Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
90/15.1T8VNF-C.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: SENTENÇA
RECTIFICAÇÃO
ERRO MATERIAL
ERRO DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Prevendo sobre o princípio da extinção do poder jurisdicional e suas limitações, resulta do o n.º 1 do art. 613º do CPC que, proferida “a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”.
II – O enunciado princípio da intangibilidade da decisão, como resulta do n.º 2 do art. 613º do CPC, não é absoluto, uma vez ser lícito ao juiz, entre o mais, retificar erros materiais, nos termos do art. 614º do CPC.
III – O erro ou lapso que pode ser rectificado ao abrigo do art. 614º, n.º 1, do CPC é apenas o erro material cuja existência pressupõe uma divergência entre a vontade real do juiz e aquilo que escreveu na sentença (o juiz escreveu coisa diversa daquela que queria escrever) e que não se confunde com o erro de julgamento (que ocorre quando o juiz disse aquilo que pretendia, mas julgou ou decidiu mal).
IV – Para que o erro material possa ser rectificado, ao abrigo da norma citada, é ainda necessário que o mesmo seja evidente, ostensivo ou manifesto, ou seja, que resulte de forma clara da mera leitura da decisão ou dos termos que a precederam.
V – Se o despacho julga deserta a instância executiva por ter, erroneamente, considerado que os autos estavam parados, sem impulso processual, há mais de 6 meses, sem ter atentado na existência da penhora de um crédito no âmbito de um processo de inventário e que os autos aguardavam pela transferência desse valor penhorado, não é possível concluir pela existência de qualquer erro material, posto que o erro que possa ter existido reconduzir-se-á, antes, a um erro de julgamento, o qual apenas poderia ser reparado por via da interposição de recurso e não por meio da mera rectificação da sentença.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

Os exequentes AA e BB instauraram, em 19/12/2014, contra os executados CC e DD, no Juízo de Execução ... - Juiz ... - do Tribunal Judicial da Comarca ..., execução para pagamento de quantia certa (ref.ª ...61).
Ofereceram como título executivo sentença transitada em julgado proferida no proc. n.º 2495/05.... do ... Juízo Cível do Tribunal Judicial ..., na qual os executados foram condenados a pagar aos exequentes a quantia de 13.041,02€, acrescida de juros contados à taxa legal de 4% ao ano desde a citação (16/11/2005) e até integral pagamento.
*
Mediante notificação enviada a 23.09.2019, os executados foram notificados de que «conforme V/ requerimento datado de 15/04/2016, os Exequentes fizeram seu o valor correspondente à quota parte que pertencia à executada no saldo da conta bancária por óbito de CC. No entanto, encontra-se ainda em falta o pagamento de 2.663,92€ relativos a custas com o processo. Deste modo, segue em anexo o guia para pagamento do valor em falta para que, após o pagamento do referido valor, se possa declarar a presente execução extinta pelo pagamento. Caso contrário, prosseguirão os autos. (…)» (ref.ª Citius ...97, ...43 e ...47).
*
Em 21.10.2019, a executada CC apresentou à agente de execução uma reclamação à nota de liquidação (ref.ª Citius ...82).
*
Em 1/04/2020, a agente de execução notificou a executada da conta nota-discriminativa (ref.ª Citius ...61).
*
Em 12/06/2020, os exequentes requereram à agente de execução o seguinte (ref.ª Citius ...03):
«Não tendo sido ainda pago pelos executados o valor necessário para o pagamento integral das quantias devidas no processo (capital, juros e custas), vem o exequente, novamente, requerer que se proceda à penhora nos presentes autos do quinhão hereditário da executada na Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito dos referidos AA e CC (…)».
*
Em 9/11/2020, a agente de execução procedeu à notificação para penhora do crédito que os executados detêm em consequência do processo de inventário n.º ...0..., a correr termos no Juiz ..., até ao montante de 6.500,00€ (ref.ª Citius ...31).
*
Em 01.03.2021, a executada CC requereu a elaboração da nota de liquidação da execução (ref.ª Citius ...09).
*
Em 22.03.2021, a executada CC requereu novamente à agente de execução a elaboração da nota de liquidação (ref.ª Citius ...83).
*
Em 07.04.2021, a executada CC requereu a notificação da agente de execução para elaborar a nota de liquidação (ref.ª Citius ...96).
*
Em 14.04.2021, o Tribunal “a quo” notificou a agente de execução do requerimento junto aos autos pela executada CC, em 07.04.2021 (ref.ª Citius ...65).
*
Em 12.07.2021, o Tribunal “a quo” notificou novamente a agente de execução do requerimento junto aos autos pela executada CC, em 07.04.2021, bem como para, em 10 dias, informar o estado dos autos, nomeadamente sobre o requerido pela executada (ref.ª Citius ...12).
*
Em 02.11.2021, a executada CC requereu, em síntese, o seguinte (ref.ª Citius ...31):
“(…)
.. tendo em conta que a presente execução se encontra sem qualquer movimento desde há mais de seis (6) meses, por razões não imputáveis à requerente
.. vem requerer se declare deserta a instância (…)”.
