Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
353/11.5TCGMR-A.G1
Relator: JORGE SANTOS
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCUMPRIMENTO
VIOLAÇÃO DO PROCESSADO
NULIDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- Uma sentença (ou um despacho) pode ser visto como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença/despacho no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.
- Enquanto trâmite pode ser afectada por uma nulidade processual plasmada no artigo 195º do CPC, se se verificar alguma das situações nele referidas.
- Uma das causas de nulidade processual é a prática de um acto em violação da sequência processual fixada pela lei.
- Se a nulidade processual estiver coberta por decisão judicial, o meio próprio para a invocar é o recurso e não a reclamação junto do tribunal que cometeu a irregularidade.
- A decisão-surpresa que a lei pretende afastar, nos termos do nº 3 do artigo 3º do CPC, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO (que se transcreve)

AA veio deduzir, contra BB incidente de incumprimento das responsabilidades parentais acordada entre ambos e relativas a sua filha CC, nascida a ../../2003, alegando, em síntese, que:

a) O requerido nunca procedeu à actualização da prestação mensal de alimentos a favor da sua filha, tendo realizado pagamento da mesma pelo valor de € 125,00 fixado inicialmente, estando em débito, a tal título, o montante total reclamado;
b) A jovem CC frequenta curso superior;
c) Suporta em exclusivo todas as despesas da filha, salvo quanto ao pagamento de propinas, sendo que a mesma beneficia de uma bolsa para tal.
*
O Requerido, notificado para o efeito, veio, a 12-07-2023, apresentar alegações onde concluiu pela improcedência parcial do pedido.

Alegou, em síntese, que:

a) Sempre pagou a quantia mensal de € 125,00 a título de alimentos a favor da sua filha;
b) Pela leitura do ponto único do regime parental onde se prevê a actualização de tal prestação, resulta que não é devida nenhuma quantia a título de actualização, ou quanto muito, a mesma não pode ser indexada automaticamente aos 5%, conforme pretendido pela requerente, porquanto existe uma cláusula de salvaguarda, que adstringe a actualização às possibilidades económicas dos progenitores;
c) A requerente não faz prova nem de que a sua situação económica se tenha depauperado em face dos anos 2011 e seguintes em relação ao actual nem de que a sua condição financeira (do requerido) tenha mudado substancialmente para melhor;
d) A sua situação financeira é, provavelmente, muito pior do que aquela que remonta aos anos de 2011 e seguintes;
e) Os arts.1880.º e 1905.º do CC sempre se reportam a uma obrigação de suporte com despesas da filha maior pelos pais numa medida de razoabilidade;
f) Verifica-se a excepção de prescrição prevista no art. 310º, al. f), do CC, em relação aos valores peticionados a título de actualização da prestação de alimentos anterior a Junho de 2019;
g) Configura abuso de direito, na modalidade de supressio, a reclamação da actualização por parte da requerente, considerando que invoca o incumprimento desde, pelo menos, 2012, e só reclama tal prestação nos presentes autos.
*
Por requerimento junto aos autos a 12-09-2023, a requerente, pronunciando-se sobre a matéria de excepção arguida pelo requerido – prescrição e abuso de direito -, disse:

- o prazo para que a excepção de prescrição se verifique apenas começou a correr com a maioridade da filha, pelo que ainda não ocorreu o seu termo (art. 318º, al. b), do CC);
- o abuso de direito invocado pelo requerido não ocorre.
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No dia 11-12-2023, foi realizada conferência de pais, com ausência de acordo entre os progenitores.
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Por despacho de 20-12-2023, determinou-se a notificação das partes nos termos e para os efeitos do ar. 39º, n.4, do RGPTC, aplicável por força do disposto no art. 41º, n.º7, do mesmo regime.
*
O requerido apresentou alegações, juntas a 29-12-2023, onde, em síntese, reiterou o alegado na oposição junta a 12-07-2023.

