Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5261/15.8T8VNF-K.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: INSOLVÊNCIA
RATEIO
CASO JULGADO FORMAL
HOMOLOGAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I Tendo sido elaborado mapa de rateio pela Srª Administradora de insolvência, tendo sido publicado, tendo obtido ratificação por parte da secretaria, e tendo sido validado por despacho, tudo sem que houvesse reação por parte dos recorrentes, aquele despacho transitou e sobre a respetiva matéria esgotou-se o poder jurisdicional –art.ºs 613º e 620º do C.P.C..
II Um despacho posterior sobre a mesma matéria, mesmo que seja confirmação do primeiro, é ineficaz, o que resulta do exposto no art.º 625º do C.P.C..
III Assim sendo, não pode ser apreciado o seu mérito, nomeadamente se incorre na violação de caso julgado formal.
IV Também não pode ser objeto dessa apreciação nem o mapa, nem o despacho que o validou, o primeiro já insuscetível de reclamação, o segundo já transitado.
V A violação do caso julgado, embora de conhecimento oficioso, não pode ser conhecida pelo Tribunal de recurso se o concreto ato violador não puder ser apreciado; tem de estar sujeita à apreciação do julgador a decisão ou o despacho afetado pela exceção.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
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I RELATÓRIO (com consulta eletrónica do processo).

Por sentença de 25/6/2015 foi declarada a insolvência de “EMP01..., Ld.ª”.

No apenso de liquidação (D), em 27/8/2020 os credores AA e mulher BB vieram apresentar requerimento nestes termos:
“1- Os aqui requerentes são credores no valor de €196.103,34 reconhecido e garantido com fundamento no direito de retenção. (…)
5- Foi pressuposto do acordo que os aqui requerentes ficavam com o crédito privilegiado, com base no direito de retenção. (…)
7- Os aqui requerentes licitaram pelo preço de €115.000,00 no referido bem, ou seja, “Apartamento T3 no ... andar + 2 lugares de garagem”, sendo a proposta apresentada a mais elevada.
8- No leilão “tiveram de pagar” à Leiloeira €5.000,00 + IVA – o que fizeram para evitar conflitos, pois tal era um custo da massa.
9- Notificados – agora – para celebrar a escritura é-lhe exigido o pagamento adicional de 20 % sobre o preço.
10- Ora, salvo todo o respeito, tal não deve ser exigido e por várias razões:
11- Primeira:
11- Artigo 165º (…)
12- Os aqui requerentes têm o seu crédito garantido atento o direito de retenção.
13- Logo, nada mais têm a pagar – vide o referido artigo e entre outros Ac. da Rel. de Guimarães (Proc. 2465/13.1T8VCT. G1) In Legix Extranet.
14- Acresce que massa detém valores suficientes para suportar as despesas. (…)

Termos em que requerem
A dispensa do pagamento de 20 % sobre o preço.”
O requerimento foi indeferido por falta de fundamento legal.
Face a reclamação apresentada pelos credores, foi proferido o seguinte despacho:
“Fls 90 e ss: O artigo 165º CIRE dispõe que aos credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável o disposto para o exercício dos respetivos direitos na venda em processo executivo. Ora, na venda em processo executivo, conforme dispõe o artigo 815º do CPC nº1 do CPC, o credor com garantia sobre os bens que adquirir fica dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber.
Assim sendo, beneficiando AA e BB de garantia sobre o imóvel que adquiriram, descrito na verba nº15 do auto de apreensão, informe a sra administradora em cinco dias se a quantia existente na massa é suficiente para pagar aos credores graduados antes destes compradores.”
Face a tal, a Administradora de insolvência (AI) “…vem informar que o credor/proponente comprador é o primeiro credor a receber do produto da venda da verba em causa (nº 15), conforme D. Sentença de Graduação de Créditos, pelo que não se coloca a questão dos créditos de anteriores credores mas sim a garantia das custas/despesas do processo.
Na verdade, na venda em processo de insolvência a dispensa de preço não inclui o valor necessário ao pagamento das dívidas da massa insolvente, designadamente as custas do processo, as remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores.
Resulta do disposto no art. 172.º do CIRE, que antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, o AI deve satisfazer as dívidas da massa, procedendo-se a uma imputação proporcional ao produto de cada bem móvel ou imóvel, estabelecendo-se um limite de 10 % relativamente a bens objecto de garantia.
A lei, para além de acautelar que a dispensa de preço não prejudicará os eventuais credores que possam vir a ser graduados antes da do credor comprador (que não é o caso), acautela ainda há precipuidade das custas do processo e despesas de liquidação.”
