Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | FERNANDO BARROSO CABANELAS | ||
| Descritores: | QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA INSOLVÊNCIA CULPOSA DEVER DE COLABORAÇÃO DO INSOLVENTE | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 10/12/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | 1. O dever de colaboração a cargo do insolvente, previsto no artº 83º, do CIRE, traduz-se num dos mais importantes ónus que sobre o mesmo impende, podendo inclusivamente, em caso de falta injustificada, ter como consequência a sua comparência sob custódia, por ordem de juiz, que aprecia livremente a recusa de prestação de informações ou de colaboração, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa. 2. Viola reiteradamente aquele dever o insolvente que, a despeito de conhecer a pendência do processo de insolvência, no qual constitui mandatário a favor da ora insolvente e enquanto representante desta, e mesmo depois de diversa correspondência para si remetida e de telefonemas com o administrador judicial ao longo do processo, não ter facultado a este os elementos que o mesmo lhe solicitou, nem justificado devidamente tal omissão, mantendo-se confortavelmente à margem do incidente de qualificação de insolvência, onde, por força da sua ausência, alegadamente no estrangeiro, lhe foi nomeado patrono oficioso. 3. Verificada que seja a factualidade consubstanciadora da alínea i), do artº 186º, do CIRE, haverá que qualificar-se a insolvência como culposa, presumindo-se a culpa do aqui recorrente e o nexo de causalidade entre aquela sua conduta e o resultado, sem admissibilidade de prova em contrário. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório: Na sequência da declaração da insolvência de I... - Arquitetura, Engenharia & Construção, Lda, foi determinada oficiosamente a abertura do apenso respeitante ao incidente de qualificação da insolvência. Notificado o AI com vista a remeter o parecer referido no art.º 188.º, n.º 2 do CIRE, propôs aquele que a mesma fosse considerada culposa, por estarem verificadas as situações previstas nas als. a), b), d), f), h) e i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE tendo sido requerida a afetação de AA, BB e CC. Dada vista ao Ministério Público, nos termos da previsão do n.º 3 do citado dispositivo legal, acompanhou aquele o parecer supracitado. Notificada a devedora e citados os Requeridos (CC por via edital), foram deduzidas oposições por AA e BB, pugnando estes pela respetiva absolvição. A credora Banco 1... respondeu às oposições apresentadas, reafirmando os argumentos e razões anteriormente aduzidas no parecer apresentado pelo AI. Realizou-se a audiência final, com observância do pertinente formalismo legal. Foi prolatada sentença com o seguinte dispositivo: “Em conformidade com o exposto, decide o Tribunal: i. qualificar a insolvência de I... - Arquitetura, Engenharia & Construção, Lda como culposa; ii. declarar CC, a pessoa afetada pela qualificação da insolvência como culposa; iii. decretar a inibição de CC, por um período de 2 anos, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; iv. determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo mencionado CC e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; v. condenar CC a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios; vi. absolver os demais requeridos AA, BB. Custas pelo Requerido CC [art. 304.º do CIRE]. Registe e notifique.” Inconformado com a decisão, o afetado apelou, formulando as seguintes conclusões: I. Vem o presente recurso interposto da sentença prolatada a 14/06/2023, que, julgando verificadas as presunções inilidíveis previstas nas alíneas d), h) e i) do número 2 do artigo 186º do CIRE, decidiu qualificar a insolvência de “I... - Arquitetura, Engenharia & Construção, Lda.” como culposa, declarou o recorrente CC, de nacionalidade ..., afetado por essa qualificação; decretou a respetiva inibição para o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo em sociedades, associações, fundações ou empresas públicas, determinou a perda de quaisquer créditos daquele sobre a massa insolvente, condenando-o a restituir bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, condenou o recorrente a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios e por fim, absolveu os demais requeridos AA, BB. II. A sentença recorrida não pode subsistir pois que, com o devido respeito, que muito é, incorreu em erro no julgamento da matéria de facto, acolheu conclusões como de factos se tratassem, fez incorreta aplicação e interpretação da matéria