A requerente apresentou alegações, juntas a 17-01-2024, onde também reiterou o alegado no requerimento inicial e no articulado junto a 12-09-2023.
*
Nessa sequência foi proferido o seguinte despacho:

- “Alegações juntas a 29-12-2023 e 17-01-2024 e promoção de 29-01-2024:
Considerando os termos do litígio, que se reconduz a questões de direito, não se vislumbra utilidade na realização de diligências probatórias, podendo o incidente ser decidido sem audiência de discussão e julgamento.
Vão os autos, por isso, ao MP para, querendo, se pronunciar sobre o mérito do litígio.”

Tendo os autos ido com vista ao Ministério Público, foi promovido: “Nada vemos que obste”.

De seguida foi proferido novo despacho nos seguintes termos:
- “Face à promoção de 08-02-2024, vão os autos ao MP para, querendo, se pronunciar sobre o mérito do litígio.”

Tendo os autos ido novamente com vista ao Ministério Público, pelo mesmo foi apresentada promoção.

Nessa sequência foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
- “Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar verificado o presente incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, deduzido nestes autos por AA contra BB e, consequentemente, declara-se este devedor da quantia de € 6 273,60 (seis mil duzentos e setenta e três euros e sessenta cêntimos) àquela, a título de prestação de alimentos a favor da jovem, filha de ambos, CC, nascida a ../../2003;
b) Condena-se o requerido no pagamento das custas do processo, sendo aplicável a taxa de justiça constante do separador “Outros Incidentes” da Tabela II anexa ao Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do decidido sobre apoio judiciário.”

Inconformado com a sentença dela veio recorrer o Requerido formulando as seguintes conclusões:

1.ª Em momento posterior à realização da conferência a que alude o art.º 35.º do RGTPC, sem que tenha existido acordo entre os pais, e após notificados para alegações nos termos do arts.º 39.º, n.º 4 ex vi art.º 41.º, n.º 7 RGTPC, tendo sido arroladas testemunhas pelo aqui Recorrente, é este surpreendido com a presente sentença do qual se recorre.

2.ª Em nosso entender, e salvo o devido respeito, a douta sentença ad quo não respeitou o previsto no art.º 39.º, n.º 7 do RGTPC, dessa forma omitindo uma formalidade prescrita na lei, geradora de nulidade (nos termos do art.º 39.º, n.º 7 do RGTPC e art.º 195.º do CPC).

3.ª Tudo conforme defende o douto Aresto proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de 29.02.2024, proc. n.º 2946/17.8T8BRG-D.G1, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte, disponível em www.dgsi.pt, onde sumariza: «VII – Ainda que se pudesse sustentar, à luz do disposto nos artigos 130.º, 6.º, n.º 1 e 547.º do CPC, passíveis de aplicação ao processo tutelar cível nos termos do art.º 33.º do RGTPC, que não estaria vedado ao Tribunal adaptar o processado ou conhecer antecipadamente do mérito da causa (por dispor de todos os elementos de prova no processo), nunca o poderia fazer sem: a) previamente ouvir as partes para o efeito, por assim o impor o princípio do contraditório, entendido como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio; b) fundamentar essa decisão, como determina o art.º 154.º do CPC».

4.ª Ademais a perfunctória, salvo o devido respeito, (falta de) fundamentação da sentença ad quo não esclarece o aqui Recorrente sobre quais as razões pelas quais se prescindiu da audição das testemunhas arroladas por aquele.

5.ª A não realização da audiência de julgamento inviabilizou por completo a faculdade das partes de requerer as declarações de parte do Recorrente (e por hipótese o pedido de depoimento de parte da Requerente).

6.ª Conforme defende o Aresto do S.T.J., proc. n.º 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, datado de 16.12.2021, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Luís Espírito Santo «VIII – O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que especialmente lhe incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante».

7.ª A douta sentença enferma de erro de direito, pelo menos, pela insobservância do contraditório imanente a uma audiência de julgamento, quando improcede, liminarmente, o abuso de direito na modalidade de supressio invocado, pois nos presentes autos se retratam actualizações da prestação de alimentos que durante mais de dez (10) anos a aqui Recorrida nunca fez menção ao aqui Recorrente – seja por contacto verbal ou escrito, motivo pelo qual este confiou, legitimamente que o direito jamais seria exercido por aquela.

