Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
241/20.4JAVRL.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: METADADOS
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Nº 268/2022
PROVA PROIBIDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – No acórdão nº 268/2022, de 19 de Abril, o Tribunal Constitucional não fiscalizou nem censurou outras normas para além das constantes dos Artºs. 4º, 6º e 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, nem outros diplomas legais, designadamente os Artºs. 187º a 189º do C.P.Penal.
II – Assim, é admissível, ao abrigo do regime que emana dos citados Artºs. 187º a 189º do C.P.Penal, a interceção de comunicações e recolha de metadados com ela relacionados e dela derivados, autorizada pelo juiz de instrução na pendência de um inquérito.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum Colectivo nº 241/20...., do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foram submetidos a julgamento os arguidos:
1.1. AA, solteiro, agricultor e comerciante de gado, filho de BB e de CC, natural de ..., Ribeira ..., nascido em .../.../1980, residente na Rua ..., Bairro ..., ..., ..., ..., titular do nº de identificação civil ...; e
1.2. DD, divorciado, agricultor, filho de EE e de FF, natural de ... (...), ..., nascido em .../.../1980, residente no Bairro ..., ..., titular do nº de identificação civil ...
*
2. Em 19/05/2023 foi proferido o respectivo acórdão, depositado no mesmo dia, do qual emerge o seguinte dispositivo (transcrição [1]):
“Por todo o exposto, acordam os Juízes que integram o Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal ...:

I . Parte Criminal

a) Julgar a acusação particular totalmente improcedente por não provada, e em consequência, absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelos artigos 14º nº 1, 26º e 181º do Código Penal, da qual vem acusado.
b) Absolver o arguido AA da prática, em co-autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de três crimes de roubo agravado, nos termos do disposto nos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1, 77º 210º, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 204º, n.ºs 1, alíneas e) e f), 2, alínea f), e 3, todos do Código Penal.
c) Condenar o arguido DD pela prática, em co-autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de três crimes de roubo agravado, nos termos do disposto nos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1, 77º 210º, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 204º n.ºs 1, alíneas e) e f) e 3, todos do Código Penal nas penas de 3 anos e 6 meses de prisão em relação ao crime cometido na pessoa da ofendida GG, 4 anos de prisão em relação ao crime cometido na pessoa da ofendida HH e 4 anos e 6 meses de prisão em relação ao crime cometido na pessoa do assistente II.

Em cumulo jurídico das referidas penas de prisão, ao abrigo do disposto nos artigos 77º do Código Penal:

na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
d) Condenar o arguido DD no pagamento das custas do processo, e individualmente na taxa de justiça que se fixa em 4 UC (artigos 513º nºs 1 a 3, 514º, 524º do Código de Processo Penal e art. 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-lei nº 34/2008 de 26/02 por referência à tabela III).
e) Condenar o assistente II nas custas criminais da acusação particular com taxa de justiça que se fixa em 2 (duas) UC, deduzindo a quantia por si já paga no momento da sua constituição como assistente (artigos 515º nº 1 alínea a) do CPP e 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa).

II . Parte Cível
f) Absolver o arguido AA do pedido de indemnização civil formulado pelo assistente II relativamente à prática do crime de injúria referido em a).
g) Absolver o arguido AA dos pedidos de indemnização civil formulados pelos demandantes II, HH e GG relativamente à prática dos crimes de roubo referidos em b).
h) Condenar o arguido DD a pagar ao Centro Hospitalar de ..., E.P.E a quantia de € 420,83 (quatrocentos e vinte euros e oitenta e três cêntimos) a título de danos patrimoniais.
i) Condenar o arguido DD a pagar ao assistente II a quantia de € 1.675,00 (mil, seiscentos e setenta e cinco euros) a título de danos patrimoniais e a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) pelos danos não patrimoniais perpetrados com os crimes cometidos, absolvendo o arguido do demais peticionado;
j) Condenar o arguido DD a pagar à demandante HH a quantia de € 2.175,00 (dois mil, cento e setenta e cinco euros) a título de danos patrimoniais e a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) pelos danos não patrimoniais perpetrados com os crimes cometidos, absolvendo o arguido do demais peticionado;
k) Condenar o arguido DD a pagar à demandante GG a quantia de € 300,00 (trezentos euros) a título de danos patrimoniais e a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros) pelos danos não patrimoniais perpetrados com os crimes cometidos, absolvendo o arguido do demais peticionado;
l) Condenar o arguido DD e os demandantes II, HH e GG nas custas do pedido de indemnização civil relativamente ao crime de roubo na proporção dos respectivos decaimentos (artigo 4º nº 1 alínea n) do RCP e art. 527º nºs 1 e 2 do CPC).

Sem custas cíveis quanto aos pedidos de indemnização civil deduzidos pelo Centro Hospitalar de ..., E.P.E e pelo assistente JJ quanto ao crime de injúria, uma vez que os valores globais peticionados não excedem o referido no artigo 4º nº 1 alínea n) do Regulamento das Custas Processuais.
(...)”.
*
3. Inconformados com tal decisão, dela vieram o arguido DD  e o Ministério Público interpor os presentes recursos [2], cujas motivações são rematadas pelas seguintes conclusões e petitórios (transcrição):
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3.1. Arguido DD
“1. A prova produzida nos presentes autos e considerada não espelha o que de facto aconteceu e que consta dos autos.
2. O Tribunal a quo não fez uma correcta interpretação dos factos, nem tão pouco, uma adequada subsunção dos mesmos à norma jurídica.
3. Face aos elementos probatórios constantes dos autos, em conjugação das regras da experiência comum, o Tribunal a quo não poderia deixar de distinguir entre os actos alegadamente praticados pelo arguido e os outros intervenientes nos factos, já que existindo um laivo de dúvida, por mínimo que seja, sobre a veracidade de um facto em que se alicerça uma imputação delituosa, ninguém pode ser condenado com base nesse facto.
4. De facto, não foi tido em consideração que o arguido colaborou com a Polícia Judiciária, o Ministério Público e o Tribunal a quo.
5. Aliás, o Tribunal a quo não estranhou, como o deveria ter feito, o facto de as próprias vítimas, desde o início referirem, que um dos “assaltantes” era educado e não foi violento, tendo tentado, dentro das suas próprias limitações, dar apoio às vítimas.
6. Não logrou o Tribunal a quo produzir prova, que sustentasse a conclusão, que havia um plano previamente gizado e que o arguido DD tinha conhecimento do mesmo.
7. Não é provável, nem aceitável, segundo as regras da experiência comum, que o arguido, com o seu historial criminal, tivesse embarcado de ânimo leve nesta situação.
8. O arguido, simplesmente não sabia ao que ia e foi surpreendido.
9. Acontece que este julgamento baseou-se largamente nos antecedentes criminais do arguido e não procurou valorar adequadamente a situação actual do arguido.
10. Tanto as penas parcelares como a pena única, não tiveram em conta o grau de participação do arguido, a sua culpa ou sequer o seu conhecimento.
11. Convém recordar que “é objectivo supremo em processo penal a busca da verdade material, ainda que à custa, ou passando por cima de meras considerações formais, desde que respeitados os direitos fundamentais de defesa, de modo a conseguir a justiça e a evitar que o desenlace da causa se fique por mera decisão de forma” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16/04/97 in www.dgsi.pt)
12. Na ausência de provas, que permitam concluir sem sobra de dúvida sobre a culpa do arguido, só resta ao julgador absolver o arguido.
13. Mais vale um milhão de culpados absolvidos do que um inocente condenado, eis a máxima do in dubio pro reo.
14. Ora, não sendo o arguido inocente, não podemos deixar de concluir, que a condenação por três crimes de roubo agravado de uma pessoa, que nunca viu qualquer dos bens alegadamente roubados é um acto de injustiça.
15. Por todo o exposto e em conclusão deverá ser revogada a douta decisão do Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo que aplicou a pena de cinco anos e seis meses de prisão ao ora recorrente.
16. Caso assim não se entenda deve a pena ser reduzida e substituída por uma pena não privativa da liberdade atendendo aos critérios da prevenção geral e especial e tendo como limite a culpa do arguido, ora recorrente.

Termos em que, e nos mais que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, revogando ou alterando a decisão de aplicar a pena de cinco anos e seis meses de prisão no caso sub judice se fará, uma vez mais, a costumada
JUSTIÇA”.
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3.2. Ministério Público 

“1- “Como é sobejamente conhecido o âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões”…
2- as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt,Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1;
3- São assim, as conclusões, que fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal”.
4- [Questão Prévia – Metadados] Entendeu o Tribunal a quo considerar nula e como prova proibida a utilização da informação constante de fls. 305, 308, 309 e apenso III (metadados), concluindo que “(…) tais elementos não podem ser utilizados como meio de prova face ao teor do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral de diversas normas da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho”. “(…)sendo prova proibida em face da referida declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, os dados de tráfego resultantes de fls. 305, 308, 309 e apenso III não serão utilizados (…)”.
5-Em sede de inquérito foram solicitadas informações às operadoras de telecomunicações, nomeadamente, o fornecimento de facturação detalhada, registo de trace-back e a localização celular das comunicações telefónicas, entre a 00h00 do dia 20/04/2020 e 23h59 de 30 de abril de 2020, de e para o cartão de acesso aos dados móveis do número de telemóvel ...13 e foi também oficiada à operadora de telecomunicações ... para juntar aos autos listagem de chamadas efectuadas e recebidas, bem como, a localização celular dos números ...98 e ...77, entre a 00h00 do dia 20/04/2020 e 23h59 de 30 de abril de 2020. Nessa sequência foram juntos aos autos diversos dados de tráfego – cfr. fls. 305, 308, 309 e apenso III.
6-Não podemos conceder, por entendermos que o referido Acórdão do Tribunal Constitucional não tem qualquer efeito sobre o caso concreto.
7-Com todo o respeito que nos merece o Tribunal Coletivo, que é muito, incorreu em confusão de conceitos na interpretação do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, assim como dos normativos aplicáveis, além de se ter alheado, de todo, do sentido de decisão mais recente dos nossos tribunais superiores em sentido contrário aos acórdãos citados na Douta Decisão recorrida, nomeadamente, do decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, entre outros, no Acórdão proferido a 02 de maio de 2023 (processo n.º 12/23.6PBGMR-A.G1, disponível para consulta in www.dgsi.pt);
8-Os dados relativos aos utilizadores encontram-se na disponibilidade dos fornecedores de rede pública e dos prestadores de serviços de telecomunicações de uso público, que estão sujeitos ao sigilo das telecomunicações.
9-Quanto aos serviços de telecomunicações há que distinguir três tipos de dados: dados de base, dados de tráfego e dados de conteúdo.
10-Os dados de base respeitam à identificação dos emissores ou destinatários das comunicações, evidenciando, assim, a mera conexão a uma rede pública de telecomunicações, não sendo os mesmos suscetíveis de revelarem ou identificarem uma comunicação. São, assim, prévios e instrumentais de qualquer comunicação.
11-Por sua vez, os dados de tráfego estão definidos no artigo 2.º, n.º 1, alínea d), da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro  (Lei do Cibercrime), como sendo os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e gerados pela utilização da rede (como exemplo, a localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência).
12-Por seu turno, os dados de conteúdo são os que respeitam ao próprio conteúdo da mensagem transmitida.
13- Ao contrário do sustentado na Douta Decisão recorrida, aplicando-se os critérios e comandos gerais da sucessão de leis no tempo, haverá que concluir que o n.º 2 do artigo 189º do Código Penal se mantém em vigor.
14- Na verdade, o artigo 189.º do Código de Processo Penal não foi expressamente revogado, nem pela Lei n.º 32/2008 de 17 de julho, nem pela Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro (Lei do Cibercrime).
15-Acresce que a sua redação não encontra coincidência com qualquer outra disposição, mormente da Lei do Cibercrime, pelo que não se afigura possível asseverar a sua revogação tácita.
16-Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do regime instituído nos artigos 4.º, n.º 1 e 6.º da Lei n.º 32/2008, este regime é revogado, sendo repristinado o regime anterior.
17- Estando verificados todos os requisitos, isto é, tratar-se um crime de “catálogo” nos termos do artigo 187.º, n.º 1, al. a), que existam suspeitos (n.º 4 do mesmo artigo), pretendendo-se a obtenção e junção aos autos de dados armazenados – sobre a localização celular e faturas detalhadas (dados de tráfego) -, e mostrando-se a sua obtenção imprescindível para a investigação, como é o caso dos autos, inexiste qualquer nulidade probatória, pelo que a obtenção dos dados de tráfego e localização celular nos termos determinados e juntos em sede de inquérito terão de ser valorados pelo Tribunal Coletivo, por prova válida e legalmente coligida.
18- É prova a considerar pelo Tribunal Coletivo os dados de tráfego obtidos, nos termos do art.º 189.º, n.º 2 do Código Processo Penal (regime aplicável aos autos) e porque esses dados são conservados por força dos artigos 6.º, n.º 2 da Lei n.º 41/2004 e 10.º da Lei n.º 23/96, não revestindo qualquer meio ilícito de obtenção de prova.
19- Violou o Tribunal a quo com a Decisão recorrida, nesta parte, o disposto nos artigos 125.º, 126.º 187.º, 189.º e 262.º, todos do Código de Processo Penal, artigo 18.º, n.º 1 al. b) da Lei do Cibercrime, artigo 14.º, nº3 da Lei nº 109/2009, de 15.09, e artigos 6.º, n.º 2 da Lei n.º 41/2004 e 10.º da Lei n.º 23/96.
20- “(…) De acordo com os normativos citados, é permitida a obtenção e junção aos autos de dados armazenados, in casu, de registos da realização de conversações ou comunicações – “dados de tráfego” que podem ser solicitados em qualquer fase do processo, por decisão do juiz, quanto aos crimes de catálogo do artigo 187º/1 e quanto aos visados previstos no catálogo do artigo 187º/4 desde que a diligência se revista de relevância probatória, isto é, de acordo com o critério de mera necessidade para a prova e com o juízo proporcionalidade previsto no artigo 18º/2 CRP. (…) Estão, pois, preenchidos todos os requisitos de facto e de direito para a obtenção dos dados de tráfego junto das operadoras de telecomunicações, concretamente os conservados pelo período de 6 meses (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 02-05-2023 (processo n.º 12/23.6PBGMR-A.G1, relator: Exmo. Senhor Juiz Desembargador, Dr. Armando Azevedo, disponível para consulta in www.dgsi.pt).
21-A posição assumida pelo Tribunal Coletivo tem apoio de parte da jurisprudência, nomeadamente, os citados na Decisão recorrida, o que é evidenciador das divergências que o tema tem gerado na prática judiciária.
22- Por se situarem em planos distintos (a Lei nº 32/2008, de 17/07 e o regime decorrente do disposto nos artigos 187.º a 189.º do C.P.P.), a Lei nº 32/2008, de 17.07, não revogou, nem podia ter revogado os artigos 187º a 189 do CPP.
23- O acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022 manteve intocado o referido regime acesso a dados conservados pelas autoridades com vista à investigação de determinados crimes, designadamente os referidos artigos 187º a 189º do CPP e a aludida Lei nº 109/209 (Lei do Cibercrime).
Neste sentido, para além dos citados acórdãos do STJ, vide Ac. RL 22.02.2023, processo 495/22.1JAFUN-A.L1-5; e Ac. RP de 29.03.2023, processo 47/22.6PEPRT-Z.P1, disponíveis em www.dgsi.pt
24- “(…) Ou seja, a declaração de inconstitucionalidade não se reporta às normas relativas ao acesso aos metadados de comunicações pelas autoridades com competência para a investigação, deteção e repressão criminal, mas antes às normas relativas à conservação dos metadados de comunicações para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves (os indicados na Lei 32/2008 de 17.07) por parte das autoridades competentes, num âmbito delimitado da referida Lei.
25- Em termos de FATURAÇÃO DETALHADA, REGISTO DE TRACE-BACK E LOCALIZAÇÃO CELULAR – APENSO III:
- As comunicações telefónicas entre DD (...13) e AA (...47) e situadas entre as 16:55:35 e as 17:01:26 do dia 26.04.2020 evidenciam que estiveram em ... nesse lapso de tempo.
- Entre as 18:22:35 e as 19:42:08 do mesmo dia, verifica-se que AA (...47) se encontrava na cidade ..., enquanto DD (...13) efetuava a viagem entre ... e ... (... > ... > G... > ...) – cfr. folhas 5 do Apenso III.
- Na chamada registada no dia 26.04.2020, pelas 19:42:08, verifica-se que DD (...13) se encontrava na cidade ... (sendo servido pela ...). AA (...47) encontrava-se também na cidade ... (sendo servido pela Antena de cobre o acesso da Auto Estrada – “Terreno do lado oposto a placada AE da Saída 20”).
- A última chamada recebida por AA (...98) no dia 26.04.2020 foi às 19:52:21.
- A última chamada efetuada por AA (...98) no dia 26.04.2020 foi às 20:59:23 (...).
- O telemóvel de AA foi desligado entre as 20:59:23 do dia 26.04.2020 e as 10:00:13 do dia 27.04.2020.
- A última chamada recebida por DD (...13) no dia 26.04.2020 foi às 20:06:52 (...).
- A última chamada efetuada por DD (...13) no dia 26.04.2020 foi às 20:19:46 (G...).
- A primeira chamada efetuada por DD (...13) no dia 27.04.2020 foi às 00:00:42 (Antena que cobre o acesso da Auto Estrada – “Terreno do lado oposto a placa da AE da Saída 20” – ...);
- Após, DD (...13) deslocou-se entre as cidades de ... e de ..., onde veio a ativar antena às 00:30:23.
26- Realça-se, de resto, que no período de tempo em que tiveram lugar os factos os arguidos desligaram os seus telemóveis, impedindo, dessa forma, que fosse conhecida a sua concreta localização no referenciado período.
27- INTERCEÇÕES e REGISTO DE CONVERSAÇÕES ENTRE PRESENTES – APENSO I:
- conversação presencial ocorrida entre o arguido DD (designado, abreviadamente, por “P”)e a e a testemunha KK (designado, abreviadamente, por “S”) no dia 29.12.2020, após as 12h30 e após se ausentarem das instalações da Polícia Judiciária em ..., da qual, resultou o seguinte teor (que ora se transcreve e cuja transcrição consta igualmente de folhas 3/4 e 5/7 do APENSO I, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais):
“S: O condutor
P: Então, tou-lhe a dizer que não sei de nada, não sei de nada, não sabia de nada
P: Eu tou-lhe a dizer que eu não sei de nada, tu não sabes de nada, nem digas que eu te disse, não sei de nada
S: Eu não sei de nada
P: Pronto, eu também não sei de nada
S: Achas
P: Eu fiquei naquela, queres ver que ele vai dizer alguma coisa
S: Não, não
P: Eu não sei nada, ele tá a dizer que eu fui para lá, que eu fui lá ter com uma ..., ou uma ..., uma carrinha ..., que fizemos um assalto, não sei o quê
S: Eles para me foderem a mim, vou-te dizer uma coisa, não sou mais que os outros, mas eles têm de ter fotografias na carrinha, eu sei que não têm, a mim não me podem foder
P: Mas que carrinha
S: A carrinha que eles tinham dos assaltos
P: Uma carrinha ...
S: Sim, eu sei que nunca entrei nessa carrinha, eu nunca fui com ele em nenhuma carrinha, a única carrinha em que ia buscar madeira era na minha carrinha
P: … foda-se ó chefe, por amor de Deus caralho, simplesmente entrei naquela merda, que eu não sabia, já te disse a ti que não sabia
S: Eu sei disso
P: Eu não sabia, foi assim
S: Eu sei que não sabias … ó DD, eu sou tua testemunhas, se calhar a mim parece mal lá ir dizer, eu sei que o DD foi lá mas não sabia
P: eu vou-te dizer
S: se for preciso, por ti, vou lá
P: mas isto é assim ó KK, eu, até último recurso, até eles me apresentarem provas … eu fui a um sítio, ao local errado
S: o combinado era não fazer nada aos velhos
P. o combinado foi entrar …eles iam a contar (impercetível) os velhos, á procura do documento e vir embora2
S: enquanto ele ficou na carrinha, o tal que a gente falou
P: mas eles não conseguem provar
S: sabes do que é que eu tenho medo, é que eu e tu falamos esta merda pelo telefone, LEMBRAS-TE DD
P: Não dá, não dá
S: Tenho medo dessa merda
P: mas eles não têm escutas entre mim e tu, do telefone dele para nós, dele para nós, não … dele para nós … olha vai ali
S: Foda-se, não posso, tá em casa
P: Ou então puxamos com este, tá ali a corda
S: Espera aí um bocadinho
P: Então vais a casa, não tens aí dinheiro para meter gasolina, mete ali tenho aqui dinheiro
S: Estes não sei, mas nalguns foram vistos a entrar
P: Sei que não sabias o que ias fazer
S: Ele disse isso
P: Disse (abastecem o veículo // falam com terceiros) …
S: Eu vi logo, tens de vir, aquela coisinha que eu era o motorista, sabes, não é aquela coisa, tipo
P: Mas tu sabes que não foste, tens a consciência tranquila eles vão ter que provar. Olha uma coisa, quantos gajos vão presos
S: Ó DD, eu já fui preso com o meu pai, olha, uma coisa, eu já fui preso com o meu pai, não… juro-te, não veja mais o meu filho, os gajos ofereceram-me aquela merda e eu não quis … depois o culpado fui eu e eu não fiz … eu não fiz nada e fiquei igual arguido e calhei de ser absolvido, se fosse condenado, tava lá 4 ou 5 anos, percebes
P: Ah
S: Marcha atrás
P: Marcha atrás como, assim de traseira puxas para a frente
S: (fala para terceiros) Tou, sim, ó pá não, tava com o DD, olha, espera um bocadinho estou aqui a rebocar o carro ao DD, já te ligo, não ó pá, olha uma coisa, tu quando é que vais embora para a ..., tá bem, pronto vá, tá, já te ligo, vou rebocar o carro ao DD … o LL ligou-me … espera aí, sai, tou todo molhado
P: Aonde
S: No cu, sai. Tens o telefone
P: Para encostar, devagar, devagar, tá bom” [destacado nosso].
27- Conforme certidão junta a estes autos, extraída do processo comum coletivo n.º 134/18...., igualmente deste Juízo Central Criminal-Juiz ..., constata-se que AA é/foi utilizador, entre outros, dos números de telemóvel ...98 e ...77 (números que foram intercetados).
Na sequência de informação remetida pela Guardia Civil espanhola no âmbito daquele processo, apurou-se que AA foi detido no dia 24.02.2020, às 20h42, em ..., ..., ... na posse de 750 munições e de um “passa montanhas” (capuz).
Das interceções telefónicas realizadas (em concreto, sessões n.ºs 1535, 1546, 1458 e 1549 do ALVO ...40 – n.º de telemóvel ...47, em uso por AA) resulta, com relevo para os presentes autos, o seguinte:
- Às 13h58m04 do dia 26.04.2020, DD (...13) contactou AA (...47). Nessa conversação, DD questionou “a que horas posso ir buscar a ovelha para a minha sogra”; AA respondeu “lá para as… estás aqui às seis”, tendo DD dito: “eu não conheço onde é o senhor, depois dou-te um toque e levas-me lá”; nessa sequência, AA respondeu: “dás-me um toque e depois a ovelha tem…ainda tenho de lhe tirar a pele, vou amoar a navalha”; DD disse, então, “mas as ovelhas não são tuas, pois não?”, tendo AA respondido: “não, é ali de um velhote, mas oh pá, é…”, acrescentando “caralho, a ovelha é boa, tá gorda nunca pariu pá, nunca teve cordeiros, nunca teve nada”.
- Às 17h30m04 do mesmo dia AA enviou uma mensagem (SMS) a DD, dizendo-lhe “Quando estiveres na entrada de ... liga”; e às 18h07m14 DD enviou àquele uma mensagem (SMS), dizendo: “Estou na primeira rotunda de ...” (cfr. folhas 268/279).
28- As provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento as quais são legais, bastantes, inequívocas, e incapazes de gerarem quaisquer dúvidas, e, que apontam no sentido de o arguido AA ter cometido os crimes de:
a) de injúria, p. e p. pelos artigos 14º nº 1, 26º e 181º do Código Penal; e
b) em co-autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de três crimes de roubo agravado, nos termos do disposto nos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 1, 77.º 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 204.º, n.ºs 1, alíneas e) e f), 2, alínea f), e 3, todos do Código Penal.
29-Contesta-se a avaliação da prova que fez o Tribunal “a quo “, salvo o respeito, uma vez que não se enquadra nas circunstâncias do processo, nem das “legis artis” do julgador.
30-Os factos dados como não provados na Fundamentação do Douto Acórdão e que adiante transcreveremos, deverão ser dados como provados, pelos motivos/provas seguintes:
a. Todas as provas que constam dos autos e das gravações das diversas sessões da audiência de discussão e julgamento, na sua totalidade, a saber: 6-3-2023; 13-3-2023; 23-3-2023;
b. declarações prestadas em inquérito pelo arguido DD, perante autoridade judiciária, reproduzidas em audiência de julgamento ao abrigo do disposto no artigo 357.º, n.º1, alínea b) e n.º2, do Código de Processo Penal, que teve lugar no dia 02-03-2022 (ref.ª citius ...43);
c. Depoimento prestado pela testemunha KK, em sede de inquérito, perante Magistrada do Ministério Público, a 07-03-2022 (ref.ª ...46), que foram reproduzidas em audiência de discussão e julgamento no dia 06-03-2023 (ref.ª ...18): - 03:50- 04:23; - 05:04 – 05:32; - 47:51m);
d. declarações prestadas no decurso da audiência de julgamento, pelo co-arguido DD, a: 6-3-2023, manhã, audiência de julgamento: Minuto: 14 m 59 s; Minuto: 19 m 35 s; Minuto: 20 m 25 s; 13/3/23, manhã: Minuto: 3m 20 s; Minuto: 5 m 30 s; Minuto:00 m 56 s; Minuto: 1 m 15 s; Minuto: 15 m 44 s; Minuto: 18 m 12 s; Minuto: 19 m10 s; Minuto: 22 m 16 s: ;
e. Declarações do Sr. Inspector da Polícia Judiciária MM,- prestadas em audiência de julgamento a 13-3-2023, da parte de manhã: Minuto: 6 m 9 s;
f. Declarações do Sr. Inspector da Polícia Judiciária NN, prestadas em audiência de julgamento a 23- 3-2023, da parte da tarde: Minuto: 3 m 40 s, 4 m 25 s.
31-Tendo o arguido DD confessado, em sede de audiência de julgamento, a prática dos factos que lhe foram imputados e declarado, de modo claro, inequívoco, credível e indubitável, que o fez em coautoria com AA, questiona-se, de forma fundada e, salvaguardando o respeito que nos merece o Douto Acórdão recorrido, com manifesta estranheza, como poderá o Tribunal “a quo” pugnar pela inexistência de prova suficiente da responsabilização criminal deste último arguido, absolvendo-o da prática dos crimes de que vinha acusado?
32- É verdade que o DD descreveu a sua actuação criminosa como menos grave do que a do AA, embora tendo confessado os factos, o que é comportamento, normal, compreensível e hábil, para quem está nas suas circunstâncias legais, e pode ser isso que realmente sucedeu ( teve um papel secundário na prática dos crimes de roubo), mas, tal não belisca o núcleo do seu depoimento, e, quando descreveu de maneira pormenorizada a conduta do co-arguido AA, são coisas distintas embora articuladas.
33- Não é, de resto, despiciendo notar que a concreta dinâmica do sucedido e os contornos daquela que, conforme referiu o arguido DD, foi a sua atuação na residência das vítimas se afiguram coerentes com o relatado por estas, extraindo-se das respetivas declarações, com clarividência, que os agentes dos factos atuaram de forma distinta, denotando um dos agentes receio em relação ao outro (por seu turno, mais violento e agressivo), adotando, assim, uma postura de subjugação, o que é compatível com aquele que foi, quer em sede de inquérito, quer em sede de audiência de julgamento, o relato do arguido DD.
34- A prova produzida e analisada em audiência de julgamento, devidamente conjugada com as regras da experiência comum e do normal suceder, não consente outra solução que não seja a de considerar provados todos os factos não provados, de molde a condenar o arguido AA pela prática dos factos por que vem acusado.
35- O Douto Acórdão também enferma de: “Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, al. b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
36- Servindo-se ao que parece, de uma técnica que se usa na ficção ( teatro, cinema, literatura) e se chama: ”deus ex machina”, pois de modo inexplicável e insensato, salvo o respeito devido, não se concordando com as razões que tal decisão sustentou, por contrariarem, o senso comum, o bom senso, a experiência comum, o padrão do homem médio, não se coadunarem com a totalidade das provas constantes dos autos nem com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º, do Código de Processo Penal.
37-“Deus ex machina é uma expressão em língua latina com origem no grego ἀπὸ μηχανῆς θεός (apò mēkhanḗs theós), que significa literalmente "Deus surgido da máquina"[1], e é utilizada para indicar uma solução inesperada, improvável e mirabolante para terminar uma obra ficcional”. ( Wikipedia)
38- Houve da parte dos arguidos um planeamento, um acordo, que visava roubarem os assistentes, embora tivesse o arguido AA, um papel dominante preponderante e evidentemente, mais violento e culposo.
39- Perante a totalidade das provas que constam dos autos, nomeadamente as versões do arguido DD, das testemunhas, e demais provas, afigura-se-nos que se provaram todos os factos que constam da Fundamentação- Factos não provados, do Douto Acórdão ora impugnado.
40- Em face da prova constante dos autos, na sua globalidade, é evidente que o Tribunal “a quo” ao absolver o arguido AA da prática dos crimes de :
- de injúria, p. e p. pelos artigos 14º nº 1, 26º e 181º do Código Penal; e,
- em co-autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de três crimes de roubo agravado, nos termos do disposto nos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 1, 77.º 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 204.º, n.ºs 1, alíneas e) e f), 2, alínea f), e 3, todos do Código Penal;
41-O fez, incorrendo em erro notório na apreciação da prova, pois uma “prudente apreciação das provas, que constam na íntegra do Douto Acórdão, afasta o desfecho pelo qual o Tribunal “a quo” optou.