Nessa sequência, em 14/12/2020, foi proferido o seguinte despacho: “Perante a informação da administradora de insolvência, a fls 106, e o disposto nos artigos 165º CIRE, que remete para o artigo 815º do CPC, dispondo esse artigo no seu nº1 que o credor com garantia sobre os bens que adquirir fica dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber, defiro a pretensão dos requerentes a fls 84 e ss, alterando, assim, o despacho de fls 86, pois não se lhe aplica o artigo 172º do CIRE, mas aquele já citado 165º.”
Entretanto foi encerrada a liquidação e remetida a determinação das custas para os autos principais.
Em 17/5/2023 foi elaborada a conta de custas, e emitida a respetiva guia a cargo da massa insolvente, a qual foi paga.
Em 4/1/2024 a AI veio apresentar proposta de rateio final, onde refere quanto aos credores em cima identificados que “…tem de devolver à massa o valor de 7.101,69€”.
Em 12/3/2024 foi apresentada nova proposta corrigida, mantendo-se aquela menção.
Em ambas os casos procedeu-se à publicação no portal citius.
Em 2/4/2024 consta dos autos o termo de apreciação da proposta de rateio:
“Termo de Apreciação da proposta de Rateio
Em 02-04-2024, nos termos do nº 4 do artº 182º do CIRE, procedeu esta secretaria à apreciação da proposta de distribuição e de rateio, junta aos autos a 12.03.2024 e devidamente publicitada, concluindo-se que esta se encontra devidamente elaborada, achando-se de acordo com a documentação de suporte apresentada e com o determinado na sentença de graduação de créditos de 13.03.2019, retificação de 03.06.2019 e complemento de 12.07.23, bem como dos apensos de VUC e rateio parcial de 28.04.22.”
Em 8/4/2024 foi proferido o seguinte despacho: “Uma vez que a secretaria informou que a proposta do mapa de rateio junta pela administradora de insolvência a 12-3-2024 está correta, e os credores, devidamente notificados do mapa de rateio, dele não vieram reclamar, dê-se início aos pagamentos. Notifique, devendo a administradora para informar os autos, em 10 dias, do saldo da conta da massa insolvente e juntar o extrato integrado da conta bancária da massa insolvente.”
Em 9/4 o despacho foi notificado às partes.
Em 29/5/2024 a AI veio informar que “…Não obstante as notificações ao I. Mandatário dos credores AA e BB e Sá para que procedam à devolução do montante de 7.110,25€, conforme consta do rateio final, tal ainda não sucedeu.
Assim, requer a signatária a V/Excia se digne mandar notificar os credores para que procedam à devolução daquele montante, uma vez que o pagamento aos restantes credores está dependente dessa devolução.”
Em 5/6 esse requerimento foi deferido e em 7/6 notificado.
Em 21/6 os credores responderam, referindo que não receberam qualquer e-mail da AI e reiterando a posição que haviam apresentado em 27/8/2020 no apenso D.
A AI juntou aos autos comprovativo do envio de e-mail e referiu que a recusa dos credores é ilegal uma vez que o facto de ter sido solicitada dispensa de preço não isenta do pagamento total, pois o adquirente é dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber, não sendo relevante, neste caso, o facto do valor do crédito reconhecido ser superior ao valor da verba em causa. Acresce que as contas foram aprovadas e julgadas boas e o rateio foi apresentado e não houve reclamação do mesmo, pelo que, o requerimento não é o meio adequado para reclamar e ainda que o fosse é extemporâneo.
Os credores mantiveram a sua posição.
Os credores EMP02... e EMP03... – STC, S.A. acompanharam a posição da AI.
Na sequência de notificação para o efeito a AI esclareceu:
“Esclarecendo, os bens da massa insolvente foram vendidos pelo valor total de 2.593.971,83 €, e o total de despesas da massa foi de 207.915,25 €. (147.523,85 € de despesas comuns e 60.391,40 € de IMI) A cada imóvel é imputado o valor do respectivo IMI, e uma percentagem das despesas comuns.
O imóvel -verba n.º15-, foi adjudicado aos credores CC e DD, pelo montante de 115.000,00 €, nos termos do art 815º do CPC, não tendo estes pago qualquer valor, a título de sinal ou qualquer outro
Ora o art. 815º CPC determina que :“1 - O exequente que adquira bens pela execução é dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber; igual dispensa é concedida ao credor com garantia sobre os bens que adquirir. (…)
4 - Quando, por efeito da graduação de créditos, o adquirente não tenha direito à quantia que deixou de depositar ou a parte dela, é notificado para fazer o respetivo depósito em 10 dias, sob pena de ser executado nos termos do artigo 825.º, começando a execução pelos próprios bens adquiridos ou pela caução.”