Termos em que, na procedência do presente recurso, deve anular-se a douta sentença, devendo em consequência, pela verificação da nulidade arguida, ser ordenado o cumprimento do acto omitido, e demais tramitação processual até final, assim se fazendo JUSTIÇA.
*
Houve contra-alegações por parte da Requerente, nelas se pugnando pela improcedência da apelação e confirmação da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – OBJECTO DO RECURSO

A – Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando notar que, em todo o caso, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.

B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, cumpre apreciar:

- Da nulidade por omissão de uma formalidade;
- Da violação do princípio do contraditório;
- Do erro de julgamento quanto ao invocado abuso de direito na modalidade de supressio;
- Se, em consequência, deve ser anulada a sentença, nos termos peticionados no recurso.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A - Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:

1. CC nasceu a ../../2003 – cfr. certidão de assento de nascimento junta com a petição inicial que deu origem ao processo principal;

2. O exercício das responsabilidades parentais relativas à jovem CC referida em 1 foi regulado nos termos de acordo estabelecido entre a requerente e requerido, homologado por sentença proferida no dia 16-11-2011 no processo principal;

3. Os termos do acordo acima mencionado, no segmento que releva para a presente decisão, são os seguintes:
1) A menor fica à guarda e cuidados da mãe, sendo as responsabilidades parentais atinentes aos actos da vida corrente exercidas pela progenitora e as responsabilidades parentais atinentes às questões de particular importância para a vida da menor exercidas por ambos os progenitores;
2) O pai contribuirá com a importância de € 125,00 a título de alimentos à menor, a pagar até ao dia 8 do mês a que respeitar, por transferência para conta da progenitora;

3) O valor referido no ponto anterior “será actualizado anualmente em função do índice de preços fixado pelo Instituto Nacional de Estatística, mas nunca inferior a 5%, ou caso sofram alterações as necessidades da menor e as possibilidades económicas dos progenitores.”;

4. O requerido tem pago à requerente a quantia mensal de € 125,00 por conta da prestação de alimentos a favor da sua filha CC;

5. A jovem CC frequenta curso superior;

6. A requerente suporta as despesas da jovem CC, com excepção das referentes a propinas, beneficiando esta de uma bolsa de estudo para tal.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Da alegada nulidade processual e da violação do princípio do contraditório

Alega o Recorrente que em momento posterior à realização da conferência a que alude o art.º 35.º do RGTPC, sem que tenha existido acordo entre os pais, e após notificados para alegações nos termos do arts.º 39.º, n.º 4 ex vi art.º 41.º, n.º 7 RGTPC, tendo sido arroladas testemunhas pelo aqui Recorrente, é este surpreendido com a presente sentença do qual se recorre, e que a douta sentença ad quo não respeitou o previsto no art.º 39.º, n.º 7 do RGTPC, dessa forma omitindo uma formalidade prescrita na lei, geradora de nulidade (nos termos do art.º 39.º, n.º 7 do RGTPC e art.º 195.º do CPC).
Vejamos.
Resulta do disposto no artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC):
1 - Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.
2 - Se o acordo tiver sido homologado pelo tribunal ou este tiver proferido a decisão, o requerimento é autuado por apenso ao processo onde se realizou o acordo ou foi proferida decisão, para o que será requisitado ao respetivo tribunal, se, segundo as regras da competência, for outro o tribunal competente para conhecer do incumprimento.
3 - Autuado o requerimento, ou apenso este ao processo, o juiz convoca os pais para uma conferência ou, excecionalmente, manda notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente.
4 - Na conferência, os pais podem acordar na alteração do que se encontra fixado quanto ao exercício das responsabilidades parentais, tendo em conta o interesse da criança.
5 - Não comparecendo na conferência nem havendo alegações do requerido, ou sendo estas manifestamente improcedentes, no incumprimento do regime de visitas e para efetivação deste, pode ser ordenada a entrega da criança acautelando-se os termos e local em que a mesma se deva efetuar, presidindo à diligência a assessoria técnica ao tribunal.
6 - Para efeitos do disposto no número anterior e sem prejuízo do procedimento criminal que ao caso caiba, o requerido é notificado para proceder à entrega da criança pela forma determinada, sob pena de multa.
7 - Não tendo sido convocada a conferência ou quando nesta os pais não chegarem a acordo, o juiz manda proceder nos termos do artigo 38.º e seguintes e, por fim, decide.
8 – (…).” (sublinhado nosso)
Por sua vez, o art. 39º, nº 7, do RGPTC dispõe que “se forem apresentadas alegações ou apresentadas provas, tem lugar a audiência de discussão e julgamento no prazo máximo de 30 dias.”