42-Factos que devem ser ora considerados provados na totalidade e integrados de modo harmonioso e consequente, nos factos dados como provados

Factos Não Provados que constam da fundamentação do Douto Acórdão (e que deverão ser dados como provados):

“2.2. FACTOS NÃO PROVADOS:
“(…) Não se provaram outros factos interesse para a decisão da causa, designadamente que:
a) Em data não concretizada, mas anterior ao dia 26.04.2020, AA formulou o propósito de se deslocar à residência de II (doravante, II) e mulher, HH (doravante, HH), e GG (doravante GG), filha daqueles, sita na Avenida ..., ... esquerdo, em ..., a fim de, mediante a exibição de uma arma ou objecto semelhante a uma arma, compelir os ofendidos a entregar-lhe a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros) que tinha a convicção de terem em sua posse, na sequência da venda de um terreno que, de forma não apurada, sabia terem previamente concretizado por aquele valor ou valor aproximado àquele, bem como outros valores monetários e objectos de valor que tivessem na sua posse, a fim de se apropriar dos mesmos.
b) Com vista à concretização do seu propósito, AA propôs a DD que, mediante o pagamento da quantia de € 30,00 (trinta euros), referente a um dia de trabalho, se deslocasse, na sua companhia, àquela residência, a fim de, segundo lhe transmitiu, recolherem uns documentos referentes a uma propriedade que havia adquirido, ao que aquele, confiando em que o arguido AA lhe dizia a verdade, acedeu.
c) A PESSOA de identidade não concretamente apurada referida nos factos provados em 3 a 46 era o arguido AA.
d) O relógio de ouro de marca não apurada, tinha o valor de 350,00 euros; o anel de ouro, comprado na ..., o valor de 200,00 euros; o anel de noivado, pertença de II, o valor de 200,00 euros; o anel de noivado em ouro com uma pérola e brilhante, o valor de 200,00 euros; o anel de casamento de ouro, pertença de II, o valor de 200,00 euros; o fio de malha grossa em ouro com uma libra de ouro, o valor de 500,00 euros; o fio de ouro com pendente em forma de cruz, o valor de 200,00 euros; o fio de ouro com um pingente cumprido com uma pedra de cor ..., o valor de 190,00 euros; a pulseira de ouro trabalhada com formato de flores, o valor de 200,00 euros; a pulseira de malha grossa em ouro, pertença de GG o valor de 190,00 euros; a pulseira de malha fina em ouro, pertença de HH o valor de 100,00 euros; a pulseira de malha grossa em ouro, pertença de II o valor de 250,00 euros; o anel com pedra de safira, o valor de 150,00 euros, o par de brincos em ouro branco com uma pérola de cor ..., o valor de 180,00 euros, o par de brincos em forma de argolas em ouro, o valor de 250,00 euros; o par de botões de punho em ouro, o valor de 80,00 euros; o par de brincos, pertença de GG o valor de 100,00 euros; o anel de curso com uma pedra de cor ... esmeralda, o valor de 150,00 euros, o anel em ouro com a gravação D, o valor de 100,00 euros.
e) A PESSOA de identidade não concretamente apurada apropriou-se do cofre e dos objectos nele contidos e referidos em 17 no momento referido em 16.
f) O arguido AA, ao actuar da forma descrita em 47, agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente da reprovabilidade da sua conduta, e de que ela era proibida por lei.
43- A medida da pena:
Diz a propósito da medida da pena: o Prof. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português, 3, pág. 130], que a pena será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade(...). Mas, para além da função repressiva medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas de protecção do bem jurídico e de integração do agente na sociedade. Vale dizer que a pena deverá desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem iniciar-se na prática delituosa e deverá ressocializar o delinquente”.
Ou ainda como se diz no Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:” II - Culpa e prevenção constituem o binómio que preside à determinação da medida da pena, art. 71.º, n.º 1, do CP. A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – art. 40.º, n.º 2, do CP.
III - Dentro deste limite, a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, in www.dgsi.pt, Proc. nº 315/11.2JELSB.E1.S1, 1-7-2015.
44- Ora, em face do modo de vida, da culpa, dolo, violência extrema empregue, dos imperativos de prevenção geral e especial, e, das demais circunstâncias, nomeadamente as previstas no artigo 71º, do Código Penal, deverá ser condenado o AA em pena de prisão efectiva.
45-Violou o Douto Acórdão ao absolver o arguido AA da prática dos crimes:
- de injúria, p. e p. pelos artigos 14º nº 1, 26º e 181º do Código Penal; e
- em co-autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de três crimes de roubo agravado, nos termos do disposto nos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 1, 77.º 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 204.º, n.ºs 1, alíneas e) e f), 2, alínea f), e 3, todos do Código Penal;
46-O disposto nos artigos: 127º, 410º, nº2, alínea b) e c), do Código de Processo Penal, artigos 14º nº 1, 26º e 181º do Código Penal; e, artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 1, 77.º 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 204.º, n.ºs 1, alíneas e) e f), 2, alínea f), e 3, todos do Código Penal.
47- Padece o Douto Acórdão, do vício da contradição insanável da fundamentação, previsto na alínea b), do nº 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
48- E enferma de erro notório na apreciação da prova, e, que consiste, como se refere no Sumário do Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no Processo:26/16.2GESRT.C, de 10-07-201, em www.dgsi.pt:
“Sumário:
I – O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
II - Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum”.
49- Contraria a Douta Decisão da qual se recorre, o senso comum, o bom senso, a experiência comum, o padrão do homem médio e não se coaduna com a totalidade das provas constantes dos autos nem com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º, do Código de Processo Penal.
50- Todas as provas que constam dos autos, a saber: a versão do arguido DD, das testemunhas e demais provas, entendemos que se provaram todos os factos que constam da Fundamentação- Factos não provados, do Douto Acórdão ora impugnado.
51- Uma ponderada análise das provas, que constam dos autos, afasta o desfecho que o Tribunal consignou na Douta Decisão.
52- Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e por via disso, ser o arguido AA, condenado pela prática de todos os crimes que constam da conclusão nº 45.