*
Em 5/11/2021, os exequentes responderam, referindo, entre o mais, que «(…) o processo não está parado por facto imputável ao exequente, não tendo este qualquer responsabilidade na falta da elaboração da nota de liquidação da execução, requerida pela executada, cuja elaboração não é da competência do exequente», pelo que deve «o processo prosseguir os seus ulteriores tramites, até ao pagamento integral da dívida exequenda, juros e demais encargos processuais, conforme requerido em 12/06/2020» (ref.ª Citius ...39).
*
Em 10.11.2021, o tribunal recorrido notificou a agente de execução, entre o mais, do requerimento junto aos autos pela executada CC, em 02.11.2021, bem como da resposta dos exequentes, de 5/11/2021 (ref.ª Citius ...10).
*
Em 11.07.2022, o tribunal recorrido voltou a notificar a agente de execução para, entre outros, prestar informações sobre o estado dos autos e sobre a possibilidade de os mesmos serem extintos (ref.ª Citius ...83).
*
Em 25.01.2023, os executados apresentaram reclamação, requerendo a declaração da deserção da instância, bem como a extinção da execução, com todos os devidos efeitos legais (ref.ª Citius ...67).
*
Em 1.02.2023, a agente de execução respondeu à notificação de 25/01/2023, referindo, entre o mais, que «(…) a A.E. não pode nem deve elaborar conta final do processo sem que os valores em falta se encontrem liquidados pelos executados. Caso os executados pretendam liquidar os valores em falta e para o fazerem, a A.E. notifica nesta data os executados na pessoa de seu ilustre mandatário da Guia para pagamento» (ref.ª Citius ...25).
*
Em 08.02.2023, o Tribunal “a quo” proferiu a seguinte decisão (Citius ...07):
 “Nos termos do artigo 281º, nº1, do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
O nº5, deste normativo, estatui que no processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
Verificando-se que os presentes autos aguardam impulso processual há bastante mais de 6 (seis) meses, não tendo os Exequentes se pronunciado, designadamente, sobre os requerimentos dos Executado(a)(s) a requerer a declaração de deserção, declara-se a instância deserta.
(…)”.
*
Em 09.02.2023, os exequentes formularam requerimento, referindo, entre o mais, que (ref.ª Citius ...26):
“(…)
Em 12/06/2020, foi requerido pelos aqui exequentes à Sr. Agente de Execução (…) que “Não tendo sido pago pelos executados o valor necessário para o pagamento integral das quantias devidas no processo (capital, juros e custas) se procedesse à penhora nos autos do quinhão hereditário da executada”.
Desconhece-se se isto que foi requerido cumprido pelo Sr. Agente de execução.
Por outro lado,
Refere a executada que requereu em 01/03/2021, que a Sr. Agente de execução elaborasse nota de liquidação da execução e, em 07/04/2021, que o tribunal lhe ordenasse tal elaboração.
Assim, salvo melhor entendimento,
O processo não está parado por facto imputável aos exequentes,
Não tendo este qualquer responsabilidade na falta da elaboração da nota de liquidação da execução, requerida pela executada e cuja elaboração não é da competência do exequente,
Não podendo, assim, ser os exequentes prejudicados por qualquer ato ou omissão que não lhes é imputável.
Deste modo,
Deve o despacho (com a ref ...07) ontem proferido no presente processo a julgar deserta a instância, ser reformulado por enfermar de um manifesto lapso, devendo a Sr.ª agente e execução ser notificada para elaborar a conta do processo.
Caso assim não se entenda,
Deve a instância executiva ser renovada,
O que se requer. (…)”.
*
Em 23.02.2023, notificados da reclamação apresentada pelos exequentes, os executados responderem nos termos seguintes (ref.ª Citius ...45):
 “(…)
(…), ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 281.º do CPC, a instância se considera deserta quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de 6 meses.
(…), por mais de uma vez a execução em apreço não teve qualquer movimento por períodos superiores a seis meses.
Mais concretamente, entre 07.04.2021 e 02.11.2021 e, ainda, entre 10.11.2021 e 11.07.2022.
E, por isso, (…), não poderá a pretensão dos mesmos em ver o despacho de que reclamam ser reformulado, merecer qualquer acolhimento.
II.
Acresce que, os exequentes pretendem reclamar do douto despacho por intermédio de uma reclamação que não tem qualquer previsão legal.
Pois que, mesmo que a sua argumentação pudesse merecer acolhimento, tal nunca poderia ser pelo meio processual de que os exequentes se serviram.
Assim requer que:
- seja a pretensão dos exequentes indeferida
(…)”.
*
Em 24.03.2023, o Tribunal “a quo” prolatou o seguinte despacho (ref.ª Citius ...88):
 “(…)
Notifique a Sr.(ª) Agente de Execução para, em 10 dias, se pronunciar sobre o teor da reclamação apresentada pela Exequente, designadamente, quanto aos factos alegados relativamente à Sr.(ª) Agente de Execução.
 (…)”.
*
Em 12.04.2023, a agente de execução informou os autos, em síntese, do seguinte (ref.ª Citius ...76):
“(…)
O processo não se encontra parado, apenas aguarda resposta da penhora efetuada no processo de inventário ...0..., juízo ....
(…)”.
*
Em 27.04.2023, os recorrentes alegaram nos autos, em resumo, o seguinte (ref.ª Citius ...99):
“(…)
A agente de execução, em rigor, vem reiterar a informação por si veiculada nos autos em 01.02.2023, sobre a qual a aqui requerente / executada se pronunciou já em 06.02.2023 e sobre a qual recaiu o douto despacho de 08.02.2023.