Note-se que este regime é aplicável ao presente caso (em que a menor atingiu já a maioridade), por força do disposto no art. 989º do CPC.
No caso vertente, foi ordenada a notificação do requerido para alegar o que tiver por conveniente nos termos do nº 3 do artigo 41º do RGPTC.
O Requerido deduziu oposição ao requerimento inicial.
Nessa sequência teve lugar a conferência a que alude o nº 3 do referido artigo 41º do RGPTC, não se tendo obtido qualquer acordo sobre o objecto dos autos.
Na respectiva acta o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
- “Oportunamente, faça os presentes autos conclusos.”
Aberta oportunamente conclusão nos autos, o tribunal a quo proferiu mais o seguinte despacho:
“-Notifiquem-se as partes nos termos e para os efeitos do art. 39º, n.º4, do RGPTC, aplicável por força do disposto no art. 41º, n.º7, do RGPTC.”
Nessa sequência o requerido apresentou alegações, juntas a 29-12-2023, onde, em síntese, reiterou o alegado na oposição junta a 12-07-2023. A requerente apresentou alegações, juntas a 17-01-2024, onde também reiterou o alegado no requerimento inicial e no articulado junto a 12-09-2023.
Após, foi proferido o seguinte despacho:
- “Alegações juntas a 29-12-2023 e 17-01-2024 e promoção de 29-01-2024:
Considerando os termos do litígio, que se reconduz a questões de direito, não se vislumbra utilidade na realização de diligências probatórias, podendo o incidente ser decidido sem audiência de discussão e julgamento.
Vão os autos, por isso, ao MP para, querendo, se pronunciar sobre o mérito do litígio.”
Tal despacho não foi notificado à Requerente, nem ao Requerido.
Após o Ministério Público se ter pronunciado sobre esse despacho, o Tribunal a quo proferiu logo de seguida a sentença recorrida.
Ora, atento processado dos autos é evidente que não foi seguido pelo Tribunal a quo o iter processual legalmente previsto, o qual prevê que se forem apresentadas alegações ou apresentadas provas, tem lugar a audiência de discussão e julgamento.
Alega o recorrente que, ao ter sido surpreendido com a sentença sem a previa realização da audiência de julgamento, foi violado o disposto no art.º 39º, nº 7, do RGPTC, o que determina a nulidade da sentença nos termos do art.º 195º do Cód. Proc. Civil.
Sobre esta matéria pronunciou-se recentemente esta Relação, no Acórdão de 29.02.2024, proc. 2946/17.8T8BRG-D.G1, num caso semelhante, que, por concordarmos com a sua fundamentação, aqui seguiremos de perto e se transcreve a seguinte passagem:
- (…) ”Uma sentença (ou um despacho) pode ser visto como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença/despacho no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html).    
Enquanto trâmite pode ser afetada por uma nulidade processual plasmada no artigo 195º do CPC, se se verificar alguma das situações nele referidas: a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.      
Enquanto acto está sujeito à nulidade da sentença, se se verificar alguma das situações plasmadas nas diversas alíneas do n.º 1 art.º 615º do CPC, nomeadamente, a referida na alínea d), quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.          
À economia do recurso releva a sentença enquanto trâmite.
Assim dispõe o art.º 195º n.º 1 do CPC
1 - Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Uma das causas de nulidade processual é a prática de um acto em violação da sequência processual fixada pela lei.
Assim refere Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, 3ª edição, Volume 1º, pág. 381:
“(…) na verificação da nulidade, há que atender ao momento processual em que o ato é ou devia ter sido praticado, de tal modo que a prática de atos processuais por ordem inversa daquela por que deviam ter sido praticados, equivale, ao mesmo tempo, à prática inadmissível do ato praticado em primeiro lugar e à omissão do ato que, segundo a lei, o devia preceder (…)”
Em principio a nulidade processual deve ser invocada no tribunal que cometeu a irregularidade e no prazo previsto no art. 199º n.º 1:
a) se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar;
 b) se não estiver, o prazo para a arguição (de 10 dias, nos termos do n.º 1 do art.º 149º do CPC) conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