Concedendo provimento ao recurso
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.”.
*
4. Na 1ª instância o Exmo. Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido DD, terminando essa sua peça processual com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de15-4-2010, in www.dgsi.pt,Proc.18/05.7IDSTR.E1.S.
2- “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso.
É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.
3- São assim, as conclusões quem fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.
4- O recorrente tem um passado criminal de relevo.
5- Toda a matéria constante da fundamentação do Douto Acórdão e respeita ao DD, se provou na totalidade.
6- As provas foram avaliadas pelo Tribunal “a quo” no seu conjunto e não foram violados quaisquer dispositivos legais.
7- O Tribunal “a quo” ponderou todas as questões que competia avaliar e não conheceu de nenhuma que estava impedido de conhecer, tendo sopesado as circunstâncias que rodearam a prática dos crimes, bem como a personalidade e carácter do arguido, condições pessoais e comportamentos posteriores à prática dos ilícitos.
8- Respeitou o Douto Acórdão todos os preceitos de direito europeu, constitucional e criminal, e não está inquinado de nenhum vício, em especial, não padece dos previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal.
9- O recorrente confessou a prática dos factos pelos quais foi condenado em primeira instância.
10- Também é límpido, que o arguido não foi condenado pelo seu passado criminal, mas, unicamente, por ter cometido os factos pelos quais estava acusado e pela culpa.
11- Não tinha o Tribunal “a quo” de aplicar, o princípio do “ in dúbio pro reo”, pois não se suscitaram dúvidas relativas à prática pelo arguido dos factos dados como provados.
12- Não enferma o Douto Acórdão de nulidade ou vício dos previstos nos artigos 374º e 379º, do Código de Processo Penal.
13- Os factos cometidos pelo arguido em co-autoria, são gravíssimos e suscitaram viva reação da sociedade.
14- É impossível nas circunstâncias do arguido reduzir as penas parcelares e única e não se consegue fazer um juízo de prognose favorável, para além do limite temporal previsto no artigo 50º, nº1, do Código Penal.
15- No Douto Acórdão foram sopesadas todas as circunstâncias positivas e negativas atinentes ao arguido e o Tribunal “a quo” teve em consideração para a escolha e medida das penas a que condenou o arguido todos os critérios referidos nos arts.40º, 50º, 70º e 71º, do Código Penal, articulados com os factos que se provaram em audiência de julgamento, mostrando-se as penas parciais e única em sintonia com a culpa do recorrente, e sem ter olvidado a sua reintegração na sociedade.
16- Deve manter-se na totalidade o Douto Acórdão recorrido no tange ao DD.
Negando provimento ao recurso ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA”.
*
5. Outrossim o arguido AA respondeu ao recurso do Ministério Público, terminando essa sua peça processual com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
I.
Sem quebra do muito respeito devido, o recurso agora em contraminuta não assenta em razões válidas e deve, por isso, improceder.
II.
Nos segmentos em que vem impugnado pelo Ministério Público, o douto acórdão recorrido mostra-se inatacável e resiste sem dificuldade às críticas que lhe endossa o Recorrente.
III.
O Recorrido poderia limitar esta resposta a declarar-se subscritor, sem reservas, dos judiciosos e irrebatíveis argumentos terçados pelo douto acórdão em mérito, que, salvo melhor opinião, não se mostram minimamente abalados pela motivação do Recorrente.
IV.
O Ministério Público, no recurso interposto da decisão final proferida nestes autos, insurge-se quanto à decisão que determinou a absolvição do arguido AA dos crimes.
V.
Em primeira linha, o Recorrente insurge-se quanto à decisão de considerar nula e prova proibida, as informações constantes de fls. 305, 308, 309 e Apenso III, comumente, apelidada como metadados.
VI.
No que tange á aludida prova, s.m.o., o Tribunal a quo decidiu bem, como se lhe impunha, ao cominar aquela prova como proibida.
VII.
A este propósito importa destacar o Acórdão de 19 de abril de 2022, o Tribunal Constitucional decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, que afeta a forma como são conservados e transmitidos «metadados».
VIII.
Ora, os artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei nº 32/2008 de 17.07 foram, por via do acórdão do Tribunal Constitucional, declarados inconstitucionais com força obrigatória geral.
IX.
Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade estão previstos no artigo 282.º da CRP;
X.
Ora, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral faz reportar os efeitos da inconstitucionalidade da norma ao momento em que a norma declarada inconstitucional entrou em vigor, obrigando a que, na prática, as situações concretas que possam cair dentro do âmbito de aplicação do Acórdão sejam reconstituídas como se a norma declarada inconstitucional nunca tivesse existido na ordem jurídica (aplicando-se, ou não, às referidas situações, caso exista ou não, uma eventual norma anterior, que tenha sido revogada pela norma declarada inconstitucional, assim sendo repristinada), nos termos do nº 1 do artigo 282.º da CRP.
XI.
Assim, tendo a Lei nº 32/2008 de 17.07 entrado em vigor no ano de 2008, todos os efeitos por esta produzidos serão destruídos por força da apontada declaração de inconstitucionalidade.
XII.
Destarte, face ao que antecede, o Tribunal a quo decidiu bem, fazendo uma escrupulosa interpretação e aplicação da lei e, sobretudo, do Ac. do TC n.º 268/2022, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral der diversas normas da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, através das quais, foram obtidas as informações constantes das fls. 305, 308, 309 e Apenso III juntas aos presentes autos.
XIII.
De ressalvar que, o que o Recorrente pretende é sacrificar todas as garantias constitucionais de defesa do arguido AA, em prol de uma condenação, quiçá para branquear outras incongruências da investigação, que se revela feita à medida.
XIV.
Sem prescindir, sempre se dirá que, caso assim não se entenda, o que nem por mera hipótese académica se concebe, na eventualidade do Tribunal ad quem decidir pela validade da prova ao arrepio da Constituição da República Portuguesa, as informações constantes de fls. 305, 308, 309 e Apenso III, não possuem a virtualidade de fazer prova de nenhum dos factos constantes da acusação.
XV.
Isto porque, a único facto que dessas informações advém, é que o arguido ... efetivamente se encontrava em ..., no dia e hora dos crimes em causa!
XVI.
Olvida o Recorrente, por lhe convém, que o arguido AA reside em ...!
XVII.
Todos os demais factos que o Recorrente pretende demonstrar através desta prova (inconstitucional), não passam de mera ficção e imaginação.
XVIII.
No mais, pugna o Recorrente que sejam valorados outros meios de prova, designadamente, as interceções do registo das conversações entre presentes (Apenso I) e as informações documentais, que não mais se traduzem, no teor dos relatórios conclusivos elaborados pela Polícia Judiciária.
XIX.
No que concerne às transcrições constantes do Apenso I, obtidas através das conversações entre presentes, não se compreende, porque não foi explicado pelo Recorrente, quais as razões de facto e de direito que fundamentam a sua pretensão de ver ser valorado esta prova.
XX.
É que, note-se, quanto a esta prova em específico o Tribunal a quo, rejeitou a sua legalidade à semelhança dos metadados.
XXI.
Concluiu assim o Tribunal a quo que a testemunha KK, para além de dever ter sido constituída como arguida, atentas as suspeitas que sobre si recaíram, manifestamente, atuou como agente encoberto, participando ativamente da recolha de prova.
XXII.
“A Lei nº 101/2001 de 25 de Agosto disciplina o regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal. Estabelecem o artigo 1º nº 2 que se consideram acções encobertas aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Polícia Judiciária para prevenção ou repressão dos crimes indicados nesta lei, com ocultação da sua qualidade e identidade. A participação é voluntária. Estas acções se desenvolvidas no âmbito de um inquérito, têm de ser autorizadas pelo MP e validadas pelo Juiz de Instrução (cfr. artigo 3º nº 3).
XXIII.
A inexistência da autorização judicial conduz à proibição da valoração da prova obtida por via da acção encoberta (cfr. sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20/03/2023, Proc. nº 134/18.5JAVRL- O.G1 deste Juízo central Criminal, disponível em www.dgsi.pt).”
XXIV.
O Tribunal a quo conclui assim, e muito bem, no que se refere à prova obtida nas interceções das conversações entre presentes, que a mesma é nula, nos termos dos artigos 118 nº 3 e 126 nº 1, alª e), ambos, do CPP.
XXV.
Como, aliás, resulta dos autos, a testemunha KK, surge como potencial testemunha, antes mesmo, de serem interrogados e constituídos arguidos, os “suspeitos” da prática dos crimes em investigação.
XXVI.
Como é que a mesma surge no âmbito da investigação criminal, sendo que à data da sua primeira intervenção (interceção das conversações entre presente de 29/12/2020), pouco ou nada apontava como suspeitos dos factos, os arguidos AA e DD?
XXVII.
Por que razões, ocorre à Polícia Judiciária inquirir KK na qualidade de testemunha, antes mesmo das primeiras declarações prestadas pelo arguido DD?
XXVIII.
As sobreditas questões, são apenas algumas das que se colocaram ao longo de todo o julgamento e, para as quais, não foi possível obter qualquer resposta.
XXIX.
Veja-se, inclusive que o Recorrente, titular do inquérito nem se pronuncia no recurso interposto, relativamente à conclusão de que a testemunha KK atuou como agente encoberto, em troca de vantagens que a lei não concede.
XXX.
A conjugação de todos estes factos, demonstram sem qualquer margem de dúvida que, a investigação foi conduzida de modo tendencioso e pretensioso, de forma a culminar numa tese previamente determinada – que foi o arguido ... o coautor dos crimes em causa nos autos.
XXXI.
O Recorrente não logrou afastar todas as dúvidas que se revelaram fundadas quanto à eventual participação do arguido AA nos crimes em crise.
XXXII.
Assim, por razões de manifesta economia processual e, por que a decisão de mérito aqui em crise se revela inabalável, dá-se por integralmente reproduzido o Acórdão objeto de recurso, devendo, nesta parte, o recurso do Ministério improceder in totum.
XXXIII.
Por fim, no que tange ao recurso da matéria de facto e de direito apresentado, em consonância com o supra exposto, sempre se dirá, que o Acórdão aqui e crise não merece qualquer censura, denotando, ao invés, um rigoroso sentido de análise crítica e de legalidade.
XXXIV.
Os factos que resultaram como provados, são aqueles que puderam ser corroborados através da prova licitamente recolhida nos autos, nomeadamente, através das declarações do co-arguido DD e das declarações para memória futura prestadas pelas vítimas.
XXXV.
Conforme, e bem, resulta do douto Acórdão, os únicos elementos que poderiam conduzir à identificação de AA como autor dos crimes em causa nos autos seriam as declarações do co-arguido DD nesse sentido e, eventualmente, a transcrição dos SMS e da escuta telefónica relativa à conversação mantida entre os dois arguidos no dia dos factos (certidão extraída do processo nº 134/18.... a fls. 268 e ss. e 795 e ss.).
XXXVI.
No entanto, coloca-se, nesta sede, o problema do valor probatório das declarações do co arguido.
XXXVII.
Não está em causa nos autos, a questão da validade das declarações prestadas pelo co-arguido DD, mas, tão somente, a credibilidade que as mesmas merecem e a dinâmica das relações pessoais entre os arguidos.
XXXVIII.
Como bem destacou o Tribunal a quo, das declarações do co-arguido DD, resultou uma manifesta inimizade entre este e o arguido AA.
XXXIX.
O arguido DD, não se limitou a descrever os factos que ocorreram no fatídico dia 20/04/2020, mas antes, descreveu o que entendeu ser conveniente à sua defesa, demonstrando uma memória seletiva.
XL.
Imputou grande parte dos factos ao co-arguido AA.
XLI.
Desculpabilizou-se, referindo por diversas vezes que “não sabia ao que ia”, e que não “fez mal nenhum”.
XLII.
Teve o discernimento de referir que não sabia que se tratava de um assalto e que apenas usava luvas até ao cotovelo naquele dia, devido ao frio.
XLIII.
A arma que reconheceu que empunhava, afirmou tratar-se de um isqueiro.
XLIV.
Cumpre salientar ainda que, as acusações que o arguido DD dirige ao co-arguido AA apenas acentuam a inimizade de ambos, e serviu de desculpa para justificar a razão pela qual se insurgiu contra a defensora do arguido AA após a inquirição da testemunha KK,
XLV.
A qual foi, claramente por si percecionada como um ataque pessoal àquela pessoa, como aliás, foi por si referido na sessão de julgamento ocorrida no dia 13-03-2023 (Ficheiro n.º: 20230313110348_1442658_2871879.wma):
“00:39:00 DD: Não, não era um assalto aos velhotes. Era ir buscar uns documentos aos velhotes. Aos velhotes que nem sabia se eram velhotes
00:39:05 MM.ªJuíza: Era ir buscar alguma coisa, pronto.
00:39:07 DD: agora ele está a culpar pessoas, ele está a dizer que eu que não sei o quê com o KK, que eu isto e aquilo. Ele almoçou em casa do KK, é uma das pessoas que me ajuda
00:39:16 DD: Se eu precisar. Ultimamente não, ultimamente não me ajuda porque ele teve o trafico de drogas e não sei o quê. Também não tem dinheiro, ele trabalha agora
00:39:25 DD: Mas na altura em que era traficante ajudava. A minha própria família fiquei sem ela, derivado a este, ia para casa dele. Agora eu contra o KK não tenho nada
00:39:36 DD: Nem ele contra mim. Estão aqui a inventar do KK e mais não sei o quê, e não sei quê, mas isso é tudo
00:39:42 MM.ª Juíza: Ok
00:39:42 DD: Uma mentira.
00:39:43 MM.ª Juíza: Pronto. Entretanto queria dizer mais alguma coisa senhor ... que acabou (…)”
XLVI.
Ademais, entre as declarações do co-arguido DD e o depoimento da testemunha KK, sobressaem contradições que em nada abonam para a descoberta da verdade material e contrariam a tese que o Recorrente fez verter para o recurso interposto do douto acórdão recorrido.
XLVII.
Ao invés, a postura adotada pelos estes sujeitos processuais traduziu-se numa tentativa desesperada de encobrimento da almejada verdade e de autocomiseração.
XLVIII.
Entre as milhentas discrepâncias apontadas ou entre os lapsos de memória ou desconhecimento de factos que se revelaram oportunos, verificam-se discrepâncias que colocam em causa a sinceridade e honestidade das declarações do arguido DD.
XLIX.
Pelo arguido DD, foi sempre afirmado em sede de inquérito e julgamento, que não exerceu violência física contra a pessoa das vítimas e que apenas as ficou a guardar.
L.
Referiu ainda que cortou as abraçadeiras das mulheres, numa tentativa de revelar alguma piedade e arrependimento.
LI.
Mais referiu que não ficou com nenhum dos bens que foram roubados e que nunca subiu ao andar de cima da residência dos assistentes.
LII.
Tais afirmações, foram cabalmente desmentidas pelos assistentes, aquando da prestação de declarações para memória futura.
LIII.
Neste sentido, é válido questionar se as declarações prestadas pelo co-arguido DD são suficientemente credíveis para justificar a condenação do arguido AA?
LIV.
Conforme vimos, as declarações de um co-arguido em desfavor de outro, embora sejam válidas, devem sempre ser analisadas casuisticamente e cotejadas com outros elementos de prova que demonstrem, sem margem dúvida que merecem credibilidade.
LV.
Nestes autos, à exceção das declarações para memória futura prestadas pelas vítimas e das declarações do co-arguido DD, inexistem outros meios de prova que contribuam para a descoberta da verdade material.
LVI.
As declarações para memória futura prestadas pelas vítimas apenas corroboram em parte, as declarações do co-arguido DD, mormente, no que respeita a parte da sua atuação.
LVII.
Para além das declarações do co-arguido DD, mais nenhum elemento de prova indica que o arguido AA tenha praticado os factos que lhe são imputados.
LVIII.
Contrariamente ao expendido pelo Recorrente, não existem nos autos quaisquer meios de prova que apontem a veracidade de tais declarações e sejam suscetíveis de afastar qualquer dúvida ao Tribunal a quo.
LIX.
Além disso, estamos em crer que a postura evasiva e acutilante do arguido DD em relação ao arguido AA, proliferou ainda mais a dúvida que já existia desde fase de inquérito,
LX.
Ignora ainda o Recorrente que, a prova produzida em julgamento é livremente apreciada pelo Tribunal, nos termos e para os efeitos do art.º 127.º do CPP.
LXI.
E que o Tribunal a quo, é composto por um coletivo de Juízes que em conjunto, deliberou a decisão objeto de escrutínio.
LXII.
Com efeito, a produção da prova decorre perante o tribunal de primeira instância e no respeito de dois princípios fundamentais: o da oralidade e o da imediação. E com isso visa-se assegurar o princípio basilar do julgamento em processo penal: o da livre apreciação da prova por parte do julgador.
LXIII.
O princípio da imediação pressupõe um contacto direto e pessoal entre o julgador e as pessoas que perante ele depõem, sendo esses depoimentos que irá valorar e servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
LXIV.
E é precisamente essa relação de proximidade entre o tribunal do julgamento em primeira instância e os meios de prova que lhe confere os meios próprios e adequados para valorar a credibilidade dos depoentes e que de todo em todo o tribunal do recurso não dispõe. Há na verdade que atender e valorar fatores tão diversos como as razões de ciência que os depoentes invocam ou a linguagem que utilizam, verbal ou não verbal, a espontaneidade com que depõem, as hesitações e o tom de voz que manifestam, as emoções que deixam transparecer, quer de inquietude quer de serenidade, através de expressões faciais, movimento repetido e descontrolado de mãos ou de pés, encolher de ombros, as contradições que evidenciam e o contexto em que tal acontece.
LXV.
Por isso é que quando a decisão do julgador se estriba na credibilidade numa uma fonte probatória assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a pode exercer censurar se ficar demonstrado que o iter da convicção trilhado ofende as regras da experiência comum.
LXVI.
O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem, portanto, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância, só podendo o tribunal de recurso modificar aquela decisão quando não encontrar qualquer suporte nos meios de prova produzidos no processo.
LXVII.
A menos que a convicção formada pelo julgador contrarie as regras da experiência comum, da lógica e dos conhecimentos científicos.
LXVIII.
Tanto mais assim é que a alteração do decidido em primeira instância só poderá ocorrer, de acordo com a alínea c), do n.º 3, do a art.º 412.º do Código de Processo Penal, se as reavaliações das provas produzidas impuserem diferente decisão, mas já não se tal for uma das soluções possíveis da sua reanálise segundo as regras da experiência comum. Em suma, sempre que a convicção do julgador em primeira instância surja como uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo tribunal de recurso.
LXIX.
Volvendo ao circunstancialismo dos autos, baseando-se a pretensão recursiva numa avaliação da prova produzida na audiência de julgamento diversa daquela que foi seguida pelo Tribunal a quo sem que se detete qualquer desconformidade com as regras da experiência comum, forçoso será concluir que o recurso não merece provimento, devendo antes manter-se a douta decisão recorrida.
LXX.
De salientar que, a livre apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo não viola as regras da experiência comum.
LXXI.
O mesmo não se diga quanto à versão apontada pelo co-arguido DD, que fez querer transparecer no auto da sua ingenuidade que aceitou participar num assalto, com um sujeito que conhecera pouco tempo antes (cinco/meses ou 15 dias antes, não se compreendeu bem), em troca do pagamento de 60,00€ (sessenta euros),
LXXII.
Não tendo quinhoado no produto dos roubos, nem mantido qualquer contacto posteriormente com o co-arguido AA.
LXXIII.
De igual sorte, é se revela crível que durante o período que refere ter circulado por ..., na dita carrinha ..., com um terceiro elemento, não tenha cuidado de saber o seu nome ou sequer perguntado, não o saiba descrever ou identificar um nome ou alcunha…conhecimento e memória seletiva, dizemos nós!
LXXIV.
De facto, o aspeto que ressalta à vista de quem quer ver (exceto do recorrente), é que o arguido DD apenas soube expressar aquilo que o “aconselharam” a dizer…o nome “AA” – vejam-se as transcrições das interceções das conversações entre presentes, levadas a cabo no dia 31/12/2020 !
LXXV.
O mesmo princípio da imediação e da livre apreciação de prova que serve para os Tribunais condenarem, tem necessariamente de servir para absolver arguidos, quando os factos assim o exigem,
LXXVI.
Ainda que sem a égide do Ministério Público, responsável pelo despacho de acusação e submissão desses arguidos a julgamento.
LXXVII.
Por fim, considerando tudo o quanto se expôs, sempre se dirá que a absolvição do arguido AA se justifica, quanto mais não seja, por apelo ao princípio do in dubio pro reo.

TERMOS EM QUE,
Julgando improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, farão Vossas Excelências a acostumada JUSTIÇA!”.
*
6. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal da Relação emitiu o seu parecer, nos seguintes termos (transcrição):
“Os recursos são tempestivos; os recorrentes têm legitimidade e interesse em agir; os efeitos e regime fixados são os correctos, nada obsta ao conhecimento do mérito da causa.
*
O MP vem recorrer de direito e de facto, não se conformando com a absolvição do arguido AA.
O recurso encontra-se muito bem fundamentado razão porque se entende que deve ser considerado procedente.
Por seu turno, o recurso do arguido DD cinge-se à medida da pena aplicada.
Considerando que a procedência do recurso do MP implica que o acórdão recorrido deve ser refeito com vista a considerar meios de prova não atendidos e a sanar os vícios elencados, entende-se que se torna inútil a sua apreciação. Desde logo porque a sua conduta terá que ser avaliada em termos de comparticipação criminosa e o grau de culpa deverá ser reponderado.
O MP é do parecer que o recurso do MP deve ser considerado procedente devendo o processo ser reenviado à 1ª instância nos termos do disposto no art. 426º n1, 2ª parte, do CPP.”
*
7. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal [3], apenas o arguido DD se apresentou a responder.
- Reiterando, em síntese, os argumentos vertidos no seu recurso; e
- Concordando com o argumento da Exma. PGA quando esta defende que, sendo procedente o recurso do Ministério Público, deverá ser reponderado o seu (dele, arguido e recorrente DD) grau de culpa, nesse sentido sendo também revista a medida da pena, razão pela qual aceita o parecer e a conclusão do Ministério Público.
*
8. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
*
9. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
     
1. É hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2 [4].
Ora, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelos recorrentes, são as seguintes as questões que basicamente importa dirimir:
Arguido DD
- Saber existe erro de julgamento no que diz respeito aos factos dados como provados;
- Saber se se impõe a aplicação do princípio in dubio pro reo; e
- Saber se são excessivas as penas que lhe foram aplicadas, quer as parcelares, quer a resultante do cúmulo jurídico.