de direito, em contradição até com a matéria não provada. III. Não se verificam in casu nenhum dos factos-índice listados nos números 2 e 3 do artigo 186º do CIRE, porquanto não se retira do elenco de factos provados matéria suficiente para densificar e concretizar os seguintes pressupostos, imprescindíveis à aplicação das alíneas d), h) e i) do nº 2 daquele normativo: (i) disposição de bens do devedor (ii) em proveito próprio ou terceiro, (iii) incumprimento da obrigação de manutenção de contabilidade/adulteração da contabilidade (iv) em termos substanciais (v) com prejuízo relevante para a perceção da situação económico-financeira da insolvente, (vi) incumprimento das obrigações de apresentação e de colaboração com o A.I. (vii) de forma reiterada – cfr. inter alia, os Acórdãos desta Relação de Guimarães, de 11/05/2023 (Maria João Matos), processo nº 2411/20.6T8VCT-D.G1 e da Relação de Coimbra de 10/12/2019, processo nº 5888/17.3T8VIS-D.C1 e de 25/05/2021, processo nº 5165/18.2T8VIS- C.C1 (Arlindo Oliveira), disponíveis em www.dgsi.pt. IV. No modesto entender do impetrante foram incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, alínea a) CPC) os pontos 3.8 [Nomeado nos autos, o AI solicitou à Insolvente, através de expediente postal registado remetido para a sede social em 11.02.2020, em nome da sociedade e em nome do respetivo gerente, a prestação de diversa informação e elementos, mormente contabilístico], 3.9 [As referidas comunicações foram rececionadas em 17.02.2021, sem que porém tivesse o AI obtido qualquer resposta ou colaboração por parte da gerência, apesar das sucessivas insistências via contacto telefónico] e 3.11 [Aquando da declaração da insolvência, o saldo de caixa da Devedora apresentava um valor de € 10.004,01, o qual, pedido ao respetivo gerente, não foi pelo mesmo entregue, resultando num prejuízo de igual valor para a massa insolvente] da matéria de facto provada, que deveriam ter sido dados como não provados. V. Existem nos autos elementos que impunham decisão diversa da recorrida, relativamente àqueles factos (art. 640º, nº 1, alínea b) do CPC), já que a insolvente e o gerente não foram efetivamente notificados pelo Administrador de Insolvência (A.I.) para prestar informações/esclarecimentos, dado que as ditas notificações, expedidas, ambas, para a sede social da insolvente, não foram recebidas, tendo sido depositadas no recetáculo postal, sendo certo que não foi enviada carta registada com aviso de receção para o domicílio do gerente, cumprindo as formalidades da citação pessoal – cfr. documentos nºs ...2, ...3, ...4 e ...5 anexos ao parecer do A.I. de 22/05/2021 (ref.ª CITIUS ...27). VI. Não existiu nenhuma outra tentativa de notificação do devedor pelo A.I., contrariamente ao que deveria ter ocorrido, para se poder concluir pela notificação da insolvente e do aqui requerido-recorrente e o A.I. não podia ignorar a falta de notificação do requerido, pois que, no relatório junto aos autos principais, elaborado nos termos do artigo 155º do CIRE, de 12/03/2021 (ref.ª CITIUS ...04), refere no ponto 5.1 que na presente data, a Insolvente encontra-se encerrada e no ponto 5.4 que a insolvente está Sem estabelecimento aberto. VII. A falta da cabal notificação do recorrente retira-se ainda da certidão de não citação de 25/10/2021 (ref. CITIUS nº ...92), que justificou até a prolação do despacho de 26/10/2021 (ref.ª CITIUS nº ...26), ordenando a citação do signatário para intervir nos autos como defensor oficioso do recorrente – que, recorde-se, é de nacionalidade ... e trabalha em Espanha – cfr. ponto 18 do parecer do A.I. de 22/05/2021 (ref.ª CITIUS ...27). VIII. Impunha-se ao A.I. notificar o recorrente, cumprindo as formalidades da citação, para, só depois, invocar o incumprimento dos deveres de colaboração e apresentação – neste sentido, inter alia, Acórdão da Relação do Porto de 23/11/2020 (Fernanda Almeida), proc. nº 1033/11.7TYVNG-A.P1, disponível em www.dgsi.pt. IX. A isto acresce que, em nosso ver, o Tribunal a quo não investigou o rigor (rectius, a falta de rigor) do parecer do A.I., assumindo como verídicas afirmações que não o são, quando podia – e devia – ter feito essa averiguação, imposta pelo princípio do inquisitório (art. 11º do CIRE), o que sobressai, outrossim, da circunstância de o ponto 3.8 dos “factos provados” da sentença ser uma mera transcrição ipsis verbis do ponto 17 do parecer do A.I. de 22/05/2021 (ref.