Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1621/23.9PBBRG.G1
Relator: JÚLIO PINTO
Descritores: DEPOIMENTO PARA MEMÓRIA FUTURA
FILHO MENOR DO ARGUIDO
RECUSA DE DEPOIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – A tomada de declarações para memória futura de menor com cinco anos de idade, que visa, em última instância, obter provas contra o pai do menor, ainda que assistido por representante legal, por curador ou por defensor, possa de alguma forma, não reúne a maturidade para, com o mínimo de consciência, optar por prestar ou não prestar declarações nos termos do artigo 134.º do CPP.
II – Perante uma realidade como esta, o menor está impossibilitado, por motivos que o transcendem, de ver cumprido o direito de garantia da efetiva liberdade no seu exercício, de depor ou se recusar, através do esclarecimento prévio a que alude o art.º 134º, nº 2, do CPP.
III – É, manifestamente, o que se passa com menores de tenra idade cuja imaturidade, embora não os impeça de narrar os factos que presenciaram, pode, porém, inibi-los de compreender o significado e transcendência do exercício da faculdade de recusar o depoimento.
IV – Assim, por exemplo, um menor de 5 ou 6 anos de idade, em princípio é plenamente capaz de relatar em tribunal aquilo que viu o arguido, seu pai, fazer a uma irmã do menor, a uma colega desta, ou à sua mãe, mas não é capaz de exercer conscientemente a faculdade de recusar depor contra seu pai, acusado da prática de um crime de abuso sexual de crianças ou de um crime de violência doméstica.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I Relatório

1 - No âmbito do Proc. de Inquérito nº 1621/23...., do Juízo de Instrução Criminal de Braga – J..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi proferido em 10/01/2024, o seguinte despacho:
«Diz o MP que se investigam factos que configuram a prática de um crime de violência doméstica contra o menor AA (de 5 anos) – para além de um crime idêntico contra a progenitora BB.
Agente dos factos será o progenitor (e marido) – já arguido.
Neste quadro requereu o MP (fls. 81 e ss) a tomada de declarações para memória futura, o que foi deferido (fls. 86).
Mas veio a progenitora, entretanto, afirmar que o menor não tem aptidão mental para depor e ademais, diz, sujeitar o mesmo a ir a Tribunal para prestar declarações será violência (fls. 120).
O MP afirma que não cabe à mãe verificar da aptidão mental do filho para depor (fls. 122).
Decidindo.
Conforme se referiu no despacho que admitiu as declarações para memória futura, não tinha ao tempo o Tribunal condições para aferir da aptidão mental do menor para depor.
É certo que ab initio não era difícil lá chegar, pela inaptidão, em função das regras da experiência (pelo menos para quem teve filhos dessa idade).
Seja como for, uma criança de 5 anos não entenderá, logo por si não exercerá livre e esclarecidamente, o direito de recusa de depoimento a que alude o artigo 134.º/1-a) do CPP.
Ou seja, mesmo que uma criança de tenra idade tenha capacidade para narrar factos, o certo é que não tem (uma de 5 anos) capacidade para “compreender o significado e transcendência do exercício da faculdade de recusar o depoimento” – cfr, A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo), do Senhor Desembargador Cruz Bucho.
Como diz o referido autor: 
Assim, por exemplo, um menor de 5 ou 6 anos de idade, em princípio é plenamente capaz de relatar em tribunal aquilo que viu o arguido, seu pai, fazer a uma irmã do menor, a uma colega desta, ou à sua mãe, mas não é capaz de exercer conscientemente a faculdade de recusar depor contra seu pai, acusado da prática de um crime de abuso sexual de crianças ou de um crime de violência doméstica.
E citando mais uma vez o referido estudo “Nesta última situação a decisão de declarar ou de se recusar o depor compete ao representante legal do menor ou, na sua falta ou impedimento por ser o agente do crime, a um curador”.
Ora, no caso concreto, o representante legal do menor é a mãe.
E esta já disse no processo que não presta declarações sobre os factos (tal como aliás se disse no despacho proferido em 06/12/2023 – ref.ª ...92).
E veio ainda dizer que o menor não tem aptidão mental e que é uma violência fazê-lo comparecer em tribunal.
O que permite concluir que a representante legal (progenitora) exercerá, em representação do menor, o direito de recusa de depoimento.
Neste quadro de entendimento, reforçado pelo posicionamento posterior da progenitora, indefiro a tomada de declarações para memória futura.
Notifique.
Devolva ao MP.»
*
2 - Inconformado com o teor desse despacho, veio o Ministério Público interpor recurso do mesmo, concluindo: (Transcrição)