Ministério Público:
- Saber se é válida e se pode ser utilizada a prova resultante da informação constante de fls. 305, 308, 309 e apenso III;
- Saber se se verificam os vícios da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e do erro notório na apreciação da prova, previstos no Artº 410º, nº 2, als. b) e c), respectivamente; e
- Saber se existe erro de julgamento no que tange aos factos dados como não provados.
*
2. Mas, para uma melhor compreensão das questões colocadas pelos recorrentes, e uma visão exacta do que está em causa, atentemos, antes de mais, no teor do acórdão recorrido, quer no que tange ao segmento em que, na parte inicial, apreciou a questão da “Da nulidade invocada pela defesa do arguido AA relativamente à utilização da informação constante de fls. 305, 308, 309 e apenso III por se tratar de prova proibida (metadados)”, quer quanto aos factos que foram dados como provados e como não provados, quer, finalmente, quanto à respectiva fundamentação fáctica.
2.1. O Tribunal a quo expendeu o seguinte quanto à primeira questão (transcrição):
- Da nulidade invocada pela defesa do arguido AA relativamente à utilização da informação constante de fls. 305, 308, 309 e apenso III por se tratar de prova proibida (metadados)
No seu requerimento de 22/12/2022, com a refª ...99, veio a defesa do arguido AA alegar que no decurso do inquérito foram solicitadas informações às operadoras de telecomunicações, nomeadamente, o fornecimento de facturação detalhada, registo de trace-back e a localização celular das comunicações telefónicas, entre a 00h00 do dia 20/04/2020 e 23h59 de 30 de abril de 2020, de e para o cartão de acesso aos dados móveis do número de telemóvel ...13 e foi também oficiada à operadora de telecomunicações ... para juntar aos autos listagem de chamadas efectuadas e recebidas, bem como, a localização celular dos números ...98 e ...77, entre a 00h00 do dia 20/04/2020 e 23h59 de 30 de abril de 2020. Nessa sequência foram juntos aos autos diversos dados de tráfego – cfr. fls. 305, 308, 309 e apenso III.
Contudo, alega a defesa que tais elementos não podem ser utilizados como meio de prova face ao teor do TC nº 268/2022 que decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral de diversas normas da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho. Mais refere que tendo a investigação lançado mão dos mecanismos estabelecidos na Lei nº 32/2008 de 17.07, recorrendo designadamente ao estabelecido nos artigos 4.º, 6.º e 9.º do mencionado diploma legal para obter os referidos dados de tráfego os mesmos, não podem agora ser utilizados face à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de tais normas, pelo que os referidos elementos devem ser desentranhados do processo, não podendo ser considerados na fase de julgamento como meio de prova, sob pena de nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 126.º e ss do CPP.
Em vista, o Magistrado do MP veio pugnar pelo indeferimento do requerido, mantendo-se a validade dos elementos recolhidos (cfr. refª ...08).
Vejamos então.
Efectivamente, por despacho de 17/12/2020 a fls. 201 foram solicitadas informações às operadoras de telecomunicações, nomeadamente, o fornecimento de facturação detalhada, registo de trace-back e a localização celular das comunicações telefónicas, entre a 00h00 do dia 20/04/2020 e 23h59 de 30 de abril de 2020, de e para o cartão de acesso aos dados móveis do número de telemóvel ...13 que esteve em uso pelo arguido DD e foi ainda oficiada à operadora de telecomunicações ... para juntar aos autos listagem de chamadas efectuadas e recebidas, bem como, a localização celular dos números ...98 e ...77, entre a 00h00 do dia 20/04/2020 e 23h59 de 30 de abril de 2020 que esteve em uso pelo arguido AA.
Nessa sequência vieram a ser juntas as informações constantes dos autos a fls. 305, 308, 309 e apenso III.
A questão prende-se, portanto, com o valor legal da prova recolhida, e utilizada na formação da convicção do tribunal no juízo sobre os factos, nomeadamente através das chamadas localizações celulares, facturação detalhada, registo de trace-back (listagens de chamadas recebidas e efectuadas) tendo em conta o decidido no recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19/04.
Ora, no citado acórdão nº 268/2022, de 19.04.2022, o Tribunal Constitucional (TC) decidiu:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos n.ºs 1e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição;
b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, detecção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja susceptível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.
Como sabido, a Lei n.º 32/2008, de 17.07, “Transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações.”
Genericamente as normas da Lei n.º 32/2008, de 17.07, que o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais, pelos motivos que indicou no acórdão n.º 268/2022, relacionam-se com o armazenamento de dados em arquivos, durante o período de um ano, pelos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações.
Como se refere no mesmo ac. do TC n.º 268/2022 “os dados referidos no artigo 4.º não abrangem o conteúdo das comunicações, dizendo respeito somente às suas circunstâncias – razão pela qual são usualmente designados por metadados (ou dados sobre dados) – cf. Acórdãos n.ºs 403/2015 e 420/2017: (…) A este propósito, o Tribunal Constitucional acolheu, desde o Acórdão n.º 241/2002, de 29/05/2002, uma classificação tripartida (louvando-se, então, nos Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 16/94, votado em 24/06/94, na base de dados da DGSI, n.º 16/94 – complementar, votado em 2/05/1996, in Pareceres, vol. VI, págs. 535 a 573, e n.º 21/2000, de 16/06/2000, no Diário da República – II Série, de 28/08/2000) dos dados resultantes do serviço de telecomunicações. Ali se distinguiram: ‘(…) os dados relativos à conexão à rede, ditos dados de base; os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência), dados de tráfego; dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, dados de conteúdo’. O conjunto de metadados elencado no artigo 4.º abrange dados de diferente natureza, categorizados na jurisprudência constitucional como dados de base e dados de tráfego.
O que resulta deste acórdão, em síntese, tal como se lê na douta declaração de voto do Exmo. Conselheiro Lino Ribeiro (único magistrado vencido na deliberação) é o seguinte:
- no que respeita à obrigação dos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas conservarem os dados de base que não pressupõem a análise de quaisquer comunicações (incluindo os endereços de protocolo IP que identificam a fonte da comunicação), «o direito da União Europeia não põe em causa a ponderação de proporcionalidade feita pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 420/2017, sendo esta conforme ao parâmetro europeu, cujo sentido foi clarificado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça»;
- já quanto aos dados de tráfego e dados de localização, ainda que não gerados em virtude de uma comunicação pessoal, à luz dos parâmetros europeus aqui convocáveis (Acórdão do TJUE, la quadrature du net) «trata-se de uma solução legislativa desequilibrada, por atingir sujeitos relativamente aos quais não há qualquer suspeita de atividade criminosa. Ao conservar todos os dados de localização e de tráfego de todos os assinantes, abrangem-se as comunicações electrónicas de quase toda a população, sem qualquer diferenciação, exceção ou ponderação face ao objectivo perseguido»;
- o regime de acesso aos dados armazenados constante do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, ao não prever a notificação ao visado de que os seus dados foram acedidos, restringe de modo desproporcionado o direito à autodeterminação informativa e o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, uma vez que não se criam «as condições efectivas para não só saber da difusão dos seus dados como de exercer um controlo sobre a licitude e regularidade daquele acesso», tal como o TJUE decidiu no Acórdão Tele 2.
A este propósito existe um complexo normativo nacional que regula e/ou possibilita o acesso à prova digital, a saber:
- O Código de Processo Penal e o regime previsto para as intercepções telefónicas, em particular os artigos 187.º, 188.º e 189.º.
- A Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, Lei da Protecção de Dados Pessoais e Privacidade que transpôs a Directiva 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.
- A Lei 32/2008, de 17 de Julho relativa à conservação de dados gerados ou tratados em contexto de oferta de serviços de comunicação electrónicas e que define as regras de acesso aos dados conservados para efeitos criminais.
- A Lei 109/2009, de 15 de Setembro, Lei do Cibercrime.
O que também é, igualmente certo, é que nenhuma das leis em vigor permitia o armazenamento de dados de localização celular (salvo as marginais excepções previstas no art.º 7.º da Lei n.º 41/2004), e que foi a Lei n.º 32/2008, de 17/07 que veio estabelecer, não essa possibilidade, mas essa imposição – mesmo na Lei do Cibercrime, o caso, como é consabido, é o do chamado “quick-freeze”, ou seja, armazenamento e entrega após decisão judicial e apenas os dados que forem obtidos após esta, e para os crimes mencionados naquele diploma.
Assim, a aludida imposição de armazenamento extenso, universal e indiscriminado foi objecto de declaração de inconstitucionalidade. Todavia, não foi julgado inconstitucional armazenar dados, desde que tal operação respeite a restante legislação em vigor, acima referida.
Vejamos o que tem decidido a mais recente Jurisprudência a este respeito (www.dgsi.pt):
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07/12/2022, relatado pelo Exmo. Desembargador Pedro Vaz Pato:
I - Tendo o acórdão do Tribunal Constitucional declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho (Lei relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto de oferta de serviços de comunicações electrónicas), não podemos tentar tornear esse acórdão, “deixando entrar pela janela” aquilo a que ele “fechou a porta”; ou seja, não podemos recorrer a outras normas para obter o mesmo efeito que resultaria da aplicação das normas declaradas inconstitucionais sem que essas outras normas contenham aquelas garantias que faltam a estas e que levaram a essa declaração de inconstitucionalidade.
II – Não é, por isso, legalmente possível recorrer para esse efeito aos regimes dos artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal (relativo às comunicações em tempo real, não à conservação de dados de comunicações pretéritas), da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto (relativo à proteção contratual no contexto das relações entre empresas fornecedoras de serviços de comunicações eletrónicas e seus clientes, campo distinto do da investigação criminal) e da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime).
III – Não podem os tribunais substituir-se ao legislador suprindo omissões de onde resultam graves inconvenientes para a investigação criminal.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/10/2022, relatado pelo Exmo. Desembargador Paulo Guerra:
(…)
VIII - O regime estabelecido pela Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, aplica-se à obtenção de dados correspondentes a comunicações já ocorridas e que se encontram preservados ou conservados.
IX – Tratando-se de obter prova por “localização celular conservada”, isto é, concernente aos dados previstos no artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2008, o regime processual aplicável assume especialidade nos artigos 3.º e 9.º deste diploma, regime que, sendo especial, se sobrepõe ao de carácter geral instituído pelos artigos 12.º a 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro – Lei do Cibercrime –, a qual, de resto, expressamente ressalva, no artigo 11.º, n.º 2, que as suas disposições processuais não prejudicam o regime do outro corpo de normas referido.
X – Já o artigo 189.º, n.º 2, do CPP, com a extensão do regime das escutas telefónicas nele consagrada, remetendo para os requisitos de admissibilidade fixados no artigo 187.º, n.ºs 1 e 4 do mesmo diploma, tem em vista os dados recolhidos em tempo real.
XI – Por sua vez, a aplicação da Lei 41/2004, de 18 de Agosto, limita-se à protecção contratual, no contexto das relações estabelecidas entre as empresas fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas e os seus clientes, não sendo lícito recorrer a ela para efeitos de investigação criminal.
XII – Mesmo a considerar-se aplicável este diploma, à luz do artigo 6.º, n.º 2, ele não permitiria o pedido de dados de localização.
XIII – A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas a que se reporta o recente Acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional, tendo por base a consideração de que as mesmas permitiam lesão desproporcionada da reserva da intimidade e da vida privada dos cidadãos, veda o acesso aos dados não permitidos com recurso à Lei 32/2008; de outro modo, a declaração de inconstitucionalidade permitiria o efeito contrário àquele que definiu.
IVX – Não existindo qualquer identidade formal ou material entre a previsão legal do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 32/2008 e o catálogo de crimes delineado no artigo 187.º, n.º 1 e 189.º, do CPP – com a “virtual” excepção da alínea b) do n.º 1 do artigo 187.º –, não há revogação do segundo pelo primeiro dos dois regimes.
XV – Se assim é, não se tem de aplicar, por repristinação, nenhuma norma do CPP.
XVI – “Caída” a Lei 32/2008, e na impossibilidade de aplicação do CPP e da Lei 41/2004, recorrer, na questão da localização celular, às normas da Lei 109/2009 seria seguir um caminho espúrio, face à enunciada declaração de inconstitucionalidade e aos fundamentos que a determinaram.
XVII – O que significa que no caso específico de obtenção por localização celular conservada, isto é, a obtenção dos dados previstos no artigo 4.º, n.º 1, da Lei 32/2008, o regime processual aplicável assume especialidade nos artigos 3.º e 9.º deste diploma (para estes casos ganhando relevo o conceito de «crime grave», já que nos termos do artigo 3.º, n.º 1, ainda do mesmo compêndio legislativo, a obtenção de prova da localização celular conservada só é prevista para crimes que caibam nesse conceito) - desaparecendo a especialidade, não é consentido recorrer à generalidade e permitir localização celular para além desses crimes é defraudar o espírito do legislador.
XVIII – A facturação detalhada, integrando também dados de tráfego relativos às comunicações efectuadas – pelo menos, informações atinentes a todas as chamadas realizadas num determinado período, números de telefone chamados, data da chamada, hora de início e duração de cada comunicação –, inviabiliza a aplicação da norma do artigo 14.º, n.º 4, da Lei 109/2009, não sendo também de aplicar o preceito contido no artigo 18.º, apenas destinado a intercepções em tempo real, a exemplo das normas do CPP para que remete, anotando-se ainda que, no caso dos autos, o prazo de três meses, previsto no artigo 12.º, n.º 3, já se extinguiu.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/10/2022, relatado pela Exma. Desembargadora Mafalda Santos
(…)
VIII – E os dados cuja transmissão pode ser autorizada nos termos do art.º 9.º da Lei 32/2008, de 17/7, norma cujos pressupostos o Ministério Público entende estarem preenchidos, são os conservados nos termos do art.º 4.º do mesmo diploma, declarado inconstitucional com força obrigatória geral.
Cremos pois que, nos termos dos artigos 187.º a 189.º do CPP é lícita, entre outras, a utilização dos dados de localização celular desde que a sua guarda e entrega resulte de despacho do juiz, no âmbito de uma investigação criminal, apenas se podendo utilizar como prova aqueles que forem registados e entregues após tal decisão, uma vez que, segundo entendemos, este regime em nada foi beliscado pela publicação da Lei n.º 32/2008, de 17/06, nem pela sua declaração de inconstitucionalidade; tal regime foi alargado e estendido por esta Lei, tendo agora, com a declaração de inconstitucionalidade, ficado reduzido à sua inicial dimensão; na verdade, a Lei 32/2008 referida não procedeu à revogação daquele regime, pois isso teria impedido, durante a sua vigência, a aplicação do art.º 189.º, n.º 2, do CPP aos outros crimes referidos no art.º 187.º não abrangidos pela definição de crimes graves de tal Lei, sendo certo que tal se não verificou.
O art.º 189.º, n.º 2, foi incluído no Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, para, precisamente, regular os termos em que estes dados poderiam ser requisitados e juntos ao processo, pois alguns de tais dados (metadados) já eram guardados temporariamente pelas operadoras para efeitos designadamente de facturação dos serviços prestado.
Referindo-se a um meio de obtenção de prova, a declaração de inconstitucionalidade do acórdão do TC 268/2022 “não versa sobre a própria essência da obtenção de dados de tráfego de comunicações electrónicas, mesmo no caso das comunicações pretéritas, mas sobre o meio e a forma encontrados pelo legislador europeu e pelos direitos nacionais para operacionalizar a obtenção – a criação de um “arquivo” geral e sem limitações quanto à sua sede” – cfr. ac STJ 06-09-2022 (Teresa Almeida) www.dgsi.pt.
Concorda-se com o ac RP 7.12.2022 supra citado (Vaz Patto em relação ao dados de tráfego e dados de localização conservados (comunicações pretéritas), pois, tendo o acórdão do Tribunal Constitucional declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, “não podemos tentar tornear esse acórdão, “deixando entrar pela janela” aquilo a que ele “fechou a porta”. Não podemos recorrer a outras normas para obter o mesmo efeito que resultaria da aplicação das normas declaradas inconstitucionais sem que essas outras normas contenham aquelas garantias que faltam a estas e que levaram a essa declaração de inconstitucionalidade.
Não é, por isso, legalmente possível recorrer para esse efeito aos regimes dos artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal e da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime).
Cremos, portanto, que os fundamentos de inconstitucionalidade declarada, com força obrigatória geral, no ac TC n.º 268/2022, de 19.04, não têm aplicação na intercepção de dados de tráfego, incluída localização celular, em tempo real durante a investigação mas apenas em relação aos dados conservados.
Relativamente aos dados de tráfego, incluídas localizações celulares, em tempo real, o regime de extensão contido no artigo 189.º, nº2, continua a ter a aplicação aos crimes de catálogo previsto no art.187º, nº1, ambos do Código Processo Penal. Nesse caso, também o regime especial do art.18º, nº1 e 3, da Lei n.º 109/2009, de 05.09 (Lei do Cibercrime) continua a ter a aplicação aos crimes de catálogo previstos nesse normativo.
Permitir o acesso e valoração no processo penal de metadados obtidos e tratados para efeitos de facturação entre cliente e operadora é o mesmo que consentir na sua utilização para uma finalidade diferente daquela para a qual foram conservados, defraudando o âmbito de regulamentação prevista na Lei 41/2004, de 18 de agosto, para acudir à investigação criminal (vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01/02/2023, proc. nº 2748/22.0JAPRT-A.P1, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/01/2023 em relação à localização celular, Proc. nº 849/20.8PBCSC.L1-9, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
E não se diga que nos autos o pedido foi efectuado apenas ao abrigo do disposto nos artigos 187º, 189º e 190º do Código de Processo Penal, ainda que erradamente, pois se assim é, no despacho de 17/12/2020 a fls. 201 e ss. após o ofício da ... a informar que os dados tinham uma antiguidade superior a 6 meses, o despacho de fls. 253 e ss. que renova o pedido é fundamentado com base nas disposições legais previstas na Lei nº 32/2008 de 17 de Julho, entretanto declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral.
De modo que, sendo prova proibida em face da referida declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, os dados de trafego resultantes de fls. 305, 308, 309 e apenso III não serão utilizados por este Tribunal Colectivo.”
*
2.2. Considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“1. AA e DD conheceram-se em data não concretamente apurada, situada entre o final do ano de 2019 e o início do ano de 2020 e anterior ao dia 26.04.2020, por intermédio de um conhecido comum, KK.
2. II nasceu em .../.../1942, HH nasceu em .../.../1945 e GG nasceu em .../.../1977.
3. Em execução de um plano previamente engendrado, no dia 26.04.2020, entre as 22h30 e 22h45, com o auxílio de duas pessoas do sexo masculino cuja identidade não se logrou apurar, DD deslocou-se à residência de II (doravante, II) e mulher, HH (doravante, HH), e GG (doravante GG), filha daqueles, sita na Avenida ..., ... esquerdo, em ....
4. Ali chegados, fazendo o arguido DD e PESSOA de identidade não apurada uso de um capuz que lhes ocultava o rosto, deixando apenas visíveis as zonas dos olhos e da boca, bem como de luvas, a mencionada pessoa bateu à porta da residência dos ofendidos.
5. Desconhecendo quem ali se encontrava, GG abriu a porta de entrada da residência.
6. Ato contínuo, a mencionada PESSOA empurrou, com energia, a porta e o corpo da ofendida, fazendo-a cair ao chão.
7. Após, a PESSOA exibiu e empunhou um objecto de cor .../metalizada, com cerca de 20 (vinte)/25 (vinte e cinco) centímetros de comprimento, com o formato, apresentação e características de uma arma de fogo, aparentando tratar-se de um revólver, e forçou a entrada na residência, a cujo interior, juntamente com o arguido DD, acedeu.
8. Após, ambos se dirigiram à sala existente no ... da residência, local onde se encontravam II e HH, exibindo a mencionada PESSOA o objecto descrito no artigo 7.º e DD um objecto idêntico àquele e que, instantes antes, já no interior da residência a pessoa em causa lhe havia entregue.
9. Nesse momento, a referida PESSOA empunhando o descrito objecto, apontou-o na direcção dos ofendidos e disse-lhes que era um assalto e que se não se calassem, os matava.
10. Após, apontando o descrito objecto na direcção da testa de II, a PESSOA disse-lhe “ou me dás os cem mil euros ou eu mato-te”, tendo o ofendido pedido que não lhes fizessem mal e dito que tinha um cofre com poupanças que não atingiam tal montante.
11. De seguida, a referida PESSOA colocou fitas de plástico de cor ..., tipo abraçadeiras, em volta dos pulsos dos ofendidos, imobilizando-os, e fita adesiva de cor ... a tapar a boca dos mesmos.
12. Ato contínuo, a PESSOA encaminhou GG e HH para a cozinha existente no ... da residência, local onde ordenou que permanecessem no chão, maniatadas e com a boca tapada, dizendo-lhes que se tentassem gritar, as matava.
13. Nessa ocasião, a PESSOA disse a DD “vai guardá-las”, tendo este se deslocado para a divisão da residência onde se encontravam GG e HH, empunhando o objecto referido no artigo 8.º.
14. Dirigindo-se a II, a PESSOA ordenou-lhe que o acompanhasse ao piso superior da residência, mantendo-o maniatado.
15. Já naquele piso, a PESSOA dirigiu II para o quarto do casal.
16. Ali chegados, a PESSOA ordenou uma vez mais a II que lhe entregasse os cem mil euros, tendo então o ofendido lhe entregado um cofre metálico de pequenas dimensões que ali se encontrava.
17. O referido cofre continha no seu interior os seguintes objectos pertença dos ofendidos:
a) A quantia de € 1.350,00 (mil trezentos e cinquenta euros) em numerário do Banco Central Europeu;
b) Um relógio em ouro de marca não apurada, comprado na ..., pertença de II;
c) Um anel em ouro, comprado na ..., pertença de II;
d) O anel de noivado em ouro branco de II;
e) O anel de noivado em ouro com uma pérola e brilhantes de HH;
f) O anel de casamento em ouro de II;
g) Um fio de malha grossa em ouro com uma libra em ouro, pertença de HH;
h) Um fio de ouro com pendente em forma de cruz, pertença de HH;
i) Um fio de ouro com um pingente comprido com uma pedra de cor ..., pertença de GG;
j) Uma pulseira em ouro trabalhada com formato de flores, pertença de HH;
k) Uma pulseira de malha grossa em ouro, pertença de GG;
l) Uma pulseira de malha fina em ouro, pertença de HH;
m) Uma pulseira de malha grossa em ouro, pertença de II;
n) Um anel com pedra de safira, pertença de GG;
o) Um par de brincos em ouro branco com uma pérola de cor ..., pertença de HH;
p) Um par de brincos em forma de argolas em ouro, pertença de HH;
q) Um par de botões de punho em ouro, pertença de II;
r) Um par de brincos, pertença de GG;
s) O anel de curso com uma pedra de cor ... esmeralda de HH;
t) Um anel em ouro com a gravação “D”, pertença de HH;
18. Os objectos descritos nas alíneas b) a t) tinham valor não concretamente apurado.
19. Após tomar conhecimento dos objectos e valor monetário contidos no interior do referido cofre, a PESSOA, exaltada, atirou o cofre para o chão e disse “eu não quero esta merda, mato-te já”.
20. Ato contínuo, encontrando-se o ofendido em cima da cama existente no quarto do casal, a PESSOA desferiu-lhe diversas pancadas, em número não concretizado, no corpo, atingindo-o essencialmente nas zonas da cabeça, face, das costelas, do peito e das costas, e puxou-o, fazendo-o cair ao chão, causando-lhe dor.
21. Não obstante II ter procurado libertar-se e ausentar-se do local, a PESSOA impediu-o de o concretizar e, estando o ofendido prostrado no chão, desferiu-lhe múltiplos pontapés e pancadas, em número não concretizado, atingindo-o em diversas partes do seu corpo.
22. No período em que se encontrou no piso superior da residência com o ofendido II, a PESSOA disse-lhe, por diversas vezes e apontando o objecto descrito no artigo 7º na sua direcção, “eu mato-te” e que ia matar o seu filho.
23. Nesse período a PESSSOA disse-lhe ainda “sabe quem é o MM?”, “fui eu que o matei e a ti vou-te matar igual”.
24. II imediatamente identificou MM como sendo o seu conhecido MM, falecido em .../.../2019 e cujas circunstâncias do falecimento se encontravam em investigação no inquérito que corria termos na Procuradoria de ... sob o n.º 300/19.....
25. Cerca de trinta minutos depois, a PESSOA forçou II a descer as escadas da residência e, enquanto o fazia, desferiu-lhe diversos pontapés, em número não concretizado, no corpo, dirigindo-se depois a PESSOA e o ofendido à cozinha existente no ....
26. Permanecendo os ofendidos na cozinha da residência e encontrando-se o arguido DD presente na divisão, vigiando-os, a PESSOA disse “o primeiro que mexer, morre” e deslocou-se, pelo menos, mais uma vez ao piso superior da residência, após o que regressou ao ..., constatando que na sala existente nesse piso se encontrava um outro cofre.
27. Dirigiu-se, de seguida, à cozinha e ordenou aos ofendidos que abrissem o referido cofre, dizendo-lhes que se não o fizessem, os matava.
28. Já na sala, II e HH tentaram abrir o referido cofre, sem sucesso.
29. Desagradado, a PESSOA disse-lhes que, caso não procedessem à abertura do cofre, mataria OO, filho de II e HH e cujo nome verbalizou.
30. Nessa ocasião, fazendo uso de um aparelho com a aparência de um walkie-talkie, a PESSOA encetou ou aparentou encetar conversação com terceira pessoa a quem disse para matar e atirar ao rio o filho dos ofendidos.
31. II, HH e GG confiaram em que tal ordem podia ser de imediato concretizada.
32. Perante o facto de os ofendidos não terem conseguido abrir o cofre, a PESSOA disse a DD para o abrir, o que este tentou, sem sucesso, fazer.
33. Após, a PESSOA encaminhou novamente os ofendidos para a cozinha da residência, forçando-os a ficar agachados naquela divisão, e ordenou-lhes que ali permanecessem, dizendo-lhes que se gritassem ou tentassem fugir, os matava.
34. De seguida, a PESSOA cortou as fitas adesivas previamente colocadas sobre a boca e as abraçadeiras colocadas ao redor dos pulsos dos ofendidos e entregou-as a DD.
35. Após, a PESSOA e o arguido DD subiram novamente ao piso superior da habitação e ali se apoderaram do cofre e dos objectos nele contidos referidos em 17, abandonando posteriormente a residência.
36. Ambos levaram consigo a quantia monetária e demais objectos identificados no artigo 17.º, não obstante saber que não lhes pertenciam e que a eles não tinham direito.
37. Na sequência das condutas descritas, II e HH deslocaram-se ao serviço de urgência do Centro Hospitalar de ... em ..., a fim de receberem assistência médica.
38. Como consequência directa e necessária das descritas condutas, HH sofreu dor e escoriações nos pulsos, apresentando, quando submetida a exame médico-legal no dia 18.02.2021, uma escoriação linear de cerca de 3 milímetros rodeada por equimose de cerca de 2 centímetros de diâmetro na face dorsal do punho do membro superior direito.
39. Tais lesões determinaram à ofendida 5 (cinco) dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.
40. Como consequência directa e necessária das descritas condutas, II sofreu dor nas zonas corporais atingidas, hematoma no olho esquerdo, rubor e abrasão nos pulsos, apresentando, quando submetido a exame médico-legal no dia 18.02.2021, as seguintes lesões corporais:
a. Na face: equimoses peri-orbital direita e na face, a maior das quais à esquerda com cerca de 6x5 centímetros, hemorragia conjuntival no olho direito, fratura dos ossos próprios do nariz, escoriação sub-mentoniana esquerda com cerca de 2 centímetros de diâmetro.
b. No tórax: dor na base posterior do hemitórax esquerdo.
c. No membro superior esquerdo: parestesias na mão.
41. Tais lesões determinaram ao ofendido 35 (trinta e cinco) dias para a cura, com afectação da capacidade de trabalho geral por 2 (dois) dias e da capacidade de trabalho profissional por 10 (dez) dias.
42. Atentos a dimensão, formato e demais características identificados nos artigos 7º e 8º, os ofendidos percepcionaram os objectos que, nas concretas circunstâncias e contexto descritos, a PESSOA e DD exibiram como sendo armas de fogo e, nessa medida, potencialmente letais, fazendo-os recear que, conforme verbalizado pela referida PESSOA, atentassem contra a sua vida.
43. A mencionada PESSOA e DD agiram de forma livre, deliberada e consciente, em execução de um plano previamente gizado por ambos, com o propósito de, sem autorização e consentimento dos ofendidos, se introduzirem na residência destes e pelo menos a PESSOA aí se apoderar da quantia de € 100.000,00 (cem mil euros) que tinha a convicção de os ofendidos terem na sua posse, bem como de outros valores monetários e objectos de valor que tivessem na sua disponibilidade fáctica, e ao qual o arguido DD aderiu, cooperando na sua concretização e conjugando, para o efeito, esforços com o primeiro.
44. Sabiam ainda a PESSOA E DD que, em consequência da atitude de planeamento e surpresa, da exibição dos objectos descritos e que os ofendidos percepcionaram como sendo armas de fogo e, dessa forma, potencialmente letais, da sua superioridade física e idade avançada de II e HH, da circunstância de terem sido maniatados e de lhes ter sido coarctada a possibilidade de solicitarem auxílio, das expressões que, de forma séria, a PESSOA proferiu e da forma como este arguido molestou o corpo e a saúde de II, provocavam medo e temor nos ofendidos, fazendo-os acreditar seriamente que a sua integridade física e as suas vidas e do filho de II e HH se encontravam, de forma iminente, em perigo.
45. Agiram DD e a PESSOA cientes de que, dessa forma, atemorizavam e intimidavam os ofendidos, impedindo-os de esboçar qualquer reacção às suas condutas, o que ambos fizeram com o propósito de, em concretização do plano por ambos engendrado, os compelir a entregar-lhe, contra a sua vontade, valores monetários e outros objectos de valor que possuíssem, o que, em conjugação de esforços lograram concretizar, fazendo ambos seus a quantia monetária e os objectos descritos no artigo 17.º e que se encontravam guardados no cofre descrito, apesar de saberem que não lhes pertenciam, actuando os arguidos com conhecimento de que o faziam sem o consentimento e contra a vontade dos respectivos donos.
