Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
190/23.4GAVNF.G1
Relator: CRISTINA XAVIER DA FONSECA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
QUEIXA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. A existência de duas agressões físicas de um ex-cônjuge a outro, com cerca de um mês de intervalo, no logradouro comum da casa que cada um deles habita com outro companheiro, pode não ser suficiente para configurar a prática de um crime de violência doméstica, uma vez que não basta a circunstância de ter havido uma relação conjugal entre ambos.
II. Sem a prova de sinais distintivos da motivação do agente ser maltratar física e psicologicamente, bem como de forma reiterada, a assistente pela específica razão de ser sua ex-mulher e mãe da sua filha, ou ser intenção daquele atingir a sua honra, dignidade e auto-estima, aquela actuação configura a prática de dois crimes de ofensa à integridade física da vítima, p. e p. pelo art. 143.º do Código Penal.
III. Apesar de o inquérito ter sido autuado como "violência doméstica", o facto de terem tido início numa queixa apresentada pela ofendida - relativa à primeira agressão -, seguida da circunstância de ter sido novamente aquela a deslocar-se ao posto da GNR no dia da segunda agressão, para a relatar, de ter aderido à acusação pública quando deduziu pedido de indemnização civil e de, na mesma altura, ter requerido a sua constituição como assistente configuram expressão inequívoca da sua vontade em apresentar queixa contra o arguido pelos factos mais recentes.
Decisão Texto Integral:
Neste processo n.º 190/23.4GAVNF.G1, acordam em conferência as Juízas na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 190/23...., a correr termos no Juízo Local Criminal de ..., Comarca de Braga, em que é arguido AA, foi proferida sentença que o condenou, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152.º, nºs. 1, a), 2, 4 e 5, do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, e na pena acessória de proibição de contactos com a assistente BB, pelo período de dois anos e seis meses; na procedência parcial do pedido de indemnização civil deduzido por esta, foi o mesmo arguido condenado a pagar à demandante uma indemnização de € 2.300,00, acrescida de juros de mora desde o trânsito em julgado da sentença até integral pagamento.
Inconformado com essa decisão, da mesma recorreu o arguido, apresentando as seguintes conclusões[1]:

«I. Resumidamente, a lógica da sentença é a seguinte:
a. As versões do arguido e da assistente merecem a mesma credibilidade, não existindo nenhum elemento probatório que permita desvalorizar, sem mais, qualquer uma delas.
b. Existe prova pericial que corrobora a parte dos factos considerados provados, pelo que os mesmos são dados como provados nessa base.
II. Apesar de a decisão sob recurso assentar nas declarações da Assistente e na prova pericial (relatório médico-legal), a verdade é que, ao confrontarmos o teor da acusação com as declarações prestadas, verificamos múltiplas contradições que comprometem a credibilidade e a consistência da tese sustentada pela Assistente, que estão longe de constituir meros lapsos ou discrepâncias pontuais.
III. Chegou-se ao ponto de a acusação referir que o arguido deu duas bofetadas na assistente, mas esta afirmou em julgamento que foi apenas uma, no mês de Maio, quando prestou declarações em Abril, mantendo essa tese mesmo depois de, a requerimento do MP, ser confrontada com elas – cfr a gravação da audiência, em particular 2023-11-08_15-56-58, min: 00:00:06 e seguintes e ainda 22m:11s da gravação 2023-11-08_15-33-22 e 2023-11-08_15-56-58, 03M:42S.
IV. Por outro lado, relativamente a supostas ameaças, a assistente referiu, várias vezes, que foi ameaçada pelo seu ex-marido (00m:52s; 01m:39s; 01:43s) mas, logo a seguir já disse que apenas lhe proferiu insultos (13m:21s; e 13m:44s, conforme consta da gravação da diligencia_190-23.4GAVNF_2023-11-08_15-33-22.
V. A sentença padece de erros notórios na apreciação da prova, bem como de contradições insanáveis na fundamentação e entre esta e os factos considerados provados.
VI. Devem considerar-se não provados os pontos 5, 6, 5, 6 (existe uma repetição na sentença), 7, 9, 17, 18, 19 e 20 dos factos considerados provados.
VII. Quanto ao ponto 5:
a. Nada nos autos permite sustentar que existe uma constante troca de palavras entre o arguido e a assistente, além de que se trata de matéria inócua.