Deste modo, tendo sido já declarada deserta a instância e, considerando que sobre uma tal decisão não foi oportunamente interposto qualquer recurso, manifesto é que a mesma transitou em julgado - cfr. n.º 1 art.º 627.º e 628.º do CPC
Por conseguinte, vedado está a este tribunal retroceder na sua decisão e, designadamente, reformular o despacho proferido em 08.02.2023 como pretendem os exequentes.
Com efeito, a Mm.ª Juiz esgotou o seu poder jurisdicional quanto a essa matéria, não podendo, agora, alterar a sua decisão - cfr. n.ºs 1 e 3 art.º 613.º do CPC
(…)”.
*
Em 21.06.2023, a Mmª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho (ref.ª Citius ...36):
«Da reclamação dos Exequente:
Como decorre do disposto no art.º 616º, n.º 2 do Código de Processo Civil a reforma sentença, tratando-se de decisão da qual cabe recurso, o que sucede no caso dos autos pois o valor da acção é superior a €5.000,00, apenas poderá ser requerida pelas partes em sede de recurso.
Pelo que, neste ponto assiste razão aos Executado(a)(s).
Constata-se, porém, que a decisão proferida nos autos, que declarou deserta a instância, por falta de impulso processual do Exequente padece de lapso manifesto.
Com efeito, na decisão proferida afirma-se que os Exequentes há mais de 6 meses que não promoveram o normal prosseguimento da execução.
Ora, não se atentou, todavia, que nos autos foi realizada uma penhora do crédito do valor que o Executado(a)(s) terá a haver no âmbito do processo de inventário nº ...0..., a correr termos no Juiz ....
O que significa, portanto, que a execução se encontra a aguardar pela transferência para estes autos do valor penhorado no inventário (inventário esse que se encontra ainda pendente, como se constat[]ou da sua consulta electrónica).
Assim, cumpre rectificar, oficiosamente, o lapso material constatado, nos termos do disposto no art.º 614º, n.º 1 do Código de Processo Civil, a qual pode ocorrer a todo o tempo.
Termos em que decido rectificar o despacho de 08/02/2023, onde se afirma que os autos estão parados, sem impulso processual, há mais de 6 meses, e subsequentemente, dar sem efeito a deserção, ordenando o normal prosseguimento dos autos, atenta a penhora do direito que se encontra em curso.
Mais ordeno se solicite aos autos de inventário que informe se já se encontra apurado o direito do Executado(a)(s)/ interessado nesses autos».
*
Inconformados com esse despacho, os executados, CC e DD, dele interpuseram recurso (ref.ª Citius ...06) e, a terminar as respectivas alegações, formularam as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1.ª - O erro material verifica-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da decisão não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, ou seja, quando a vontade declarada diverge da vontade real
2.ª - O erro de cálculo há-de evidenciar-se através da decisão ou das peças que a precederam, onde seja notório que o juiz errou nas operações de cálculo, chegando a resultado diverso daquele a que chegaria se tais operações estivessem certas
- vd. art.º 249.º CC
3.ª - O erro de escrita verifica-se quando seja evidente a contradição ou imperfeição daquilo que o julgador escreveu quando comparado com aquilo que queria ter escrito
- vd. art.º 249.º CC
4.ª - Já no erro de julgamento, o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal,
contra a lei expressa ou contra factos apurados
5.ª - No erro de julgamento, ainda que o juiz se convença logo que errou, não pode socorrer-se do artigo 614.º do CPC para emendar esse erro
6.ª - O despacho proferido em 08.02.2023, que declarou deserta a instância, não padece de lapso manifesto, pois que, dúvidas não podem existir que o tribunal “a quo” quis, de facto, decidir conforme decidiu
- cfr. ref.ª Citius ...07
7.ª - Aliás, o teor dessa decisão coincide exatamente com a tramitação processual verificada nos autos, com aquilo que o juiz tinha em mente exarar e com as respetivas consequências legais
8.ª - Pois, no processo executivo, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de 6 meses, o que resulta precisamente do teor do despacho de 08.02.2023
- vd. n.º 5, art.º 281.º CPC - cfr. ref.ª Citius ...07
9.ª - A aplicação do n.º 1, art.º 614.º CPC, para retificar esse despacho afigura-se manifestamente ilegal e desprovida de qualquer fundamento lógico ou legal
10.ª - A admissibilidade de retificações explica-se por se tratar de alterações materiais que não modificam o que ficou decidido, contudo, o despacho recorrido modificou por completo aquilo que ficou decidido no despacho de 08.02.2023, o que não é legalmente admissível
- vd. Ac. STJ, de 11.05.2022, proc. n.º 6947/19....