46. Sabiam ainda a PESSOA e DD que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.
- Da Acusação Particular
47. Nas circunstâncias descritas em 3 a 34, no interior da habitação do assistente, pessoa de identidade não concretamente apurada, acompanhada por DD, dirigiu-se ao assistente nos seguintes termos: «filho da puta», «cabrão».
- Dos Pedidos de Indemnização Civil
48. As expressões referidas em 47 foram invectivadas directamente ao assistente na frente de familiares, com o único objectivo de ofender a sua dignidade e honra, provocando-lhe vexame e humilhação perante a sua família.
49. O assistente pelos factos descritos em 47 e 48, sentiu-se fortemente atingido na sua honra e consideração, como pessoa respeitada e respeitadora que é, honesta e sempre considerada pelas pessoas no meio em que vive.
50. O assistente sentiu enorme vergonha e humilhação ao ouvir tamanhos insultos, de forma repetida.
51. Os objectos descritos em 17 tinham para os demandantes grande valor sentimental uma vez que cada um deles representava um marco importante na vida de cada um deles.
52. Os demandantes sentem mágoa e tristeza por lhe terem sido retirados objectos.
53. Os demandantes sofreram dores durante e após as agressões perpetradas pela referida pessoa de identidade não concretamente apurada.
54. Durante o tempo que durou o assalto, os demandantes tiveram medo de morrer e sentiram medo e temor pela vida de OO, que em dado momento consideraram ter sido morto e deitado ao rio.
55. Após este assalto, os demandantes, em particular o assistente, viveram com medo de permanecer em sua casa, sentindo pânico em alguns momentos e receio de voltarem a ser assaltados.
56. O assistente II passou muitas noites sem dormir, acordava sobressaltado, com pesadelos constantes.
57. O assistente tinha medo de ser abordado na rua pelos assaltantes, e não conseguir identificá-los, sendo, novamente agredido por estes.
58. A assistência médica referida em 37 prestada a II foi orçada pelo Centro Hospitalar de ... em € 318,92, ao passo que a assistência prestada a HH foi orçada por aquela entidade em € 101,91, quantias ainda não liquidadas.
Mais se provou que:
59. O processo de desenvolvimento de AA decorreu no contexto do seu agregado familiar de origem e integrou uma fratria de dois irmãos, sendo o arguido o mais velho, com uma dinâmica intrafamiliar que se caracteriza pelo equilíbrio e funcionalidade.
60. Neste contexto, o arguido concluiu o 3º ciclo de ensino básico com uma retenção, optando pelo abandono do ensino em prol do trabalho na agricultura juntamente com os pais, até ao seu ingresso no serviço militar.
61. Após conclusão do serviço militar emigrou para a ..., onde permaneceu cerca de 3 anos, laboralmente activo na construção e manutenção de estradas.
62. Em 2003 regressa a Portugal onde conclui o curso de jovem empresário agrícola.
63. Nesse período mantém actividade na sua aldeia na recolha de pedra para posterior envio para ..., altura em que chegou a ter 3 funcionários a seu cargo.
64. Seguidamente permaneceu no país vizinho numa empresa de colocação de mosaicos e como cortador de madeira.
65. De regresso a Portugal manteve actividade na apanha da pedra e paralelamente continuou no negócio da família de comercialização de gado.
66. Foi também vendedor de tractores e alfaias agrícolas.
67. À data dos factos, AA vivia com a companheira PP e a filha desta com cerca de 9 anos.
68. Mantinha actividade como vendedor de tractores e alfaias agrícolas e comercialização de gado.
69. Mantinha ainda uma sociedade com a companheira, num restaurante situado no Porto, ainda encerrado.
70. Nos seus tempos livres dedicava-se ao artesanato, nomeadamente trabalhos em madeira, acompanhava a companheira e filha desta em passeios e visitas a familiares.
71. Em termos económicos, actualmente a família subsiste do vencimento da companheira, funcionária numa loja de móveis, cerca de 750 euros mensais, ao qual acresce o abono de família da menor cerca de 40 euros mensais.
72. As despesas fixas são referentes ao crédito à habitação, no valor mensal de 250 euros, ao qual acresce, os consumos de água, luz e gás, no valor médio mensal de 60 euros.
73. Os valores são percepcionados pelo agregado familiar como razoáveis e capazes de assegurar as necessidades assumidas pelo mesmo.
74. Durante o período em que o arguido esteve em prisão preventiva à ordem do proc. nº 134/18...., a ligação do condenado ao exterior foi mantida pelas visitas da companheira e familiares que manifestaram disponibilidade para o acompanhar e apoiar, em situação de privação de liberdade e no regresso ao meio livre.
75. Em meio prisional registou um comportamento formalmente adequado ao normativo vigente na instituição, evidenciou motivação na aquisição de competências laborais e formativas, concluiu o 12º ano lectivo, frequentou o curso de inglês e espanhol, encontrando-se laboralmente activo no bar do pavilhão.
76. No meio social de residência de características urbanas onde não são referenciadas problemáticas sociais relevantes, não se prevê constrangimentos que obstaculizem a sua reintegração comunitária, por se tratar de zona residencial que serve essencialmente de dormitório, não existindo um relacionamento de grande proximidade entre os residentes.
77. DD é o mais novo de uma fratria de três descendentes nascidos na constância do casamento dos seus progenitores.
78. O processo de socialização do arguido decorreu no núcleo familiar de origem, com padrões vivenciais modestos e onde a dinâmica relacional era pautada por alguns atritos e ocorrência de episódios de agressividade física por parte da figura paterna dirigida aos demais elementos do agregado, cônjuge e descendentes, decorrente, por vezes, da ingestão abusiva de álcool.
79. DD ingressou em estabelecimento de ensino em idade regulamentar, sendo o seu percurso escolar pautado pela desmotivação e elevado absentismo, mas acabou por completar o 4º ano de escolaridade.
80. Mais tarde, através de curso de dupla certificação concluiu o 6º ano de escolaridade.
81. A progenitora faleceu quando o arguido contava o arguido 12 anos de idade, ficando a viver com o pai, sendo que desde então, o processo de desenvolvimento do arguido decorreu num contexto de desresponsabilização educativa e falta de orientação por parte do progenitor.
82. O arguido detém experiência laboral no sector agrícola, cujo inicio reporta à idade de 16 anos, actividade que tem mantido, ausentando-se para o estrangeiro em certos períodos onde faz algumas campanhas, designadamente em ....
83. Em simultâneo tem-se dedicado também, em certos períodos, à colecta e comercialização de sucata.
84. Referiu ainda uma experiência fortuita na área de pastelaria, bem como na distribuição de bebidas, tendo este último laboro sido executado na ....
85. Com 18 anos contraiu matrimónio com QQ, existindo desta união uma filha já adulta e autonomizada.
86. Segundo o próprio arguido, a relação conjugal inicialmente revelou-se algo disfuncional, o que foi atribuído ao consumo de substâncias tóxicas de ambos os elementos do casal.
87. O casamento veio a dissolver-se por divórcio, situação que parece ter sido motivada, essencialmente, pelo afastamento do arguido em razão do cumprimento de pena efectiva de prisão.
88. Há 7 anos reatou relação com o ex-cônjuge, com quem reside desde então, apontando, no presente, uma relação ajustada e gratificante a nível de afectos.
89. À data dos factos, o arguido mantinha coabitação com companheira, QQ, sendo o agregado composto ainda por uma filha da companheira, actualmente com 6 anos de idade.
90. A dinâmica relacional é descrita como ajustada, sendo a relação referenciada como gratificante, e pautada por laços afectivos consistentes, onde é realçada a vinculação entre os seus elementos, designadamente entre a filha da companheira e o arguido, o qual afirmou que nutre por aquela, sentimentos semelhantes aos da filiação.
91. A subsistência do agregado é garantida essencialmente por subsídio estatal no montante de 276 €; abono da menor no valor de 67 €; valores variáveis advindos do trabalho informal da companheira, a qual exerce funções no sector agrícola, e ainda 150 € que paga um casal cinquentenário pela ocupação provisória de um dos quartos da residência.
92. DD aponta o início do consumo de estupefacientes à idade de 17 anos, consumos que se acentuaram e que tem mantido ao longo do percurso vivencial, com assunção de condutas inerentes, o que se tem repercutido de forma negativa nos diferentes contextos da sua vida.
93. O mesmo protagonizou tratamento a esta problemática e, pese embora momentos de recidiva, refere encontrar-se abstinente na actualidade.
94. No meio sócio residencial e até ao momento, não há indicação de problemas gerados pelo arguido.
95. O arguido AA não tem antecedentes criminais registados.
96. O arguido DD tem averbadas no seu CRC as seguintes condenações:
- no âmbito do Processo Comum Colectivo 103/00.... – ... Juízo – Tribunal Judicial ..., foi condenado por decisão de 30/01/2022 transitada em julgado em 18/02/2022 pela prática em 21/12/2002 de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, na pena de 17 anos e 6 meses de prisão.
- Em 10.12.2013, por sentença transitada em julgado em 06.01.2014, foi condenado pelo Tribunal ..., pela prática de um crime de “roubo com arrombamento, entrada e ... falsas”, na pena de 22 meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos.
- no âmbito do Processo nº 509/14...., foi condenado por decisão de 11/11/2015, transitada em julgado em 21/12/2015, pela prática em 25/12/2014 de um crime de furto qualificado na pena de 4 anos e 6 meses de pisão suspensa com regime de prova;
- no âmbito do proc. nº 497/17...., foi condenado por decisão de 28/06/2018, transitada em julgado em 13/09/2018, pela prática em 10/12/2017 de um crime de furto simples na pena de 9 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano já declarada extinta;
- no âmbito do proc. nº 604/17...., foi condenado por decisão de 13/11/2018 transitada em julgado em 13/12/2018, pela prática em 18/11/2017 de um crime de consumo de estupefacientes na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 5,50 já declarada extinta pelo pagamento.
- no âmbito do Proc. nº 140/20...., foi condenado por decisão de 19/12/2022, transitada em julgado em 01/02/2023, pela prática em 28/04/2020 de um crime de furto simples na pena de 1 ano de prisão suspensa por igual período sujeita a deveres.”.
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2.3. Considerou não provado que (transcrição):
“a) Em data não concretizada, mas anterior ao dia 26.04.2020, AA formulou o propósito de se deslocar à residência de II (doravante, II) e mulher, HH (doravante, HH), e GG (doravante GG), filha daqueles, sita na Avenida ..., ... esquerdo, em ..., a fim de, mediante a exibição de uma arma ou objecto semelhante a uma arma, compelir os ofendidos a entregar-lhe a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros) que tinha a convicção de terem em sua posse, na sequência da venda de um terreno que, de forma não apurada, sabia terem previamente concretizado por aquele valor ou valor aproximado àquele, bem como outros valores monetários e objectos de valor que tivessem na sua posse, a fim de se apropriar dos mesmos.
b) Com vista à concretização do seu propósito, AA propôs a DD que, mediante o pagamento da quantia de € 30,00 (trinta euros), referente a um dia de trabalho, se deslocasse, na sua companhia, àquela residência, a fim de, segundo lhe transmitiu, recolherem uns documentos referentes a uma propriedade que havia adquirido, ao que aquele, confiando em que o arguido AA lhe dizia a verdade, acedeu.
c) A PESSOA de identidade não concretamente apurada referida nos factos provados em 3 a 46 era o arguido AA.
d) O relógio de ouro de marca não apurada, tinha o valor de 350,00 euros; o anel de ouro, comprado na ..., o valor de 200,00 euros; o anel de noivado, pertença de II, o valor de 200,00 euros; o anel de noivado em ouro com uma pérola e brilhante, o valor de 200,00 euros; o anel de casamento de ouro, pertença de II, o valor de 200,00 euros; o fio de malha grossa em ouro com uma libra de ouro, o valor de 500,00 euros; o fio de ouro com pendente em forma de cruz, o valor de 200,00 euros; o fio de ouro com um pingente cumprido com uma pedra de cor ..., o valor de 190,00 euros; a pulseira de ouro trabalhada com formato de flores, o valor de 200,00 euros; a pulseira de malha grossa em ouro, pertença de GG o valor de 190,00 euros; a pulseira de malha fina em ouro, pertença de HH o valor de 100,00 euros; a pulseira de malha grossa em ouro, pertença de II o valor de 250,00 euros; o anel com pedra de safira, o valor de 150,00 euros, o par de brincos em ouro branco com uma pérola de cor ..., o valor de 180,00 euros, o par de brincos em forma de argolas em ouro, o valor de 250,00 euros; o par de botões de punho em ouro, o valor de 80,00 euros; o par de brincos, pertença de GG o valor de 100,00 euros; o anel de curso com uma pedra de cor ... esmeralda, o valor de 150,00 euros, o anel em ouro com a gravação D, o valor de 100,00 euros.
e) A PESSOA de identidade não concretamente apurada apropriou-se do cofre e dos objectos nele contidos e referidos em 17 no momento referido em 16.
f) O arguido AA, ao actuar da forma descrita em 47, agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente da reprovabilidade da sua conduta, e de que ela era proibida por lei.”
*
2.4. E motivou a essa decisão de facto nos seguintes moldes (transcrição):
“A convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica e ponderada da prova produzida em audiência de julgamento e da prova documental e pericial constante dos autos, devidamente conjugada com as regras da experiência comum.
Em audiência de julgamento, o arguido AA optou, numa primeira fase, por não prestar declarações, remetendo-se ao silêncio. Posteriormente, na segunda sessão da audiência, optou por prestar declarações negando a prática dos factos e apresentando uma versão semelhante àquela que apresentou em sede de primeiro interrogatório, em 22/12/2022, conforme passaremos a explanar mais adiante.
Por sua vez, o arguido DD prestou declarações logo no início da audiência e confirmou, essencialmente, as declarações que já havia prestado em sede de primeiro interrogatório em 02/03/2022, exaradas a fls. 852 e ss., prestadas perante a Magistrada do MP e reproduzidas em audiência de julgamento ao abrigo do disposto no artigo 357º nº 1 alínea b) e nº 2 do Código de Processo Penal.
Efectivamente em sede de primeiro interrogatório, o arguido DD referiu ao Tribunal que conheceu o arguido AA, que conhecia pela alcunha de “paraquedista”, há cerca de dois anos, portanto, finais do ano de 2019, início do ano de 2020, por intermédio de um indivíduo de etnia cigana de ..., KK. Tendo conhecimento de que o este trabalhava na agricultura, em três ocasiões, o arguido AA propôs-lhe a realização de tarefas que esclarece terem-se tratado de transporte de vigas e de um veículo para um local que, segundo lhe foi indicado, seria a residência do arguido AA, tendo-lhe este pago, em cada ocasião, o correspondente ao “dia de trabalho”, isto é, € 30,00 por ocasião. Chegou a almoçar com o arguido e o KK em algumas ocasiões.
Esclareceu que o arguido AA tinha, à data, uma tatuagem de um “para-quedas” na zona da nuca. Mais referiu que cerca de uma semana antes de os factos terem ocorrido, o arguido AA contactou-o para o número de telemóvel que à data usava e perguntou se lhe fazia um trabalho que era “ir a casa de uma pessoa buscar uns documentos relativos a uma propriedade que ele tinha comprado por 95.000€ e não lhe tinham dado os documentos”, o que o aquele aceitou, mediante o pagamento de um dia de trabalho (€ 30,00).
Contou então que se encontraram na manhã do dia em causa em ..., estando presentes os dois arguidos e o KK. Na ocasião, o declarante vivia em ... e o arguido AA disse que o ia buscar da parte da tarde para depois irem para ... mas tal não veio a acontecer, tendo o arguido AA contactado o declarante para vir directamente para ..., dizendo-lhe que “lhe pagava a gasolina”, o que o declarante aceitou e fez.
Confrontado com a transcrição das “SMS” de folhas 797, verso incluído, o arguido confirmou que enviou e recebeu as mensagens ali transcritas no dia dos factos, em momento anterior à sua ocorrência. Mais referiu que se deslocou para ..., onde chegou, segundo pensa, pelas 18h00, era o final da tarde. Estacionou o seu carro próximo de uma rotunda onde existe um posto de abastecimento, conforme lhe havia sido dito pelo AA. O AA foi ter consigo nesse local, num FORD FOCUS, de cor ..., cuja matrícula disse desconhecer. Nessa altura o AA deu-lhe 20€ “para meter gasolina” para o regresso a ....
Contou que após entrarem no carro do AA andaram cerca de uma hora e meia às voltas por ..., desconhecendo os locais concretos por onde passaram, pois não conhece a cidade. Depois disso, o AA, parou o carro junto de uma casa amarela, em local que não conseguiu precisar e surgiu um terceiro indivíduo no local ao volante de uma carrinha ..., de um modelo não muito recente (tipo ... Kangoo ou ...). Mais referiu que desconhece a identidade do terceiro indivíduo e não ouviu o AA tratá-lo pelo nome assim como desconhece a matrícula da carrinha, designadamente se era portuguesa ou espanhola. Andaram os três às voltas na cidade, vindo depois a deslocar-se à residência dos ofendidos, a hora que não recorda.
Referiu que chegados a casa dos ofendidos e junto à porta da residência, o AA entregou-lhe um gorro de cor ... que cobria o rosto e a cabeça, deixando apenas visível a zona dos olhos. Esclareceu que tinha também umas luvas calçadas, mas o arguido AA tinha também um par de luvas para si. O arguido AA colocou também um gorro idêntico ao que lhe deu e calçou umas luvas. No momento em que o arguido AA lhe deu o gorro, o arguido questionou o porquê de o dar, tendo o AA dito que era para não haver problemas. O terceiro indivíduo permaneceu no interior do veículo, no exterior, junto da habitação. Referiu não saber se, entretanto, ele se ausentou ou se ali permaneceu enquanto estiveram no interior da residência.
Contou então que o AA bateu à porta, uma senhora nova abriu a porta e o AA empurrou a porta para aceder ao interior da residência. Quando entraram o AA entregou-lhe uma arma, de cor ... que veio a perceber tratar-se de uma “imitação” (isqueiro). O AA fez uso de uma arma cromada, de cor ..., esclarecendo que era diferente da sua. Após, o AA colocou uma fitas pretas (abraçadeiras) nos pulsos das senhoras e uma fita-cola na boca de cada uma. Referiu recordar-se que o AA dizia que “queria os € 100.000” e chamava ao senhor da residência, em espanhol, “cabron”. Depois, o AA colocou as senhoras de joelhos numa dependência do ... da residência e subiu com o senhor ao ... andar. Referiu o arguido que permaneceu no ... com as senhoras e “ouviu a acção” do piso superior, esclarecendo que lhe pareceu ser agressão ao dono da casa. Algum tempo depois o AA desceu com o senhor que aparentava sangrar da zona do olho.
Salientou que o AA voltou a subir novamente ao piso superior, segundo pensa com o dono da casa. Quando voltaram, o AA trazia algo nos bolsos, pois era visível o volume, desconhecendo o depoente o que trazia. O AA apercebeu-se que havia um cofre no ..., numa sala, e tentou abri-lo, sem sucesso. Depois agrediu o dono da casa para que ele abrisse o cofre. O senhor disse que não sabia como abri-lo. Depois o AA pediu ao arguido para abrir o cofre, o que também não conseguiu fazer. Referiu recordar-se de que o AA ameaçou os ofendidos, dizendo que “os matava” se não abrissem o cofre. Disse também que mataria o “filho deles” se não abrissem o cofre.
Acrescentou recordar-se e também de ouvir o AA dizer ao senhor da residência: sabes quem é o MM? Fui eu que o matei, desconhecendo o depoente quem seja o MM. Depois o AA cortou as abraçadeiras dos pulsos das senhoras e entregou-as ao depoente para ele as trazer. Sabe que o AA pegou na chave da habitação e atirou para o chão. Saíram depois pela porta da residência por onde haviam entrado e no exterior encontrava-se o terceiro indivíduo no interior da carrinha ..., que os levou até junto de uma barragem. Na carrinha entregou ao AA o “isqueiro” e o gorro.
Referiu que a dita barragem fica próximo da casa amarela a que se referiu, conforme indicou anteriormente à PJ. Nesse local o declarante permaneceu cerca de 15 / 20 minutos sozinho. Voltaram depois o arguido AA e o terceiro indivíduo na mesma carrinha ..., e aquele entregou-lhe 60€ pelo “trabalho”. Dirigiram-se depois à zona onde havia estacionado o seu carro, local onde o deixaram. Nessa altura o AA disse-lhe “para se manter calado, aquilo ficava por ali, para não haver consequências”.
Acrescentou que desde então o AA não mais o procurou, nem o terceiro indivíduo. Esclareceu o arguido que não conhecia o AA como sendo violento e que, ao perceber a violência com que tratou os senhores da residência, ficou em pânico. Questionado do motivo pelo qual não se ausentou da residência, disse que temeu pela sua vida e da sua família. Quis acrescentar que receia uma retaliação por parte do arguido AA, temendo pela sua vida e da sua família, pelo que solicita protecção. Finalizou as declarações dizendo que não quis fazer mal a ninguém, “entrou numa coisa que não era previsto”.
Em audiência de julgamento o arguido DD reiterou esta versão dos factos apresentada no primeiro interrogatório. Acrescentou que tentou ajudar as senhoras, tirado a fita adesiva da boca da senhora mais velha e reiterou que a sua arma era falsa, sendo um isqueiro de plástico, mas não sabia se a arma exibida pelo AA era ou não verdadeira.
Quanto ao dinheiro e aos objectos referiu que não viu objectos nenhuns nem conhece minimamente o seu valor, sendo que depois de saírem da casa, no carro, não conversaram entre si, tendo apenas falado no dia seguinte com a testemunha KK e lhe contado tudo o que tinha sucedido, ao que aquele lhe perguntou se queria ir à Polícia vendo que o arguido estava em pânico. Reiterou que foi enganado pelo AA porquanto não sabia que aquilo ia ser um assalto, pensando que era apenas para “ir buscar uns papéis por causa da venda de um terreno”. Quando questionado sobre se sabia de antemão que a entrega dos papéis seria de livre vontade ou “à força”, disse que o ... lhe tinha dito que não seria de livre vontade mas que lhe garantiu que não haveria violência.
Reiterou que não conhecia a terceira pessoa que ficou na carrinha mas que não era a testemunha KK nem qualquer familiar dele. Referiu também que teve negócios com o AA e que efectivamente lhe vendeu garrafas de whisky furtadas uns dias ou semanas antes do dia dos factos sendo que as vendeu por € 10,00 cada uma. Questionado sobre as conversas que constam das escutas que manteve com a testemunha KK nos dias 29/12/2020 e 31/12/2021 mostrou-se evasivo, tendo confirmado que tinham falado sobre outros furtos que o arguido cometeu e que também lhe fornecia garrafas de bebidas em troca de droga.
Este arguido, na primeira sessão da audiência de julgamento recusou responder ás questões que lhe foram colocadas pela mandatária do co-arguido AA mas na segunda sessão, referiu ao Tribunal ter sido ameaçado por este co-arguido, sendo que o mesmo também o tentou subornar para estar calado e pretendeu, então, responder a tais questões.
Após ter, na segunda sessão da audiência prestado novas declarações na ausência do co-arguido AA por referir ter medo de represálias e que este concretizasse as ameaças, o arguido AA pretendeu, então, prestar declarações.
Por sua vez, o arguido AA prestou, então, declarações, negando a prática dos factos e apresentando uma versão no geral coincidente com aquela que apresentou em sede de primeiro interrogatório, em 22/12/2022.
Este arguido contou que 1 ano ou 2 antes dos factos conheceu a testemunha KK e posteriormente conheceu o arguido DD como sendo empregado do KK. Este DD juntamente com o KK e num furgão de cor ... pertença deste último fizeram um transporte de traves para um restaurante que o arguido ... pretendia abrir no Porto, sendo que depois acabou por fazer também negócios com o DD, nomeadamente vendeu-lhe objectos do dito estabelecimento comercial, comprou-lhe garrafas de whisky e vinho do porto furtadas que aquele lhe disse que eram de um seu irmão muito rico que estava na ..., tendo inclusive o DD no dia do transporte das traves, lhe proposto adquirir-lhe uma arma que tinha o cano obstruído ao que o ... teria recusado.
Disse também que chegou a vender um tractor ao KK mas que aquele não lhe pagou o preço devido, tendo necessidade de ir reclamar o dinheiro a casa daquele mas teve de fugir dali porque veio a mulher e os familiares ciganos que o expulsaram, referindo o KK que nada lhe devia.
Referiu também que solicitou anteriormente ao DD que lhe trouxesse as tais garrafas, tendo então lhe dado o seu número de telefone para combinarem essa entrega. Assim, no dia dos factos, encontrou-se com o DD no parque de estacionamento do restaurante Z..., em ..., seriam cerca das 22h, tendo então carregado as garrafas para o seu carro do carro do DD, sendo que quando o fazia, saiu de um furgão de cor ... que ali estava um individuo que o DD lhe disse estar com ele “porque ainda teriam muito que fazer nesse dia, iriam carregar mobília”. Mais referiu que quando já estava de regresso a casa, o dito furgão lhe apareceu na estrada a dar sinais de luzes e a mandar encostar o que aquele arguido fez, tendo aquele indivíduo e o DD que seguiam no furgão lhe solicitado ajuda para encher um pneu que tinham furado, o que fizeram. Nesse momento saiu da carrinha furgão o individuo “meio espanholado”, tendo então o arguido ... reparado que o dito furgão possuía uma matrícula espanhola á frente e portuguesa atrás, tendo então confrontado o DD e o individuo, quando então estes dois se envolveram em discussão, tendo o individuo gritado com o DD por ele ter feito mal o serviço e lhe dado um chapada na cara e lhe chamado “cabron”. Mais referiu o arguido ... que ao andar de volta da carrinha furgão percebeu que a mesma tinha a porta amassada precisamente no mesmo local onde a carrinha do KK ficou amassada quando aquele lhe fez o transporte de traves para o Porto e ao olhar para o condutor lhe pareceu ser o KK, apesar de este condutor ter a cara tapada.
O arguido negou a prática dos factos e referiu que depois não sabe o que aquelas pessoas teriam ido fazer de seguida. Referiu que no dia em causa estava com o Volvo V40 e não com um Ford Focus como referiu o DD. Referiu que já tinha feito milhares de negócios ilícitos, mas nunca se meteu em roubos ou faria mal ás pessoas.
Quando confrontado com a escuta extraída do proc. nº 134/18.... de fls. 277 referiu não se lembrar muito bem da conversa mas admitiu que pudesse estar a falar com o DD de ovelhas ou cabritos porque negociava habitualmente com esse gado.
Quando questionado sobre a razão pela qual estaria a ser “entalado” pelo DD referiu não saber muito bem a razão mas sendo seu entendimento que este arguido estaria a ser pressionado para denunciar alguém e como teria medo aos verdadeiros culpados, acabou por o denunciar a ele. Mais referiu não perceber porque razão a Policia Judiciária andou sempre atrás do DD e do KK e nunca o questionou a ele sobre os factos, dando-lhe a oportunidade de se explicar, uma vez que nunca foi chamado à PJ tendo sido ouvido pela primeira vez perante o Juiz em 22/02/2022.
Em julgamento, foram ainda ouvidas as testemunhas KK e os inspectores da PJ MM e NN e bem assim o Coordenador do Núcleo de Investigação Criminal da PJ RR.
Foi também ouvida a ofendida HH quanto a alguns dos factos para além das declarações para memória futura que já havia prestado.
Constam dos autos as transcrições das conversas entre presentes realizadas entre o arguido DD e a testemunha KK em duas ocasiões: 29/12/2020 e 31/12/2021 e bem assim certidão extraída do processo nº 134/18.... a fls. 268 e ss. e 795 e ss. da qual consta a transcrição de SMS trocados entre os arguidos no dia dos factos pelas 17h30m e 18h07m e de uma escuta telefónica ocorrida entre ambos naquela mesma data pelas 13h59m. Consta igualmente um auto de inquirição do DD enquanto testemunha ouvido na PJ em 03/11/2020, no âmbito daquele referido processo nº 134/18.... e no qual o mesmo refere então ter conhecido o AA através do KK. Terá sido por essa via que a PJ chegou ao KK neste processo e à sua relação com os arguidos.
Constam igualmente dos autos as declarações para memória futura prestadas por II, HH e GG em 10/02/2022 (cfr. auto de fls. 767/769), as quais como se sabe, não têm de ser reproduzidas em audiência para serem valoradas (cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 11/10/2017, Proc. n 895/14.0PGLRS.L1-A.S1 disponível em www.dgsi.pt (...)).
Deste modo, o facto descrito em 1 foi confirmado pelos arguidos DD e bem assim pelo arguido AA, apesar deste último não ter confirmado a data.
Para prova dos factos descritos em 2, 37 a 41 valorou o Tribunal os registos clínicos e relatórios do INML juntos aos autos a fls. 16 e ss., 195 e ss., 20 e ss., 288 e ss., 24 e ss., 152 e 153, 260 a 266 e fotografias do ofendido II a fls. 123 e ss.
Para formar a sua convicção em relação aos demais factos relativos às circunstâncias de tempo, lugar e modo dos ilícitos descritas em 3 a 36 valorou o Tribunal as declarações para memória futura prestadas por II, HH e GG em 10/02/2022, as quais nos pareceram completamente credíveis, revelando-se depoimentos isentos, pormenorizados e perfeitamente coerentes entre si. Valorou-se igualmente as declarações prestadas pelo arguido DD em sede de primeiro interrogatório e em sede de audiência de julgamento, as quais na sua generalidade acabaram por ir ao encontro do relatado pelos ofendidos, com excepção dos factos descritos em 35 e 36.
Na verdade, o ofendido II referiu que numa primeira fase, ainda no andar de cima, o individuo mais alto e musculado, o mais agressivo, não quis o cofre com o dinheiro e os objectos, tendo-o atirado para o chão e insistido uma vez mais na entrega dos cem mil euros, sendo que só depois mais tarde é que ambos os indivíduos (o mais alto e o mais baixo) deixaram os ofendidos na cozinha e subiram os dois ao andar de cima, tendo sido nesse momento que terão levado o cofre com o dinheiro e os objectos porquanto os ofendidos não o encontraram no quarto. Também a ofendida SS confirmou, já em audiência de julgamento, esta última parte dos factos, tendo referido que lhe pareceu que ambos subiram ao andar de cima antes de abandonarem a residência uma vez que o mais alto e corpulento disse ao mais baixo “anda, vamos dar uma volta lá em cima” sendo que depois terão ido embora e os ofendidos dado pela falta do cofre.
Foi por isso com base nas declarações dos ofendidos que se consideraram provados os factos descritos em 35 e 36 e como não provado o facto descrito em e).
Efectivamente o arguido DD, em primeiro interrogatório e novamente em julgamento, identificou o arguido AA como sendo o co-autor dos crimes em causa, tendo-o identificado como o individuo mais alto, corpulento e agressivo, tal como referido pelos ofendidos. Mas estas declarações na parte em que identificou o co-arguido, só por si, não se nos revelam suficientes nem nos colhem a credibilidade necessária para imputar os ilícitos ao arguido AA.
Isto porque o depoimento da testemunha KK tem de ser completamente desconsiderado dos autos, quer o prestado em sede de inquérito perante Magistrada do MP em 07/03/2022 (fls. 868 e ss.) quer o depoimento prestado em sede de audiência de julgamento. Tal prova consubstancia prova proibida sendo certo que se não o fosse, não nos merecia qualquer credibilidade pelos motivos que passaremos a explanar.