ª CITIUS ...27) que contém um lapso: diz-se que foi remetida notificação à insolvente a 11/02/2020, o que é impossível, dado que a insolvência foi decretada a 09/02/2021. X. E mesmo que o devedor houvesse sido notificado, tal circunstancialismo seria insuficiente para considerar verificado o facto-índice da alínea i) do nº 2 do artigo 186º CIRE, já que a Lei apenas sanciona o incumprimento “de forma reiterada”, que, perscrutados os autos, não se entrevê. XI. Razões pelas quais, os factos provados a que se alude em IV deverão ter-se por não provados, aditando-se ao elenco da “matéria de facto não provada” o seguinte: e) Nomeado nos autos, o AI solicitou à Insolvente, através de expediente postal registado remetido para a sede social em 11.02.2020, em nome da sociedade e em nome do respetivo gerente, a prestação de diversa informação e elementos, mormente contabilístico. f) As referidas comunicações foram rececionadas em 17.02.2021, sem que, porém, tivesse o AI obtido qualquer resposta ou colaboração por parte da gerência, apesar das sucessivas insistências via contacto telefónico. g) Aquando da declaração da insolvência, o saldo de caixa da Devedora apresentava um valor de € 10.004,01, o qual, pedido ao respetivo gerente, não foi pelo mesmo entregue, resultando num prejuízo de igual valor para a massa insolvente. XII. Esta falta de densidade factual estende-se ao facto-índice da alínea h) do nº2 do artigo 186º do CIRE, que se verifica quando ocorre um incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada/ manutenção de uma contabilidade fictícia/dupla contabilizado/prática irregular, com prejuízo relevante para a compreensão da situação económico-financeira do devedor – também aqui nenhum dos factos provados suporta semelhante conclusão. XIII. A míngua de factos sustentadores da alínea h) do citado nº 2 do artigo 186º do CIRE ressalta ainda quando compulsada a alínea d) da matéria de facto não provada da sentença recorrida, que considerou inexistir prova de adulteração da contabilidade pelos requeridos. XIV. Quanto à não verificação do facto-índice da alínea d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, nada na matéria de facto provada concretiza e baliza, cronológica e economicamente, a disposição de bens do devedor nem o correspetivo proveito pessoal ou de terceiros, como se impunha – neste sentido, o Acórdão desta Relação de Guimarães de 01/06/20217 (Pedro Damião e Cunha), processo nº 1046/16.2TGMR-B.G1, disponível em www.dgsi.pt. XV. Ainda quanto à ausência de factos sustentatórios da presunção do artigo 186º, nº 2, alínea d) do CIRE, a única referência a esta questão, na decisão a quo, cinge-se às alíneas b) e c) dos factos não provados – o que significa que não se verificou. XVI. Ademais, o recorrente assumiu a gerência durante cinco meses, menos de 15% do cômputo temporal prescrito pelo nº 1 do artigo 186º do CIRE, pelo que, a responsabilizar-se alguém por uma putativa insolvência culposa, não será o recorrente, cumprindo salientar que, com a declaração de insolvência de 09/02/2021, o apelante ficou despido dos seus poderes de gestão da sociedade, não incumprindo nenhum prazo legal de apresentação de contas, que, nesse ano de 2021, quanto às declarações de IRC e da IES, transcorreram, respetivamente, a 16/07/2021 e 22/07/2021 – cfr. o Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais n.º 191/2021-XXII, de 15 de junho. XVII. Por fim, saliente-se que a sentença a quo empregou o advérbio designadamente na sustentação legal da decisão, o que diminui a possibilidade do respetivo escrutínio, sobretudo neste âmbito de um elenco taxativo de presunções inilidíveis, o que convoca a questão da eventual nulidade da sentença, por falta da devida especificação dos fundamentos de direito, em preterição do disposto (artigo 615º, nº 1, alínea b) do CPC), que à cautela se invoca. XVIII. Sem prescindir, e também por dever de patrocínio, dir-se-á que a decisão recorrida está em oposição direta com os respetivos fundamentos fácticos (sobretudo os não provados), o que poderá fulminar de nulidade a sentença, atento o disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c), primeira parte, do Código de Processo Civil. XIX. Em face de tudo quanto antecede, a sentença recorrida violou, pois, as regras ínsitas nos artigos 11º, 186º, nº 2, alíneas d), h) e i) do CIRE e bem assim as do artigo 615º, nº 1, alíneas b) e c) do Código de Processo Civil, motivos pelos quais deve ser revogada por esta Relação e substituída por outra que declare a presente insolvência como fortuita, absolvendo o recorrente. Nestes termos, e nos melhores de direito aplicáveis, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, dando provimento ao presente recurso e revogando a sentença recorrida no sentido acima exposto, fará, pois, esta Relação, a habitual e necessária JUSTIÇA. Foram apresentadas contra-alegações pelo Ministério Público, pugnando pela manutenção do decidido. Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos. ********** II – Questões a decidir:Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso. As questões a decidir são, assim, apurar se a sentença é nula; se a matéria de facto relativamente aos pontos impugnados foi corretamente fixada; se os factos-índice do artº 186º, nº2, alíneas d), h), e i), se devem considerar preenchidos. ********* III – Fundamentação:A. Fundamentos de facto: 1.A Insolvente, "I... - Arquitetura, Engenharia & Construção, Lda", foi constituída em 02.02.2016 e tendo como sócios, DD, BB, EE e FF, cada um com uma quota de € 1.250,00, e tendo sido designado gerente DD. 2. Aquela sociedade tinha por objeto social: Atividades de construção e restauro; Promoção imobiliária; Arrendamento; compra e venda de bens imobiliários; Atividades de Arquitetura; engenharia e técnicas afins. 3. À data da declaração da insolvência, eram sócios CC, titular de quotas no valor nominal de € 126.000,00 e, GG de uma quota no valor de € 14.000,00, sendo gerente ao primeiro desde 11.09.2020. 4. CC integrou a sociedade, com a compra de uma quota de €35.000,00 em 11.09.2020, tendo posteriormente adquirido outra quota de €70.000,00, em 06.10.2020, e outra de € 21.000,00, em 28.10.2020. 5. Por sua vez, GG integrou a sociedade em 12.09.2020, com a aquisição de uma quota de € 14.000,00. 6. Ao longo do tempo, a gerência da Devedora foi assumida por diversos intervenientes, designadamente: DD, de 02.02.2016 a 26.12.2019; BB de 26.12.2019 a 11.09.2020; AA de 26.12.2019 a 05.05.2020; e CC desde 11/09/2020. 7. A insolvência foi requerida pelo credor R... - Comércio de Materiais de Construção, Lda., em 10.11.2020, tendo a mesma sido declarada por sentença datada de 09.02.2021 e com anúncio publicitado no Portal Citius no mesmo dia. 8. Nomeado nos autos, o AI solicitou à Insolvente, através de expediente postal registado remetido para a sede social em 11.02.2021[1], em nome da sociedade e em nome do respetivo gerente, a prestação de diversa informação e elementos, mormente contabilístico. 9. As referidas comunicações foram rececionadas em 17.02.2021, sem que, porém, tivesse o AI obtido qualquer resposta ou colaboração por parte da gerência, apesar das sucessivas insistências via contacto telefónico. (consigna-se que o tribunal recorrido não fixou facto provado nº 10) 11. Aquando da declaração da insolvência, o saldo de caixa da Devedora apresentava um valor de €10.004,01, o qual, pedido ao respetivo gerente, não foi pelo mesmo entregue, resultando num prejuízo de igual valor para a massa insolvente. ****** O tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos: a) Os sucessivos gerentes ora requeridos procederam a diversos levantamentos e transferências indevidas das contas bancárias tituladas pela Devedora de forma indevida, tendo-se apoderado dos respetivos valores em proveito próprio ou de terceiros. b) A gerência da devedora, na altura exercida por BB e AA deslocalizou os bens da insolvente para um armazém na Rua ... ... em ..., ali os tendo deixado ao abandono, o que contribuiu para o desaparecimento de parte dos referidos materiais e equipamentos. c) BB e AA dissiparam bens do património da Devedora, tendo-se apropriado do produto dos mesmos. d) A contabilidade da Devedora foi pelos gerentes ora requeridos manipulada por forma a que da mesma constassem lucros e proveitos fictícios, com o objetivo de passar para a banca, fornecedores e Estado uma imagem distorcida da sua realidade financeira e contabilística, causando um prejuízo aos respetivos credores. ********** B. Fundamentos de direito. Ao arrepio da precedência imposta pelo artº 608º, nº 1 e 2 do CPC ex vi artº 663º, nº2, do mesmo diploma, o recorrente, e por esta ordem, impugnou a matéria de facto, alegou erros de julgamento e arguiu a nulidade da sentença. Considerando a ordem imposta pelo artº 608º, nº1, do CPC, a primeira questão a resolver é o conhecimento da alegada nulidade da sentença. O recorrente considera que a sentença é nula, nos termos e com os fundamentos constantes do artº 615º, nº1, alíneas b), e c) do CPC. As causas de nulidade das sentenças estão previstas no artº 615º do CPC: Artigo 615.º (art.º 668.º CPC 1961) Causas de nulidade da sentença 1 - É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. 