11.ª - A decisão transita em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação, ficando, desde daí, a ter força obrigatória dentro e fora do processo
- vd. art.ºs 619.º e 628.º CPC
12.ª - O caso julgado:
- visa a imodificabilidade da decisão transitada e a não repetição do juízo contido nessa decisão, de modo que, os tribunais respeitem e acatem a decisão transitada em julgado, não a julgando de novo
- consubstancia uma exceção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância
- tem uma função positiva, fazendo valer a sua força e autoridade na exequibilidade da decisão
- tem uma função negativa, impedindo que a mesma causa venha a ser apreciada de novo por qualquer tribunal
- vd. n.º 2, art.º 576.º e al. i), art.º 577.º CPC
- vd. Ac. STJ, de 03.02.2005, proc. n.º 04B4009
- vd. Ac. TR Coimbra, de 21.06.2011, CJ, 2011, 3.º - 49
13.ª - O acórdão, a sentença ou o despacho constitui caso julgado formal nos precisos termos em que julga - vd. art.º 621.º CPC
14.ª - A força de caso julgado abrange não só as questões diretamente decididas na parte dispositiva da decisão, mas também os fundamentos que constituem antecedente lógico e necessário da parte dispositiva dessa decisão
- vd. Ac. STJ, de 14.03.2006, proc. n.º 05B3582 - vd. Ac. STJ, de 12.09.2007, proc. n.º 07S923
15.ª - Do despacho proferido em 08.02.2023, nenhuma das partes interpôs recurso, pelo que tal decisão transitou em julgado, estando, por isso, vedado ao tribunal “a quo” retroceder na sua decisão
- vd. art.º 628.º CPC
16.ª - Quanto a essa matéria, o tribunal recorrido esgotou o seu poder jurisdicional, não se afigurando legítimo e/ou legal alterar essa decisão
- vd. n.ºs 1 e 3, art.º 613.º CPC
17.ª - Ao proferir o despacho recorrido, o tribunal “a quo” proferiu nova decisão, completamente contraditória com a anteriormente proferida e já transitada em julgado, pelo que, o despacho recorrido viola a figura de caso julgado, sendo ilegal
(…)
DE HARMONIA COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO À APELAÇÃO, REVOGANDO-SE O DESPACHO PROFERIDO E POR TAL EFEITO:
- manter-se o decidido no despacho de 08.02.2023, que declarou deserta a instância
ASSIM DELIBERANDO ESTE TRIBUNAL SUPERIOR FARÁ
JUSTIÇA».
*
Contra-alegaram os exequentes, AA e BB, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da decisão recorrida (ref.ª Citius ...80).
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo (ref.ª Citius ...33).
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].
No caso, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em aferir:
i. Questão Prévia: (in)tempestividade do recurso;
ii) da extinção/esgotamento do poder jurisdicional;
iii) do caso julgado.
*
III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto.
As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que decorrem do relatório supra (que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidos). 
*
V. Fundamentação de Direito.

1. Questão Prévia:
Notificados do requerimento de alegações, os exequentes, nas contra-alegações, suscitaram a questão da não admissibilidade do recurso interposto pelos executados, em virtude da sua extemporaneidade.
Aduziram para o efeito que: 
«Por decisão proferida em 08/02/2023, o Tribunal a quo julgou deserta a instância nos presentes autos.
Posteriormente,
Por decisão de 21/06/2023, o mesmo tribunal, com os fundamentos aí vertidos, veio rectificar essa sua decisão, “dando sem efeito a deserção da instância” e “ordenando o normal prosseguimento dos autos, atenta a penhora do direito que se encontra em curso”.
É desta decisão última que os recorrentes recorrem.
(…)
Esta decisão de 21/06/2023 é uma decisão posterior à decisão final,
Pelo que, nos termos do art. 638, n.º 1 e 644, n.º 2 al. g), ambos do C.P.C., o prazo para recorrer desta decisão são 15 dias.
Assim,
Tendo o recurso sido interposto na data que o foi (30/08/2023), é manifestamente extemporâneo.
Extemporaneidade esta que aqui se invoca com todas as suas consequências legais (…)».
Vejamos como decidir.
Segundo o art. 644º do CPC:
«1 - Cabe recurso de apelação:
a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;
b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.
2 - Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:
 (…)
g) De decisão proferida depois da decisão final;
(…)”.
Nos termos do n.º 1 do art. 638º do CPC, “o prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º e no artigo 677.º”.
Segundo o citado normativo, em relação aos recursos de decisões da 1ª instância, o regime vigente é o seguinte[1]:
a) O prazo geral é de 30 dias, sendo aplicável aos recursos de decisões que ponham termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente e dos despachos saneadores que, sem porem termo ao processo, decidam do mérito da causa ou absolvam da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.
b) O prazo geral é de 15 dias nos recursos intercalares previstos no n.º 2 do art. 644º;
c) É também de 15 dias nos recursos de apelação interpostos no âmbito de processos urgentes.
Acresce que as decisões intercalares elencadas no n.º 2 do art. 644º do CPC admitem recurso imediato; já as demais decisões interlocutórias (não contempladas nos n.ºs 1 e 2 do art. 644º) apenas podem ser impugnadas juntamente com o recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1 ou, se não houver recurso da decisão final, em recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão, desde que a impugnação tenha interesse para o apelante (n.ºs 3 e 4 do art. 644º do CPC).
Por sua vez, sob a epígrafe “Regra da continuidade dos prazos”, estipula o art. 138º do CPC:
«1 - O prazo processual, estabelecido por lei ou fixado por despacho do juiz, é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais, salvo se a sua duração for igual ou superior a seis meses ou se tratar de atos a praticar em processos que a lei considere urgentes.
 2 - Quando o prazo para a prática do ato processual terminar em dia em que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o 1.º dia útil seguinte.
(…)». 
