se transcrevem):
“(…)
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A A apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto, e manutenção da sentença recorrida, apresentando as seguintes conclusões ( que se transcrevem):
(…)
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em:

1- Apreciar a decisão da matéria de facto, apurando se ela deve ou não ser alterada;
2- E, como consequência, se deve ou não ser mantida a decisão recorrida, o que passa pela análise das seguintes questões:
2.1. Se os pressupostos da figura da alteração anormal das circunstâncias estão preenchidos;
2.2. Se a Autora incorre em conduta abusiva do direito, tendo resolvido o contrato por incumprimento do Réu, por não ter consumido as quantidades de café a que se obrigou.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:

Factos provados:
1) Datado de ../../2020, a Autora, na qualidade de «Primeira Outorgante», e a Ré sociedade, na qualidade de «Segunda Outorgante» outorgaram um escrito denominado de        «PARCERIA COMERCIAL», donde fizeram constar, nomeadamente, o seguinte: «CONSIDERANDO QUE, A. A Segunda Outorgante quer consumir e publicitar, em regime de exclusividade, café e todos os produtos comercializados pela Primeira Outorgante da marca ...” no seu estabelecimento comercial, denominado ...” (…); b. O valor atribuído a título de desconto antecipado tem subjacente a quantidade de café contratada (…). Cláusula Primeira
1. A segunda outorgante obriga-se a adquirir, em regime de exclusividade à Primeira Outorgante, para consumo no seu estabelecimento produtos da marca ... em exclusividade e publicidade, a quantidade mínima de 420 (quatrocentos e vinte) Kg de café, fracionados pelo período de 21 (vinte e um) meses, durante o qual se obriga a publicitar a marca ..., a expensas daquele, em quantidades mensais mínimas e sucessivas de 20 (vinte) Kg de café marca ..., EMP03...” (…), vencendo-se a primeira na presente data e as restantes em iguais dias dos meses seguintes. 2. O preço de cada Kg de café Lote «...”, nesta data, de 14,58 € + IVA à taxa legal em vigor, podendo ser unilateralmente revisto e alterado pela Primeira Outorgante de acordo com o PVP.
Cláusula Segunda
Durante o período de vigência da presente parceria comercial, (…) a segunda outorgante obriga-se a não adquirir a terceiros, publicitar e consumir produtos concorrente (…).
Cláusula Terceira
1. No pressuposto único de cumprimento integral, escrupuloso e atempado das obrigações no seu conjunto a que a Segunda Outorgante se vincula e garantias pessoas e solidárias, (…), a Primeira Outorgante obriga-se a conceder-lhe – sendo esta a única obrigação correspondente às obrigações a Segunda Outorgante se vincula – um desconto de € 6,58 (seis euros e cinquenta e oito cêntimos) por cada Kg de café a que esta se vinculou no valor global de € 2 764,88 (dois mil setecentos e sessenta e quatro euros e oitenta e oito cêntimos) a ser pago, antecipadamente, sem revisão, da seguinte forma: a) € 2 698,50 (dois mil seiscentos e noventa e oito euros e cinquenta cêntimos) correspondente à afetação de 6 Mesas Interiores, 20 Cadeiras Interiores, 4 Bancos de Balcão, e Publicidade já escolhido e adjudicando, a entregar após solicitação. b) € 66,38 (sessenta e seis euros e trinta e oito cêntimos) correspondente ao valor residual dos equipamentos previstos na alínea anterior incluindo IVA (…). 3. Os bens descritos são propriedade da Primeira Outorgante até emissão do documento previsto na alínea b), o que a Segunda reconhece sendo esta responsável pela sua utilização, conservação e reparação, (…), obrigando-se a não as deslocar e autorizar o seu levantamento. Cláusula Quarta
1. As obrigações da presente parceria comercial têm subjacente a obrigação de aquisição mínima de café, em quantitativos mensais acordados, em regime de publicidade e exclusividade sendo que, no termo do prazo, caso não seja adquirida a quantidade de café, considera-se incumprido (…). Cláusula Quinta
A presente parceria comercial pode ser resolvida por qualquer das partes, nos termos gerais do direito por causa imputável a qualquer uma das Outorgantes, bem como ocorrendo, entre outras, alguma das seguintes circunstâncias imputável à Segunda Outorgante:
a) Ocorrendo a violação das obrigações estabelecidas no presente contrato, nomeadamente, as Cláusulas 1.ª, 2.ª e 4.ª; (…)
Cláusula Sexta