Depois de descontado o valor do IMI e quota-parte das despesas comuns do processo, no valor de 6.540,26 €, o valor a distribuir referente a verba n.º 15 é de 105.746,75 €.
Ora, se o imóvel foi adjudicado por 115.000,00 € e os credores não pagaram qualquer valor, o valor da adjudicação excede a dispensa de preço a que teriam direito em 9.253,25 €. Uma vez que também teriam a receber 2.143,00 € decorrentes do produto da venda dos bens móveis, solicitou-se o pagamento de 7.110,25 €”.
Os credores reiteraram a sua posição, nomeadamente que o seu crédito é privilegiado.
A AI reiterou a sua posição, citando o art.º 172º, n.ºs. 1 e 2 CIRE, e que o acórdão citado pelos credores não se aplica ao caso.
Em 4/12/2024 os credores foram novamente notificados para procederem ao pagamento, perante os esclarecimentos prestados, conforme despacho dessa data: “Perante os esclarecimentos da AI de 31-10, notifique os credores para procederem ao pagamento.”.
Em 19/12 pediram o seguinte esclarecimento: “1. Foi no dia 04.12.2024 proferido Despacho a ordenar a notificação dos credores aqui requerentes para procederem ao pagamento dos valores solicitados pela Administradora de Insolvência.
2. Solicitam os credores o esclarecimento se este Despacho teve em consideração a Decisão proferida nos presentes autos em 14.12.2020 no apenso D, já transitada em julgado, que os dispensou desse mesmo pagamento.”
A EMP03... - STC, SA. pronunciou-se no sentido de que não lhes assiste razão.
Em 23/12 apresentaram o presente recurso que incide sobre o despacho de 4/12/2024.
Em 6/2/2025 foi apreciado aquele seu requerimento de 19/12, e indeferido.

As suas alegações de recurso terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES (que se reproduzem)
A) Os Apelantes são credores privilegiados, beneficiaram do direito de retenção sobre a verba número 15, apresentaram proposta de aquisição com dispensa de pagamento do preço, tendo já sido celebrada escritura pública de aquisição.
B) No apenso D – o da liquidação – aquando da apresentação da proposta de aquisição com imóvel com dispensa de pagamento do preço, por requerimento de 02.11.2020, com a referência citius 10415375, os Apelantes solicitaram ao Exmo. Senhor Juiz a dispensa de pagamento de 20% do valor destinado ao pagamento de custas e despesas da massa previsto no artigo 172º do CIRE.
C) Esta pretensão dos Apelantes foi deferida por Douto Despacho datado de 14.12.2020 com a referência Citius 170928556.
D) Não pode a Exma. Senhora AI em sede de rateio final contrariar um Despacho anteriormente proferido que transitou em julgado e exigir dos credores Apelantes os valores previstos no artigo 172º nº2 do CIRE.
E) O RATEIO FINAL não pode servir para realizar operações de liquidação dos valores previsto no artigo 172º do CIRE.
F) Esta operação de liquidação realizada pela Exma. Senhora Administradora de Insolvência no Rateio Final extravasa a finalidade dos Rateio Final.
G) Por essa razão não pode estar abrangida pelo caso julgado.
H) A Senhora Administradora de Insolvência usou o rateio final para exigir aos aqui Apelantes valores que o Tribunal já tinha decidido por despacho transitado em julgado não haver lugar ao seu pagamento.
I) O facto de não ter ocorrido reclamação ao rateio final não significa que o mesmo não possa ser alterado.
J) A retificação de erros materiais, discriminados no art.º 614.º, n.º 1, do CPC, reforma, nas hipóteses do art.º 616.º, n.º 2, do CPC e a reparação de nulidades cometidas, elencadas no art.º 615.º, n.º 1, do CPC podem ter lugar a todo o tempo.
K) No presente caso concreto, mal ou bem os aqui credores foram, por despacho datado de 14.12.2020 já transitado em julgado, dispensados de proceder ao pagamento da quantia agora exigida pelas AI.
L) O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada.
M) O despacho de 14.12.2020 – que dispensou os aqui credores de proceder ao pagamento da quantia agora exigida pelas AI - admitia recurso de apelação autónomo, pelo que só podia ser impugnado por essa via.