“(…)
«III – Conclusões

1 - Nos presentes autos investiga-se a prática pelo arguido CC de um crime(s) de violência doméstica, contra a sua esposa, BB, outro contra o seu filho DD, nascido a ../../2018 (5 anos).
2 - A ofendida, após ser notificada do dia designado para as declarações para memoria futura do menor declarou “o meu filho só tem 5 anos de idade, pelo que não tem aptidão mental para prestar testemunha num processo judicial. Além do que, me parece de uma enorme violência sujeitar o meu filho de apenas 5 anos a estar presente num tribunal, pelo que pretendo que seja dado sem efeito a tomada de declarações para memoria futura”.
3 – O M.º JIC deu sem efeito as declarações para memoria futura agendadas com base no despacho de 10-01-2024:
“ Seja como for, uma criança de 5 anos não entenderá, logo por si não exercerá livre e esclarecidamente, o direito de recusa de depoimento a que alude o artigo 134.º/1-a) do CPP.
Ou seja, mesmo que uma criança de tenra idade tenha capacidade para narrar factos, o certo é que não tem (uma de 5 anos) capacidade para “compreender o significado e transcendência do exercício da faculdade de recusar o depoimento” – cfr, A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo), do Senhor Desembargador Cruz Bucho.
Como diz o referido autor:
Assim, por exemplo, um menor de 5 ou 6 anos de idade, em princípio é plenamente capaz de relatar em tribunal aquilo que viu o arguido, seu pai, fazer a uma irmã do menor, a uma colega desta, ou à sua mãe, mas não é capaz de exercer conscientemente a faculdade de recusar depor contra seu pai, acusado da prática de um crime de abuso sexual de crianças ou de um crime de violência doméstica.
E citando mais uma vez o referido estudo “Nesta última situação a decisão de declarar ou de se recusar o depor compete ao representante legal do menor ou, na sua falta ou impedimento por ser o agente do crime, a um curador”.
Ora, no caso concreto, o representante legal do menor é a mãe.
E esta já disse no processo que não presta declarações sobre os factos (tal como aliás se disse no despacho proferido em 06/12/2023 – ref.ª ...92).
E veio ainda dizer que o menor não tem aptidão mental e que é uma violência fazê-lo comparecer em tribunal.
O que permite concluir que a representante legal (progenitora) exercerá, em representação do menor, o direito de recusa de depoimento.
Neste quadro de entendimento, reforçado pelo posicionamento posterior da progenitora, indefiro a tomada de declarações para memória futura.
4 – É desse despacho que vem interposto o presente recurso.
5 - Com o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos desprovido de fundamento legal o indeferimento do pedido de declarações para memória futura.
6 - Em caso de pessoas vítimas do crime de violência doméstica, tem aplicação o regime previsto na Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e na Lei 130/2015, de 4 de Setembro, bem como o disposto nos artigos 67.º-A e 271.º do Código de Processo Penal.
7 - De acordo com a literatura científica, as crianças/menores que vivem em contexto de violência doméstica, a esta sendo expostas por a assistirem, sofrem danos directos, sendo, pois, "vitimas" de tal crime.
8 - No caso concreto, o menor DD é especialmente vulnerável, não apenas porque tal é uma decorrência dos dispositivos legais referidos, mas também porque conta com 5 anos de idade, sendo filho da ofendida e do arguido, residindo com os intervenientes, de acordo com a ofendida assistiu aos factos denunciados por aquela, sendo provável que tenham assistido a outros episódios, suscetíveis de integrar a prática do crime de violência doméstica contra aquela, o qual reveste um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança à vítima; vive com o arguido, é também ofendido e, tem o arguido, como uma das figuras adultas de referência.
9 - A Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, e, por conseguinte, em vigor no ordenamento jurídico português, estabelece no seu artigo 19. 0, um quase poder dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/menor/menor – neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo:981/21.0PCSTB-A.E1 de 24-05-2022, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferidos em 23 de junho de 2020, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo:128/22.6T9VFC-C.L1-5 de 22-02-2023, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa Processo:141/21.0SXLSB-A.L1-9, de 23 Setembro 2021.
10 – Nos termos do artigo 22.º, n.º 3 da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, que aprova o Estatuto de Vítima Todas as crianças vítimas têm o direito de ser ouvidas no processo penal, devendo para o efeito ser tomadas em consideração a sua idade e maturidade.
11 - A decisão quanto à recusa a depor é um ato pessoal do menor.
12 - Segundo o n.º 1 do artigo 131.º do Código de Processo Penal “qualquer pessoa que não se encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para ser testemunha e só pode recusar-se nos casos previstos na lei.”. A nossa lei consagra, assim, a regra de ampla capacidade testemunhal, que não exclui sequer pessoas que não ofereçam garantias de imparcialidade, o que, a acontecer, apenas tem interesse no plano da apreciação do mérito da prova daí decorrente e não, nunca, para efeitos de aferição da capacidade para depor.
13 - Por sua vez, o artigo 134.º do Código de Processo Penal reconhece às pessoas ali mencionadas a faculdade de recusarem o depoimento.
14 - O direito de recusa de depoimento é, por conseguinte, renunciável, sendo, porém, necessário, que quem renuncia esteja devidamente informado do sentido e alcance do direito consagrado no artigo 134.º do Código de Processo Penal.
15 - No caso de as testemunhas que gozam do direito de recusar o depoimento serem menores ou padecerem de outra incapacidade podem (e devem), porém, suscitar-se problemas quanto ao exercício daquele direito.
16 - Em Portugal, à semelhança de muitas outras ordens jurídicas, não existe no Código de Processo Penal regulamentação expressa sobre a matéria. Em alguns ordenamentos jurídicos a questão é, porém, expressamente regulada na lei. É o caso, v.g., da lei alemã (§52,2 da StPO)(13) e dos Códigos de Processo Penal do Chile (artigo 302.º) Guatemala (artigo 213.º), do Paraguai (artigo 205.º, n.º3), do Kosovo (artigo 127.º, n.º4) ou da Sérvia (artigo 94.º).
17 - A autoridade judiciária verifica a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da sua credibilidade e puder ser feito sem retardamento da marcha normal do processo (artigo 131.º, n.º 2).
18 - Deste modo, a pessoa pode apresentar um défice intelectual ou cognitivo (v.g. síndroma de down, oligofrenia, demência senil de tipo alzheimer) que não a impede de percecionar e narrar os factos que presenciou. Por isso, também, a capacidade para depor como testemunha não pressupõe necessariamente a capacidade para compreender o alcance e significado do exercício da faculdade de recusar o depoimento – neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29-10-2003, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXVIII, Tomo 4, pág. 49.
19 - É, manifestamente, o que se passa com menores de tenra idade cuja imaturidade, embora não os impeça de narrar os factos que presenciaram, pode, porém, inibi-los de compreender o significado e transcendência do exercício do seu direito de recusar o depoimento – neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo: 76/13.0GGSTC-A.E1       de 03-02-2015.
20 – Não é lícito confundir a incapacidade para o exercício de direito dos menores regulada no direito civil (artigo 123.º do Código Civil), com as regras que regem a produção de prova testemunhal em processo penal - Acórdão do STJ de 26-6- 2002, Proc.º n.º 1868/02-3.
21 - De acordo com o artigo 12.º da Convenção dos Direitos da Criança 1. Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.
22 – Segundo o  Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 17/2015, publicado no DR 2.ª série — N.º 176 — 9 de setembro de 2015 (CCPGR) O testemunho mesmo de um menor é sempre um ato de natureza estritamente pessoal e, fundamentalmente, dos critérios que terão que presidir à consagração de exceções à regra de ser acompanhado por representante legal no caso de existirem conflitos de interesses entre quem depõe e de quem o representa.
23 - Logo que se aperceba da especial vulnerabilidade da testemunha, a autoridade judiciária deverá designar um técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o seu acompanhamento e, se for caso disso, proporcionar à testemunha o apoio psicológico necessário por técnico especializado (artigo 27.º, n.º 1).
24 – Afigura-se-nos ser defensável considerar que a advertência do artigo 134.º do Código de Processo Penal é obrigatória nos casos em que a testemunha tem idade igual ou superior a 12 anos ou nos casos em que a testemunha tenha idade inferior aos 12 anos sempre que demonstre possuir capacidade e maturidade para a compreender.
Já assim não sucederá nas situações em que a idade da criança seja inferior aos 12 anos e não possua capacidade e maturidade para compreender o alcance e o significado (implicações) da advertência.
Nesses casos, não deverá sequer haver lugar à advertência legal.
Isto porque, ter-se-á que estabelecer a diferença entre a capacidade de uma criança para ser testemunha em processo penal, a sua capacidade para relatar os factos de que foi vítima ou que observou, da capacidade e maturidade para decidir quanto à recusa ou não a depor quando um seu familiar próximo é o arguido.
No primeiro caso, está tão-só em causa a compreensão, atendendo ao nível de desenvolvimento, das questões que lhe são colocadas e a capacidade de expressar a resposta; no segundo caso, está em causa a capacidade, atendendo ao desenvolvimento psicológico e maturidade, para compreender o alcance e as consequências da decisão quanto à recusa a depor.
25 - Nos presentes autos existe claramente um conflito de interesses, o menor é filho do arguido.
Sendo o menor também ofendido, obrigatoriamente deveria ser nomeado um Patrono oficioso, nos termos do artigo 22.º, n.º 3, do Estatuto da Vítima.
26 - O menor deveria ser chamado a prestar declarações para memoria futura devidamente acompanhado por psicóloga do GAV existente neste Tribunal para o efeito.