1. Consequência do incumprimento, total ou parcial da presente parceria comercial, por motivo imputável, objetiva ou subjetivamente à Segunda Outorgante, considera-se perdido o benefício do prazo concedido para aquisição do café, tendo a Primeira Outorgante o direito a receber de imediato o valor do café em falta, de acordo com os seus extratos de consumo, ao PVP e IVA em vigor, e sem descontos, à data do efetivo pagamento do mesmo
2. Nesta situação cessa qualquer obrigação da Primeira a qualquer desconto a conceder ou contrapartida que, à data do incumprimento não esteja vencida ou, estando fica excecionada.». (artigos 1 a 10.º, 16.º e 31.º da petição inicial e doc. 1 anexo ao referido articulado, cujo teor se dá por integralmente reproduzido)
2) O prazo para aquisição da quantidade mínima de 420 (quatrocentos e vinte) quilos de café, EMP03...” terminou a 19 de fevereiro de 2022. (artigo 13.º da petição inicial)
3) Até à data a Ré sociedade adquiriu 85 (oitenta e cinco) quilos de café à Autora. (artigo 14.º da petição inicial)
4) A Autora endereçou uma missiva à Ré sociedade, datada de 8 de julho de 2022, donde fez constar, designadamente, o seguinte: «(…) Não tendo sido realizada a aquisição da quantidade total de quatrocentos e vinte quilos de café no prazo contratado está definitivamente incumprido o contrato por facto imputável a V.as Ex.as o que fundamente a resolução do contrato que pela presente via lhes é comunicada.». (artigos 17.º e 18.º da petição inicial e doc. 3 junto em anexo ao referido articulado, cujo teor se dá por integralmente reproduzido)
5)         A Autora endereçou uma missiva BB, datada de 24 de julho de 2022, donde fez constar, designadamente, o seguinte: «(…) Não tendo sido realizada a aquisição da quantidade total de quatrocentos e vinte quilos de café no prazo contratado está definitivamente incumprido o contrato por facto imputável a V.a Ex.a o que fundamenta a resolução do contrato que pela presente via lhe é comunicada.». (artigo 19.º da petição inicial e doc. 4 junto em anexo ao referido articulado, cujo teor se dá por integralmente reproduzido)
6) O local de consumo do café era um bar, genericamente designado por «...», e BB ajudava o seu pai no negócio. (artigos 5.º e 6.º  da contestação)
7) O imóvel onde se situava o dito «...» era arrendado a CC, esposa do aqui Réu e mãe do referido BB. (artigo 8.º da contestação)
8) Em 2020 ocorreu a pandemia (…). (artigo 9.º da contestação)
9) O contrato foi celebrado em junho de 2020 e o primeiro confinamento ocorreu entre ../../.... e ../../2020. (artigo 19.º da contestação)
10) Por causa da falta de pagamento de rendas por parte de CC, o senhorio do contrato de arrendamento referido em 7) intentou uma ação de despejo contra aquela, que correu termos neste Juízo Local Cível de Vila Real, sob o n.º 115/21...., tendo este terminado com um acordo de pagamento. (artigos 20.º a 22.º da contestação)
11)BB comunicou a ... que teria de fazer a entrega do imóvel e que queria entregar à Autora o seu mobiliário e equipamentos. (artigo 24.º da contestação)
12)No dia ../../2021, ... apareceu nas instalações da «...» com uma carrinha sem qualquer identificação da Autora, a fim de carregar o mobiliário. (artigo 25.º da contestação)
13)BB entregou a ... todos os móveis e equipamentos da Autora, que estiveram no estabelecimento da Ré sociedade cerca de dez meses. (artigos 27.º e 28.ºda contestação)
14)A Ré teve o seu estabelecimento fechado, em alguns períodos, por causa das limitações impostas pelo Covid-19. (artigos 33.º e 34.º da contestação)

* Factos não provados

a) «2020 - 12 mar - O Governo decide que as escolas de todos os graus de ensino suspendem as atividades presenciais. É anunciado o encerramento de discotecas, redução da lotação na restauração e limitação de pessoas em centros comerciais. 18 mar - O Presidente da República decreta o estado de emergência, que contempla o confinamento obrigatório e restrições à circulação na via pública. 30 abr - O Governo aprova um plano de transição do estado de emergência para uma situação de calamidade e anuncia que a partir de dia 04 de maio abrem alguns serviços, mas mantém o teletrabalho No calendário de desconfinamento fica para 18 de maio a abertura de restaurantes e cafés e início das aulas presenciais no 11.º e 12.º ano. As creches também podem começar a abrir nessa data. 16 mai - O primeiro-ministro solicita que os portugueses regressem às ruas, frequentando lojas, restaurantes e cafés, embora com cautelas. 