VIII. Quanto ao ponto 6:
a. Mesmo na tese da sentença, não há qualquer razão para dar credibilidade à tese da assistente em detrimento da tese do arguido, pelo que sempre teria de funcionar a presunção de inocência.
b. No ponto 10 da acusação consta (sublinhado nosso):
“Nesse mesmo dia, pelas 12h45, no quintal da habitação, a ofendida, ao deparar-se com o sucedido, iniciou uma discussão com o arguido; então o arguido muniu-se de um tubo e, com o mesmo, desferiu uma pancada no peito da ofendida, ao mesmo que a apelidava de puta e bêbada.”.
c. Já na audiência de julgamento, a assistente referiu que viu um estendal do arguido, partido em cima de umas flores, e foi ela que pegou nele, com o intuito de arrumá-lo, quando o arguido foi contra si e arrastou-a, cortando-lhe, assim, o peito (00:02:20 da gravação diligencia_190-23.4GAVNF_2023-11-08_15-33-22).
d. A assistente referiu que o arguido foi contra ela para lhe dar com o estendal (00:02:48 diligencia_190-23.4GAVNF_2023-11-08_15-33-22), o que em nada tem que ver, com a afirmação de que foi o arguido a munir-se de um tubo e desferir-lhe uma pancada no peito.
e. Estas duas versões demonstram uma distinção absoluta e incontestável, evidenciando-se, de maneira inequívoca, incompatíveis entre si
f. Note-se que foi o arguido quem, na contestação, suscitou a questão do estendal, destruído pela Assistente, pelo que esta mudou a sua versão em julgamento, de modo a que a (falsa) agressão com um tubo, constante da acusação, passou a ser uma agressão com o estendal!!!
g. Daí que não faça sentido que no ponto 6 dos factos provados se tente fazer uma síntese das duas versões incompatíveis, passando a agressão a ser com o estendal (num todo), por ele ser “constituído por tubos”.
h. Absurdamente, na tese da assistente, acolhida na sentença, a mesma andou com o estendal partido, ora pela frente, ora pelas traseiras da casa, ora para o colocar na rua, ora para o guardar à espera do sucateiro, ora sem ninguém presente, ora tendo um vizinho presente, para tirar uma fotografia que (na tese da assistente) não tinha razão de ser.
i. A assistente cai no absurdo de dizer que, depois de tudo começar com o arguido a empurrar o estendal contra ela e a ferir, em lugar de se tratar, agarrou nas varetas do estendal e atirou-as para a rua, depois voltou a recolhê-las, andando com elas amarradas num “braçado” (que explica o ferimento), de um lado para o outro.
j. Enquanto a tese e o depoimento do arguido são perfeitamente credíveis e coerentes, a tese de assistente, acolhida na sentença, é pejada de contradições e absurdos.
k. A assistente não conseguiu sequer confirmar o dia da alegada agressão, reconhecendo que só foi ao hospital posteriormente, o que não faz sentido, mas ainda assim foi acolhido na sentença.
l. A assistente aproveitou uma lesão insignificante, auto-infligida, para acusar falsamente o arguido.
IX. Quanto ao ponto 5 (segundo):
a. Deve ser alterada a parte inicial (em virtude da actuação do arguido), em consequência da alteração do ponto anterior.
X. No que se refere ao Ponto 6 (segundo):
a. Também aqui, cabe lembrar que mesmo no raciocínio da sentença, não há qualquer razão para dar credibilidade à tese da assistente em detrimento da tese do arguido, cuja presunção de inocência foi violada.
b. Nas suas declarações, a Assistente disse que foi agredida com a corrente do cão fixada ao muro (2023-11-08_15-33-22, minuto 16m:48s).
c. Todavia, no seu depoimento, a filha (testemunha CC) referiu que a mãe lhe disse que o pai retirou a corrente da parede e a agrediu (2023-11-08_16-25-48, minuto 00:08:50).
d. Por outro lado, a mesma testemunha refere que a assistente lhe disse que a agressão ocorreu porque o arguido colocou um forno perto da zona onde ela semeava batatas (2023-11-08_16-25-48, minuto 00:07:00).
e. De acordo com o ponto 12 da acusação “…. o arguido agarrou as correntes que prendem os aludidos cães e, com as mesmas, desferiu uma pancada na cabeça da ofendida e na mão esquerda…”.