No entanto, Alberto dos Reis, in CPC Anotado, V, reimpressão, Coimbra, 1984, pág. 424, referia que “se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infração de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos e não por meio de arguição de nulidade do processo.”
Era também esta a posição de Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 183, que afirmava: “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo ato ou omissão em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo.”
Por sua vez, Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, pág.133, pronunciava-se quanto ao modo de arguição das nulidades, dizendo: “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está, ainda que indireta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há despacho que pressuponha o ato viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respetivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reação contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respetivo recurso (art.º 677.º, n.º 1), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 666.º).”
 Também Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 387 e segs. afirmava: “as nulidades, para cuja apreciação é competente o tribunal onde o processo se encontre ao tempo da reclamação, (…) serão julgadas logo que apresentada reclamação (…). Se, entretanto, o ato afetado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão.”
Destarte, desde que a nulidade esteja coberta por decisão judicial, o meio próprio para a invocar é o recurso e não a reclamação junto do tribunal que cometeu a irregularidade.”
No caso em apreço, como já acima dissemos, não há dúvida que não foi seguida a tramitação processual prevista na lei, ao ter sido proferida sentença final sem que tivesse havido lugar à realização da audiência de discussão e julgamento.
A omissão desta formalidade não é de somenos importância, dado ser o momento processual próprio onde as partes podem produzir as provas indicadas ou requerem aí o que tiverem por conveniente e, por fim, produzirem alegações orais em defesa dos respectivos pontos de vista assumidos nos articulados.
Decorre, assim, que a imputada irregularidade efectivamente ocorrida na tramitação processual, é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, na medida em que com a sentença recorrida proferida sem prévia realização da audiência, não foi concedida às partes a faculdade de produzirem as respectivas provas, de aí requerem eventuais declarações de parte e de produzirem alegações orais.
Deste modo, a sentença recorrida foi proferida em violação da tramitação legalmente estabelecida para o processo de incumprimento das responsabilidades parentais, o que constitui nulidade processual, nos termos previstos no citado artigo 195º, nº 1, do CPC.
No aresto supra-citado teceram-se ainda as seguintes considerações que também aqui acompanhamos:
- (…) “Nos termos do art.º 33º do RGPTC, nos casos omissos são de observar, com as devidas adaptações, as regras de processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores.
E as normas do CPC convocáveis para o caso em apreço que não contrariam os fins da jurisdição de menores são:
- o art.º 130º, o qual dispõe que não é licito realizar no processo atos inúteis, sendo este normativo uma das manifestações do princípio da economia processual.
- o art.º 6º n.º 1, o qual dispõe que cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, ouvidas as partes, adotar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável;
- o art.º 547º, o qual dispõe que o juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.
Este normativo tem em vista situações em que a tramitação processual prevista na lei não é a adequada às exigências do caso concreto e pressupõe “a detecção da ineficiência e/ou da ineficácia da forma processual predisposta segundo o principio da legalidade, cabendo ao juiz decidir qual a resposta mais ajustada em face da natureza do acto, do circunstancialismo do processo ou da necessidade do ajustamento a duas ou mais pretensões que, separadamente, seguiriam formas processuais distintas”. (cfr Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, I, 2ª edição, pág. 621).