03 jun - António Costa diz no parlamento que os custos económicos e sociais "são absolutamente brutais" e que todos os indicadores apontam para uma queda "recorde" do Produto Interno Bruto (PIB) e uma subida exponencial do desemprego. 14 out - Portugal passa a situação de calamidade, justificada com a gravidade da evolução da pandemia. São proibidos ajuntamentos de mais de cinco pessoas na via pública e eventos familiares (como casamentos) não podem ter mais de 50 pessoas. Ficam também proibidos os festejos académicos. 28 out - Obrigatório o uso de máscaras em espaços públicos. 12 nov - O primeiro-ministro anuncia o encerramento do comércio e restauração às 13:00 nos dois fins de semana seguintes e explica que a abertura dos estabelecimentos só pode ocorrer a partir das 08:00. "A regra é tudo fechado", disse. 21 nov - Obrigatório o uso de máscara nos locais de trabalho. O Governo anuncia também que a circulação entre concelhos vai ser proibida nos fins de semana prolongados e impõe restrições no comércio e restauração para o mesmo período. 2021 -18 jan - Portugal é o país do mundo com maior número de novos casos de infeção por milhão de habitantes. O número de concelhos em risco extremo devido ao número de casos de covid-19 quase triplicou nos primeiros 12 dias de janeiro. O Governo anuncia o encerramento das universidades seniores, centros de dia e de convívio, a proibição de circular entre concelhos nos fins de semana e o fim de vendas ao postigo na restauração. As escolas continuarão abertas. 11 fev - O primeiro-ministro anuncia que o nível de confinamento terá de ser mantido durante o mês de março. António Costa diz também que Portugal vai receber menos de metade das vacinas contra a covid-19 que estavam previstas para o primeiro trimestre. 01 abr – O primeiro-ministro anuncia que os alunos do 2.º e 3.º ciclos retomam as aulas presenciais e que os restaurantes, pastelarias e cafés com esplanada podem reabrir, com grupos limitados a quatro pessoas.». (artigo 9.º contestação)
b) Em junho de 2020, o funcionário da Autora, ..., insistindo que precisava de faturar, convenceu BB de que tudo ia correr bem e que o pior já havia passado. (artigo 11.º da contestação)
c) Para incentivar BB a comprar com frequência, ofereceu-lhe, para mobilar o referido bar, uma máquina de café, moinho e diversas mesas e cadeiras, em regime de comodato. (artigo 13.º da contestação)
d) No entanto, alegando que necessitava de um documento para titular esse empréstimo dos bens, o ... apresentou a BB o contrato apresentado como documento n.º 1 junto com a petição inicial. (artigo 15.º da contestação)
e) Muito embora lá constassem os quilos de café, o acordo verbal era que o «...» comprava cafés à Autora e pagava de imediato, o que sempre aconteceu. (artigo 16.º da contestação)
f) Naquele momento, data da assinatura do contrato, todos achavam que o pior já havia passado. (artigo 17.º da contestação)
g) Com as sucessivas limitações e sem movimento (…). (artigo 20.º da contestação)
h) ..., funcionário da Autora, teve conhecimento de todos esses factos. (artigo 23.º contestação)
i) (…) na mesma data (…). (artigo 24.º da contestação)
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Consigna-se que se expurgaram da matéria de facto todas as alegações apetrechadas de conceitos de Direito ou com caráter meramente conclusivo (e.g., 3.º, 10.º, 31.º, 33.º, 35.º da contestação) e, bem assim, todos aqueles factos repetidos ou irrelevantes para a decisão da causa.”
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IV. Do objecto do recurso.
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1. Da impugnação da matéria de facto.
Como resulta da identificação das questões que acaba de se efetuar, no essencial, no recurso vem impugnada a decisão sobre a matéria de facto.

Como se vê das alegações de recurso, desde logo, e além do mais, o recorrente questiona basicamente a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido, entendendo que deverá ser aditado aos pontos provados nº 11,12,13º, o seguinte: “ O réu entregou todo o material à A”, em conformidade com a conjugação e reapreciação da prova gravada, designadamente do depoimento da testemunha DD e ..., os quais afirmaram que aqui Réu / Recorrente, ao entregar o material ( mesas, cadeiras, máquina de café , etc. ) ao funcionário da firma que na prática geria todos os contratos, procedeu legitimamente e de boa – fé, tendo-o feito ao único funcionário de que tinha feito o negócio todo- o ....