Em sede de inquérito, em 07/03/2022, esta testemunha prestou depoimento perante Magistrada do MP e por isso tal depoimento veio a ser reproduzido em audiência de julgamento, ao abrigo do disposto no artigo 356º nº 3 alíneas a) e b) do Código de Processo Penal, atentas as diversas incongruências e lapsos de memória existentes entre ambos os depoimentos.
Em sede de inquérito esta testemunha referiu que conhecia o arguido DD há cerca de 8 a 10 anos, sendo que ambos frequentavam a casa um do outro e conhece o arguido AA há cerca de dois anos, sendo que também ambos frequentavam a casa um do outro.
Referiu ter conhecimento dos factos investigados porque na altura o arguido DD lhe disse que o AA lhe tinha dito para “irem buscar uns documentos de uns terrenos” e que, em troca, o arguido AA lhe dava uma “gorjeta”. Segundo lhe disse o DD, este arguido era “só para ficar com uns velhotes e não fazer nada”, era essa a tarefa do DD. O DD disse-lhe que o que iam fazer era “em ...”.
No dia em causa de manhã a testemunha referiu que esteve com o AA numa pastelaria em .... Ainda de manhã foi à casa do DD; de tarde, segundo pensa entre as 18h00 e as 19h00, foi novamente a casa do DD e tentou demovê-lo de ir com o AA. Sabe que o AA e o DD foram a ..., ao local em causa, duas vezes, sendo que a primeira vez foi cerca de dois dias antes dos factos. No seu entender, o DD não sabia “para o que ia”.
Referiu que nunca o AA falou consigo sobre o sucedido, nem antes, nem depois de acontecer. Segundo sabe, o DD terá recebido entre € 50,00 a € 60,00.
Os arguidos AA e DD conheceram-se cerca de quinze dias antes da ocorrência dos factos, tendo sido a testemunha quem os apresentou numa ocasião em que a testemunha estava com o arguido DD nas imediações da sua residência e chegou o AA. A testemunha apresentou-os e recorda-se de o DD dizer que precisava de dinheiro para pagar a reparação do seu carro que estava numa oficina. Depois a testemunha ausentou-se e os arguidos foram embora juntos, uma vez que o AA disse que levava o DD a casa.
Nesse período de quinze dias o AA pediu à testemunha que transportasse umas vigas em madeira que tinha comprado próximo da aldeia onde reside (...) para o Porto, para um café ou “snack-bar” que estava a construir. Uma vez que a testemunha não pôde, foi o DD quem, com recurso a uma carrinha da testemunha, fez o transporte.
Acrescentou a testemunha que falou com o DD no dia seguinte aos factos e percebeu que aquele estava com medo. O DD disse-lhe que tinha medo e que nunca mais fazia nada com o AA, tendo a testemunha a convicção de que estava arrependido e de que o arguido estava convicto de que iam apenas buscar uns documentos e ir embora. O DD disse-lhe que o AA tinha sido violento, “tinha dado uns murros” e tinha puxado uma “mulher mais nova” pelos cabelos quando a “rapariga” tentou fugir.
Referiu também a testemunha que temia o comportamento do AA, tendo em conta a violência dos factos evidenciados, sendo que à data da prestação das suas declarações a testemunha estava recluída, receando uma retaliação pelo facto de ser testemunha.
Em audiência de julgamento a testemunha KK registou um depoimento evasivo, titubeante e incongruente em diversos aspectos com o anteriormente prestado.
Referiu que era amigo dos dois arguidos e que depois dos factos o DD lhe contou que tinham feito um roubo com o AA “mas que não tinha roubado nada, foram só papéis”. Disse que não viu o ... nem sabia se estava mesmo metido naquilo, o DD é que lhe tinha dito.
Quando questionado sobre se não sabia antes das coisas acontecerem por ter estado com o DD no dia dos factos (tal como referiu em inquérito) para o tentar demover disse que não sabia, não se lembrava se tinha estado com algum dos arguidos: “Sei lá se o tentei demover! Antes não sabia de nada! Não tenho a certeza se sabia ou não que ia ser feito um assalto! Acho que não sabia!” Mais à frente já dizia: “tentei que o DD não fizesse isso, porque eram velhotes. O DD contou que o combinado era buscar uns papéis, mas eu disse para ele não ir. Ninguém falou em bater. Acho que o DD nem sabia para o que ia!”
Questionado sobre se esteve em ... no dia dos factos, primeiro disse que não depois disse que não sabia. Perguntado sobre se à data dos factos não tinha uma carrinha ... mostrou-se reticente na resposta dizendo primeiro que não. Depois disse que sim mas que era uma carrinha de caixa comprida, ..., não era curta (quando ninguém lhe falou de nenhum modelo de caixa curta).
Questionado sobre se não sabia que as conversas que tinha com o DD estavam a ser gravadas pela Polícia Judiciária e se não seria ele o condutor da carrinha ... no dia dos factos que ficou no exterior da residência dos ofendidos, a testemunha “meteu os pés pelas mãos”. Disse por diversas vezes ao longo do seu depoimento que “foi incomodado pela PJ que lhe diziam que era ele o condutor da carrinha e que o iam pôr como condutor da carrinha”. Sucedeu uma vez antes de ir preso em que o acusaram de ser o condutor e lhe perguntaram se o DD não estava metido naquilo. Depois disso ainda lá foi à PJ talvez mais uma ou duas vezes, sendo que a segunda vez acha que já foi depois de o DD confessar e então disse à PJ que ele lhe tinha contado.
Quanto às escutas das conversas entre presentes nos dias 29/12/2020 e 31/12/2021, disse a testemunha que não sabia que a PJ os estava a escutar, sendo que terá conversado cá fora com o DD da primeira vez e depois foi uma segunda vez “chamado a perguntas”, sendo que da segunda vez falou com o DD no seu carro (da testemunha) mas reiterou que nunca soube que as conversas estavam a ser gravadas. Referiu que numa das vezes que lá foi, o inspector lhe mostrou “uns homicídios (um homem morto), uma imagem ou duas, uma fotografia de um velhote com os olhos pisados” sendo que quando estava preso a PJ foi buscá-lo ao EP e falou com o DD nas instalações da PJ. Disse também que chegou a acompanhar o inspector MM numa diligência externa a uma barragem. Sobre o conteúdo das conversas (escutas), a testemunha mostrou-se evasiva e reticente nas respostas.
Quando questionado sobre se a PJ não lhe tinha prometido nenhuma vantagem para prestar depoimento e actuar junto do DD colaborando com aquela entidade, disse que não, que de vez em quando colabora com a PJ sendo que “vai buscar umas coisas roubadas e entrega-lhes” mas não é delator.
É de salientar que na data da primeira gravação da conversa entre presentes (KK e DD) em 29/12/2020 não consta que a testemunha KK tenha sido ouvida na PJ sendo que apenas o arguido DD foi ali ouvido e constituído arguido e não quis prestar declarações (cfr. fls. 219 e ss.). Consta, contudo, de fls. 3 do apenso I que ambos estiveram nas instalações do DIC. Ora não se percebe o que foi a testemunha fazer a tal local, se não sabia que estava ser escutada.
Cumpre referir que esta testemunha KK foi ouvida pela PJ em 31/12/2021 (cfr. fls. 555 e ss.), data da segunda gravação da conversa entre presentes, tendo sido solicitada ao EP a comparecência desta testemunha (fls. 554). Também DD foi detido pela PJ nessa data e ouvido em primeiro interrogatório judicial, tendo exercido o seu direito ao silêncio (cfr. fls. 569 e ss.). Não obstante, nesse mesmo dia, é elaborado pela PJ o auto de diligência de fls. 614 e ss. com base em declarações do arguido DD prestadas à PJ. Nesse auto consta que, enquanto se deslocava ao Tribunal ..., o arguido DD terá ido com os Srs. Inspectores mostrar o local onde, no dia dos factos teria ido com o AA buscar uma carrinha ... a uma habitação com muros cor de rosa perto de uma espécie de barragem. É evidente que este auto de diligência não tem qualquer valor probatório por se tratarem de conversa informais. Ademais desconhecemos se a testemunha KK acompanhou esta diligência porquanto referiu em audiência que tinha acompanhado o inspector MM numa diligência externa a uma barragem…E não se percebe porque razão não foi então, depois, investigada a referida casa e o seu proprietário sendo que teria sido ali que os arguidos teriam ido buscar a tal carrinha, segundo a versão do DD…
Assim, analisando os depoimentos desta testemunha, a prova constante dos autos e sobretudo o teor das gravações das conversas entre presentes mantidas por esta testemunha e pelo arguido DD juntas aos autos no apenso I, resulta evidente que havia fortes indícios desta testemunha estar envolvida nos factos, nomeadamente por ser, eventualmente, o condutor da carrinha ... que ficou no exterior da residência dos ofendidos. Aliás, em julgamento, esta testemunha referiu por diversas vezes que a PJ insistia que ele seria o condutor e que o queria pôr como condutor…
Ademais, analisando o teor das conversas, resulta claro que a testemunha KK procura claramente convencer o arguido DD a contar à Policia o que se tinha passado e evidencia ter conhecimento do que se passa nos autos muito para além da sua qualidade de testemunha, nomeadamente daquilo que os ofendidos disseram, das diligências que estavam a ser feitas… Abstemo-nos de transcrever aqui o teor dessas gravações por razões de economia processual sendo que uma rápida análise das mesmas permite chegar a estas conclusões.
De resto, é completamente inverosímil que a testemunha KK estivesse a ser escutada sem saber e sem colaborar. Ouvido o inspector MM e RR sobre a forma de colocação das escutas para gravação das conversas entre presentes, ninguém soube explicar concretamente onde tinham sido colocadas as escutas e de que modo, referindo apenas que a testemunha não sabia que estava a ser escutada. E referiu a testemunha RR que, numa das vezes a escuta teria sido colocada na indumentária da testemunha mas não sabia explicar como nem por quem, como é que isso foi feito sem o conhecimento da testemunha e como foi depois recuperada a escuta…
De realçar que a partir do momento em que a Policia Judiciária se apercebe de que há fortes indícios do envolvimento da testemunha KK nos factos, podendo aquele ser o condutor da carrinha, teria então de o constituir arguido e interrogá-lo nessa qualidade e nunca ouvir o mesmo na qualidade de testemunha e sobretudo, aproveitar essa “testemunha” para recolher prova junto do arguido DD sendo que esta testemunha detinha um conhecimento privilegiado dos factos e uma relação de grande proximidade com o arguido DD. E note-se que estes indícios já existiam e eram do conhecimento da PJ muito antes daquela entidade ouvir formalmente o KK como testemunha em 31/12/2021 (cfr. fls. 555 e ss.), porquanto já em data anterior este KK tinha ido à PJ (pelo menos em 29/12/2020) e como aquela referiu, ali foi de imediato “incomodada” porque lhe disseram que era ele o condutor da carrinha.
Além da testemunha dever ser constituída arguido e ouvida nessa qualidade, nunca por nunca podia ser usada como uma espécie de agente encoberto não autorizado para recolher prova, porque atendendo ao conteúdo das gravações entre presentes juntas aos autos no apenso I, resulta claro que foi isso que a PJ fez.
A Lei nº 101/2001 de 25 de Agosto disciplina o regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal. Estabelecem o artigo 1º nº 2 que se consideram acções encobertas aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Polícia Judiciária para prevenção ou repressão dos crimes indicados nesta lei, com ocultação da sua qualidade e identidade. A participação é voluntária. Estas acções se desenvolvidas no âmbito de um inquérito, têm que ser autorizadas pelo MP e validadas pelo Juiz de Instrução (cfr. artigo 3º nº 3).
A inexistência da autorização judicial conduz à proibição da valoração da prova obtida por via da acção encoberta (cfr. sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20/03/2023, Proc. nº 134/18.5JAVRL- O.G1 deste Juízo central Criminal, disponível em www.dgsi.pt).
No caso dos autos resulta claro que a testemunha KK actuou como um agente encoberto junto do arguido DD com o objectivo de recolha de prova transportando consigo as escutas, sabendo muito bem ao que ia. Acontece que nenhum dos procedimentos previstos nesta lei foi cumprido, independentemente da identidade e adequação de quem colaborou na investigação.
Por outro lado, a arranjar alguém para desempenhar este papel de recolha de prova nunca poderia ser o KK! Apesar de a testemunha o ter negado em audiência é evidente que lhe foi prometido um benefício pela PJ para colaborar na recolha de prova junto do arguido DD, sendo esse beneficio a ausência da sua responsabilização criminal enquanto eventual co-autor dos factos. Bem sabendo a PJ que a testemunha tinha estado com os arguidos no dia dos factos, que tinha uma carrinha ... com características semelhantes à dos factos, não investigou sequer a matrícula da dita carrinha da testemunha a fim de averiguar se teria sido aquela.
Em julgamento, quando questionado sobre estas questões, a testemunha Inspector MM manifestou-se evasivo nas respostas e referiu que a testemunha não sabia que estava a ser escutada, que não era colaborador ou delator da PJ, que não sabiam onde tinham sido colocadas as escutas nem como e que “até admitia que haveria uma terceira pessoa neste processo mas em relação ao KK suspeitas fundadas não haveria…”
O depoimento prestado em audiência por esta testemunha é esclarecedor e, sem margem para dúvidas, deveria ter dado azo à sua constituição de arguido – artº 59 nº 1 e 58 nº 2, ambos, do CPP. As testemunhas têm o dever de responder com verdade, excepto quando alegam que das respostas resulta responsabilidade penal. Este tipo de abusos deve ser evitado pelos órgãos de investigação e por maioria de razão não pode ser validado poder judicial! A qualidade de suspeito desencadeia necessariamente a abertura de inquérito. Esta forma de proceder evita a aquisição de prova ilegal.
Estes casos bastante comuns devem ser reprimidos, excepto se beneficiarem de cobertura legal, muito embora não se enquadrem na delação premiada, nem, nos estatutos de agente encoberto, provocador, homem de confiança ou (testemunho) arrependido. Trata-se de uma prova obtida com violação de direitos fundamentais (prova irregular) que uma vez produzida constitui um mecanismo de auto-incriminação, conduta não negociável e com a qual o tribunal não pode contemporizar, excepto no quadro excepcionado pela lei. É nula a prova obtida com promessa de vantagem legalmente inadmissível – artº 126 nº 2, alínea e) do CPP.
A prova produzida com a inquirição da testemunha KK é nula, nos termos dos artigos 118 nº 3 e 126 nº 1, alª e), ambos, do CPP.
Vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 23/12/2019 1231/16.7T9AVR.P1 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/04/2023, proc. nº 182/09.6TAAGH.L1-9, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Veja-se também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/05/2010, Proc. nº 281/08.1JELSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt., segundo o qual: «O tribunal não pode basear a sua convicção exclusivamente no depoimento - não corroborado por qualquer elemento objetivo e contrário às declarações do arguido -, de uma testemunha que esteve na origem de uma ação encoberta levada a cabo pela PJ, com a participação na qual a testemunha visava obter uma atenuação especial da pena que lhe viesse a ser aplicada por um crime de tráfico de 120 kg de cocaína, para além de evitar a sua responsabilização como instigador do crime praticado depois da ação encoberta iniciada [a situação, no essencial, é idêntica à do coarguido a prestar declarações incriminatórias contra o seu coarguido, sem qualquer elemento objectivo que o corrobore]».
De modo que os únicos elementos que poderiam conduzir à identificação de AA como autor dos crimes seriam as declarações do co-arguido DD nesse sentido e eventualmente a transcrição dos SMS e da escuta telefónica relativa à conversação mantida entre os dois arguidos no dia dos factos (certidão extraída do processo nº 134/18.... a fls. 268 e ss. e 795 e ss.).
Coloca-se, nesta sede, o problema do valor probatório das declarações do co-arguido e quanto a esta questão a jurisprudência do STJ tem revelado diferentes acolhimentos do princípio:
- “a prova por declarações de co-arguido, não sendo uma prova proibida, tem um diminuto valor e, por isso, carece de corroboração por outras provas e acarreta para o tribunal um acrescido dever de fundamentação” (STJ 12.06.2008, Rel. Santos Carvalho, www.dgsi.pt)
- “a consideração de que as declarações do arguido se revestem à partida de uma capitis diminutio só pelo facto de ser arguido ofende o princípio da igualdade dos cidadãos (…)”
- “O depoimento incriminatório de co-arguido está sujeito às mesmas regras de outro e qualquer meio de prova, ou seja, aos princípios da investigação, da livre apreciação e do in dúbio pró reo. Assegurado o funcionamento destes e o exercício do contraditório, nos termos preconizados pelo art. 32º da cCRP, nenhum argumento subsiste contra a validade de tal meio de prova” (STJ 03.09.2008, Rel Santos Cabral, www.dgsi.pt).
O Professor Medina Seiça, em O Conhecimento Probatório do coarguido, Coimbra, 1999 afirma que «Na ausência de regra tarifada sobre prova por declaração de co-arguido, a credibilidade deve ser sempre aferida em concreto, à luz do princípio da livre apreciação, mas, com um especial cuidado, que poderá passar por uma procura de corroboração.», adiantando num outro passo que «Por corroboração entendemos algum apoio ou suporte em conteúdos probatórios fora das declarações do co-arguido que, juntamente com elas, permitam concluir pela sua correspondência à verdade. Não se trata de uma exigência de prova da prova por co-arguição mas apenas de algo mais que convença da correcção dessa versão dos factos. A tendencial procura de corroboração não terá de passar necessariamente por prova externa, no sentido de prova exterior a toda a co-arguição. Ou seja, aquilo que pode minar a força probatória da declaração do co-arguido reside numa suspeição. Essa suspeição baseia-se no interesse pessoal que o declarante pode ter no resultado da sua própria declaração: o arguido que incrimina o outro, para se defender (“não fui eu, foi ele”) ou para dividir a sua responsabilidade (“não fui apenas eu, fomos os dois”). Pode ainda ter um interesse geral de pseudo contribuição para a descoberta da verdade, com eventual peso atenuativo na escolha e medida da sua pena.». Conclui, então, no sentido que «Por tudo, revela-se prudente desconfiar, não de toda a co-arguição, como regra – esta regra não existe – mas da declaração de co-arguido que se encontre numa das referidas situações
Refere-se também no no Ac STJ de 12/3/08 in proc. nº 08P694 Rel. Cons. Santos Cabral in www.itij.pt. um co-arguido “pode ser impulsionado por razões aparentemente suspeitas, tal como o anseio de obter um trato policial ou judicial mais favorável, o ânimo de vingança, ódio ou ressentimento ou o interesse em auto-exculpar-se mediante a incriminação do outro acusado. Por isso, para dissipar qualquer dessas suspeitas objectivas, é razoável que o co-arguido transmita algum dado externo que corrobore objectivamente a sua manifestação incriminatória, com o que deixará de ser uma imputação meramente verbal para se converter numa declaração objectivada e superadora de um eventual défice de credibilidade inicial. Não se trata de criar, à partida e em termos abstractos, uma exigência adicional ao depoimento do co-arguido quando este incrimine os restantes, antes de uma questão de fiabilidade A credibilidade do depoimento incriminatório do co-arguido está na razão directa da ausência de motivos de incredibilidade subjectiva, o que, na maioria dos casos, se reconduz à inexistência de motivos espúrios e à existência de uma auto-inculpação”.
Como vem decidindo o Tribunal Constitucional (...) “seguramente que, submetidas a estas exigências de exame crítico e fundamentação acrescidas, as declarações de co-arguido são meio de prova idóneo de um processo penal de uma sociedade democrática. O processo penal destina-se à realização da justiça penal e seria comunitariamente insuportável negar valor probatório a declarações provindas de quem tem com os factos em discussão maior proximidade apenas pela circunstância de ser seu autor um dos arguidos quando essas declarações são emitidas livremente e, num escrutínio particularmente exigente, se conclui não haver razão para duvidar da sua correspondência à realidade”. Cremos, pois, que sendo um meio de prova legal, cuja admissibilidade se inscreve no art. 125.º do CPP, as declarações do co-arguido podem e vem ser valoradas no processo mas a apreciação do seu valor probatório deve suscitar especiais cautelas ao julgador.
Concordamos com o entendimento do Tribunal da Relação de Évora de 14/07/2015, Proc. nº 734/10.1PAPTM.E1, disponível em www.dgsi.pt: «As declarações do coarguido podem ser suficientes para incriminar o outro arguido, desde que sejam credíveis (por inexistir, nas relações entre arguidos, ressentimento, inimizade ou tentativa de exculpação do declarante), sejam verosímeis (havendo corroborações através de factos objetivos), sejam persistentes e idênticas (ao longo do processo), e se apresentem sem ambiguidades ou contradições». No caso dos autos, na primeira sessão da audiência, o arguido DD recusou-se a responder às perguntas feitas pela mandatária do co-arguido, sendo que depois de avisado das consequências dessa recusa na segunda sessão já respondeu a tais questões, alegando estar a ser ameaçado e eventualmente ter sido alvo de tentativa de suborno pelo arguido ... e pela sua mandatária, no sentido de se remeter ao silêncio. Alegou aliás que também o seu advogado estaria envolvido na situação e lhe propôs o recebimento de uma quantia para não responder às questões feitas pela mandatária do co-arguido. O defensor do arguido DD negou esse facto e continuou a representar o co-arguido que depois disso não pediu a nomeação de outro defensor.
De salientar que as declarações do arguido DD prestadas em sede de inquérito e depois em julgamento são sempre no sentido de se auto-desculpar e desresponsabilizar totalmente dos factos, tendo referido ao Tribunal que não sabia minimamente para o que ia, só lhe foi dito que iam buscar uns papéis de um terreno, não sabia que era um assalto… Quanto ao dinheiro e aos objectos disse que viu realmente o ... a trazer algo nos bolsos quando vinha do andar de cima, pois era visível o volume, desconhecendo o arguido o que trazia e também não lhe perguntou. Depois de saírem da residência, referiu que entraram na tal carrinha ... que não sabe a matricula nem quem a conduzia que os levou até junto de uma barragem e na dita barragem o arguido permaneceu cerca de 15 / 20 minutos sozinho. Voltaram depois o arguido AA e o terceiro indivíduo na mesma carrinha ..., e aquele entregou-lhe 60€ pelo “trabalho”. Dirigiram-se depois à zona onde havia estacionado o seu carro, local onde o deixaram. Nessa altura o AA disse-lhe “para se manter calado, aquilo ficava por ali, para não haver consequências.
Ora esta versão do arguido DD de que quase que foi obrigado a ir para o assalto com o AA, que não sabia minimamente para o que ia, que tinha muito medo aso ... e que correu todos estes riscos simplesmente para receber € 60,00 como se um de um qualquer trabalho se tratasse, não colhe minimamente!
Se é verdade e resulta do depoimento dos ofendidos que o individuo mais baixo não os agrediu e se limitou a “guardá-los” sendo o sujeito mais alto e musculado o que mandava e o que agredia, não pode ser verdade que o arguido DD estava ali sem saber para o que ia e depois no fim não cuidou de colher algum provento razoável da situação.
Não é verosímil que o arguido DD não soubesse que ia fazer um assalto pois que se assim fosse quando o arguido ... à entrada lhe entregou o gorro aquele logo via para o que ia. Se fosse simplesmente para ir buscar uns papeis, o ... não precisava sequer do DD e também não seria necessário ir de luvas e cara tapada. Mas o arguido DD até já tinha umas luvas suas, segundo referiu, não necessitando das luvas que o ... lhe forneceu…
Note-se que, em inquérito, o arguido referiu que, antes do assalto andou cerca de uma hora e meia às voltas por ... no carro com o ... e depois de recolherem a carrinha ... e o terceiro indivíduo na tal casa amarela, ainda andaram os três às voltas na cidade, vindo depois a deslocar-se à residência dos ofendidos, a hora que não recorda. Não é credível que o DD, ao menos nesse período, não tivesse apurado a identidade do condutor da carrinha, a sua matrícula, o seu nome, não tivessem combinado minimamente o que iam fazer a seguir…
Nem faz qualquer sentido que depois dos factos o arguido não queira saber o que foi roubado pelo ..., não queira partilhar dos objectos e se limite a receber uns míseros € 60,00 pelo serviço…
Note-se que em sede de primeiro interrogatório o arguido DD referiu que cerca de uma semana antes dos factos terem ocorrido, o arguido AA contactou-o para o número de telemóvel que à data usava e perguntou se lhe fazia um trabalho que era “ir a casa de uma pessoa buscar uns documentos relativos a uma propriedade que ele tinha comprado por 95.000€ e não lhe tinham dado os documentos”, o que o depoente aceitou, mediante o pagamento de um dia de trabalho (€ 30,00). E que no dia em causa se encontraram os dois e o KK em ....
De modo que pelo menos há duas semanas que já estava combinado irem buscar os papéis, não tendo sido algo de imediato que tenha apanhado o arguido DD de surpresa.
A preocupação do arguido DD em isentar-se de responsabilidade e atirar todas as culpas para o co-arguido AA é evidente. Tanto mais que, em inquérito, disse que a sua arma era falsa, era um isqueiro, o que reiterou em julgamento, ao passo que a do AA já lhe parecia diferente. Não faz nenhum sentido que um dos arguidos tivesse consigo duas armas para fazer um assalto e só uma delas fosse verdadeira.
Ademais o seu depoimento quanto á indicação de AA como co-autor dos autos é claramente influenciado pela testemunha KK, a quem o DD tenta proteger a todo o custo. Basta atentar na transcrição das conversas entre ambos do apenso I:
Fls. 6
“KK: Enquanto ele ficou na carrinha, o tal que a gente falou…;
Fls. 9:
KK: Chegas lá ao Procurador não escondes nada.
DD: eu vou dizer a verdade.
KK: Vais ter que dizer que a tua parte é muito meiguinho.
DD: Ele mostrou-me, as senhoras estão a defender-te…eu vou assumir o que fiz, eu não fiz mal a ninguém
KK: o maior problema é tu dizeres que é o outro, percebes, vais ter que dizer o nome dele, AA”.
Fls. 10:
KK: o terceiro gajo pá, o terceiro gajo eu sei quem é e tu também sabes quem é
P: Não sei
S: Ele não te mostrou a fotografia de um gajo magrinho alto
P: Não é ele
S: Não é ele é o irmão dele…é o irmão dele, só que eu disse, eu não sei nada disto, eu nunca fiz nada, mas o terceiro gajo és tu, não posso ser eu
(…)
Fls. 11:
S: Eu sei pá mas é assim, olha eu, o que posso fazer por ti eu faço, ó pá, vou-lhe pedir para ver se não vais preso.
P: Ó pá (..) ele jurou-me que vai pedir por tudo para eu ficar na rua e se eu precisar da protecção deles, tenho protecção deles.
S: Vou-te dizer uma coisa, digo aqui e digo a toda a gente, o que ele disser é sagrado
(…)
Fls. 12:
S: Eu podia safar-se desta sabias, sabes como é que eu me podia safar, chegava ali, dizia tudo que sei e metia-me na rua, mas tinha que te foder a ti.
P: pois.
S: E qual foi o nosso combinado, se tiver que falar falo eu, foi ou não foi.
(…)
S: E eu guardei o teu coiso.
P: É como eu no teu julgamento, eles andam em cima de mim como cães, GNR, PSP eu ando sempre fugido.
Fls. 14
S: O problema aqui é tu dizeres que é o outro, percebes, vais ter que dizer o nome dele, o AA
P: AA
De salientar que os ofendidos referiram que, no final, ambos os arguidos subiram ao andar de cima e levaram consigo o cofre com o dinheiro e os objectos contrariamente ao referido pelo arguido DD.
É verdade que existe também a transcrição dos SMS e da escuta telefónica relativa à conversação mantida entre os dois arguidos no dia dos factos (certidão extraída do processo nº 134/18.... a fls. 268 e ss. e 795 e ss.) mas esta, só por si e perante toda a envolvência das declarações do DD não é suficiente para corroborar e validar tais declarações quanto à identidade de AA como co-autor dos factos.
Dos SMS de fls. 275 e 276 resulta tão só que ambos se encontraram em ... por volta das 18h00m, o que aliás não é negado pelo arguido AA.
Da transcrição da conversa mantida pelas 13h59m parece que o DD pretende ir buscar uma ovelha para a sogra e a dada altura o AA diz que a ovelha é de um velhote. O DD diz que quer coisa boa porque não é para ele.
Estariam os arguidos a falar em código sobre o assalto que depois veio a ser feito aos ofendidos, sendo o II o tal velhote?! Mas note-se que o DD parecia saber do que estava a falar e pretender ir buscar algo em concreto para si, que queria coisa boa… não é compatível com a sua versão de que não sabia para o que ia, de que ia só buscar uns papéis…
Por outro lado, como se disse, em sede de primeiro interrogatório o arguido DD referiu que cerca de uma semana antes de os factos terem ocorrido, o arguido AA contactou-o para o número de telemóvel que à data usava e perguntou se lhe fazia um trabalho que era “ir a casa de uma pessoa buscar uns documentos relativos a uma propriedade que ele tinha comprado por 95.000€ e não lhe tinham dado os documentos”, o que o depoente aceitou, mediante o pagamento de um dia de trabalho (€ 30,00).
Ora não se percebe, em primeiro lugar, porque razão a transcrição desta conversa não aparece também, uma vez que nessa altura o AA já estaria igualmente a ser escutado no âmbito do processo nº 134/18.... e se, uma semana antes falou com o DD, tal conversação teria de ter sido gravada. Em segundo lugar, não se percebe porque uma semana antes falaram ambos abertamente da situação sem qualquer código e no dia falam em ovelhas e tirar a pele a ovelhas…
De resto o arguido AA prestou declarações e contou que no dia dos factos esteve em ... com o DD a fim de este lhe entregar umas garrafas de bebida furtadas que transaccionaram assim como com um individuo numa carrinha ... cujo condutor lhe pareceu ser o KK. Depois disso não sabe o que aqueles terão feito.
De resto, em julgamento este Tribunal ainda chamou a ofendida SS e fez uma diligência de prova, ao abrigo do disposto no artigo 125º do Código de Processo Penal, tendo colocado os arguidos a ler, perante a ofendida, dois parágrafos das acusações pública e particular em voz alta assim como reproduziu parte das declarações prestadas na anterior sessão pela testemunha KK, a fim de verificar se a ofendida reconhecia alguma daquelas vozes como sendo algum dos autores do crime, mas a ofendida não as reconheceu.
Note-se que esta diligência teve a concordância das defesas dos dois arguidos, tendo inclusive o arguido AA colaborado e referido a expressão, cabrão em espanhol em voz alta perante a ofendida, a pedido do Magistrado do MP a ver se a mesma o reconhecia.
Apenas quando se virou para trás e viu os dois arguidos um ao lado do outro, a ofendida disse que “deveria ter sido” o AA o sujeito mais alto e musculoso, mas apenas pelo simples facto de ser mais encorpado/musculado que o do lado (o DD) mas acabou por assumir que não tinha a certeza e não os reconhecia assim com não reconhecia de todo, as suas vozes. De salientar que, colocados lado a lado, em audiência, o ... é apenas ligeiramente mais alto que o DD.
No local, não foram recolhidos quaisquer indícios que apontem no sentido da presença do arguido AA (cfr. relatório de exame e recolhe de vestígios de fls. 86 e ss.)
Claro que nenhuma relevância probatória assumem os relatórios da Polícia Judiciária indicadas como meios de prova na acusação, os quais não são meios de prova mas tão só meras conclusões e relatos das diligências efectuadas, assim como não tem qualquer relevo a certidão extraída do inquérito n.º 77/19.... de folhas 358/369 e folhas 454/466, o qual configura, simplesmente, um outro processo de inquérito que corre contra o arguido AA que nada tem a ver com este.