2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura. 3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior. 4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades. As nulidades da decisão são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença (no caso do despacho), o que não é confundível com o erro de julgamento, ou sequer com um alegado erro na forma de processo. Pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17/12/2018, disponível em www.dgsi.pt: “Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC, e reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal. Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronuncia ultra petitum. Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” (Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.). Diferentemente desses vícios, são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros ocorridos ao nível do julgamento da matéria de facto ou ao nível da decisão de mérito proferida na sentença/decisão recorrida, decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa. Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, sendo que esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença (vícios formais), sequer do poder à sombra do qual a sentença é proferida, mas ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in iudicando, atacáveis em via de recurso (Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277). Assente o supra exposto, dir-se-á que inexiste o preenchimento da citada alínea b). Os fundamentos de facto e de direito justificativos da decisão foram especificados. Saber se os mesmos foram ou não bem decididos é questão de mérito, que não contende com a validade formal da sentença. Por outro lado, o recorrente alegou contradição entre os factos não provados e a decisão prolatada. Mas, no que tange à alegada contradição entre os fundamentos e a decisão, ela patentemente inexiste. Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC anotado, vol. II, em anotação ao artº 615º, do CPC, “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica, e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial (artº 186º, nº2, alínea b), do CPC). Também aqui, a procedência das alegações do recorrente pode levar-nos à conclusão de que existiu erro de julgamento, por os meios de prova imporem decisão diferente da prolatada, coisa diferente de haver contradição entre os fundamentos e a decisão. Improcede, assim, a arguição de nulidade da sentença. O recorrente impugnou também a matéria de facto, concretamente os pontos 3,8, 3.9, e 3.11 da matéria de facto provada, considerando que deveriam ter sido dados como não provados. Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” Resulta desta norma que ao apelante se impõem diversos ónus em sede de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida. Compulsado o teor do recurso, mostram-se genericamente cumpridos os requisitos legais. O recorrente considera incorretamente julgados os pontos 3,8, 3.9, e 3.11 da matéria de facto provada, considerando que deveriam ter sido dados como não provados. Recordemos a redação dos referidos factos: 8. Nomeado nos autos, o AI solicitou à Insolvente, através de expediente postal registado remetido para a sede social em 11.02.2020, em nome da sociedade e em nome do respetivo gerente, a prestação de diversa informação e elementos, mormente contabilístico. 9. As referidas comunicações foram rececionadas em 17.02.2021, sem que, porém, tivesse o AI obtido qualquer resposta ou colaboração por parte da gerência, apesar das sucessivas insistências via contacto telefónico. 11. Aquando da declaração da insolvência, o saldo de caixa da Devedora apresentava um valor de €10.004,01, o qual, pedido ao respetivo gerente, não foi pelo mesmo entregue, resultando num prejuízo de igual valor para a massa insolvente. Alegou o recorrente que não foi efetivamente notificado para prestar as informações/esclarecimentos, dado que as notificações foram expedidas para a sede social da insolvente, não tendo sido recebidas, mas sim depositadas no recetáculo postal, sendo certo que não foi enviada carta registada com aviso de receção para o domicílio do gerente, cumprindo as formalidades da citação pessoal. O artº 9º, nº1, do CIRE, estatui que “Salvo disposição em contrário, as notificações de atos processuais praticados no processo de insolvência, seus incidentes e apensos, com exceção de atos das partes, podem ser efetuados por qualquer das formas previstas no nº 5 do artigo 172º do Código de Processo Civil”. Como flui dos documentos ..., ..., ... e ..., juntos pelo senhor administrador judicial em 22 de maio de 2021, tratavam-se os mesmos