Cumpre, pois, verificar se a prova obtida se apresenta de molde a alterar a factualidade impugnada, nos termos pretendidos pela apelante.
Desde já se deixa consignado que analisámos toda a prova aludida pelo recorrente e recorrida e ainda documental dos autos.
Ora, não é impugnado e considera-se assente que os materiais emprestados ao R e constantes do contrato intitulado “ parceria comercial” foram todos entregues a ... (  factos provados nº 11,12,13).
E quem era este ...?
De toda a prova retira-se inequivocamente que era o comercial, o responsável pela apresentação da proposta e negociação e concretização do negócio celebrado entre A e R., de tal modo que a autora o apresentava, conforme declaração junta por si, com a petição inicial - doc. 5- como “vendedor da EMP01...”, pelo que era o único interlocutor com a ré no início e no fim da relação contratual e a quem esta, naturalmente, entregou o mobiliário emprestado pela A.
Muito se estranha a posição processual da autora- pasme-se- ao negar uma realidade por si criada e que lhe interessou alegar para prova da negociação, mas já para prova da entrega dos bens emprestados renega e põe em causa a qualidade do interlocutor, ou melhor nega essa qualidade, insistindo incompreensivelmente na circunstância de que o dito EE apareceu nas instalações da ré com carrinha sem qualquer identificação da A. E pergunta-se: qual a relevância dos dizeres da carrinha para onde ..., o comercial, transportou o material da A?
E mais: o dito ... é vendedor da autora para uma coisa ( negociação e celebração do contrato intitulado “ parceria comercial”) e já não era vendedor da autora para outra ( restituição do material emprestado e constante daquele mesmo contrato)?
Ora, de toda a prova produzida apenas uma hipótese se perfila, dentro das regras da experiência comum e normalidade dos comportamentos: a pessoa que negociou em nome da A, e que atestou a assinatura da ré no contrato objeto dos presente autos e que fez a declaração conforme doc. 5, intitulando-se “ vendedor da EMP01...”, documento esse junto aos autos pela autora e que a mesma tem por válido, pretendendo que seja considerado para efeitos de celebração do contrato aqui em causa, é a mesma pessoa que recebeu da Ré os bens emprestados e constantes daquele mesmo contrato, pelo que apenas poderia recebe-lo na mesma qualidade pela qual contratou: em nome da autora ( seja enquanto agente, seja enquanto funcionário), ou pelo menos, enquanto “vendedor da EMP01...”, como ressuma do doc. 5.
Por tudo o exposto, entendemos que ao ponto 13º deverá ser aditada a qualidade em que intervém ... aquando da restituição do material da autora pela Ré e apenas poderá ser enquanto “ vendedor da EMP01...”, tal como ressuma da declaração junta pela autora com a p.i.- doc. 5- e a propósito do início do contrato, corroborada pelos depoimentos testemunhais de DD e ....
Assim sendo, deverá a redação do ponto 13º ser alterada nos seguintes termos:
13-“BB entregou a ..., “vendedor da EMP01...”, todos os móveis e equipamentos da Autora, que estiveram no estabelecimento da Ré sociedade cerca de dez meses”.
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IV
A factualidade (provada e não provada) a atender para efeito da decisão a proferir é a já constante de III, apenas com a correção do ponto 13 dos factos provados e nos seguintes termos:
“BB entregou a ..., “vendedor da EMP01...”, todos os móveis e equipamentos da Autora, que estiveram no estabelecimento da Ré sociedade cerca de dez meses.
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V- Reapreciação de direito

Cabe agora verificar se deve a sentença apelada ser revogada/alterada, em razão da alteração da decisão relativa à matéria de facto proferida pelo tribunal a quo – no seguimento da impugnação do R/apelante- decidindo-se pela improcedência da ação, no que respeita ao pedido de condenação do R na entrega do material emprestado pela A ou na sua impossibilidade no valor dos mesmos- na quantia de € 2 764,88.
Como resulta das conclusões do recurso do R/apelante, é manifesto que a pretendida alteração da decisão, nesta parte da matéria de direito, dependia integralmente da modificação/alteração da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, o que ocorreu.
Atenta a alteração da matéria de facto e provando o réu a entrega dos bens emprestados ao vendedor da autora- ..., o comercial e único interlocutor do réu naquele contrato celebrado com a autora, o mesmo será dizer, que os entregou à autora. Caso aquele não tenha entregue os bens da autora nas instalações desta, sibi imputet ( cfr. art. 800º do CC), pelo que quanto ao pedido de condenação do réu no pagamento da quantia de € 2 764,88 (dois mil setecentos e sessenta e quatro euros e oitenta e oito cêntimos) e juros de mora vai absolvido deste pedido, revogando-se, assim, nesta parte a sentença.