Citando novamente o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/12/2019 1231/16.7T9AVR.P1:
«I – Para que os indícios fundamentem uma condenação devem estar devidamente comprovados, por prova directa, devem revestir um elevado grau de gravidade, devem ser precisos, independentes e variados, concordantes entre si e conduzirem a inferências convergentes, não podendo ocorrer contra -indícios que neutralizem ou fragilizem aqueles.
II - São regras base quanto à prova:
a) A actividade probatória incumbe às partes processuais e ex officio ao acusador público, sem prejuízo das acusações produzidas pelo assistente e particular.
b) O fim desenvolvido pela prova destina-se a um processo de convencimento do julgador - o exercício do princípio da livre apreciação da prova.
c) O sistema probatório rege-se pelo princípio da presunção de inocência.
d) Os actos de prova desenvolvem-se segundo os princípios do contraditório, oralidade e imediação, salvo os casos de prova antecipada e preconstituída.
e) A prova obtida tem de respeitar o princípio da legalidade. Só são admitidas provas lícitas.
III - Os graus de conhecimento do juiz passam pela suspeita - crença ou suposição formada a partir de conjecturas, similar às noções de receio e desconfiança. Probabilidade - como possibilidade verosímil e fundada em que algo possa suceder. A dúvida – posição intermédia e vacilante, a qual coloca o magistrado perante a impossibilidade de se convencer sobre a existência ou inexistência de um facto. E por fim a certeza - grau de conhecimento fora de toda a dúvida razoável; convicção de que se conhece a verdade».
O arguido continua a beneficiar da presunção de inocência até à sua condenação transitada em julgado, estando esta consagrada no art. 32º, nº2 da CRP e sendo um dos direitos fundamentais reconhecido internacionalmente. Recai sempre sobre o acusador o encargo de destruir essa presunção de inocência. O in dubio pro reo impõe a valoração do non liqued, em questão de prova, sempre no sentido favorável ao arguido.
Assim perante a prova que se produziu e a forme como esta foi obtida, fica o julgador na dúvida sobre se o individuo mais alto e encorpado era, afinal, o AA ou não.
Ora perante esta quadro circunstancial e a prova que se produziu, ficamos na dúvida sobre a identidade do individuo mais alto e musculado que referem os ofendidos (se era o ..., a testemunha KK ou algum familiar deste), quem era afinal o condutor da carrinha (se seria a testemunha KK ou não), estando agora o DD na tentativa de os proteger e para isso incriminar o AA.
É verdade que a versão do arguido AA é muito conveniente e algo estranha e a escuta é também por si, muito estranha. Até admitimos como possível que o arguido AA tenha estado envolvido nos factos mas tal não é possível aferir com a certeza necessária para uma condenação e sobretudo não é possível aferir qual a sua concreta intervenção nos mesmos. O co-arguido DD só nos trouxe meias verdades porque tem, claramente, a intenção de proteger alguém. E já é velha a expressão que “meias verdades são mentiras inteiras”.
E na dúvida consideramos não provado que o individuo em causa fosse o arguido AA (cfr. factos não provados descritos em a) a c).
Paralelamente, atingiu-se a convicção de que o arguido DD conhecia as proibições e actuou de forma dolosa, nos termos melhor descritos em 42 a 46.
O elemento subjectivo descrito é por si insusceptível de prova directa, dada a sua natureza, mas sempre o mesmo se extrairia dos factos objectivos provados, que, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal matéria.
Com efeito, e como se escreve na Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/02/1983 (in B.M.J., nº 324, pág. 620), “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência”. Na maioria dos casos, o dolo, o conhecimento do seu sentido ou significação, acaba por ser dado por provado por intuição e convicção do tribunal, sem que haja testemunhas, e nem as há, disso mesmo. O dolo, em função da sua natureza, e na generalidade dos casos, surge provado como circunstância co-natural dos factos que constituem os elementos objectivos do crime.
É evidente que não colheu a versão do arguido DD de que não sabia que ia fazer um assalto e de que ia apenas recolher uns papéis sem qualquer violência, limitando-se a receber € 60,00 referente a um dia de trabalho. Essa versão é completamente inverosímil e contrária às regras da experiência comum e ao próprio modo como ocorreram os factos e os momentos que os antecederam, pelas razões já supra abundantemente explanadas e nem o arguido seria tão ingénuo a esse ponto, até porque basta atentar no seu certificado criminal para se verificar que não seria a primeira vez que o arguido se estava a iniciar no mundo do crime.
Relativamente aos factos descritos em 47 a 57 valorou o Tribunal o depoimento prestado pelos ofendidos em sede de ... devidamente conjugado com o depoimento das testemunhas NN, inspector da PJ o qual relatou o estado frágil e debilitado do assistente logo após os factos e OO, filho dos ofendidos que descreveu os danos causados naqueles e em particular no seu pai. Também a ofendida HH foi novamente ouvida em audiência e reiterou as sequelas existentes no assistente, que ainda hoje permanecem.
Para prova do facto descrito em 58 valorou o Tribunal o teor das facturas juntas aos autos a fls. 973 a 975.
Para prova dos factos relativos às condições sociais e económicas dos arguidos, à sua situação familiar e demais factos, descritos em 59 a 94 teve-se em atenção o teor dos relatórios da DGRSP junto aos autos com as refªs ...64 e ...45.
No que se refere aos antecedentes criminais dos arguidos ou ausência deles referida em 95 e 96, o Tribunal considerou os certificados de registo criminal, constantes dos autos com as refªs ...70 e ...16.
No que se refere aos factos não provados, efectivamente, cremos que não foi feita em julgamento, prova cabal e suficiente dos mesmos.
A convicção do Tribunal quanto à não prova dos descritos em a) a c) e f) já supra abundantemente foi explicitada.
Relativamente ao facto descrito em d) nenhuma prova se fez sobre o referido valor dos objectos.
Quanto aos factos descrito em e) já se referiu que esta versão trazida aos autos pelo arguido DD não nos mereceu qualquer credibilidade e foi, aliás, contrariada pelas declarações dos ofendidos em ..., antes se tendo provado os factos descritos em 35 e 36.”.
*
3. Posto isto, passemos, então, à análise das concretas questões supra enunciadas, suscitadas pelos recorrentes nos respectivos recursos, começando por aquela(s) cuja eventual procedência pode acarretar se considere prejudicada a apreciação das demais, como é o caso da não utilização da informação constante de fls. 305, 308, 309 e apenso II, que o tribunal a quo reputou de prova proibida, face ao teor do acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, de 19/04/2022.