f. Porém, em audiência de julgamento, a assistente referiu que o arguido a atingiu, numa só pancada com a corrente, ao mesmo tempo na cabeça, no ombro e entre os dois dedos de uma mão - 2023-11-08_15-33-22 minuto 00:12:42.
g. E tudo isso, como se disse, com uma corrente de cerca de um metro, fixa na parede, próximo do solo.
h. Ora, a ser certa a versão da assistente, teriam sido detectadas outras lesões, na cabeça e no ombro, tanto mais que a pancada teria o maior impacto na cabeça e só depois no resto do corpo…
i. Mais ainda: é impossível que uma única pancada pudesse atingir a cabeça, o ombro e ainda a zona entre o 1º o 2º dedo.
j. Porém, decorre tão só, do relatório médico-legal a seguinte lesão (nosso sublinhado): “membro superior esquerdo: escoriação avermelhada, com crosta hemática puntiforme, localizada na região entre o 1º e o 2º dedo.”.
k. Assim, o relatório médico, considerado na sentença como elemento decisivo para sustentar a tese da assistente, é a prova que descredita essa mesma tese!
l. É imperativo ressaltar que tal lesão não poderia, de modo algum, ter sido decorrente da suposta agressão descrita nos moldes apresentados pela assistente
m. De acordo com a tese da assistente, acolhida na sentença, a alegada e única pancada atingiu precisamente a região da cabeça da assistente, seguida pelo ombro e, por fim, pela mão esquerda (2023-11-08_15-56-5816m:45s, minuto 00:08:09)
n. Como é plausível que uma lesão limitada aos interstícios dos dedos possa ser atribuída a uma agressão com tal sequência e alcance?!
o. Ainda nesta matéria é importante lembrar que a assistente, alegada vitima de violência doméstica, é que (mesmo na tese da acusação) abordou o arguido e gerou uma discussão.
p. O arguido afirmou que a assistente tinha prendido mal a corrente e, como esta não rodava, foi ficando ensarilhada de modo que o “cãozinho” estava preso com apenas alguns centímetros de espaço, pelo que o foi libertar.
q. Assim, também este ponto da matéria de facto não podia ser dado como provado.
XI. No que se refere ao Ponto 7:
a. Deve ser alterada a parte inicial, por ser prejudicado pela resposta aos pontos anteriores.
XII. No que se refere aos Pontos 9, 18 e 20:
a. Face à alteração dos pontos anteriores, fica afastada a existência de qualquer agressão, pelo que estes pontos deixam de fazer sentido e saem prejudicados.
b. Aliás, também inexiste prova que os sustente.
XIII. Quanto aos Pontos 9 e 17:
a. Desde logo, tem de ser dados como não provados em consequência das alterações dos restantes pontos da matéria de facto.
b. Importa lembrar que a sentença considera que não existem motivos para optar entre a tese da assistente e a do arguido, fundando a decisão da matéria de facto na prova pericial.
c. De qualquer forma, nenhuma prova foi produzida no sentido de demonstrar o elemento subjectivo do tipo de crime, em particular o estado de espírito do arguido, sendo certo que nada na motivação da sentença permite concluir pelo contrário.
d. Bem pelo contrário, a tese da sentença vai no sentido de haver uma reciprocidade de troca de palavras (ponto 5 dos factos provados).
e. Acresce que, de acordo com o ponto 12 da acusação, foi a assistente a questionar o arguido pelo motivo de ter solto os cães.
f. Mesmo no depoimento da assistente, é manifesta a sua animosidade e reactividade, que são o oposto do verificado nas situações de violência doméstica.
g. Seja como seja, nenhuma prova permite determinar que o arguido actuou de acordo com o quadro subjectivo inerente ao preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica.
h. Mesmo na tese da sentença, haveria apenas duas altercações e nada mais, sem qualquer intenção de atingir a dignidade da vítima ou de lhe infligir maus tratos.
i. Nada na prova permite concluir pela existência de um maltratar físico e psicológico e muito menos de forma reiterada, como foi dado como provado.
j. Bem pelo contrário, mesmo na versão da assistente e no raciocínio na sentença, a assistente actua num quadro totalmente equilibrado com o do arguido, interagindo com ele em igualdade, tomando a iniciativa, questionando-o e procurando-o para tirar satisfações.
k. Nesse sentido, temos as suas próprias afirmações de que o questionou sobre as varetas do estendal e sobre os cães (para além de outras situações que o tribunal deu como não provada).
l. Nesse sentido também é que, mesmo na sua tese, depois de agredida, não se afastou ou protegeu, mas antes andou a cirandar de um lado para o outro com as varetas, do quintal para a rua, da rua para o quintal, da zona lateral da casa, ora para a frente, ora para a garagem nas traseiras.
m. Assim, considerar provados estes (e outros) pontos da matéria de facto, não tem o menor suporte na prova produzida, a qual até os afasta.