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Agora analisemos a questão da aplicação ou não do art. 437º do CC ao caso vertente, conforme preconizado pelo recorrente e que a sentença rejeitou.
O recorrente argumenta, em resumo, que:
“- o facto de a pandemia por Covid 19 ter afetado durante mais de dois anos a actividade de venda de café a retalho, actividade essa aberta ao público, não pode ser considerada um desenvolvimento previsível, pois embora á data da celebração já se conhecesse a pandemia , o desenvolvimento, implicações e sobretudo a duração desta, que durou mais de dois anos, era, para o R. / Recorrente, bem como para todo o mundo, absolutamente imprevisível.
- À data da celebração do contrato ninguém, mesmo a nível mundial, poderia prever quanto tempo esta afetaria a atividade económica, pelo que neste aspecto muito significativo, não se verifica haver desenvolvimento previsível de uma situação conhecida.
- Com efeito, todo o período de vigência do contrato ora em análise foi comercialmente marcado pela pandemia, o que na altura da celebração do contrato era inimaginável, pelo que este facto a não pode ser considerado um “ desenvolvimento previsível de uma situação conhecida á data da celebração do contrato”.
- Pelo que será de aplicar ao caso vertente o disposto no artº. 437º., nº 1 do Código Civil e ser julgado o presente caso á luz da equidade.
- Ora a implicação da Covid 19 na normal atividade do comércio de café a retalho ( estabelecimento aberto ao público ) é tão pública, notória e do conhecimento geral que, nos termos do disposto no artº. 412º., nº. 1 do C. C. não carece de alegação ou de prova, contrariamente ao que determina a douta Sentença.”
Vejamos.
A autora alegou o incumprimento do contrato de fornecimento de café pelo réu e o réu alegou a verificação de causa de impossibilidade/excessiva onerosidade da manutenção das exigências do contrato por via da pandemia covid 19.
Ambos estão de acordo em considerar extinta a relação contratual.
Sem embargo, cremos, salvo o devido respeito, que a insuficiência da matéria de facto alegada e provada não permite concluir que a situação retratada nos autos corresponda a um caso de alteração anormal superveniente das circunstâncias que serviram de base ou pressuposto da celebração do negócio jurídico.
Para este instituto dispõe o artigo 437º do CC o seguinte: “1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. 2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.”.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2015, relatado por Fonseca Ramos no proc. n.º 876/12.9TBBNV-A.L1.S1, in www.dgsi.pt,: «Os requisitos de aplicação do art. 437º, nº 1, do Código Civil, na lição do Professor Menezes Leitão – “Direito das Obrigações”, vol. II, pág. 124 e segs., são: “1) A existência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; 2) O carácter anormal dessa alteração; 3) Que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes; 4) Que a lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas; 5) E que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato. Relativamente ao primeiro pressuposto, dele resulta que apenas são relevantes as alterações das circunstâncias efectivamente existentes à data da celebração do contrato, e que tenham sido causais em relação à sua celebração pelas partes (a denominada “base do negócio objectiva”). Não relevam assim, para efeitos desta norma, os casos de falsa representação das partes quanto às circunstâncias presentes ou futuras, que apenas colocam um problema de erro, nem circunstâncias que, apesar de efectivamente existentes, não se apresentem como causais em relação à celebração do contrato.».
Na doutrina[1] é pacífico o entendimento de que o impacto da pandemia de Covid-19 nas relações negociais e as perturbações prestacionais daí decorrentes não se esgotam no instituto da alteração superveniente das circunstâncias, cabendo a sua resposta, com frequência, a outros institutos centrais do direito dos contratos.
Com efeito, o nosso sistema jurídico dispõe de diversos meios de reação face aos problemas que podem surgir na execução de um contrato no período pós pandemia, a saber: (i) o regime do incumprimento, culposo ou não culposo; (ii) a impossibilidade temporária ou definitiva; (iii) as regras gerais do Código Civil; (iv) as regras especiais dos contratos em especial do Código Civil; (v) a Legislação COVID-19 entretanto publicada (vi) o regime da alteração das circunstâncias. 
Daí que a primeira questão a que o intérprete tem de dedicar a sua atenção, quando pondera a aplicação do instituto da alteração superveniente das circunstâncias ao caso em análise, dada a natureza tendencialmente subsidiária do mesmo, é a de saber se a situação em causa não caberá em algum dos inúmeros outros institutos que o nosso ordenamento jurídico consagra para responder a questões relacionadas com perturbações da execução das prestações contratuais, como sejam: a impossibilidade; a frustração do fim da prestação em obrigações finalizadas; a mora do credor; a interpretação do contrato, entre outros.