N) Neste contexto e com o devido respeito, com a sua prolação esgotou-se o poder jurisdicional do tribunal (art.º 613º, n.º 1 do CPC) quanto ao pagamento por parte dos credores Apelantes da quantia prevista no artigo 172º nº2 do CIRE.
O) O Douto Despacho impugnados viola assim o caso julgado.
P) Qualquer decisão proferida sobre objeto já coberto pelo caso julgado é ineficaz.
Q) Deve a presente Apelação ser julgada procedente e consequência revogado o Douto Despacho em recurso, uma vez que os Apelantes estão dispensados do pagamento dos valores previsto no artigo 172º nº2 do CIRE e ordenada a retificação do rateio final nesse sentido, fazendo- se assim JUSTIÇA!”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
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Tendo sido dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, 609º, n.º 1, 635º, n.º 4, e 639º do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Impõe-se no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir as seguintes questões, tal como elas são apresentadas:
-a elaboração do rateio final pela AI violou o despacho transitado proferido em 14/12/2020 no apenso D (o que passa por apreciar a finalidade do rateio, o seu valor após o prazo de reclamação, o valor do despacho que incide sobre a validação da proposta);
-a introdução no rateio da operação prevista no art.º 172º do CIRE extravasa a finalidade do mesmo (na elaboração do rateio final não podia constar e ser exigido aos credores/recorrentes o valor de € 7.110,25 a pagar à massa), logo não está abrangido pelo caso julgado e pode ser alterado, mesmo não tendo havido reclamação – a retificação de erros materiais e apreciação de nulidades pode ter lugar a todo o tempo;
-o despacho recorrido viola o caso julgado formado pelo despacho de 14/12/2020.
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III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Para a apreciação e decisão do abjeto do recurso relevam os atos processuais elencados no relatório e seu conteúdo.
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IV MÉRITO DO RECURSO.

O presente recurso tem de ser analisado em duas partes, que depois terão de se relacionar. Na primeira será analisado o despacho recorrido em si mesmo, na segunda parte a sua relação com a dinâmica do processo. Desse modo todas as questões enunciadas obterão resposta, como se impõe.
I A primeira parte reporta-se à análise do processo de rateio, incidindo depois na apreciação do despacho recorrido.
Importa antes de mais ao caso atentar no disposto no artº. 182º, CIRE, na parte em que diz: “3 - Após julgadas as contas e paga a conta de custas, no prazo de 10 dias, o administrador da insolvência apresenta no processo proposta de distribuição e de rateio final, acompanhada da respetiva documentação de suporte caso seja diferente daquela que já existe no processo, e procede à publicação da proposta na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, dispondo a comissão de credores, caso tenha sido nomeada, e os credores de 15 dias, contados desde a data da publicação, para se pronunciarem sobre a mesma.”
Explicam Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE Anotado, pág. 670 da 3ª edição) que a distribuição do produto da liquidação pode ser efetuada ao longo do processo, à medida que for sendo gerada liquidez, em virtude das operações liquidatárias, através de pagamentos parciais aos credores, mediante rateios parciais (cfr. art.º 178º do CIRE); através de uma distribuição final do remanescente, mediante um rateio final (art.º 182º do CIRE); através de uma distribuição única, a que se aplica o disposto no art.º 182º do CIRE.
Daquele número 3 citado resulta que os créditos sobre a massa saem precípuos; pagam-se as custas e os encargos, e o remanescente é rateado pelos credores reconhecidos, com respeito pela decisão proferida relativa ao reconhecimento e graduação dos créditos e de acordo com a regra da proporcionalidade – cfr. art.ºs. 51º, 172º, n.ºs 1 e 2, 173º, 174º, n.ºs 1 e 2, 175º, 176º, 177º, n.º 1, e 241º, todos do CIRE.
Significa isso que primeiro é elaborada a conta, tal como sucedeu no caso. Depois de paga a guia emitida a cargo da massa, é elaborado o rateio com o que resta. Assim sucedeu no caso.
Elaborado o rateio pelo AI, este é objeto de publicação.
Foi o que sucedeu também no caso, sendo que, para o que nos importa, nem relativamente à primeira versão, nem à segunda versão, ambas publicadas (cfr. art.º 9º, n.º 4, CIRE), foi apresentada qualquer reclamação por parte dos aqui credores/recorrentes, sendo de considerar os mesmos devidamente notificados do ato (cfr. o constante do relatório).