de solicitação de documentos e informação, não sujeita legalmente a qualquer forma especifica e obrigatória de notificação. Carece assim de sentido a alegação do recorrente que parece defender que deveria ter sido enviada carta registada com aviso de receção para o domicílio do gerente. Aliás, quanto a este, resulta do processo de insolvência, que a insolvente deduziu contestação ao processo de insolvência em 6 de janeiro de 2021, através de mandatário constituído por procuração subscrita pelo ora recorrente em 5 de janeiro de 2021 e junta ao processo em 27 de janeiro do mesmo ano. Ora, o primeiro dos pedidos de informação data de 21 de fevereiro de 2021 (o referido doc. ...), data posterior àquela constituição e subsequente apresentação de oposição nos autos de insolvência, razão pela qual o aqui recorrente não podia desconhecer (artº 6º do Código Civil) que, enquanto gerente e por força dessas suas funções, iria ser chamado a prestar informações e disponibilizar documentos. Mais, um dever mínimo de boa-fé e colaboração impunha até uma atitude proactiva do recorrente no sentido de procurar o senhor administrador judicial, fornecendo os elementos que este requeresse, ou até negando-os, fundamentando a sua posição. Não pode é o recorrente manter-se à margem do processo (comportamento autofágico) e procurar tirar proveito processual dessa sua ausência. A circunstância de a insolvente estar encerrada e sem estabelecimento aberto não obsta a que a correspondência pudesse ser levantada, ainda que posteriormente nos Correios .... O envio das cartas para a sede da insolvente, local de trabalho do ora recorrente, mostra-se assim perfeita e processualmente correto, tendo as notificações entrado na esfera jurídica daquela. Mais, inexiste nos autos a indicação de qualquer outra morada onde o recorrente, cidadão estrangeiro, pudesse ser notificado, que também nunca a forneceu, mantendo-se completamente à margem do processo (mas não o desconhecendo, como resulta da outorga da sobredita procuração, pormenor que para nós faz toda a diferença). A remessa das cartas para o seu local de trabalho foi não só lógica, como inevitável. Mantemos assim inalterada a redação da referida factualidade. O recorrente alega depois (conclusão IX) que o tribunal não averiguou o rigor das informações prestadas pelo senhor administrador de insolvência, dando como exemplo um lapso constante do ponto 3.8, onde refere 11/02/2020, ao invés de 2021. Trata-se de lapso percetível do contexto, que aliás oficiosamente supra corrigimos. Não obstante, o recorrente não alega concretamente qual a falta de rigor das informações vertidas, e qual a versão correta do(s) facto(s) prestada pelo senhor administrador judicial. Faz, antes, uma afirmação genérica que não nos permite extrair qualquer conclusão. Revela-se, assim, tal afirmação como inócua. Por outro lado, não só resulta provada a receção da correspondência, nos sobreditos termos, como também não se mostra alegado qualquer facto infirmativo da existência de quantias em caixa e/ou justificativas da não entrega ao senhor administrador judicial, mantendo-se, por isso, intocada, a redação do ponto 3.11. Insurge-se depois o recorrente contra a decisão do tribunal que considerou preenchidos os factos-índice previstos no artº 186º, nº2, alíneas d), h), e i), do CIRE. As questões ora controvertidas foram já analisadas em vários acórdãos do aqui relator (vg., entre muitos outros, processos nºs 530/21.0T8VCT-A.G1; 1251/19.0T8GMR-B.G1; 1515/19.2T8VRL-A.G1; 5250/19....) motivo pelo qual, por razões de coerência expositiva e uniformidade decisória, se seguirá de perto os mesmos. Na definição de Luís M. Martins[2], o incidente de qualificação da insolvência (pleno ou limitado) é um incidente obrigatório de apreciação da conduta do devedor e/ou dos seus administradores, que tem como finalidade a responsabilização dos mesmos nos casos em que existe culpa pela situação de insolvência. O incidente de qualificação pode ser limitado (artº 191º) ou pleno (artº 188º) e a insolvência pode ser qualificada como culposa (artº 186º), sujeita aos efeitos estatuídos no artº 189º, ou fortuita quando, por exclusão de partes, não estão preenchidos os requisitos do artº 186º. Dispõe o artº 186º, do CIRE, que: 1 – A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. 2 – Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas; c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa; f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto; g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência; h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artº 188º. 3 – Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial. 4 – O disposto nos nºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações. 