Isto é, existindo uma impossibilidade absoluta, seja ela definitiva ou temporária, parcial ou total, prevalece o regime da impossibilidade durante o período de tempo no qual a impossibilidade perdure ou relativamente à parte da prestação que se tornou impossível de cumprir.
Assim, por exemplo, caberão na impossibilidade superveniente muitos dos casos em que a atividade em que se consubstanciava a prestação contratual foi proibida por lei em consequência da pandemia.
Vale tudo por dizer que é inequívoco que a pandemia representa uma alteração das circunstâncias e que integra, em abstrato, o quadro legal do artigo 437.º do Código Civil.
Sem embargo, a maior ou menor aplicabilidade do instituto da alteração das circunstâncias àquela crise pandémica/de saúde pública e com reflexos económico-financeiros e contratuais fortíssimos, resultará sempre da alegação levada a efeito, que não deve descurar a enunciação concreta e precisa de nenhum dos elementos, dependerá do risco próprio dos contratos, do seu conteúdo concreto e da legislação existente (de emergência ou não) que regule a matéria.
No fundo, torna-se necessário analisar contrato a contrato, conteúdo a conteúdo, de modo a integrar a formulação aberta do instituto da alteração das circunstâncias, a levar a efeito pelo julgador.
Ora no caso em apreciação, resulta que de forma alguma a situação demonstrada pelo R. se reconduz à figura da alteração anormal das circunstâncias.
Com efeito, provou que o contrato foi celebrado no dia ../../2020, sendo que a pandemia remonta a março desse ano.
Por isso, concordamos com o veredito da sentença quando conclui “ Destarte, quando as partes outorgaram o contrato a Ré não podia desconhecer, como não desconhecia, a existência de uma pandemia mundial e que, apesar de terem sido levantadas algumas restrições no dia 18 de maio, ainda era tudo muito prematuro e o clima generalizado ainda era de insegurança, pela incerteza do que aí vinha. Na verdade, ninguém sabia quanto tudo ia terminar.”.
Com efeito, a alteração anormal significa a imprevisibilidade para um contraente de informação e conhecimentos médios, pelo que pode acontecer que as partes não tenham previsto, mas se ela for previsível para quem tivesse o cuidado de se informar adequadamente, não pode dizer-se que estejamos perante uma “alteração anormal”[2]
Destarte, cai pela base o argumento do recorrente quando alega que “o desenvolvimento e implicações e duração da situação pandémica era para a ré imprevisível”, quando o que releva é conforme se lê na sentença que “…a Ré já conhecia a situação pandémica que vivenciávamos, nada sugerindo, à data, quando ia cessar (e nem se diga que o aliviar das medidas em Maio justificou um entendimento diferente, já que, na altura, em momento algum nos foi dada a esperança de que a pandemia estava perto do fim; o alívio das medidas surgiu, como é comumente consabido, da necessidade de prosseguir com as atividades económicas, essencialmente)”.
Igualmente, concordamos com a sentença, citando o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de novembro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 16989/22.6T8PRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt) que “ ….não basta usar o argumento da pandemia para fundamentar uma alteração das circunstâncias, sendo necessário alegar e provar «a medida, dimensão ou importância como a pandemia, os confinamentos e encerramentos, as alterações comportamentais das pessoas na frequência e aproveitamento dos espaços públicos, influenciaram negativamente as actividades de cada um dos ramos de comércio…o que a(o) Ré(Réu) não logrou fazer.”.
Com efeito, é certo e público e notório que houve lugar a restrições na circulação de pessoas e bens, decorrente do estado de emergência decretado na altura em causa, e tal não carece de prova, conforme sustentado pelo recorrente, mas também não é menos certo que esse estado de emergência era uma realidade presente à data da celebração e execução do contrato e, por essa razão, não era imprevisível, conforme alegado pelo recorrente.
Em segundo lugar, à luz do que se deixa expresso, admitir-se a aplicação do regime do art. 437º do CC a todos os negócios jurídicos de cariz comercial celebrados nesse período, sem mais, manifestamente ofende os mais elementares ditames da boa-fé, porquanto traduzir-se-ia em fazer repercutir os efeitos económicos danosos dessa circunstância, apenas numa das partes contraentes.
Ora, os contratos, segundo o art. 406/1 do CC, devem ser pontualmente cumpridos, e só podem modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.