Vejamos, pois.
Como emana dos autos, constata-se que, no âmbito do inquérito, e na sequência de promoção do Ministério Público, que consta de fls. 195/199, pelo despacho de 17/12/2020, exarado a fls. 201/206, ao abrigo das disposições conjugadas dos Artºs. 187º, nºs 1, als. a) e c), 4, als. a) e b), 188º, 189º e 269º, nº 1, al. e), do C.P.Penal, foi autorizada e determinada a intercepção telefónica do número ...00, da operadora “...”, utilizado pelo então suspeito DD, bem como o fornecimento de facturação detalhada, registo de trace-back e a localização celular das comunicações telefónicas, entre a 00h00 do dia 20/04/2020 e 23h59 de 30 de abril de 2020, de e para o cartão de acesso aos dados móveis do número de telemóvel ...13, tendo também sido oficiado à operadora de telecomunicações ... para juntar aos autos listagem de chamadas efectuadas e recebidas, bem como, a localização celular dos números ...98 e ...77, entre a 00h00 do dia 20/04/2020 e 23h59 de 30 de abril de 2020, que esteve em uso pelo então suspeito AA.
Mais se constata que, posteriormente, em face do ofício da ..., de 19/01/2021, constante de fls. 248, segundo o qual os dados solicitados tinham uma antiguidade superior a 6 meses, e que a sua transmissão só seria possível mediante ordem judicial, nos termos da Lei nº 32/2008, pelo despacho de 28/01/2021, exarado a fls. 252/253, foi determinado e reiterado que os elementos em causa fossem fornecidos, “tendo em conta os fundamentos já constantes do despacho de 17.12.2020 e por se encontrarem preenchidos os pressupostos dos artigos 3º e 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho (...), já que se investigava a prática de crimes de roubo e de sequestro, que se integram no conceito de crimes graves.
E que, nessa sequência, foram juntos aos autos diversos dados de tráfego, nos termos que constam de fls. 305, 308, 309 e Apenso III.
Porém, como se viu, o tribunal a quo entendeu que tal prova não pode ser valorada, constituindo prova proibida, em face do teor do acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, de 19/04/2022.
Tese que o recorrente Ministério Público refuta no seu recurso, por considerar, em síntese, que o citado aresto do Tribunal Constitucional não tem qualquer efeito sobre o caso concreto, trazendo à liça em abono da sua tese, entre outros, o recente acórdão deste TRG de 02/05/2023, proferido no âmbito do Proc. nº 12/23.6 PBGMR-A.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Armando Azevedo, disponível in www.dgsi.pt.
Ora, salvaguardando o devido respeito pela posição do tribunal a quo, cremos que a razão está do lado do recorrente Ministério Público, afigurando-se-nos terem aqui inteira aplicação os fundamentos que sobre esta matéria foram explanados por este TREG no citado aresto de 02/05/2023, que pela sua pertinência se transcrevem:
“A posição assumida pelo Exmo. Senhor Juiz tem de facto apoio de parte da jurisprudência (...), o que é evidenciador das divergências que o tema tem gerado na prática judiciária. 
Com efeito, como se salientou no Ac. desta Relação de 05.07.2021, processo 3225/18.9T9GMR.G1, disponível em www.dgsi.pt  a propósito da conjugação dos artigos 187º a 189 do CPP, da Lei nº 32/2008, de 17.07 e da Lei nº 109/209, de 15.09,  “Estes três diplomas, porque aparentemente se sobrepõem, excluem, convergem, divergem, tornam difícil a tarefa de interpretação, dada a duplicação ou triplicação de regimes, geradores de um caos normativo - usando a expressão de Costa Andrade ( in RLJ nº 3950- Bruscamente no Verão passado, 279) – a reclamar que se positive no CPP todo o sistema referente aos meios ocultos de investigação, nos quais se deverão incluir as intromissões nas telecomunicações.”.
Contudo, não podemos concordar com o fundamento aduzido no despacho recorrido, desde logo, porque a Lei nº 32/2008, de 17/07 e o regime decorrente do disposto nos artigos 187º a 189º do CPP situam-se em planos distintos.
Efetivamente, a Lei nº 32/2008, de 17.07, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, de 15 de março, que altera a Diretiva n.º 2002/58/CE, de 12 de Junho, regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização de comunicações eletrónicas relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes.
Porém, o propósito da Diretiva 2006/24/CE foi o de harmonizar o direito interno dos Estados Membros  relativo às obrigações dos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas ou das redes públicas de comunicações assegurarem a conservação de dados de tráfego e de localização, mas não de conteúdo, bem como de dados conexos, necessários para identificar o assinante ou o utilizador dos serviços de comunicações eletrónicas, para determinar a data, a hora, a duração e o tipo de uma comunicação, bem como para localizar o equipamento de comunicação móvel durante um determinado período, de 6 meses a dois anos (artigo 6.º).
Repare-se que o fim último tido em vista pela diretiva foi o de melhorar a investigação e conferir maior eficácia ao combate aos “crimes graves” no espaço da União europeia, e nunca o de restringir o acesso à prova digital conservada pelas autoridades nacionais de cada Estado (vide nomeadamente os memorandos (11), (21) e (25). Isto porque a Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 12.06 se revelava insuficiente para o efeito.
Acresce que, importa distinguir a atividade de conservação de dados de tráfego e de localização da atividade de acesso a esses dados, as quais constituem ingerências distintas em matéria de direitos fundamentais, como é o caso do direito à privacidade.
Assim, relativamente à Diretiva 2006/24/CE, dado o seu âmbito objetivo  e que tinha como destinatários os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas, conforme se concluiu no Ac. STJ de  13.04.2023, processo 4778/11.8JFLSB-B.S1, disponível em www.dgsi.pt “Sendo a conservação dos dados para efeitos de investigação criminal, relativamente a crimes graves, tal como definidos pela lei nacional, admitida pelo artigo 15.º,  n.º 1, da Diretiva 2002/58/CE, nas condições que o TJUE explicita nos acórdãos acima citados, a Diretiva 2006/24/CE, visou (face às grandes divergências de leis nacionais que criavam sérias dificuldades práticas e de funcionamento do mercado interno) estabelecer normas de harmonização, no espaço da União Europeia, de conservação de dados de tráfego e dados de localização, bem como dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, que são normas de tratamento dos dados pelos fornecedores de comunicações para determinada finalidade, mas não regulou, nem podia regular, a atividade das autoridades públicas (órgãos de polícia criminal, Ministério Público, juízes e tribunais) com competência para assegurar a realização daquela finalidade”, sublinhado nosso.
O regime de acesso a dados pessoais pelas autoridades competentes, para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais encontra-se previsto na Lei n.º 59/2019, de 08.08 (Lei de Proteção de Dados Pessoais), que transpôs a Diretiva (UE) 2016/680.
O acesso, no âmbito do processo penal, a dados conservados na posse de fornecedores de serviços de comunicações encontra-se previsto nos artigos 187.º a 189.º e 269.º, n.º 1, al. e), do CPP e na Lei n° 109/2009, de 15 de setembro.
Nesta conformidade, por se situarem em planos distintos, a Lei nº 32/2008, de 17.07, não revogou, nem podia ter revogado os artigos 187º a 189 do CPP. Neste sentido vide, nomeadamente, o citado Ac. STJ de 13.04.2023, no qual se refere que “…a Lei n.º 32/2008 não revogou nem estabeleceu normas de natureza penal ou processual penal, de que as autoridades judiciárias se devam socorrer para acesso e aquisição da prova ou para assegurar a sua validade no processo; tais atividades dispõem de regime próprio definido pelas leis penais e processuais penais nacionais e, no que se refere aos domínios de competência da União Europeia (UE) no espaço de liberdade, segurança e justiça – que constitui competência repartida entre a UE e os Estados-Membros (artigo 5.º, n.º 2, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – TFUE) –, pelo artigo 82.º do TFUE e pela citada Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, transposta pela Lei n.º 59/2019, de 8 de agosto.”.
Mas a verdade é que, a nosso ver, o legislador na Lei nº 32/2008, de 17.07, excedeu-se na transposição da Diretiva 2006/24/CE (...), legislando não apenas sobre a conservação e a transmissão de dados, mas também sobre o acesso a esses dados para prova em processo penal (cfr. artigo 9º, declarado inconstitucional pelo Ac. TC nº 268/2022). Ora, tal alteração deveria ter sido efetuada no local próprio, ou seja, no Código de Processo Penal, o que não sucedeu, mantendo-se inalterada a redação dos artigos 187º, nº 1 e 189º, nº 2. Em resultado disso passou a existir um catálogo de crimes para cuja prova desses dados poderiam ser utilizados, ou seja, os crimes graves previstos no artigo 2º, nº 1 al. g), que é diferente do catálogo previsto para as interceções do nº 1 do artigo 187º do CPP.
Em nosso entender, o artigo 189º, nº 2 do CPP não foi revogado pela Lei nº 32/2008, de 17.07, constituindo, pois, a norma fundamento para acesso aos dados tráfego e de localização conservados para prova dos crimes previsto no nº 1 do artigo 187º do CPP que não integram o conceito de crimes graves do artigo 2º, nº 1 al. g) da referida lei.
Mas ainda que assim não fosse, atualmente face à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 9º da Lei nº 323/2008, de 17.07, por força do Ac. TC nº 268/2022, tendo em conta o preceituado no artigo 282º da CRP, o nº 2 do artigo 189 do CPP sempre seria de considerar-se repristinado. O que quer dizer que atualmente este preceito legal sempre constituiria a única norma que permite o acesso a dados de tráfego e de localização conservados relativamente aos crimes indicados no nº 1 do artigo 187º do CPP.
Outrossim, importa realçar que o nº 2 do artigo 189º do CPP que, segundo o seu texto, diz respeito a “dados sobre localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações”, não se reporta à interceção e gravação desses dados em tempo real, pois que estas já se encontram previstas nos artigos 187º e 188º do CPP e versam sobre dados de conteúdo, de tráfego e de localização. Ora, o nº 2 do artigo 189º do CPP inclui na sua previsão apenas o acesso a dados conservados ou armazenados (dados de tráfego e de localização)
(...)
Como refere o Ac. STJ de 08.11.2022, processo 107/13.4P6PRT-D.S1, disponível em www.dgsi.pt “…o art. 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal permite aceder a dados de tráfego, neste caso, dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações e, por maioria de razão [in eo quod plus est, semper inest et minus (no que é mais está sempre compreendido o que é menos)], a dados de base relacionados, neste caso, com a identificação dos titulares dos cartões de telemóvel [nos quais, como salienta o acórdão do TC 268/2022, «o grau de agressão ao direito à intimidade da vida privada (…) é menos gravoso do que os demais metadados elencados no artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho (pois apenas identificam o utilizador do meio de comunicação em causa)»], aos quais o MP sempre poderia aceder por via do disposto no art. 14.º, n.os 1 e 4, al. b), da Lei 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime), quando se investiguem os crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º …“ .
Acresce dizer que a Lei do Cibercrime (Lei 109/2009, de 15.09) transpôs para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro nº 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação e adapta o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa. A Decisão-Quadro tinha por objetivo reforçar a cooperação entre autoridades judiciárias e outras autoridades competentes, nomeadamente as autoridades policiais e outros serviços especializados responsáveis pela aplicação da lei nos Estados-Membros, mediante uma aproximação das suas disposições de direito penal em matéria dos ataques contra os sistemas de informação. Tal decorre do entendimento de que existiam consideráveis lacunas e diferenças entre as legislações dos Estados-Membros, as quais podiam ser suscetíveis de entravar a luta contra a criminalidade organizada e o terrorismo e dificultar uma cooperação policial e judiciária eficaz no âmbito de ataques contra os sistemas de informação, os quais reclamam sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas.
A referida Lei estabelece disposições penais e processuais penais no domínio do cibercrime e bem assim disposições relativas à cooperação internacional em matéria penal no mesmo domínio. Mas daí não podemos concluir que, em consequência da sua entrada em vigor, ficou afastada a aplicação dos artigos 187º e ss do CPP, sendo que ela própria até admite, no seu artigo 18º, a sua aplicação.
Assim, o regime de acesso a dados conservados pelas autoridades com vista à investigação de determinados crimes, para além dos artigos 187º a 189º do CPP, encontra-se consagrado na Lei do Cibercrime, o qual prevê, nomeadamente, disposições relativas à recolha de prova em suporte eletrónico, cfr. artigos 1º, 11º, 12º, 13º e 14º deste diploma legal, devendo ainda ter-se em consideração o disposto na Lei nº 59/2019, de 08.08 (Lei de Proteção de Dados Pessoais).
Nos termos expostos, cai por terra o primeiro dos fundamentos aduzidos no despacho recorrido e, consequentemente, também o segundo fundamento invocado na referida decisão, que reside no facto de em consequência da declaração de inconstitucionalidade do artigo 4º, conjugado com o artigo 6º e do artigo 9º da Lei nº 32/22008, pelo Ac. TC nº 268/2022, de 19.04, se caiu num vazio legislativo por ter deixado de existir lei habilitante ( a indicada Lei nº 32/2008, de 17.07).
O acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022 manteve intocado o referido regime acesso a dados conservados pelas autoridades com vista à investigação de determinados crimes, designadamente os referidos artigos 187º a 189º do CPP e a aludida Lei nº 109/209 (Lei do Cibercrime). Neste sentido, para além dos citados acórdãos do STJ, vide Ac. RL 22.02.2023, processo 495/22.1JAFUN-A.L1-5; e Ac. RP de 29.03.2023, processo 47/22.6PEPRT-Z.P1, disponíveis em www.dgsi.pt
Ou seja, a declaração de inconstitucionalidade não se reporta às normas relativas ao acesso aos metadados de comunicações pelas autoridades com competência para a investigação, deteção e repressão criminal, mas antes às normas relativas à conservação dos metadados de comunicações  para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves (os indicados na Lei 32/2008 de 17.07) por parte das autoridades competentes, num âmbito delimitado da referida Lei.
Com efeito, quanto à declaração de inconstitucionalidade do Ac. do TC nº 268/2022, ela reporta-se quanto ao artigo 9º da Lei nº 32/2008, de 17.07, apenas à parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros. E o fundamento da declaração de inconstitucionalidade que incidiu sobre os artigos 4º e 6º da Lei 32/2008, de 17.07 residiu no facto de a lei não prescrever a obrigatoriedade de os dados serem conservados no território da União Europeia e de impor a universalidade da conservação (todos os utilizadores e assinantes).
Neste sentido vide a jurisprudência do STJ, v.g., o Ac. STJ de 10.11.2022, processo 35/15.9PESTB-Z.S2, disponível em www.dgsi.pt segundo a qual “as normas declaradas inconstitucionais (pelo Ac. TC nº 268/2022) não têm natureza substantiva, isto é, não podem ser consideradas normas de natureza penal, nem normas de natureza processual penal e, muito menos de cariz material”.
Importa notar que a questão do âmbito da aludida declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não é de somenos importância, porquanto, as normas relativas ao acesso aos metadados representam uma intromissão em mais elevado grau na vida privada e no sigilo das comunicações do que as normas relativas à sua conservação. 
Mas, declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da Lei nº 32/2008, com o sentido que ficou assinalado, e tendo anteriormente sido declarada invalidade a Diretiva 2006/24/CE (Acórdão de 08.04.2014, Digital Rights Ireland) subiste a Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 12.06, transposta pela Lei nº 41/2004, de 18.08, a qual prevê que os Estados-membros possam adotar medidas legislativas e enumera as condições de restrição da confidencialidade e de proibição do armazenamento de dados de tráfego e de localização, mas não se destina a atividades do Estado em matéria de direito penal.
A Lei 41/2004, de 18.08, grosso modo, impõe aos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas a obrigação de conservarem os dados de tráfegos e de localização para efeitos de faturação pelo prazo de 6 meses contados de cada  comunicação. Não se destinando, segundo esta lei, os dados conservados para efeitos de prova em processo penal, a questão que se coloca é a de saber se eles podem ser utilizados para esse efeito.
Ora, segundo o despacho recorrido, o regime da Lei 32/2008, de 17.07, nos seus artigos 3º e 9º é especial (prevê a conservação de dados apenas para crimes graves), pelo que em consequência do Ac. TC nº 268/2022, tendo caído o regime especial, não pode ficar em vigor o regime geral.
Contudo, temos outro entendimento, pelo que não nos revemos na posição daqueles (...) que, na sequência do Ac. TC nº 268/2022, defendem a impossibilidade de os dados conservados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18.08, serem usados para efeitos de prova em processo penal (...).
Efetivamente, desde logo porque o Tribunal Constitucional, no referido acórdão, não se pronunciou especificamente sobre esta questão (...).
Por outro lado, o próprio Tribunal Constitucional já pronunciou em sentido favorável noutros casos em que foram utilizadas bases de dados informáticas existentes para fins diferentes da prova em processo penal. Assim, vide v.g. o Ac. TC 213/2018. 
Acresce que o uso dos dados da Lei nº 41/2004, de 18.08 para prova em processo penal não contraria o direito da União Europeia, sendo que a jurisprudência do TJUE até admite tal possibilidade, como sucedeu no Ac. (Grande Secção) de 02.10.2018, processo C-270/16, a propósito da interpretação do artigo 15º, nº 1 da Diretiva 202/58/CE, transposta da Lei 41/2004, de 18.08.
Importa também salientar que a Lei nº 58/2019 (Lei de proteção de dados pessoais) no seu artigo 23º, nº 2 não impede a transmissão de dados pessoais entre entidades públicas para finalidades diversas das determinadas na recolha.
Não menos relevante, regista-se que própria Lei 41/2004, de 18.08 prevê a possibilidade de os dados serem usados para prova em processo penal e não apenas no âmbito do processo civil, cfr. nº 7 do artigo 6º. Nesse sentido, vide o citado Ac. TC nº 486/2009.
  Outrossim, os dados de tráfego e de localização conservados constituem prova documental e, como tal podem ser obtidos pelos meios de obtenção de prova que a lei processual penal prevê, por ex. uma busca.
Para que uma prova seja admissível em processo penal não é necessário que exista uma norma expressa que a preveja expressamente, pois que de acordo com o princípio da legalidade da prova, previsto no artigo 125º do CPP “São admissíveis as provas que não forem proibidas”.
A Lei nº 41/2004, de 18.08 não prevê a notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, porque constitui uma lei de conservação de dados, não estando nela previsto o acesso a esses dados. Ora, o Tribunal Constitucional apontou a falta de notificação apenas quanto ao artigo 9º da Lei 32/2009, de 17.07, que constituía uma norma de acesso a dados, pelo que a questão não se coloca relativamente à Lei nº 41/2004.
Por último, quanto à omissão de previsão legal obrigando à conservação dos dados em território da União Europeia referida pelo no Ac. TC 268/2022 relativamente à Lei nº 38/2022, de 17.07, a Lei nº 41/2004, de 18.08 nada diz. Porém, a questão da territorialidade e da transferência na e para a União Europeia encontra-se prevista nos artigos 44º a 50 da Lei nº 59/2019, que é aplicável à base de dados da Lei nº  41/2004, de 18.08.
Por conseguinte somos levados a concluir no sentido de que relativamente aos crimes previstos no nº 1 do artigo 187.º, n.º 1, do CPP, é possível a obtenção e junção aos processos de natureza criminal de dados de tráfego e de localização celular, com fundamento no artigo 189.º, n.º 2, do CPP, e no âmbito dos dados conservados ao abrigo da Lei nº 41/2004, de 18.08 (...)”.
Neste conspecto, em face da proficiência e exuberância dos argumentos expendidos, nos quais nos revemos inteiramente, não carecendo de mais desenvolvimentos, sob pena de nos tornarmos repetitivos e fastidiosos, e uma vez que, na situação em apreço, estão verificados todos os requisitos legais, estando em causa, como bem sublinha o recorrente Ministério Público, a (eventual) prática de crimes de “catálogo”, nos termos do Artº 187º, nº 1, al. a), do C.P.Penal, havendo suspeitos (nº 4 do mesmo artigo), “pretendendo-se a obtenção e junção aos autos de dados armazenados – sobre a localização celular e faturas detalhadas (dados de tráfego) -, e mostrando-se a sua obtenção imprescindível para a investigação, como é o caso dos autos, inexiste qualquer nulidade probatória, pelo que a obtenção dos dados de tráfego e localização celular nos termos determinados e juntos em sede de inquérito terão de ser valorados e considerados pelo tribunal coletivo, nos termos do Artº 189º, nº 2, do C.P.Penal.
Assim sendo, impõe-se conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público, devendo revogar-se a decisão recorrida no segmento em que o tribunal a quo entendeu não utilizar os “dados de tráfego resultantes de fls. 305, 308, 309 e apenso III”, e determinar que o mesmo tribunal profira novo acórdão em cujo âmbito pondere tais elementos probatórios, daí retirando as conclusões que repute por convenientes para a decisão do caso.
Procedendo, assim, esta questão suscitada pelo recorrente Ministério Público, fica prejudicado o conhecimento das todas as restantes questões elencadas nas conclusões das motivações recursórias de ambos os recursos, supra mencionadas [Artº 608º, nº 2, 1ª parte, do C.P.Civil, ex-vi Artº 4º do C.P.Penal]. Incluindo, pois, o recurso do arguido DD, tanto mais que, como bem sustenta a Exma. PGA, no que é secundada por tal arguido, a sua conduta, em face da nova reapreciação da prova, poderá ter de ser avaliada em termos de comparticipação criminosa, com eventual reponderação do seu grau de culpa.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente:
A) Revogam a decisão recorrida no segmento em que o tribunal a quo entendeu não utilizar os “dados de tráfego resultantes de fls. 305, 308, 309 e apenso III”, e determinam que o mesmo tribunal profira novo acórdão em cujo âmbito pondere tais elementos probatórios, daí retirando as conclusões que repute por convenientes para a decisão do caso.
B) Consideram prejudicado o conhecimento de todas as demais questões suscitadas por ambos os recorrentes.

Sem custas.
*
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo na primeira página as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários – Artºs. 94º, nº 2, do C.P.Penal, e 19º, da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto).
*
Guimarães, 3 de Outubro de 2023

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Florbela Sebastião e Silva (Juíza Desembargadora Adjunta)
Anabela Varizo Martins (Juíza Desembargadora Adjunta)



[1] Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
[2] Antedemos à ordem pela qual deram entrada nos autos.
[3] Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
[4] Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.