5 – Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente. O recorrente insurge-se contra a decisão que julgou preenchida a alínea i), do preceito antecedentemente citado, pois a lei apenas sanciona o incumprimento reiterado que, alega, perscrutados os autos, não se vê – sic. Como supra deliberamos, explicando porquê, a redação dos factos provados 8 e 9 manteve-se. Tanto bastaria para considerar preenchida a citada alínea i). Mas ainda mais, a propósito das sucessivas insistências telefónicas referidas no nº 9 dos factos provados: resulta do requerimento apresentado nos autos pelo senhor administrador judicial em 22 de maio de 2022 que: 17. Tendo o administrador judicial (AJ) obtido o contacto telefónico do gerente, contactou-o mostrando-se o mesmo indisponível para reunir, com o argumento que se estava a deslocar para Espanha em trabalho, contudo quando estivesse em Portugal retornava a chamada para agendar a reunião; 18. Face ao silencio do mesmo, tornou-se a insistir junto do gerente, continuando o mesmo indisponível para reunir com o AJ, pois estava na ... (país de onde é natural) no funeral do Pai, mas mal regresse a Portugal retornava a chamada para reunir com o AJ, o que nunca aconteceu. Ou seja, mesmo numa fase posterior, ainda que tardiamente, o recorrente não se mostrou colaborante, continuando a não fornecer os elementos requeridos, sequer indicando uma morada da sua preferência para ser notificado. Não temos dúvidas em afirmar que houve um reiterado incumprimento do dever de colaboração. Depois, e mais uma vez, o recorrente mistura razões de facto com alegações de direito (conclusão XI), pretendendo que se dê como não provados alguns factos, já decididos, mas incluído agora uma alínea g), nos não provados. Atentas as considerações que já fizemos sobre a entrada da correspondência na esfera jurídica da insolvente e do aqui recorrente e ao já deliberado, nada temos a acrescentar que não seja o indeferimento do formalmente extemporâneo requerido. O recorrente impugna depois o preenchimento da alínea h), do nº2, do artº 186 do CIRE, alegando que a mesma só ocorre quando se verifica um incumprimento em termos substanciais de manter uma contabilidade organizada, com prejuízo relevante para a compreensão da situação económico-financeira do devedor, sendo que nenhum dos factos provados permite suportar tal conclusão. E, manifestamente, aqui o recorrente tem plena razão. A lei exige que tais omissões têm de se considerar graves, com consequências na situação de insolvência e no agravamento da mesma. A existência de contabilidade organizada não se destina exclusivamente a servir o interesse egoístico da empresa respetiva em ordem a permitir o controle interno da mesma perante os sócios, tem também uma função de interesse público traduzida na transparência perante quem com ela contrata, desde os próprios trabalhadores a fornecedores e adquirentes. Menezes Cordeiro[3] refere que “A necessidade de manter contas decorre do próprio exercício do comércio. Este, mesmo elementar, implica atos que o comerciante não pode reter sem apoio em notas. E são justamente estas, pelas informações que propiciam, que o poderão nortear em novas operações, sedimentando a experiência e dando corpo às disponibilidades. A escrituração terá começado por servir os interesses do próprio comerciante: operaria, na doutrina clássica, como espelho do interessado, funcionando como sua consciência ou a sua bússola. Mas, além disso, desde cedo se verificou que ela servia, também, os interesses dos credores e isso a um duplo título: - incentivando a um comércio cuidadoso e ordenado, a escrituração conduz a práticas que põem os credores (mais) ao abrigo de falências e bancarrotas; - permitindo conhecer a precisa situação patrimonial e de negócios, a escrituração faculta informações e determina responsabilidades. A partir daí, reconheceu-se que a escrituração servia toda a comunidade, facultando ainda ao Estado atuar com fins de polícia, de fiscalidade ou de supervisão. Numa evolução mais recente, a escrituração veio servir os investimentos e a expansão mobiliária das empresas.”