Conforme resulta do citado n.º 1 do art. 138º do CPC, o prazo processual conta-se de forma contínua, implicando que neles se contem todos os dias, independentemente de os mesmos serem úteis ou não – aqui se incluindo, portanto, os sábados, domingos, dias feriados e dias em que tenha sido concedida tolerância de ponto –, mas suspende-se nas férias judiciais.
Do disposto no n.º 2 do citado normativo decorre que, em termos análogos aos estabelecidos quanto aos prazos substantivos na alínea e) do art. 279º do C. Civil, quando o prazo para a prática de um acto processual terminar em dia em que os tribunais estiverem encerrados transfere-se o seu termo para o dia útil seguinte.
No caso sub júdice, estando em causa a interposição de recurso que versa sobre um despacho rectificativo da decisão que declarou a instância deserta, o prazo de recurso é de 15 dias, nos termos conjugados dos arts. 644º, n.º 2, al. g) e 638º, n.º 1, 2ª parte, todos do CPC.
O Il. mandatário dos apelantes foi notificado do despacho de que recorre mediante notificação, via electrónica, expedida a 30/06/2023 (ref.ª Citius ...73), pelo que, nos termos e para efeitos do disposto no art. 248.º, n.º 1, do CPC, se considera notificado a 3.07.2023.
Iniciando-se o prazo para interpor recurso a 4.07.2023, o mesmo, por força da suspensão do prazo decorrente das férias judiciais[2] e do disposto no art. 138º, n.º 2, do CPC, findou a 4.09.2023, uma vez que o dia 3.09.2023 correspondeu a um domingo.
Logo, contrariamente ao propugnado pelos recorridos, considerando que o recurso foi interposto em 30.08.2023 (ref.ª Citius ...06), forçoso será concluir pela sua tempestividade, por ter sido apresentado antes do termo do prazo em curso.
Consequentemente, improcede este fundamento da apelação.
*
2. Da extinção/esgotamento do poder jurisdicional.
Prevendo sobre o princípio da extinção do poder jurisdicional e suas limitações, diz-nos o n.º 1 do art. 613º do CPC que, “[p]roferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”. 
O âmbito do mencionado princípio, consagrado no citado normativo, significa que o “juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível.
Ainda que logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível[3].
Quer isto dizer que, após a sentença, o juiz não pode, por regra, independentemente do trânsito em julgado, proferir nova decisão sobre a causa[4].
Com efeito, prolatada a sentença – ou qualquer despacho (art. 613º, n.º 3 do CPC) –, a mesma torna-se imodificável. Só que, não tendo ainda transitado em julgado, por ser ainda suscetível de recurso ordinário, esta imodificabilidade da sentença é apenas dirigida ao próprio juiz da causa[5].
Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem, assim, dois efeitos: i) um negativo – representado pela insusceptibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar; ii) um positivo – traduzido na vinculação do tribunal à decisão por ele proferida[6].
Mas isso não obsta a que o juiz mantenha ainda o exercício do poder jurisdicional para resolver os incidentes e questões que surjam no desenvolvimento posterior do processo, contanto que não se repercutam na sentença ou no despacho que proferiu, designadamente competindo-lhe apreciar o requerimento de interposição de recurso contra a sua decisão e prover à sua expedição para o tribunal superior.
A razão do princípio do auto-esgotamento do poder jurisdicional, por uma razão de ordem pragmática, encontra-se na necessidade de assegurar a estabilidade das decisões dos tribunais[7].

Diz-nos Alberto dos Reis[8]:
Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.”
Claro que, em julgamentos futuros, o magistrado pode sustentar e adoptar doutrina jurídica diferente da que tenha estabelecido. Mas no mesmo processo, a decisão que proferir vincula-o”.
O enunciado princípio da intangibilidade da decisão, como resulta do n.º 2 do art. 613º do CPC, não é absoluto, uma vez ser lícito “ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença nos termos dos artigos” nos termos dos arts. 614º a 616º do CPC.

O art. 614º do CPC, sob a epígrafe “Retificação de erros materiais”, permite, no seu n.º 1, a correcção da sentença ou do despacho, por requerimento de qualquer das partes ou iniciativa do juiz, nos casos em que:
i) omitir o nome das partes;
ii) for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos tributários previstos no n.º 6 do art. 607.º; ou
iii) contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.
Os erros materiais ou inexatidões contidos na sentença são os que se reportam à expressão material de vontade do juiz desde que o erro seja evidenciado pelo contexto da decisão (n.º 1 do art. 614º do CPC); idêntica solução vale para o acórdão do Tribunal da Relação (art. 666º, n.ºs 1 e 2 do CPC) e para o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (art. 685º do CPC).
O erro material, na sua modalidade escrita (‘lapsus calami’), consiste na inexactidão, na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, mais frequentemente traduzido em erros de escrita ou de cálculo, sendo necessário que resulte evidente do texto essa decisão[9] [10].
Dizem-se erros, ou inexactidões materiais, os que respeitam à expressão da vontade material do juiz, designadamente aqueles que incidam ou se reflictam numa conclusão não consentida pelas premissas de que partiu[11].
Haverá, pois, uma divergência, clara e ostensiva, entre a vontade real do decisor e o que veio a ser exarado no texto[12].
Esta normatividade reporta-se a manifestação material da vontade do juiz e não à formação da vontade ou a esta quo tale[13].