Nos termos do n.º 4 daquele art.º 182º, decorrido o prazo de 15 dias previsto no número anterior, a secretaria aprecia a proposta de rateio final, elaborando para o efeito um termo nos autos, e conclui o processo ao juiz para, no prazo de 10 dias, decidir sobre as impugnações e validar a proposta.
Aqui chegados, importa reter que, o rateio, decorrido o prazo previsto, foi ratificado pela secretaria; e tido por bom pelo Tribunal, o que decorre do despacho proferido nessa sequência (8/4/2024), ordenando os respetivos pagamentos. Este despacho foi notificado às partes e não foi objeto de reação por parte dos aqui recorrentes.
Significa isto, a nosso ver, que o mapa de rateio consolidou-se na ordem jurídica através da sua ratificação/validação pelo Tribunal. Equivale a dizer que o despacho que determina que as operações sejam realizadas nos modos aí previstos transitou. Tendo transitado, faz caso julgado formal (art.ºs 620º, n.º 1, e 628º, C.P.C., e art.º 14º, n.º 5, CIRE). Esgotou-se o poder jurisdicional sobre aquela matéria (art.º 613º, n.º 1, C.P.C.).
Nem o Tribunal que o proferiu, nem este Tribunal de recurso, podem mais apreciá-lo. Muito menos a AI, o que constituiria uma violação do despacho judicial.
O Ac. desta Relação de 15/2/2024 (www.dgsi.pt), relatado pela aqui 1ª adjunta Exmª Srª Desembargadora Maria João Marques Pinto de Matos, para além de historiar a evolução legal da incumbência de realização do rateio, seguiu orientação idêntica à aqui perfilhada, assinalando-se a diferença entre as situações analisadas nesse e neste acórdão.
Valemo-nos aqui das palavras desse acórdão, analisando a atual redação do art.º 182º, n.º 3, e 4 (aditado): “Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não só será necessariamente no decurso do prazo de reclamação (que agora lhes foi expressamente concedido) que os credores deverão reagir a quaisquer desconformidades entre a proposta do mapa de rateio e o que se ache estabelecido na sentença de reconhecimento e graduação de créditos, como, uma vez proferido o despacho de validação da anterior mera proposta do referido mapa, só então o nela contido (e tal como seja decidido no dito despacho, nomeadamente mercê da consideração das eventuais discordâncias dos credores e da secretaria) determinará os pagamentos ulteriores, ficando ainda imediatamente esgotado o poder jurisdicional do tribunal sobre essa questão (art.º 613.º, do CPC).
Precisando, não se compreenderia que, tendo a lei: apelidado de mera «proposta» a materialidade do apresentado pelo administrador judicial a título de distribuição e rateio final, a mesma tivesse mais do que carácter não vinculativo (o que a sua denominação logo indicia); consagrado expressamente o direito dos credores se pronunciarem sobre ela, em prazo certo, essa faculdade, não só traduzisse a possibilidade de denunciarem qualquer vício ou desconformidade que afectasse os seus interesses, como tivesse de ser exercida no dito prazo, sob pena de preclusão (como é regra no processo civil, com o estabelecimento de prazos de oposição ou resposta); e exigido que, após a subsequente apreciação pela secretaria, recaísse decisão judicial sobre a dita proposta (a decidir as eventuais e prévias impugnações e a validá-la), não resultassem depois dela os efeitos normais de qualquer decisão judicial (nomeadamente, a imperatividade da definição de direitos/interesses nela contidos -tornando então, e só então, obrigatórios a ordem e o montante dos pagamentos a efectuar aos diversos credores - e o definitivo esgotamento do poder do seu autor de definir tais direitos/interesses).”
Pode colocar-se a questão se a introdução no mapa de rateio da quantia a restituir pelos recorrentes (que em bom rigor não faz parte das operações que nele se devem realizar) pode ser vista como um erro material, suscetível de correção a todo o tempo, transposto para o despacho homologatório do rateio (cfr. art,ºs 613º, n.ºs 2 e 3, e 614º, C.P.C.).
Desde já adiantamos que não. Não se tratou de qualquer lapso, quando muito tratou-se de um erro (de julgamento).
Daí decorre também que o despacho não enferma de qualquer nulidade (cfr. art.º 615º, C,P,C,), que de qualquer modo teria de ser assacada à própria decisão no prazo legal e com respeito pelo n.º 4 do art.º 615º, não sendo de conhecimento oficioso.