XIV. Finalmente, no que se refere aos Pontos 18, 19 e 20:
a. Devem ser dados como não provados, pelos mesmos motivos supra referidos, bem como por serem prejudicados pelos demais.
b. O arguido não agrediu, nem teve intenção de agredir e, tirando o facto de os relatórios médicos terem verificado que a assistente apresentou duas pequeníssimas escoriações, nada mais se provou.
XV. Temos ainda de analisar o relevo dado aos relatórios médico legais, não só como suporte à alteração da matéria de facto, em particular dos pontos 6 e 6 (repetido), mas também como prova das contradições na fundamentação na sentença.
XVI. Na verdade, na sentença foi atribuída uma força decisiva a esses relatórios, quando, na verdade, e salvo o devido respeito, estes não só não permitem sustentar os factos dados como provados, como até suportam a tese do arguido.
XVII. Pela sua natureza, o relatório médico legal é neutro e insuficiente para estabelecer o nexo de causalidade entre a conduta imputada ao arguido e o resultado.
XVIII. Assim, importa salientar que esses relatórios confirmam apenas que se trata de uma pequena escoriação entre dois dedos da mão esquerda e uma pequena equimose no peito da assistente.
XIX. A origem dos mesmos coaduna-se muito mais com a tese do arguido, do que com a tese da assistente (acolhida na sentença).
XX. Neste sentido, à mingua de qualquer exposição que permita conceber a decisão do tribunal, não resta senão qualificá-la como arbitrária e discricionária, alheia ao circunstancialismo do caso em concreto, sem apuramento do nexo de causalidade e, para além de, com o devido respeito, contrária àquilo que são as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, pelo que se impõe que essa matéria seja dada como não provada e absolvido o arguido.

Sem conceder:
XXI. Mesmo na linha de raciocínio da sentença, os factos que daí podem considerar-se provados jamais poderiam sustentar o tipo legal do crime de violência doméstica.
XXII. Nos tempos que correm, quem for acusado de violência doméstica tem contra si, em termos de facto, uma presunção de culpa, mais parecendo que foram retirados do Código Penal os crimes de ofensa à integridade física, injúrias, etc, se cometidos entre cônjuges, ex-cônjuges ou das pessoas referidas no art. 152 do Código Penal.
XXIII. Só que, seguindo a linha de raciocínio da sentença, nada se poderia concluir no sentido da pratica do crime de violência doméstica, mas sim, quando muito, de ofensa à integridade física.
XXIV. Além de que, ainda que se dessem como provadas as duas agressões, não poderia ser dada como provada qualquer outra matéria que permitisse preencher o tipo legal do crime de violência doméstica, nomeadamente o seu elemento subjectivo.
XXV. Com efeito, não havendo motivos para dar mais credibilidade a uma versão do que a outra (como se diz na sentença), nada se poderia provar que fosse além das duas agressões.
Sempre sem conceder:
XXVI. Independentemente do que ficou dito e sem prejuízo de pugnar pela sua absolvição, entende o arguido que, mesmo que se mantivesse a matéria de facto constante da sentença, ainda assim a pena aplicada e a indemnização em que foi condenado, são excessivos.
XXVII. O arguido tem mais de 70 anos e é primário, estando em causa duas situações de pouco relevo.
XXVIII. Além disso, o arguido foi condenado pela prática do crime previsto na alínea a), do nº 2 do art. 152 do Código Penal, ou seja, por se entender que teve lugar no domicílio comum, quando isso é totalmente contrário ao ponto 4 dos factos provados, de onde resulta que, desde ../../2022, vivem em pisos separados e fazem vidas separadas.
XXIX. Aliás, isso foi decidido em tribunal, passando cada um deles a ter a sua residência, resultado até da prova produzida que cada um deles refez a sua vida e tem um novo companheiro/a.