Os erros materiais distinguem-se dos erros de julgamento.
Como salienta Alberto dos Reis[14]:
O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. O juiz queria escrever “absolvo” e por lapso, inconsideração, distração, escreveu precisamente o contrário: condeno.
O erro de julgamento é uma espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz, logo a seguir, se convença de que errou, não pode socorrer-se do art. 667º [atual 614º] para emendar o erro”.
Densificando o conceito de “lapso manifesto” acrescenta o citado autor[15] que é “necessário que as circunstâncias sejam de molde a fazer admitir, sem sombra de dúvida, que o juiz foi vítima de erro material: quis escrever uma coisa, e escreveu outra. Há-de ser o próprio contexto da sentença que há-de fornecer a demonstração clara de erro material”.
Estão em causa erros cognoscíveis, isto é, deficiências que se revelam no próprio contexto da sentença[16] (ou despacho), à semelhança do que sucede com o regime previsto no art. 249º do Cód. Civil[17] para os negócios jurídicos, cuja rectificação não interfere com a substância, nem com a fundamentação da decisão[18]. O que importa é que os erros ou lapsos sejam evidentes, ostensivos ou manifestos, ou seja, que resultem de forma clara da mera leitura da decisão ou dos termos que a precederam. Por isso, “[n]ão pode ser qualificada como rectificação uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorrecção material se não detectava da leitura do respectivo texto[19].
A rectificação de erros materiais nunca poderá, em caso algum, determinar uma alteração substancial ao conteúdo da decisão[20], mas apenas explicitar ou corrigir aquilo que, ainda que de uma forma implícita, resultava já do teor da decisão ou do processo[21].
O seu objeto não é, pois, o conteúdo do acto decisório, mas a sua própria expressão material – o corpus por que se exterioriza a vontade do juiz –, podendo distinguir-se entre (i) erro de escrita, (ii) erro de cálculo e (iii) “quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”, em termos em tudo idênticos aos do art. 249.º do Código Civil.
Diversamente, se o objeto é o conteúdo do acto decisório, i.e., o julgamento, cabe recurso[22].
Se nenhuma das partes recorrer, a rectificação de erros materiais ou de inexatidões pode ter lugar a todo o tempo, mesmo depois do trânsito em julgado[23]; mas, havendo recurso, a rectificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito quanto à requerida retificação (art. 614º, n.ºs 2 e 3 do CPC).
Além da reforma quanto a custas e multas (n.º 1), o art. 616.º do CPC admite, no seu n.º 2, reforma da sentença quando “por manifesto lapso do juiz” (i) tenha “ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos” ou (ii) “constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida”.
O manifesto lapso consiste num «erro grosseiro e patente, ou “aberratio legis”» causado “por desconhecimento ou flagrante má compreensão, do regime legal”, sendo este último uma “flagrantemente errada interpretação de preceitos legais (não por opção por discutível corrente doutrinária ou jurisprudencial) podendo, no limite, ter na base o desconhecimento[24].
Este “manifesto lapso” em nada tem a ver com o “lapso manifesto” do art. 614.º, pois já não se trata de um erro na expressão do julgamento do juiz, mas de erro nesse próprio julgamento do juiz. Dito de outra forma, aqui o carácter manifesto do erro já não reside no contexto do teor da decisão, mas no contexto do próprio Direito objetivo ou da verdade objetiva[25].
A reforma por manifesto lapso apenas é admissível, conforme prescreve o n.º 2 do art. 616.º do CPC, “[n]ão cabendo recurso da decisão”. Falecendo esse pressuposto negativo, não pode ser pedida ao tribunal que deu a decisão a reforma da mesma; o respetivo vício terá de ser alegado como fundamento de recurso.
Feito este enquadramento jurídico é altura de analisarmos o caso concreto.
Conforme resulta dos autos, na sequência de sucessivos requerimentos formulados pelos executados requerendo a declaração da deserção da instância executiva, assim como a extinção da execução, por despacho datado de 08.02.2023, o Tribunal “a quo”, julgando verificado «que os presentes autos aguardam impulso processual há bastante mais de 6 (seis) meses, não tendo os Exequentes se pronunciado, designadamente, sobre os requerimentos dos Executado(a)(s) a requerer a declaração de deserção», declarou deserta a instância.
Nessa decorrência, os exequentes apresentaram requerimento (reclamação do acto), no qual requereram a reforma do despacho (“ontem proferido”) que julgou deserta a instância, por o mesmo enfermar de um manifesto lapso.
Após cumprimento do contraditório, a Mmª Juíza “a quo”, por despacho datado de 21.06.2023, considerou o seguinte:
- Quanto à reclamação dos exequentes, como decorre do disposto no art. 616º, n.º 2 do CPC, a reforma sentença, tratando-se de decisão da qual cabe recurso, o que sucede no caso dos autos pois o valor da acção é superior a €5.000,00, apenas poderá ser requerida pelas partes em sede de recurso, pelo que, neste ponto (quanto à impropriedade do meio processual escolhido pelos reclamantes), assiste razão aos executados;
- A decisão proferida nos autos, que declarou deserta a instância, por falta de impulso processual do exequente padece de lapso manifesto, porquanto nela afirma-se que os exequentes há mais de 6 meses que não promoveram o normal prosseguimento da execução, sem que se tenha atentado que nos autos foi realizada uma penhora do crédito do valor que o executado terá a haver no âmbito do processo de inventário nº ...0..., a correr termos no Juiz ..., encontrando-se a execução a aguardar pela transferência para estes autos do valor penhorado no inventário (inventário que se encontra ainda pendente);
- O lapso material constatado dá lugar à sua rectificação oficiosa, nos termos do disposto no art. 614º, n.º 1, do CPC, a qual pode ocorrer a todo o tempo;
- Termos em que decidiu «rectificar o despacho de 08/02/2023, onde se afirma que os autos estão parados, sem impulso processual, há mais de 6 meses, e subsequentemente, dar sem efeito a deserção, ordenando o normal prosseguimento dos autos, atenta a penhora do direito que se encontra em curso».