A consequência a retirar é a seguinte: tudo o que o Tribunal pudesse ter decidido posteriormente, em contrário daquele despacho de 8/4/2024, seria violador do caso julgado formal e por isso ineficaz. Sendo ineficaz, não poderia ser revogado pelo Tribunal de recurso. Ainda que o fosse, tal apenas significaria que ficava vigente na ordem jurídica o primeiro despacho, coberto pelo caso julgado. Esta solução decorre do disposto no art.º 625º do C.P.C.. Neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, pág. 766 da 3ª edição, e tal como se pronunciou o Ac. desta Relação de 1/02/2023 (www.dgsi.pt), relatado este pelo aqui 2º adjunto, Exm.º Srº Desembargador Dr. José Carlos Pereira Duarte; como aí se conclui: “…sendo ineficaz, não pode produzir efeitos e, portanto, não há que apreciar o respectivo mérito.”; nomeadamente se é ofensivo de caso julgado formal (situação a que voltaremos).
No caso, tal como no analisado nesse acórdão, o despacho recorrido proferido em 4/12/2024 não é contraditório com o primeiro transitado. De facto, colhendo as informações pertinentes, o Tribunal acabou por sufragar, através do despacho aqui em crise, o primitivo despacho. E note-se que nem sequer apreciou em concreto a questão colocada pelos credores/recorrentes. Mantém-se que os recorrentes podiam e deviam ter oportunamente reagido (ao mapa ou ao primeiro despacho), se entendessem que as operações não se mostravam corretas, já que a conclusão da ineficácia (do segundo despacho) aplica-se também nesta situação. Isso mesmo foi também ponderado no acórdão acabado de citar: “E muito embora o art.º 625º n.º 1 apenas se refira expressamente às decisões contraditórias, ao dispor que “[h]havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar”, o principio aplicável é o mesmo ainda que as decisões sejam coincidentes, pois a tal se opõe quer o esgotamento do poder jurisdicional resultante da prolação da primeira decisão (que só admite a arguição de nulidades e a reforma da decisão nos casos expressamente previstos na lei, no caso de a decisão não admitir recurso), quer o trânsito em julgado da mesma.”
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II Passemos então para a segunda parte.

Aqui teríamos de analisar o despacho de homologação do rateio face aos restantes trâmites deste processo de insolvência.
Sucede que, como já vimos, não sendo o rateio suscetível de outra reclamação após o prazo legal previsto para o efeito, e tendo transitado o despacho que recaiu e validou as operações realizadas, não lhes pode ser apontada a violação do caso julgado formal, por versar e estar em contradição – alegadamente- com o despacho proferido em 14/12/2020 no apenso D (apreciação de caso julgado que dependeria precisamente da análise prévia de se estar ou não perante a mesma questão, em ambos os casos apreciados).
A esse raciocínio não obsta o facto da exceção de violação de caso julgado ser de conhecimento oficioso (art.ºs 577º, i), e 578º, do C.P.C.). Uma coisa é ser matéria de conhecimento oficioso, outra é poder ser conhecida; no caso concreto não é, porque:
.o despacho recorrido não pode ser objeto de recurso porque é ineficaz;
.o primitivo despacho que incidiu sobre o mapa de rateio, homologando-o, transitou;
.o mapa consolidou-se decorrido o prazo de reclamação, e com a validação judicial.
A violação do caso julgado não pode ser conhecida pelo Tribunal de recurso independentemente de estar em causa (ou quando não está) o concreto ato violador. Tem de estar sujeita à apreciação do julgador a decisão ou o despacho afetado pela exceção.
Esta situação também não se confunde com o art.º 629º, n.º 2, a), do C.P.C., que rege para a admissibilidade do recurso independentemente do valor da causa e da sucumbência. Caso o objeto do recurso não possa ser conhecido, ou caso o recurso não seja admissível - por exemplo por falta de legitimidade do recorrente ou por ser apresentado fora de prazo -, isso não se aplica.
Resta por isso improceder a presente apelação, nos mesmos termos em que se concluiu naquele último acórdão citado: “Uma vez que a pretensão recursiva tinha por objecto a reapreciação do mérito do despacho de 04/05/2023, por invocado erro de julgamento, não sendo isso viável, por ineficácia do referido despacho, o recurso deve ser julgado improcedente.”
As custas são a cargo da parte vencida, no caso os recorrentes –art.º 527º, n.ºs 1 e 2, C.P.C..
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso totalmente improcedente, e em consequência, negam provimento à apelação.
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Custas a cargo dos recorrentes (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 20 de março de 2025.
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Os Juízes Desembargadores
Relatora: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos
2º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)