XXX. Face a isso, não faz sentido aplicar a norma em causa, que prevê uma moldura penal de dois e cinco anos, quando na verdade, mesmo na tese da sentença, teria e ser aplicada a moldura penal de um a cinco anos, prevista no número um do art. 152 do CP.
XXXI. Daí que, considerando as condições do caso concreto, mesmo na tese da sentença, jamais se justificaria aplicar uma pena superior a um ano de prisão, suspensa como foi
XXXII. No que se refere ao pedido de indemnização, não se provou qualquer facto que justifique a indemnização de € 2.300,00.
XXXIII. Importa lembrar que estamos perante pequeníssimas escoriações, sem qualquer incapacidade para o trabalho, não se tendo provado qualquer impacto na vida da assistente, não se justificando uma indemnização superior a € 300,00.»
Pugna o recorrente pela revogação da sentença e sua substituição por outra «que absolva o arguido ou, pelo menos, reduza a pena aplicada e o valor da indemnização cível».
O recurso foi admitido.
O Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta, na qual defende não assistir razão ao recorrente, sendo as conclusões:
«1. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão, indicando expressamente os meios de prova produzidos em julgamento que formaram a convicção do Tribunal quanto aos factos que teve por provados e não provados e explicitou ainda os motivos e o processo lógico e racional que estiveram na sua base.
2. Às considerações tecidas pelo Mmo. Juiz, cumpre apenas salientar que os ferimentos causados na assistente no dia 7 de Abril de 2023, foram causados na sequência do arguido ter empurrado o estendal de roupa contra o corpo daquela, o qual apresentava um dos tubos metálicos partidos, pelo que nenhuma discrepância existe entre os factos descritos na acusação e os factos considerados provados.
3. Urge concluir que o Tribunal a quo realizou de forma plenamente satisfatória as exigências de objectividade, lógica e motivação que o princípio da livre apreciação postula, pelo que o concreto uso que fez do material probatório posto à sua disposição não é susceptível de censura.
4. Resulta evidente que merece a nossa inteira concordância o enquadramento jurídico-penal dado na douta sentença aos factos nela dados como provados, pelo que não poderia o Tribunal a quo deixar de condenar o arguido, como fez, pela prática do crime de violência doméstica.
5. O bem jurídico protegido pela norma (que pune o crime de violência doméstica) é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos.
6. Mais recentemente, tem-se entendido que o bem jurídico a proteger terá de conectar-se com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico. Dito de outro modo, o tipo penal em causa é assim constituído, a título principal, pela saúde da vítima e, ainda, de forma secundária ou reflexa, pela pacífica convivência familiar ou doméstica.
7. Ficou provado que o arguido e a assistente foram casados e analisada a demais factualidade dada como provada, dúvidas não há de que as agressões infligidas pelo arguido à sua ex-mulher, próximas temporalmente, com alguma gravidade, atentas desde logo as lesões apresentadas, e por motivos fúteis, são aptas a preencher o tipo legal de crime pelo qual foi condenado.
8. Perante o circunstancialismo provado, dúvidas não temos de que a atuação do arguido assume a gravidade que se exige por forma a poder concluir-se que, por via dela, o arguido atentou contra a dignidade daquela que foi a sua esposa, no sentido exigido pela norma incriminatória: de proteção do elemento familiar, a que ambos continuam vinculados devido à existência de uma descendente comum.
9. Considerando os factos assentes e a fundamentação apresentada, concorda-se com as considerações feitas pelo Meritíssimo Juiz quanto à determinação do quantum da pena aplicada ao recorrente.
10. Entendemos que se verifica, efectivamente, a agravativa plasmada no nº 2, alínea a) do artigo 152º. É certo que o arguido e a assistente, não obstante separados, continuam a residir no mesmo prédio, ele no primeiro piso, ela no rés-do-chão, tendo os factos ocorridos no logradouro da residência, quer do arguido, quer da assistente, apenas não se considerando residência comum no sentido de os mesmos continuarem a coabitar. Contudo, se dúvidas pudessem existir em considerar a residência comum no sentido conferido pelo tipo incriminador, dúvidas já não existirão de que o local em causa nos autos se trata do domicílio da vitima.
11. No caso vertente, tendo em atenção a imagem global e unitária do facto, afigura-se-nos que as exigências de prevenção geral se fazem sentir com especial relevo.