Insurgem-se os recorrentes contra esse despacho, argumentando que o “erro de escrita verifica-se quando seja evidente a contradição ou imperfeição daquilo que o julgador escreveu quando comparado com aquilo que queria ter escrito», sendo que o «despacho proferido em 08.02.2023, que declarou deserta a instância, não padece de lapso manifesto, pois que, dúvidas não podem existir que o tribunal “a quo” quis, de facto, decidir conforme decidiu»; «aliás, o teor dessa decisão coincide exatamente com a tramitação processual verificada nos autos, com aquilo que o juiz tinha em mente exarar e com as respetivas consequências legais», pois, «no processo executivo, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de 6 meses, o que resulta precisamente do teor do despacho de 08.02.2023 - vd. n.º 5, art.º 281.º CPC».
Cremos assistir-lhes integral razão.
Com efeito, se (bem) atentarmos na fundamentação do despacho que declarou verificada a deserção da instância nele é feita unicamente menção ao facto de os autos aguardarem o impulso processual há bastante mais de 6 (seis) meses, bem como à circunstância de os Exequentes não se terem pronunciado, «designadamente, sobre os requerimentos dos Executado(a)(s) a requerer a declaração de deserção», motivo por que foi declarada a instância deserta.
Relativamente a esta última asserção podemos asseverar que, no tocante ao requerimento apresentado em 02.11.2021, os exequentes efetivamente responderam aos requerimentos dos executados a requerer a declaração de deserção da instância; já quanto ao requerimento apresentado em 25.01.2023 (cfr. ref.ª Citius ...67) não o chegaram a fazer, não sendo despiciendo salientar que, à data da prolação do despacho de 08.02.2023, ainda não se havia esgotado o prazo para se pronunciarem sobre o mesmo. Certo é que não arguiram a nulidade processual desse despacho.
Seja como for, o que sobressai é que, relativamente ao concreto fundamento que alicerçou a declaração da deserção da instância – de os autos estarem parados, sem impulso processual, há mais de 6 meses –, não se evidencia do despacho datado de 08.02.2023 ou de qualquer outra circunstância que a Mm.ª Juíza “a quo” tenha escrito – a propósito quer da falta do impulso processual, quer da sua duração – coisa diversa daquela que pretendia escrever.
Admitindo-se – como se diz no despacho rectificativo (e ora recorrido) – que naquele despacho não se atentou que nos autos havia sido «realizada uma penhora do crédito do valor que o Executado(a)(s) terá a haver no âmbito do processo de inventário nº ...0..., a correr termos no Juiz ..., encontrando-se a execução a aguardar pela transferência para estes autos do valor penhorado no inventário», estaria em causa, na nossa perspectiva, um erro de julgamento, quer ao nível da delimitação dos fundamentos de facto, como dos fundamentos de direito, relevante para a decisão atinente à (não) verificação da deserção da instância, erro esse que não pode ser corrigido mediante rectificação e que apenas poderia ser reparado por via da apresentação do competente recurso a interpor pela parte que tenha ficado vencida ou por pessoa directa e efectivamente  prejudicada pela decisão.
O erro que possa ter existido reconduzir-se-á, ao que tudo indica, a um erro de julgamento [decorrente do facto de o juiz não ter, erradamente, considerado a existência da referida penhora e que os autos aguardavam pela transferência do valor penhorado no inventário, tendo antes concluído que os autos estavam parados, sem impulso processual, há mais de 6 (seis) meses], erro esse que apenas poderia ser reparado por via da interposição de recurso e não por via de mera rectificação da decisão.
Mas ainda que assim não seja e, portanto, ainda que tivesse existido, de facto, uma divergência entre aquilo que se escreveu e o que se pretendia escrever, a verdade é que esse erro material não é detectável na decisão de 08.02.2023; nada se escreveu aí que evidencie ou indicie a existência de um erro desse tipo (note-se que a decisão, na respectiva fundamentação, alude genericamente à falta de impulso processual e à sua duração) e, portanto, nada nos permitiria afirmar que estava em causa um erro material e não um erro de julgamento. E, se esse erro material – ainda que tivesse existido – não é perceptível e não pode ser detectado, não poderá configurar um erro decorrente de lapso manifesto que possa ser rectificado ao abrigo do disposto no art. 614º do CPC.
O conteúdo do despacho impugnado consubstancia, assim, uma efetiva alteração de fundo da decisão proferida, bulindo decisivamente com a decisão da causa, porquanto dá o dito pelo não dito (revoga ou dá sem efeito a decisão da declaração de deserção da instância e ordena «o normal prosseguimento dos autos, atenta a penhora do direito que se encontra em curso»). O mesmo é dizer que tal modificação traduz manifesta alteração do julgado, que não é admissível, ainda que a Mm.ª Julgadora, logo a seguir ao despacho, se convença de que julgou mal.