. Compulsados os factos que o tribunal recorrido considerou como provados, inexiste qualquer facto que permita considerar preenchido o citado requisito, à luz das considerações antecedentes que fizemos. Não resultou provado que foi incumprida em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, e/ou que tenha sido mantida uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade, e/ou que haja sido praticada irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. Procede assim o recurso nesta parte, deliberando-se absolver o recorrente da alegada violação do disposto no artº 186º, nº2, alínea h), do CIRE. Seguidamente, o recorrente alegou que nada na matéria de facto dada como provada concretiza o requisito da disposição de bens do devedor nem o seu correspetivo proveito pessoal ou de terceiros. E, também aqui, reconhecemos razão ao recorrente. A despeito de ter sido provado que aquando da declaração de insolvência o saldo de caixa da devedora apresentava um saldo de €10.004,01 o qual, pedido ao recorrente, não foi entregue, apesar das sucessivas insistências, não temos elementos fácticos que permitam considerar provado que o recorrente tenha feito seu tal montante ou que haja dele disposto em proveito de terceiros. Procede assim o recurso nesta parte, deliberando-se absolver o recorrente da alegada violação do disposto no artº 186º, nº2, alínea d), do CIRE. Por último, o alegado na conclusão XVI quanto ao lapso de tempo em que o recorrente assumiu a gerência, revela-se irrelevante, O que a lei baliza é o período de tempo anterior à insolvência, os três anos, não a duração das funções, sendo certo que deliberamos já considerar preenchida a alínea i), do nº 2, do artº 186º, do CIRE, o que constitui presunção inilidível da culpa do aqui recorrente que, sublinhamos, se manteve completamente à margem do presente processo, cuja existência não podia desconhecer, nos termos que já explanamos. Como resulta do AcRG de 4/04/2019, processo nº 109/14.3TBCHV-A.G1, “Há, porém, certos comportamentos ilícitos dos administradores das pessoas coletivas que o legislador tipificou como insolvência culposa, prescindindo do juízo sobre a culpa, os quais vêm taxativamente enumerados no nº2 (do artº 186º, do CIRE). Assim, pode-se ler que será considerada culposa a insolvência do devedor, que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham (…) h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; I) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2, do artº 188º. Trata-se de comportamentos que afetam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, presumindo-se, por isso, iuris et de jure que a insolvência é culposa. (…) Daí que, tal como sucede nas presunções iuris et de jure não exista a possibilidade de prova em contrário, mas ainda que fique dispensada a alegação e consequentemente a prova de qualquer outro facto, ficcionando a lei, desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa. Nestes termos, verificada qualquer uma das situações tipificadas taxativamente no nº2, do artº 186º, do CIRE, deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como dolosa. De facto, provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do citado nº2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento”. Vide também, com interesse, relativamente às presunções do nº 2, do artº 186º, do CIRE, o AcSTJ de 15/02/2018, processo nº 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1. Revela-se, assim, também improcedente esta alegação do recorrente. Quanto à imputação de custas, verificamos que dois dos fundamentos do recurso foram procedentes, mas a condenação manteve-se, nos exatos termos do dispositivo. Não obstante tal desconsiderado preenchimento das alíneas h), e d), do artº 186º, nº 2, do CIRE, o recorrente viu confirmada a decisão quanto ao demais, designadamente quanto ao preenchimento da alínea i) do citado artº 186º, nº 2, pelo que o pedido é improcedente. Nenhum dos fundamentos tem um valor económico autónomo, razão pela qual, na manutenção do demais decidido, as custas são integralmente por si suportadas (sem prejuízo do disposto no artº 4º, nº1, alínea l), do RCP), dado que, em tese, a sua situação de ausência pode cessar até ao trânsito em julgado deste acórdão. Improcede, assim, o recurso interposto. ********** V – Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando o dispositivo da sentença recorrida, ainda que por fundamentos não inteiramente coincidentes. Custas pelo recorrente, sem prejuízo do disposto no artº 4º, nº1, alínea l), do RCP. Notifique. Guimarães, 12 de outubro de 2023. Relator: Fernando Barroso Cabanelas. 1ª Adjunta: Maria Gorete Morais. 2º Adjunto: Pedro Maurício. [1] Correção oficiosa do lapso percetível do contexto quanto à data. [2] Processo de Insolvência, Almedina, 2016, pág. 446. [3] Direito Comercial, Almedina, 4ª edição, 2019, págs. 405-406. |