Termos em que, e nos mais que doutamente se suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido, substituindo-o por outro que determine a prestação de declaração para memória futura do menor DD actualmente com 5 anos de idade , por este ser vítima especialmente vulnerável nos termos do disposto artigo 2.º, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas a) i e iii e b) e n.º 3 do Código de Processo Penal, devidamente acompanhado por psicóloga do GAV.

V. Exas., porém, farão como for de

JUSTIÇA!
*
3 - Na 1ª instância o arguido respondeu ao Recurso, pugnando pela sua improcedência, tendo concluído nos seguintes termos: (transcrição)
“(…)
«8. A legal representante do menor AA de 5 anos, manifestou no processo a sua não concordância na prestação de declarações para memória futura,
9- É à progenitora a quem cabe tal decisão de declarar ou de recusar as declarações pata memória futura do seu filho,
10. Pelo que, devem as conclusões do recurso improceder e manter-se o douto despacho proferido.
Em via do exposto, deve ser negado provimento ao recurso interposto, devendo o douto despacho recorrido ser mantido.
Decidindo, Vossas Excelências, nestes termos, farão JUSTIÇA»
*
4 - Admitido o recurso na forma e com o efeito devidos, subiram os autos a esta Relação.

5 – No cumprimento do disposto no art. 416º, nº 1, do CPP, o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo (transcrição):
“(…)
Dispõe o art.º 33, nº 1, da lei nº 112/2009, de 16/09, sob a epígrafe “Declarações para memória futura”, que “O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.”
Por seu turno, diz o art.º 16º, nº 2, do mesmo diploma que “As autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.”
Por sua vez, a Lei de Protecção de Testemunhas - Lei n.º 93/99, de 14/07, prevê medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n.º 1 do art.º 1º - cf. art.º 1º, nº 3, do mesmo diploma. Dizendo o art.º 26º, nº 1, que “quando num determinado ato processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.” Acrescentando no nº 2 que a “a especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.”
Por outro lado, nos termos do diploma citado, “durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime” - nº 1 do art.º 28º. E, “Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.”
Já o acórdão de 04/06/2020, do TRL, proc. 69/20.1PARGR-A.L1-9, com o relator ABRUNHOSA DE CARVALHO, consignou, expressamente: “Assim, a Lei n.º 112/2009, de 16/09[6], embora disponha que a tomada de declarações para memória futura às vítimas de violência doméstica não é obrigatória[7] (art.º 33º/1), estabelece que estas têm direito a ser ouvidas em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofram pressões.
Para além da vitimização primária, que são as consequências directas na vítima do fenómeno que as vitimou, a vítima pode ser objecto da chamada vitimização secundária, ou seja uma nova e segunda vitimização, que é o conjunto de atitudes, de terceiros ou da própria, com a vítima de um crime que faz com esta sofra novas consequências, pela minimização do seu sofrimento, pelo seu evitamento, pela sua desvalorização, pela sua culpabilização [8]. Para então rematar, “Concluímos, pois, que, contrariamente ao citado acórdão da Relação de Lisboa, de 11/02/2020, sendo, indubitavelmente, intenção do legislador evitar a vitimização secundária das vítimas de violência doméstica, que são legalmente consideradas vítimas especialmente vulneráveis, embora a tomada de declarações para memória futura não seja obrigatória, é o procedimento que deve ser normalmente adoptado nos casos de violência doméstica, só assim não se procedendo quando haja razões relevantes para o não fazer. – sublinhado nosso.
Ou seja, o critério determinante para o deferimento de um pedido de tomada de declarações para memória futura deverá assentar, exclusivamente, nos interesses da vítima e não em outros – “I – Não decorrendo obrigatoriamente da lei a tomada de declarações para memória futura no caso de violência doméstica ou maus tratos, (como acontece com as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor- art.º 271º do CPP), o critério para decidir pela tomada de declarações para memória futura terá necessariamente que assentar no interesse da vítima.” - TRL, de 09/11/2016, proc. 5687/15.7T9AMD-A.L1.-3, relatora CONCEIÇÃO GONÇALVES.
Em sentido idêntico se escreveu no acórdão do TRL, de 11/01/2012, proc. 689/11.5PBPDL-3, com o relator Carlos Almeida – XIII – A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou de propiciar que a vítima exerça o direito que o Código lhe atribui de se recusar a depor. Ela tem esse direito em qualquer momento em que deva depor.”.
2.2
Aqui chegados e que dá o contexto legal e jurisprudencial do tema que nos ocupa, deve dizer-se que o recurso interposto pelo MºPº não coloca em causa o direito do menor prestar depoimento, apesar da sua tenra idade – 5 anos. Aliás, deve dizer-se que nem o despacho recorrido o considera.
Na verdade, nem o art.º 133 do CPPenal prevê a menoridade como causa impeditiva da prestação de depoimento como testemunha, nem o art.º 131 do mesmo Código aquela prevê como causa de incapacidade para ser testemunha.
Estabelece este normativo o dever da autoridade judiciária que deva receber o depoimento de uma testemunha verificar da sua “aptidão física ou mental” para “avaliar da sua credibilidade”, podendo, em caso de menor de 18 anos, o seu testemunho ser precedido de uma perícia sobre a personalidade – n.º3 do normativo.