E permite ao tribunal adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, ou seja, possibilita “ a construção, em bloco, de uma tramitação alternativa, quer a adaptação de aspectos parcelares e pontuais da tramitação legal, aqui se incluindo a dispensa da prática de actos que se revelem concretamente desnecessários ou a sua substituição por outros tidos por mais adequados à especificidades da causa” (auts. e ob cit. pág. 621).
Ainda que se pudesse sustentar que, à luz destes normativos do CPC, passíveis de aplicação ao processo tutelar cível nos termos do art.º 33º do RGPTC, não estaria vedado ao Tribunal adaptar o processado ou conhecer antecipadamente do mérito da causa (por dispor de todos os elementos de prova no processo), nunca o poderia fazer sem previamente ouvir as partes para o efeito, por assim o impor o principio do contraditório.
Este principio era, tradicionalmente, entendido como impondo que: a) formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, devia ser dada à outra a oportunidade de se pronunciar, antes de qualquer decisão; b) oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e sobre ela tinham, ambas, o direito de se pronunciar.
A esta noção substitui-se uma mais lata, com origem na garantia constitucional do rectliches Gehör germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão (Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 3ª edição, pág.124-125).
Neste sentido, o principio do contraditório é uma decorrência do direito a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do art.º 20º da CRP.”
Isto posto, cumpre ainda realçar o seguinte.
O art. 3º do CPC insere-se no título das disposições e dos princípios fundamentais.
Nos termos do nº 3 do art. 3º do Código de Processo Civil, o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Por sua vez, o nº 4 desse artigo prevê que às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
Consagrando a Constituição da República Portuguesa, no seu atrt. 20º, nº 4, a garantia de processo equitativo, daí decorre que a medida de tutela final (no caso, judicial) seja produzida com participação dos titulares da relação litigiosa.
No dizer de Rui Pinto, CPC Anot., Vol. I, pag. 39 e ss, “num sentido objectivo a participação dos interessados é a própria lógica de estruturação do processo e que se sintetiza numa afirmação: a decisão judicial sobre uma providência requerida deve ser o resultado de um procedimento ou método que implique uma faculdade de comparticipação, colaboração ou influência paritárias”. Assim, no decurso do processo, as partes, independentemente da sua posição (activa ou passiva), podem pronunciar-se previamente sobre cada acto que as afecte.
Ainda segundo o mesmo autor, num sentido subjectivo o princípio do contraditório implica um direito de defesa.
Decorre do exposto que são proibidas as decisões surpresa, ou seja, sem prévia oportunidade de participação ou audição de partes, de modo que não é lícito ao juiz decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, como refere o art. 3º, nº 3, citado.
Neste sentido, o Ac. do STJ, de 27.09.2011, sustenta que “o direito de audiência consubstancia-se no direito do interessado a conhecer, previamente à decisão, o sentido provável desta, e a poder expor sobre ele o seu ponto de vista, direito que tem apoio no art. 267º, nº 5, da CRP. Para poder exercer o seu direito, o interessado deverá ser notificado dos elementos de facto e de direito relevantes para a decisão, pois, sem esses elementos seria impossível o interessado apresentar os seus argumentos”.
Assim, uma decisão-surpresa enferma de nulidade nos termos do art. 195º, na medida em que pode influir no exame ou na decisão da causa.
Na doutrina e na jurisprudência tem surgido sobre esta matéria um conceito de decisão-surpresa aparentemente mais restrito, entendendo-se por ela a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes (cfr Ac. RL de 7.04.2016 e Lebre de Freitas, CPC anot., I, 9).
Este conceito restrito de decisão-surpresa, com o qual se concorda, tem importância para delimitar a dispensa de audição prévia por “manifesta desnecessidade”: o tribunal não deve notificar as partes para pronúncia prévia quando o fundamento decisório foi previamente considerado pelas partes (ainda que implicitamente) ou estas não o podiam ignorar, por evidente. Em todo o caso, como refere Rui Pinto, ob. cit., pag. 41, a dispensa de audição prévia por “manifesta desnecessidade” é execional: o seu uso deve ser parcimonioso; na dúvida deve o tribunal ouvir antes de decidir.”