12. A verdade é que, face aos atuais números da violência doméstica em Portugal, temos necessariamente de considerar as muitíssimo elevadas as exigências de prevenção geral neste tipo de crime, sendo premente a reposição contrafática da norma violada pelo agente.
13. De igual modo, são relevantes as necessidades de prevenção especial.
14. O arguido, não obstante não ter antecedentes criminais, não admitiu os factos por si praticados, não revelando, assim, qualquer arrependimento, atuou com dolo direto, sendo o grau da ilicitude mediano, desde logo as lesões apresentadas pela assistente.
15. Ponderando os diferentes critérios de determinação da medida concreta da pena, maxime uma medida da culpa elevada e exigências inderrogáveis de prevenção especial e de defesa do ordenamento jurídico, julgamos que, no caso presente, a pena concretamente aplicada se mostra adequada.
16. Uma pena mais baixa colocaria, em nosso entender, irremediavelmente em causa as finalidades da punição jurídico-penal, uma vez que destituiria de conteúdo as finalidades preventivas e sancionatórias da punição.
17. E isto é assim, uma vez que as circunstâncias do facto, a natureza do crime e o bem jurídico violado demandam uma medida mínima de defesa do ordenamento jurídico não compatível com uma pena mais reduzida.
18. Não podemos deixar de considerar que a pena aplicada ao arguido se mostra inteiramente adequada e proporcional às exigências preventivas e sancionatórias do caso vertente.»
Também a assistente respondeu, com as seguintes conclusões:
«A. Segundo o arguido, não se fez prova de que o arguido tenha praticado os factos de que vem acusado, porquanto, o mesmo foi coerente ao longo do seu julgamento, contrariamente à assistente.
B. Para além dessa argumentação não ter qualquer fundamento, o certo é que é ao tribunal e não ao recorrente, que compete apreciar a prova, de acordo com a sua livre convicção
C. Como refere o ARG de 08/04/19 (Proc. 1313/17.8T9BRG.G1), disponível em www.dgsi.pt: “Realmente, não pode olvidar-se que, em factos como os ora em apreço, as declarações da vítima têm uma especial relevância, dado o ambiente resguardado que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, algumas das vezes, sem deixar vestígios que permitam a sua constatação por outras pessoas ou por uma perícia determinante, sob pena de impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma reservada como são, em geral, os crimes de violência doméstica. – negro e sublinhado nosso.
D. Acresce que, o entendimento do recorrente coloca em causa o princípio da livre apreciação da prova que vigora quer no direito civil como no direito penal e de acordo com o qual o tribunal “aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.” - art.º 127ºCPP. Ora, por força deste princípio, uma vez fixada a matéria de facto, esta não mais poderá ser alterada, excepto se ocorrer uma das situações previstas pelo art.º 431º do CPP, que já referimos não estão aqui em causa.
E. Ora, o recorrente está a confundir o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, com erro notório na apreciação da prova, pois só existe erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal.
F. Nada no texto da sentença recorrida, em conexão com as regras da dita experiência comum, impõe uma conclusão contrária à que foi exposta pelo tribunal, e isso é que é erro na apreciação da prova.
G. Aliás, “Não viola qualquer regra de direito probatório a valorização só em parte do depoimento de uma testemunha. O Tribunal pode acreditar apenas em parte, não valorizando a totalidade do depoimento se, em face dos demais elementos de prova e de acordo com as regras da experiência e da lógica, se evidencie que, relativamente a certos factos, a testemunha assumiu um posicionamento interessado.” – Ac. TRG de 31/10/12, Ac. TRC de 19/02/13 ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
H. Ora, a sentença recorrida, na sua fundamentação indicou todos os meios de prova que serviram para formar a sua convicção, nenhuma delas proibida por lei (art.º 343º, 164º 170º e 128º a 139º CPP), e todas da livre apreciação do julgador segundo as regras da experiência comum e a sua convicção pessoal (art.º 127º CPP). Além disso, elaborou a sua análise critica, explicitando individualmente os elementos de prova que considerou primordiais, bem como o crédito probatório que concedeu e denegou a cada um deles para a formação dessa mesma convicção.
I. Também não colhe o argumento de que a audiência teve de ser interrompida para que se procedesse à leitura do depoimento prestado pela assistente por haver discrepância entre as suas declarações, prestada em julgamento e aquelas que prestou em inquérito.