Então, e recentrando a questão recursiva, esta coloca-se, apenas no exercício pela testemunha do direito de recusa de depoimento previsto no art.º 134 do CPPenal, no caso, por via da situação prevista no n.º1, al. a) – a testemunha ser descendente do arguido.
Direito de recusa para cujo exercício a autoridade judiciária competente deverá efectuar a respectiva advertência, sob pena de nulidade, como prevê o n.º2 do citado artigo.
Diz o despacho recorrido que sendo a testemunha menor de 5 anos, caberia tal direito de recusa à sua mãe porquanto o depoente é filho do arguido, perseguindo o saber do desembargador Cruz Bucho, nos termos acima referidos, ou seja, “a decisão de declarar ou de se recusar o depor compete ao representante legal do menor ou, na sua falta ou impedimento por ser o agente do crime, a um curador”.
Na verdade, “a representação legal consiste no pôr em movimento a esfera jurídica do incapaz por outra pessoa, designada pela lei ou em conformidade com ela, agindo em nome, no interesse e em vez daquele. Dito de outra forma, traduz-se na substituição da atuação jurídica do incapaz, cuja capacidade de atuação a lei transfere integralmente para outra pessoa.” – Ana Filipa Loura Barros, in Representação legal de menores: Conflito de interesses entre representante legal e menor representado, Dissertação de mestrado, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015, pag. 32
Concordamos com esta visão das coisas, todavia, no caso, e é a nossa posição, a mãe do menor estava, como está, impedida de representar o menor na lide e cujo depoimento se pretende. Ela não podia decidir da recusa de depoimento que o seu filho menor devia prestar.
E tal ocorre porque, in casu, há um manifesto conflito de interesses que não poder ser escondido. Tal conflito decorre do facto de a mãe do menor também ser vítima, sendo o agressor o pai do menor. Como se diz no despacho recorrido, “se investigam factos que configuram a prática de um crime de violência doméstica contra o menor DD (de 5 anos) – para além de um crime idêntico contra a progenitora BB. Agente dos factos será o progenitor (e marido) – já arguido”.
Sendo a mãe da menor vítima do mesmo agressor, no caso concorre com ele à responsabilização deste, responsabilização que naturalmente possui até uma componente financeira. Disputando ambos o mesmo património, então, a mãe não poderá representar o filho.
Recordando uma vez mais o que se escreveu na sobredita dissertação, pág. 58, “a razão de ser da privação do exercício da concreta responsabilidade de representação perante um conflito de interesses entre representante legal e menor representado radica na opção legal pela proibição do negócio consigo mesmo – art.º 261.º. Em bom rigor, o risco de um tal contrato envolver perigos evidentes, como seja, para os efeitos que temos em vista, a circunstância do representante se sentir tentado a sacrificar os interesses do representado em benefício dos seus…”.
E prosseguindo o que naquela se exarou, pag.s 72 e 73, “Em concreto, existe um conflito desta natureza quando, devendo por lei representar os interesses do menor, a intervenção do representante legal denota um abandono do princípio do superior interesse do menor e a prossecução de fins próprios, ou de terceiros, com perda de objetividade no cumprimento da sua missão”.
Porque falta objectividade à mãe para representar o seu filho no conflito com o pai, deverá fazer-se apelo ao que dispõe o art.º 1881, do CCivil e artigos 16 a 18 do CPCivil. O citado art.º 1881.º, n.º 2 estabelece o princípio de que havendo um conflito de interesses entre representante legal e menor representado é ao tribunal que incumbe a competência exclusiva para nomear um representante especial ao menor envolvido no conflito.
É, assim, o que deverá acontecer no caso em apreciação, ante o conflito de interesses.
O nomeado que o tribunal designar, em face do citado conflito, deverá exercer, então, o direito de renúncia de depoimento previsto no art.º 134 do CPPenal.
2.3
Em conclusão: entendemos que o recurso do Ministério Público deverá ser julgado procedente revogando-se o despacho que indeferiu a tomada de depoimento como à testemunha DD, menor de 5 anos, porquanto possuindo este capacidade para depor – at.º 131 do CPPenal, o exercício do seu direito de recusa em testemunhar por ser o arguido seu pai – art.º 134, n.º1, al. a) do CPPenal, não poderá ser realizado por sua mãe em sua presentação por entre ambos haver um conflito de interesses pois que ela é cônjuge do arguido sendo também vítima dele, no mesmo inquérito, processo onde se investigam crimes de violência doméstica; então, nos termos do art.º 1881 do CCivil e art.ºs 16 a 18 do CPCivil, deverá ser nomeado um representante especial à testemunha menor, um curador ad litem, para que, oportunamente, exerça em nome e no interesse do menor tal direito de recusa.
c)
Promovo, então, se dê cumprimento ao disposto no art.º 417, nº2 do CPPenal e, oportunamente, o recurso seja julgado em conferência.»
*
6 – Foi cumprido o disposto no art. 417º, nº 2 do CPP.
*
7 – Foram colhidos os vistos e os autos remetidos à conferência.
*
8 - Cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Sendo o âmbito do recurso definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, no caso vertente, a questão a apreciar neste Tribunal reporta-se a saber:

- Se o menor terá capacidade para compreender o significado e repercussões do exercício da faculdade de recusar o depoimento;
- Caso não disponha dessa capacidade de declarar ou de se recusar a depor compete ao representante legal do menor, no caso à mãe do menor, exercer tal direito.