Tendo o R invocado um dos casos admitidos por lei, ou seja, o previsto no art. 437/1 do CC, tem de alegar e provar todos os factos constitutivos desse direito de resolução do contrato (art. 342/1 do CC).
Tendo sido alegado a celebração de um contrato e factos que apontavam para a impossibilidade de cumprimento desse contrato devido à alteração das circunstâncias, naturalmente, tinha que alegar e provar tudo isso, entre o mais, pois, a celebração do invocado contrato e os factos que apontavam para a impossibilidade de cumprimento do mesmo, como forma de provar a alteração de circunstâncias invocada, eram factos constitutivos da procedência da exceção por si invocada.
Ora, a factualidade apurada nos pontos 8) a 14) é manifestamente insuficiente para se afirmar que relativamente ao contrato dos autos verificou-se uma alteração das circunstâncias para efeitos do art 437º do CCivil, pelo que de forma alguma a situação demonstrada pelo réu se reconduz àquele instituto jurídico.
Com efeito, conforme impressivamente se constata no citado Ac. do TRP de 9-11-2023 “ A pandemia é apenas a razão de saúde pública que explica e justifica as alterações, mas é necessário saber quais foram estas e quais as respectivas consequências para concluir que, sendo elas derivadas de uma causa alheia aos contraentes e por eles não prevista nem previsível no momento da contratação, assumem a dimensão da anormalidade, da perturbação significativa da economia do contrato, que preside ao instituto.”
O que está provado é que “a ré teve o seu estabelecimento fechado, em alguns períodos, por causa das limitações impostas pelo Covid 19”, não se tendo apurado qual o período ( o que também não foi alegado), donde se extrai que nesses períodos não teve vendas nem receitas e porventura sofreu redução das vendas e dos rendimentos comerciais do estabelecimento, contudo era necessário alegar e demonstrar, o que não foi feito, ainda o significado económico para a ré dos períodos de encerramento da atividade e a medida da redução dos consumos nos períodos após a reabertura e quais os períodos de encerramento, o que nem sequer foi alegado.
Em suma, aquela alteração das circunstâncias e medida das mesmas não tem, naturalmente, de ser determinada com exatidão e pormenor, mas também não pode ser aferida por mero palpite ou presunção natural apoiada em facto nenhum, para além dos factos notórios acima indicados.
Desta forma, afigura-se-nos, tal como o fez a sentença recorrida, que não se deve considerar que no caso existiram circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar que sofreram uma alteração anormal.
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Do abuso de direito
O ré invoca a “ desproporção grave entre o benefício e o sacrifício imposto à outra parte” pois “ pois face ao incumprimento do contrato a Ré / recorrente teria que pagar mais de 8.000 € ( oito mil euros ), enquanto o “sacrifício” imposto á A. / Recorrida seria apenas o de umas cadeiras e uma mesas em plástico com publicidade á sua marca”.
A sentença não aplicou o instituto do abuso de direito porquanto entendeu inexistir aqui qualquer comportamento abusivo por parte da Autora, ali se ponderando o seguinte:
É que se suportar o pagamento dos bens (café) contratualizados, tout court, pode parecer abusivo, se pensarmos que a Ré não dava vazão a 20 quilos de café por mês, não se pode ignorar que a Autora também ficou prejudicada, uma vez que tinha a expectativa do cumprimento do contrato e foi nessa perspetiva que concedeu o desconto referido na cláusula terceira.
Na verdade, atendendo ao conteúdo do contrato e numa perspetiva de boa fé, o que a Ré (aqui substituída pelo seu sócio liquidatário) poderia ter feito era tentar uma renegociação do contrato com a Autora, o que não fez.
Em suma, se é certo que se viveu num estado de incerteza nos anos de 2020 e 2021, também é certo que tal estado já era vivenciado aquando da outorga do contrato; ademais, pese embora o Tribunal seja sensível à situação vivenciada e que teve um grande impacto na área da restauração, não pode deixar de trazer à colação a bilateralidade da incerteza, que também afetou a Autora e que nem por isso a desonerou das suas obrigações.”.
Salvo o devido respeito, concordamos com o entendimento plasmado na sentença.
Em verdade, se o que se procura é recuperar o equilíbrio das prestações e que na alegação do réu foi quebrado pela alteração superveniente das circunstâncias que presidiram à contratação, então para se chegar a tal conclusão teria o réu de alegar e provar a medida da quebra causada pela alteração, o que não logrou fazer, e nem sequer  foi alegado o que mudou, em concreto, após a outorga do contrato, para que a Ré começasse a incumpri-lo logo no próprio mês da sua celebração, quando se analisa o contrato e a ré teria de gastar por mês 20 quilos, o que nunca ocorreu, segundo a listagem junta aos autos.