Daí que se conclua que, não se estando perante um erro material, aquela decisão não podia ser ulteriormente alterada ou modificada, uma vez que, após a sua prolação, ficou imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa ou do mérito (art. 613º, n.º 1 do CPC), sendo certo que, contrariamente ao propugnado pela decisão recorrida, não se verificou nenhumas das hipóteses previstas no art. 614º do CPC.
Diga-se, por fim, não nos competir nesta sede aquilatar da bondade, ou não, do despacho de 08.02.2023 que declarou deserta a instância, uma vez que tal decisão não foi objeto do competente recurso.
Em suma: o alegado “erro” (de julgamento) tinha que ser invocado através de recurso do próprio despacho datado de 08.02.2023, o que nos conduz à ilicitude da rectificação determinada no despacho impugnado[26].
Por isso o recurso tem necessariamente de proceder, impondo-se a revogação do despacho recorrido e repristinando-se o despacho de 08.02.2023.
*
Procedendo a apelação não pode a decisão ser mantida, ficando, por isso, prejudicado o conhecimento da última questão enunciada (cfr. art. 608.º, n.º 2 “ex vi” do art. 663º, n.º 2, ambos do CPC).
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527º do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Como a apelação foi julgada procedente, mercê do princípio da causalidade, as custas da apelação serão da responsabilidade dos recorridos (art. 527º do CPC).
*
*
VI. DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação, e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, mantendo-se o decidido no despacho de 08.02.2023, que declarou deserta a instância.
*
Custas da apelação a cargo dos apelados (art. 527º do CPC).
*
Guimarães, 30 de novembro de 2023
Alcides Rodrigues (relator)
Raquel Batista Tavares (1ª adjunta)
Joaquim Boavida (2º adjunto)



[1] Seguiremos de perto o esquema proposto por António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 - 4ª ed., Almedina, p. 131.
[2] Nos termos do art. 28º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, as «férias judiciais decorrem de 22 de dezembro a 3 de janeiro, do domingo de Ramos à segunda-feira de Páscoa e de 16 de julho a 31 de agosto».
[3] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 1981, volume V, Coimbra Editora, 1984, p. 126.
[4] Cfr. António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., Quid Juris, p. 366.
[5] Cfr. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007, p. 430.
[6] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 2ª edição, 1997, p. 572.
[7] Cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª edição, Almedina, p. 41.
[8] Cfr. obra citada, p. 127.
[9] Cfr. Ac. do STJ de 12/02/2009 (relator Sebastião Povoas), in www.dgsi.pt.
[10] O erro material é uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz: “o juiz escreveu coisa diversa daquela que queria escrever” [cfr. Ac. da RC de 10/03/2015 (relatora Catarina Gonçalves), in www.dgsi.pt.].
[11] Cfr. Luís Correia de Mendonça/Henriques Antunes, Dos Recursos (regime do Dec. Lei n.º 303/2007), Quid Iuris, 2009, p. 123.
[12] Exemplos de erro material: (i) no relatório do acórdão escreveu-se que as recorridas não apresentaram contra-alegações, quando, na realidade, contrariamente ao aí afirmado, apresentaram contra-alegações [cfr. Ac. do STJ de 11/05/2022 (relatora Leonor Cruz Rodrigues), in www.dgsi.pt.]; (ii) os cálculos de quinhões hereditários não estão corretos ou “a soma das parcelas em que se decompõe o quantum indemnizatório não ser a que é indicada na decisão” (cfr. Ac. do STJ de 23-11-2011 (relator Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt.].
[13] Cfr. Jaime Octávio Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, Atualizado à luz do CPC de 2013, 6ª ed., Coimbra Editora, p. 68.
[14] Cfr. obra citada, p. 130.
[15] Cfr. obra citada, p. 131.
[16] Cfr. António Júlio Cunha, obra citada, p. 366.
[17] É um tipo de erro “(...) revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita (...)”.
[18] Cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, obra citada, p. 685.
[19] Cfr. Ac. do STJ 26/11/2015 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), in www.dgsi.pt.
[20] Segundo o Ac. do STJ de 12/02/2009 (relator Sebastião Povoas), in www.dgsi.pt., «o erro material “nunca interfere, decisivamente, com o mérito da decisão, tanto mais que terá de ser evidenciado pelo seu contexto cuja leitura atenta o torna perceptível face às premissas do silogismo judiciário».
[21] Cfr. Helena Cabrita, A fundamentação de facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, p. 255.
[22] Cfr. Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 6.
[23] O que por si só nos transmite a ideia de que se trata de alterações materiais que não alteram o que ficou decidido e que transitou em julgado [cfr. Ac. do STJ 26/11/2015 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), in www.dgsi.pt.].
[24] Cfr. Ac. do STJ de 12/02/2009 (relator Sebastião Povoas), in www.dgsi.pt.
[25] Cfr. Rui Pinto, “Os meios reclamatórios (…)”, p. 35.
[26] Cfr. Ac. da RE de 22.10.2015 (relatora Elisabete Valente), in www.dgsi.pt..