Conforme se sustenta no Ac. do STJ, de 12-07.2018, proc. 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, “o princípio do contraditório, que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, implica, nos termos do estipulado pelo artigo 3º, nº 1, do CPC, que “o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”, por não lhe ser lícito, continua o respetivo nº 3, “salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Do princípio do contraditório decorre a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar[3].
Porém, a decisão-surpresa que a lei pretende afastar, afoitamente, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram previsíveis, não se confundindo a decisão-surpresa com a suposição que as partes possam ter concebido quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter realizado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta, designadamente, quando lhes foi apresentada uma versão fáctica não contrariada e que, manifestamente, não consentiria outro entendimento.” (sublinhado nosso)
Tecidas estas considerações e revertendo ao caso dos autos, temos a seguinte tramitação:
- Nessa sequência da apresentação das alegações a que alude o artigo 39º, nº 4, do RGPTC, foi proferido o seguinte despacho:
- “Alegações juntas a 29-12-2023 e 17-01-2024 e promoção de 29-01-2024:
Considerando os termos do litígio, que se reconduz a questões de direito, não se vislumbra utilidade na realização de diligências probatórias, podendo o incidente ser decidido sem audiência de discussão e julgamento.
Vão os autos, por isso, ao MP para, querendo, se pronunciar sobre o mérito do litígio.”
Tendo os autos ido com vista ao Ministério Público, foi promovido: “Nada vemos que obste”.
De seguida foi proferido novo despacho nos seguintes termos:
- “Face à promoção de 08-02-2024, vão os autos ao MP para, querendo, se pronunciar sobre o mérito do litígio.”
Tendo os autos ido novamente com vista ao Ministério Público, pelo mesmo foi apresentada promoção.
De tais despachos não foi ordenada a notificação da Requerente, nem do Requerido.
Nessa sequência foi proferida a sentença recorrida.
Temos assim que o tribunal a quo procedeu à prolação da sentença recorrida, na qual se conheceu do mérito da acção, sem ter concedido às partes o direito de se pronunciarem sobre se concordavam ou não com a “dispensa” da realização da audiência de discussão e julgamento manifestada no processo mediante o despacho de 6.02.2024, nem sobre o teor do despacho de 14.02.2024 (que concedeu apenas ao MºPº a faculdade de se pronunciar sobre o mérito).
Com efeito, o Tribunal a quo não ordenou a notificação de tais despachos ao Requerido, nem à Requerente, o que configura uma violação do princípio do contraditório, pelo que a sentença recorrida constitui uma decisão surpresa.
Por consequência, impõe-se a procedência, nesta parte, das conclusões da apelação, que determina a anulação da sentença, de modo a serem cumpridas pelo Tribunal a quo as apontadas formalidades processuais omitidas.
Deste modo, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas relativas ao alegado erro de julgamento (cfr. art. 608º, nº 2, do CPC).
*
Sumário:

- Uma sentença (ou um despacho) pode ser visto como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença/despacho no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.

- Enquanto trâmite pode ser afectada por uma nulidade processual plasmada no artigo 195º do CPC, se se verificar alguma das situações nele referidas.

- Uma das causas de nulidade processual é a prática de um acto em violação da sequência processual fixada pela lei.

- Se a nulidade processual estiver coberta por decisão judicial, o meio próprio para a invocar é o recurso e não a reclamação junto do tribunal que cometeu a irregularidade.

- A decisão-surpresa que a lei pretende afastar, nos termos do nº 3 do artigo 3º do CPC, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, anula-se a sentença recorrida, devendo o Tribunal a quo suprir as apontadas nulidades processuais, prosseguindo os autos os seus trâmites legalmente previstos.
Custas pela Recorrida.
Guimarães, 16.05.2024

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: Elisabete Moura Alves
Margarida Gomes