Para a apreciação dessa questão, importa ter presentes os seguintes elementos e ocorrências processuais, que se retiram dos autos verificados previamente ao despacho recorrido:

– O presente processo de inquérito teve por génese uma denúncia, datada de 13/09/2023 apresentada por BB, por si e em representação do seu filho menor, DD, contra o seu marido e pai do menor CC, e estão em investigação factos que poderão integrar a prática de crime de violência doméstica. (participação com a ref: ...21;
- Em despacho datado de 30/11/2023, o Ministério Público promoveu que, face á idade do menor, que o DD fosse inquirido em declarações para memória futura, nos termos do disposto nos termos dos artigos 24º do Estatuto de Vítima, 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro (Lei de Protecção às Vítimas de Violência Doméstica) e 271º do CPP. (promoção com a ref: ...15);
- Por despacho de 06/12/2023, o Sr. Juiz de Instrução proferiu despacho: «Pretende o MP a tomada de declarações para memória futura ao menor DD, com 5 anos de idade, afirmando que o mesmo será vítima de violência doméstica por parte do progenitor – o arguido.
E é nessa qualidade – de vítima – que aparentemente pretende que lhe sejam tomadas as declarações, embora também pareça que o pretende na qualidade de testemunha (apesar da vítima, a progenitora, não quer prestar declarações) porquanto terá dito “ó mãe porque o pai é mau? Porque te amarou pelos braços”.
E assim, neste quadro, considerando que o MP pretende fazer com que uma criança de 5 anos seja ouvida, mas não tendo desde já o Tribunal condições para aferir da sua aptidão mental (artigo 131.º do CPP), para tomada de declarações para memória futura ao menor DD, nos termos do disposto no artigo 271.º/1 do Código de Processo Penal e 33.º/1 da Lei 112/209, de 16/09, designo o dia 18/12/2023, pelas 14h.
Notifique, na pessoa da respectiva progenitora (mãe).
Solicite à Ordem dos Advogados a nomeação de defensor oficioso arguido (artigo 271.º/3 do Código de Processo Penal).
Notifique a data supra ao arguido e ao defensor que vier a ser nomeado.
Nos temos do artigo 33.º/3 da Lei 112/2009, solicite a indicação de técnico de apoio à vítima para acompanhar esta, técnico que fica desde já nomeado.
Deve igualmente o técnico ser, nesse momento, notificado da data acima.
D.n»
- Entretanto, após ter sido notificada da data designada para tomada de declarações ao menor, a sua mãe BB, apresentou um requerimento, datado de 14/12/2023, em que requer que seja dada sem efeito a diligência de tomada de declarações para memória futura, apresentando como motivo justificador do seu requerimento: “o meu filho tem apenas e só 5 anos de idade, pelo que, não tem aptidão mental para prestar testemunho num processo judicial. Além do que, me parece uma enorme violência sujeitar o meu filho de apenas e só cinco anos de idade a estar presente num tribunal.” 
- No dia 15/12/2023, o Senhor Juiz de Instrução proferiu o seguinte despacho: « ….Contudo, não se designa desde já data para a sua realização face ao requerimento da progenitora do menor. Na verdade, tal como se deduz do despacho que designou a data para tomada de declarações para memória futura, e o enfatiza sabia ou com bom senso a progenitora, sujeitar uma criança de 5 anos à diligência não deixa de ser “violência”.
Mas o MP é que é o titular do inquérito e sabia perfeitamente, quando o requereu, que a criança tem 5 anos.
De qualquer forma, face ao requerido pela progenitora (a vítima – que diz não prestar declarações) vão os autos ao MP para dizer o que tiver por conveniente.
Oportunamente será – se for o caso – agendada nova data.» (ref: ...69)
- Em despacho datado de 05/01/2024, citando o disposto no art. 131º, do CPP, o Ministério Público promoveu o indeferimento do requerimento apresentado pela mãe do menor, por falta de fundamento legal. (ref: ...08)
- É em resposta ao requerimento formulado pela BB, e da consequente posição do Ministério Público face ao mesmo, que é proferido o despacho recorrido. (ref: ...42)
- Após admissão do recurso, e da resposta apresentada pelo arguido, foi proferido o seguinte despacho: «Mantenho o despacho recorrido e, com o devido respeito, afigura-se que das motivações de recurso do MP nada resulta que contrarie os seus fundamentos.
Porém, V. Ex.as, no vosso mais alto critério, como sempre, melhor decidirão.» (ref: ...42)
*
Apreciação.

Estabelece o n.º 1 do artigo 134º do Código de Processo Penal o seguinte:

“Podem recusar-se a depor como testemunhas:
a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;
b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.”
Aqui o legislador elencou um conjunto de pessoas às quais é dada a possibilidade de se recusarem a depor na qualidade de testemunhas, considerando os especiais laços familiares, conjugais ou afetivos que as ligam ao arguido.
Esta faculdade que é atribuída a este conjunto de pessoas é necessária e fundamental dentro do próprio processo penal. Consideradas as ligações sentimentais em causa, as mesmas poderiam constituir um forte abalo, ficando as relações em causa. O que, decerto, levaria as testemunhas a procurar prestar falso depoimento, numa tentativa compreensível de proteger o arguido.
No entanto, para que esta faculdade de recusa de depoimento seja efetiva, carece de advertência, por parte da entidade competente para receber o depoimento.
Ou seja, o que do n.º 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal resulta é uma obrigatoriedade, imposta pela lei à entidade à qual cabe receber o depoimento, de advertir a testemunha, desde que esta se enquadre no elenco previsto no n.º 2 do mesmo preceito legal, da possibilidade de se recusar a depor.
Portanto, contrariamente ao que sucede no âmbito do art. 135º, do CPP, a lei não impede que as pessoas elencadas no nº 1, do art. 134º, do mesmo diploma legal, possam depor, o que determina, permite, é que essas pessoas se possam recusar a prestar tal depoimento. (Neste sentido cfr: Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal- Notas e Comentários, 2ªed., 2011, Coimbra Editora pág. 382, citado pelo Desembargador Cruz Bucho no trabalho infra identificado, pág. 31.)
“O direito de recusa de depoimento é, por conseguinte, renunciável, sendo porém necessário, como veremos, que quem renuncia esteja devidamente informado do sentido e alcance do direito consagrado no artigo 134.º do Código Penal.” (Cfr: Des. Cruz Bucho em «A recusa de depoimento de familiares do arguido: O privilégio familiar em processo penal», no sítio (estudos) do Tribunal da Relação de Guimarães, 2015, pág. 31),     
Esta é precisamente a questão que se coloca no caso vertente, que é prévia à advertência que o nº 2 do art. 134º consagra, e prende-se com a da capacidade do menor AA para compreender o alcance desta advertência e das consequências que do mesmo podem advir, designadamente para o seu familiar, o pai, e arguido no processo.
Estamos, pois, aqui perante uma situação em que uma pessoa que integra a esfera relacional íntima do arguido é chamada a depor. Ora, há que atentar nos efeitos devastadores que do depoimento do menor poderiam advir nas relações de confiança e intimidade que o ligam ao arguido, seu pai, provocando séria instabilidade no seio familiar.
Foi precisamente para evitar esta turbulência nas relações de família que o legislador veio prever a possibilidade de o declarante se recusar a depor, procurando evitar constrangimentos ou até mesmo falsos testemunhos.
Mas, para que esta pretensão legislativa tenha efeitos no plano prático, é necessário que a entidade competente para receber o depoimento faça a advertência prevista no n.º 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal, e que o destinatário dessa advertência tenha a necessária capacidade de a entender. Sendo certo que, o espírito da lei e a intenção do legislador é a de salvaguardar as relações de cariz familiar e, igualmente, a certeza e a segurança jurídicas, no sentido em que a possibilidade dada à testemunha de não depor garantiria que do depoimento não sairia afetado um dos fins últimos do processo penal, a descoberta da verdade.
Porém, repetimos, essencial se torna a compreensão da posição em que se encontra, e das consequências que da mesma poderão surgir no seio da família, no caso concreto na situação processual respeitante ao seu pai.
Como diz se diz no Ac. da RP, de 30/01/2013, relatado pela atual Juiz Conselheira Maria do Carmo Silva Dias, in www.dgsi.pt, “O disposto no art. 134º do CPP, que permite confortar a consciência da pessoa que iria depor ou prestar declarações (na medida em que lhe confere o direito de recusar-se a prestar depoimento ou declarações), quando tem qualquer daquelas (as indicadas no nº 1 do mesmo preceito, que são taxativas) relações especiais com o arguido, significa igualmente que num Estado de direito a prova não pode ser obtida a qualquer preço.
(…)”
Como diz Medina Seiça [“Prova testemunhal. Recusa de depoimento de familiar de um dos arguidos em caso de co-arguição (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 1996), in RPCC ano 6, fasc. 3, Julho-Setembro 1996, pp. 492 e 49316], explicando essa opção do legislador, “embora a descoberta da verdade constitua a finalidade essencial de todo o processo penal e elemento fundamental para uma correcta administração da justiça, a qual, enquanto vector essencial à manutenção da comunidade juridicamente organizada, representa uma vertente informadora da própria ideia de Estado-de-Direito, a eventual perda da prova com possível relevância para a descoberta da verdade será de aceitar nos casos em que a sua aquisição se traduza na lesão de um bem mais valioso”.
Este é um dos fundamentos que subjaz à recusa de depor por parte dos familiares do arguido, sendo apontadas diversas via fundamentadoras de tal exceção, privilégio, ao dever de prestar declarações.

Como é salientado na obra citada do Sr. Desembargador Cruz Bucho, pág. 18 e segs:

«A fundamentação da recusa de depor por parte dos familiares do arguido tem sido, porém, procurada por diversas vias, nomeadamente na:
a) protecção do arguido, enquanto manifestação do princípio nemo tenetur;
b) protecção da busca da verdade;
c) protecção da testemunha perante um conflito de consciência ou de interesses;
d) protecção das relações familiares.
 (…)”

Assim, segundo o Ac. do Tribunal Constitucional  n.º 154/2009, aquele privilégio:
«Insere-se num conjunto de situações típicas (cf. artigos 132.º, n.º 2, 134.º e 135.º) que, em derrogação do dever jurídico de prestar declarações que incumbe às testemunhas [cf. artigo 132.º n.º 1, alínea d); dever penalmente censurado no artigo 360º do Código Penal, em caso de falso testemunho], consagram o direito a recusar depoimento (aliás, em algumas das hipóteses a recusa é um dever profissional ou deontológico).
Essas situações de legitimação da recusa a depor assentam em razões ou fundamentos não inteiramente sobreponíveis, se bem que relativamente próximos. “Trata-se, inter alia e fundamentalmente de: prevenir formas larvadas e indirectas de auto-incriminação; preservar a integridade e a confiança nas relações de maior proximidade familiar; proteger o alargado espectro de valores individuais e supra-individuais pertinentes à área de tutela da incriminação da violação de segredo profissional ou de segredos para este efeito equivalentes, como, v. g., o segredo de ministro de religião; poupar as pessoas concretamente envolvidas às situações dilemáticas de conflito de consciência de ter de escolher entre mentir ou ter de contribuir para a condenação de familiares ou de clientes” (M. COSTA ANDRADE, “Bruscamente no verão passado”, a reforma do Código de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137º, n.º 3950, pág. 280)»
(…)”