Para o efeito, é irrelevante a referida ação de despejo por falta de pagamento de rendas, e ainda o facto de ter sido efetuada a entrega do material emprestado em abril de 2021, sem mais, sendo certo que do que resulta da certidão junta aos autos daquela ação é que as partes ali chegaram a uma transação quanto ao pagamento das rendas, deduzindo-se que o contrato de arrendamento continuou a vigorar, o que inculca a hipótese de não ter encerrado o estabelecimento comercial ainda que tenha sido entregue naquela data o equipamento ao vendedor da autora.
Não se verifica, assim, qualquer abuso de direito da autora.
Por outro lado, a circunstância de a falta de receitas da sociedade ré, naqueles períodos em que encerrou por causa da pandemia Covid 19 ( e que não foram alegados em concreto, não se sabendo quando ocorreram), tornar a prestação excessivamente difícil ou onerosa não significa que se esteja perante uma impossibilidade absoluta, sendo certo que só esta acarretaria a extinção da obrigação (art. 790º do CC).
Em verdade, não é, também, caso de aplicação do disposto no art. 790º nº1 do Código Civil. Nos termos desta norma, a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor.
A prestação torna-se impossível quando, por qualquer circunstância (legal, natural ou humana), o comportamento exigível do devedor, segundo o conteúdo da obrigação, se torna inviável. Se a inviabilidade respeita a todos, porque ninguém pode efetuar a prestação, a impossibilidade é objetiva. Se apenas o devedor a não pode executar, mas outros o podem fazer, a impossibilidade diz-se subjetiva.
Efetivamente, a impossibilidade a que se refere esta norma tem de ser objetiva e definitiva, uma impossibilidade absoluta que torna totalmente inviável a prestação, o que não é o caso da falta de meios pecuniários, pois estes podem vir a ser obtidos pelo devedor (cfr. Ac. STJ de 13-12-1977, BMJ 272, p. 193; Ac. RL de 11/11/2004, disponível na internet em http://www.dgsi.pt).
Assim, a doutrina do limite do sacrifício – segundo a qual o dever de prestar tem como limite o sacrifício razoavelmente exigível do devedor, à luz dos princípios da boa fé – não teve acolhimento no art. 790º nº1 do Código Civil.[3]
Ora, atenta a matéria de facto alegada e provada, a circunstância de a eventual falta de receitas da ré sociedade nos períodos de encerramento ( e que não foram apurados) tornar a prestação excessivamente difícil ou onerosa não significa que se esteja perante uma impossibilidade absoluta, sendo certo que só esta acarretaria a extinção da obrigação (art. 790º do CC).
Daí não se aplicar também ao caso este art. 790º do CC.
Confirma-se assim, a sentença quando ali se lê “ Aqui chegados, não se aplicando nenhum dos institutos excecionais invocados pelo Réu, concluiu-se que o mesmo terá de proceder ao pagamento da quantia correspondente aos 335 quilos de café que não adquiriu (420 quilos – 85 quilos), no valor de € 5 519,26 (cinco mil quinhentos e dezanove euros e vinte e seis cêntimos)3, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da citação até integral pagamento (cf. artigos 212.º, n.º 2, 804.º, 805.º e 806.º, todos do Código Civil).”, mas já não em relação ao segmento da condenação no valor do equipamento emprestado, porquanto em relação a este provou o réu a restituição daquele material ao vendedor da autora, sendo certo que se este não o fez chegar às instalações da autora, sibi imputet.
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VI- Decisão:

Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:
- revoga-se a sentença quanto ao pedido de condenação do réu no pagamento da quantia de € 2 764,88 (dois mil setecentos e sessenta e quatro euros e oitenta e oito cêntimos) e juros de mora, no que vai absolvido deste pedido;
- no mais, confirma-se a decisão recorrida.
Custas da ação e da apelação na proporção do decaimento.
Guimarães, 20-02-2025

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Maria Amália dos Santos e
           Luís Miguel Martins


[1] COVID-19 e Alteração Superveniente Das Circunstâncias, Prof. Doutora Mariana Fontes da Costa e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil- IX, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 681, quando trata da depuração do instituto delimitando o seu conteúdo.
[2] Vide neste sentido Ana Prata, in CC Anotado, Vol I, p. 594
[3] Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, II vol., 4ª ed., págs. 65 e ss..