d) A protecção das relações familiares
À protecção do conflito de consciência da testemunha a doutrina alemã logo acrescentou a protecção da confiança ou solidariedade familiar.
Assim, segundo Schäffer:
“O direito de recusa não é apenas outorgado por causa do conflito de consciência da própria testemunha mas também para protecção da família do acusado. Nesta medida, a esfera jurídica do acusado é directamente atingida quando, por falta do esclarecimento legalmente exigido, uma testemunha sem formação jurídica não pode decidir livremente sobre se deve ou não fazer uso do seu direito ao silêncio”. 
O direito de recusa visa, deste modo proteger a estabilidade do núcleo familiar.
Como afirma a doutrina alemã, procura-se não apenas proteger a família concreta do arguido, mas também a família no seu conjunto, a família enquanto instituição nuclear da sociedade.
O direito de recusa será assim um reflexo da obrigação que incumbe ao Estado de proteger a família.
Esta ideia de salvaguarda das relações de confiança inerentes à instituição familiar está igualmente presente na doutrina e na jurisprudência espanholas.
Como foi inclusivamente salientado pelo Tribunal Constitucional espanhol:
«el Tribunal Supremo, en una reiterada línea jurisprudencial constitucionalmente adecuada, invoca como fundamento de la dispensa de la obligación de declarar prevista en los arts 416 y 707 LECrim los vínculos de solidaridad que existen entre los que integran un  mismo círculo familiar, siendo su finalidad la de resolver el conflicto que pueda surgir entre el deber de veracidad del testigo y el vínculo de familiaridad y solidaridad que le une al acusado» .
Também na Itália o Tribunal Constitucional (Corte Costituzionale) afirmou que:
« il legislatore ha accordato ai prossimi congiunti la facoltà di astenersi dal deporre nel processo penale, perché ha ritenuto meritevole di tutela il sentimento familiare (latamente inteso) e, nel possibile contrasto tra l'interesse pubblico, della giustizia, che su tutti gravi il dovere di deporre, e l'interesse privato, ancorato al detto sentimento, che i prossimi congiunti dell'imputato, non siano travagliati dal conflitto psicologico tra il dover deporre e dire la verità ed il desiderio o la volontà di non deporre per non danneggiare l'imputato, ha altresì ritenuto prevalente l'interesse privato e non in generale ed in modo assoluto ma se ed in quanto l'interessato (e cioè il teste) reputi di non dovere o potere superare quel conflitto, ed a tale fine non ha imposto un divieto di testimoniare (come invece disponeva l'art. 147 del codice di procedura civile prima della pronuncia di illegittimità costituzionale di cui alla sentenza n. 248 del 1974), ma solo una facoltà di astenersi dal deporre» .
Entre nós, por força da divulgação da doutrina alemã a cargo do Prof. Costa Andrade, pode dizer-se que esta orientação, a que aderimos, é hoje dominante ao nível da doutrina e jurisprudência.
Assim, o Prof. Costa Andrade, embora não assumindo nesta sede uma posição definitiva sobre a controvérsia, sempre conclui não haver razões para se afastar da teoria tradicional alemã na parte em que adscreve o primado no programa de tutela destas proibições de prova aos interesses pessoais da testemunha individualmente considerada ou na teia das relações de confiança e de solidariedade que a instituição familiar oferece. 
Também Medina de Seiça a propósito do privilégio constante do artigo 134.°, n.º 1, do CPP refere que «[c]om o reconhecimento do direito de recusa pertencente aos familiares, a lei não só pretendeu evitar o conflito de consciência que resultaria para a testemunha caso tivesse de responder com verdade sobre os factos imputados a um familiar seu. Pretendeu, ainda e sobretudo, proteger as ‘relações de confiança, essenciais à instituição familiar’».
Esta interpretação foi sufragada pelo Tribunal Constitucional no seu Ac nº 154/09 de 25-3-2009:
«...a possibilidade de recusa a prestar depoimento por parte dos familiares, cônjuge e afins do arguido (bem como por parte do ex-cônjuge de quem com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação), tem o propósito imediato de evitar situações em que tais pessoas sejam postas perante a alternativa de mentir ou, dizendo a verdade, contribuírem para a condenação do seu familiar.
Entendeu aqui a lei que o interesse público da descoberta da verdade no processo penal deveria ceder face ao interesse da testemunha em não ser constrangida a prestar declarações. Mas, além de pretender poupar a testemunha ao conflito de consciência que resultaria de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um arguido com quem tem parentesco ou afinidade próximos, o legislador quer proteger as “relações de confiança, essenciais à instituição familiar”(…).
(…) a razão de ser da norma é, não só a de obstar ao conflito de consciência que resultaria para a testemunha de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um seu familiar ou afim, mas também e sobretudo proteger as relações de confiança e solidariedade, essenciais à instituição familiar – verdadeiramente, é esta a sua raiz última (…).
Como já se disse, o fundamento último da legitimidade da recusa a depor por parte das pessoas indicadas no n.º 1 do artigo 134.º do CPP situa-se no interesse da família enquanto elemento fundamental da sociedade e espaço de desenvolvimento da personalidade dos seus membros (n.º1 do artigo 67.º da CRP), cuja importância supera o interesse da punição dos culpados. A possibilidade de um familiar próximo vir a ser constrangido a testemunhar contra outro perturba a confiança, fundada no afecto ou nas projecções sociais sobre o afecto devido, que é o cimento da coesão desse elemento básico da sociedade.
Por este ângulo, o que a regra do n.º 1 do artigo 134.º protege, em última linha, é a confiança e a espontaneidade inerentes à relação familiar, prevenindo (enquanto desenho do sistema jurídico relativo a esse ambiente privilegiado no qual as relações e as trocas de informação se devem desenvolver sem receio de aproveitamento por terceiros ou pelo Estado) e evitando (quando, perante um concreto processo, o risco passa de potencial a actual) que sejam perturbadas pela possibilidade de o conhecimento de factos que essa relação facilita ou privilegia vir a ser aproveitado contra um dos membros.  E visa também – aliás, é essa a sua justificação de primeira linha – poupar a testemunha ao angustioso conflito entre responder com verdade e com isso contribuir para a condenação do arguido, ou faltar à verdade e, além de violentar a sua consciência, poder incorrer nas sanções correspondentes. Trata-se de uma forma de protecção dos escrúpulos de consciência e das vinculações sócio-afectivas respeitantes à vida familiar que encontra apoio no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição e que outorga ao indivíduo uma faculdade que se compreende no direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, enquanto materialização do postulado básico da dignidade da pessoa humana (…)».
 Tem sido esta, igualmente, a orientação perfilhada pelos tribunais judiciais.
Como se sintetiza no citado Ac. da Rel. de Coimbra de 6-11-2012:
«Com este direito de recusa (“ direito ao silêncio”) pretende-se, em síntese, evitar o “conflito de consciência” e proteger “as relações de confiança, essenciais à instituição familiar” (cf., por ex., Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág.76 e segs.), estando em causa o direito fundamental à tutela da instituição familiar e protecção da dignidade ou de liberdade de conformação da personalidade da testemunha (arts. 26º, nº1 e 67º, nº1 CRP)».
Ora, no caso dos autos estamos perante uma situação em que objetivamente o menor AA, de cinco anos de idade, por falta de maturidade, conhecimento, capacidade de compreensão, inabilidade, não reúne condições para de qualquer forma usar da faculdade de se recusar a depor, para alcançar as razões e consequências de uma decisão que teria de tomar perante uma advertência que não entende.
E a tal não obsta o facto de o menor AA também poder ser um dos ofendidos da imputada conduta do arguido seu pai, uma vez que, à partida, nada impede que possa ser ouvido como testemunha nos autos, sendo certo que nada indica que se tenha constituído assistente ou deduzido pedido de indemnização civil (art. 133º, nº 1, do CPP). Sendo certo que, atendendo à literalidade das normas aplicáveis (artigos 134.º e 145.º ambos do CPP) e ao elemento sistemático, o privilégio familiar opera no âmbito da prova testemunhal e por declarações (do assistente e da parte civil). Cfr. Ob e autor cit. Pág. 110)
De tudo o exposto o que resulta é que perante esta realidade o menor está impossibilitado, por motivos que o transcendem, de ver cumprido o direito de garantia da efetiva liberdade no seu exercício, de depor ou se recusar, através do esclarecimento prévio a que alude o art.º 134º, nº 2, do CPP.
 É claro que o art. 131º, nº 1, do CP, não exclui a capacidade para ser testemunha aos menores de idade, o único caso de incapacidade aí consagrado reporta-se às pessoas que se encontrem interditas por anomalia psíquica.
De qualquer forma, como se prevê no nº 2 do mesmo preceito legal, a autoridade judiciária verifica a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da sua credibilidade e puder ser feito sem retardamento da marcha normal do processo.
Mas, essa capacidade para prestar testemunho ou declarações, para narrar os factos que presenciou e observou, não pressupõe necessariamente a capacidade para compreender o significado da faculdade que a lei lhe confere de recusar o depoimento. Ou seja, uma coisa é a pessoa ser capaz de descrever aquilo que viu, outra substancialmente diferente é percecionar, entender, que tem o direito a recusar responder ao que lhe for perguntado, as razões pelas quais esse direito lhe é conferido e as repercussões que a sua decisão poderá acarretar, no presente e no futuro, tanto para si como para o núcleo familiar a que pertence.
Manifestamente que num caso como o vertente, em que nos deparamos com  um menor de tenra idade, com cinco anos de idade, salvo o devido respeito por entendimento diferente, essa capacidade para conscientemente tomar uma opção sobre depor ou não depor, para exercer, ou não, a prerrogativa que a lei processual penal lhe concede, não se verifica. Não obstante o entendimento de que a simples menoridade da pessoa cujo depoimento se pretende só por si não acarreta essa incapacidade, ou inabilidade.
Efetivamente, é comummente aceite, designadamente no âmbito penal, que uma criança de tão tenra idade ainda não tem as suas faculdades intelectuais suficientemente desenvolvidas para compreender o alcance de uma decisão de tal importância, nomeadamente quando os interesses em jogo se desenvolvem à volta da sua família, concretamente do seu pai.  
«É, manifestamente, o que se passa com menores de tenra idade cuja imaturidade, embora não os impeça de narrar os factos que presenciaram, pode, porém, inibi-los de compreender o significado e transcendência do exercício da faculdade de recusar o depoimento.
Assim, por exemplo, um menor de 5 ou 6 anos de idade, em princípio é plenamente capaz de relatar em tribunal aquilo que viu o arguido, seu pai, fazer a uma irmã do menor, a uma colega desta, ou à sua mãe, mas não é capaz de exercer conscientemente a faculdade de recusar depor contra seu pai, acusado da prática de um crime de abuso sexual de crianças ou de um crime de violência doméstica. (Des. Cruz Bucho, ob. Cit. Pág. 152).
Como solucionar então esse impasse criado pela existência dessa inabilidade natural do AA para tomar essa decisão?
Numa situação como aquela com que nos defrontamos no caso vertente a forma de superar essa incapacidade do menor passaria por conferir ao seu representante legal, ou, na sua falta ou impedimento, designadamente por ser o agente do crime, a um curador. Nesta linha de entendimento, sendo o arguido o pai do menor, a sua representação seria conferida à sua mãe, e ofendida, BB, que, contrariamente ao propugnado pelo Exmo. Procurador Geral Adjunto no seu parecer, com o devido respeito pela posição aí expressa, não sofre de qualquer impedimento para exercer essa função representativa.
Ora, como resulta da sua posição processualmente expressa, foi precisamente a mãe do menor quem se insurgiu contra a pretensão formulada pelo Ministério Público de ouvir o menor AA em declarações para memória futura, manifestando o entendimento de que o mesmo não tem maturidade para tal e que seria uma violência sujeitá-lo a comparecer num tribunal para esse efeito, concretamente: “o meu filho tem apenas e só 5 anos de idade, pelo que, não tem aptidão mental para prestar testemunho num processo judicial. Além do que, me parece uma enorme violência sujeitar o meu filho de apenas e só cinco anos de idade a estar presente num tribunal.” 
É claro que a questão que se coloca não se refere à aptidão mental do menor para prestar testemunho, pelo menos não existem dados no processo sobre tal situação, nem à possibilidade da sua inquirição ser efetuada em declarações para memória futura, como prevê o art. 271º, do CPP, e os artigos 24º do Estatuto de Vítima, e 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, a Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica, como bem refere o Ministério Público nas suas alegações recursivas, sendo certo que esta diligência processual é aquela que mais se adequa à tomada de declarações neste tipo de crimes e em que o declarante é menor de idade.
No entanto, no que concerne à invocada violência que representa para o menor vir a tribunal, e ainda mais prestar declarações num processo em que o arguido é o seu pai, e em que a diligência requerida se destina a obter provas contra este, afigura-se-nos que a posição assumida pela mãe do menor deverá ser devidamente ponderada.
Não é despiciendo salientar que no caso dos autos não transparece, não foi colocado em causa, o relacionamento afetivo recíproco existente entre o arguido e o filho AA.
Assim sendo, sendo manifesto que a tomada de declarações requerida visa, em última instância, obter provas contra o pai do menor, não vislumbramos que este, com cinco anos de idade, ainda que assistido por representante legal, por curador ou  por defensor, possa de alguma forma, com o mínimo de consciência, optar por prestar ou não prestar declarações nos termos do artigo 134.º do CPP, constituindo desde logo uma violência confrontá-lo com a realidade de que as suas declarações poerão ser prejudiciais para o arguido seu pai.

Em suma, por o despacho recorrido conter fundamento válido para o indeferimento da pretensão apresentada pelo Ministério Público deverá manter-se.
*
III. DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se não conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique.
*
Guimarães, 9 de abril de 2024

Relator - Júlio Pinto
1º Adjunto – Carlos da Cunha Coutinho
2º Adjunto – Armando Azevedo