J. Em primeiro lugar não houve qualquer interrupção da audiência. O que aconteceu foi que o MP requereu a sua leitura, não porque a assistente estivesse a mentir ou a contradizer-se, mas apenas para avivar a sua memória quanto à data da prática dos factos. Como é sabido, é óbvio que quando se prestam declarações no inquérito, todos os intervenientes processuais (testemunhas assistentes, ofendida) têm a memória e a percepção dos factos mais “fresca”, pelo que é normal que com o decorrer do tempo, existam pormenores que a/o depoente já não se recorde ou até confunda.
K. Note-se que em causa está um crime de violência doméstica, sendo certo que, por este crime já foi aplicada ao arguido o instituto da suspensão provisória da pena, além de também ter sido julgado pelo mesmo crime.
L. Como refere o Ac. do STJ, de 20/02/19 (Proc. 25/17.7GEEVR.S1) disponível em www.dgsi.pt   “A falta de elementos mais circunstanciados respeitantes à localização temporal dos maus tratos tem que ser compreendida no contexto em que este tipo de crime ocorre, em dinâmica intrafamiliar, a maioria das vezes sem a presença de outras pessoas para além do ofensor e da ofendida sendo que, no caso dos autos, quem mais esclarecimentos podia prestar, a vítima, foi silenciada com 17 facadas desferidas pelo arguido. Acresce que, perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, os episódios em concreto diluem-se na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido, um pouco à semelhança de cada árvore que vê a sua individualidade ocultada na floresta. – negro e sublinhado nosso.
M. Acresce que, ao contrário do que diz o arguido, quando se fez referência à palavra “tubo” quer na sentença quer ao longo do julgamento, todos compreenderam que a assistente se estava a referir aos “arames” do estendal.
N. Deste modo, fica claro que o arguido quer abalar o depoimento da assistente, pois bem sabe que a mesma fez num relato que se evidenciou espontâneo, sincero, genuíno, isento e crível, e embora não tenha seguido a cronologia dos factos tal como descritos na acusação (o que demonstra ainda mais a isenção e credibilidade da ofendida) a mesma acabou por relatar parte desses factos acrescentando, ainda, pormenores quanto aos mesmos. Aliás, basta ouvir a gravação do seu depoimento, na sua totalidade, para facilmente se chegar a essa conclusão.
O. Quanto ao depoimento da filha, não assistiu aos factos, pelo que, tal como foi possível depreender, a mesma limitou-se a relatar aquilo que foi a sua percepção dos factos. Daí que o tribunal não tenha dado qualquer importância ao seu depoimento.
P. Quanto à qualificação do crime para este efeito, deve entrar em cena a desconsideração pela dignidade pessoal da vítima imanente ao comportamento violento próprio dos maus tratos. Esse desprezo do agressor pela sua dignidade revela um pesado desvalor de ação que agrava a ilicitude material do facto. Tudo o que empresta à violência doméstica um grau de anti juridicidade que transcende o da mera ofensa à integridade física e assim justifica a sua punição mais severa e a sua prevalência em sede de concurso”. (…) O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos”.
Q. Salvo o devido respeito, atenta o acima referido e a matéria de facto dada como provada é inequívoco que em causa está um crime de violência doméstica.
R. Finalmente, no que respeita à medida da pena é mais do que adequada à situação concreta, atendendo às circunstâncias do facto, o grau de ilicitude, e outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime – art.º 71º, nº 2 CP.
S. Quanto ao pedido de indemnização civil, o derradeiro pressuposto da responsabilidade civil por factos ilícitos - nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima - encontra igualmente eco na matéria de facto apurada.
T. Face à matéria de facto dada como provada, justifica-se a indemnização por danos morais que foi fixada, e não podemos olvidar que, tal como se constatou da audiência de julgamento, a ofendida, estava numa situação particularmente indefesa.
U. Assim, a decisão recorrida cumpriu as regras da equidade e levou em consideração a situação económica, sendo certo que as fundamentou devidamente, nomeadamente na matéria de facto que ficou provada e que, obviamente não a ia reproduzir.»
Conclui que a sentença recorrida não merece censura, pelo que deve ser mantida.
Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta entende que o recurso deve ser rejeitado na parte relativa ao pedido de indemnização civil, que o recorrente confunde as formas de impugnação dos arts. 410.º e 412.º do Código de Processo Penal[2] (inexistindo no caso os da primeira norma), que inexiste erro de julgamento quanto aos factos provados 5, 6, 5, 6 – repetidos –, 7 e 8, não tendo sido violado o princípio in dubio pro reo; levanta dúvidas quanto à forma como o Tribunal a quo chegou à prova dos factos 9 e 17, e é de parecer que assiste razão ao recorrente no que respeita à qualificação jurídica dos factos como crime de violência doméstica, afigurando-se-lhe que o arguido deverá antes ser condenado pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º do Código Penal.
Defende, assim, a parcial procedência do recurso.
Cumprido o contraditório, não houve resposta.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Delimitação do objecto do recurso

Nos termos do art. 412.º, n.º 1, e face às conclusões do recurso, são quatro as questões a resolver:

- se, na sentença, há erro notório, contradição insanável da fundamentação e entre esta e os factos provados;
- se há erro de julgamento; 
- qual deve ser o enquadramento jurídico dos factos;
- se a medida da pena é excessiva.

Sem prejuízo das consequências, na esfera do pedido de indemnização civil, da resolução das questões supra referidas, importa lembrar que, nos termos do art. 400.º, n.º 2, “o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
A alçada da 1.ª instância é de € 5.000,00 (art. 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto); ora, no caso o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente tem precisamente esse valor (ref.ª ...85).
Ou seja, está vedado por lei à assistente sindicar autonomamente o pedido de indemnização civil (conclusões XXXII e XXXIII), não sendo o recurso admissível nesta parte.

B. Decisão recorrida

1. Factos provados
«1.- A ofendida BB e o arguido contraíram matrimónio a 26.12.1971 e separaram-se judicialmente de pessoas e bens por sentença transitada em julgado em 03.05.2021.
2. A ofendida e o arguido têm uma filha em comum, CC, nascida a ../../1973.
3. Durante o matrimónio, a ofendida e o arguido fixaram residência em habitação sita na Rua ..., em ..., ....
4.- Após a separação do casal, ou seja, a partir de junho de 2022, o arguido passou a residir no piso superior da referida habitação e a ofendida ficou a residir no ... da habitação, fazendo, desde então, a ofendida e o arguido vidas separadas.
5.- Sempre que ambos se cruzam no quintal dessa residência, existe uma troca de palavras entre ambos de conteúdo não concretamente apurado.
6.- Em data não concretamente apurada, mas próximo do dia ../../2023, no quintal da habitação, após uma troca de palavras de conteúdo não concretamente apurado, o arguido pegou no estendal, constituído por tubos de metal e, com o mesmo, desferiu uma pancada no peito da ofendida.
5.- Em virtude da atuação do arguido, a ofendida sofreu equimose e, no dia 09.04.2023, dirigiu-se ao Centro Hospitalar ... para tratamento.
6.- No dia 08.05.2023, pelas 13h15m, no exterior da residência comum, após uma breve troca de palavras por causa dos cães que ambos cuidam, o arguido agarrou numa das correntes que prendem os aludidos cães e, com as mesmas, desferiu uma pancada na mão esquerda desta, causando-lhe dores.
7.- Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, sofreu a ofendida as seguintes lesões: membro superior esquerdo: escoriação avermelhada, com crosta hemática puntiforme, localizada na região entre o 1º e 2º dedo.
8.- Tais lesões determinaram 5 (cinco) dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral.
9.- Ao atuar da forma e nas situações descritas, o arguido sabia que estava a maltratar física e psicologicamente, de forma reiterada, a sua ex-mulher e mãe da sua filha e violava os deveres de respeito e solidariedade que sabia lhe incumbirem, querendo agir da forma por que o fez.
17.[3] O arguido sabia que ao comportar-se da forma descrita relativamente à ofendida, sua ex-mulher e mãe da sua filha, a submetia a sofrimento psicológico, causando-lhe a humilhação e tratamento degradante e atentatórios da sua honra, dignidade e autoestima, lesando-a na sua integridade física, moral, honra e dignidade pessoal.
18. Sabia o arguido que molestava o corpo e a saúde da ofendida, resultado que quis e previu.
19. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
20.- Na sequência da conduta do arguido supra evidenciada, a demandante sofreu dores, tristeza e humilhação.
21.- O arguido não tem antecedentes criminais.
22.- O arguido aufere uma reforma de 670,00 euros, vive em casa própria e tem o 4.º ano de escolaridade.»

2. Factos não provados
«Não se provaram os demais factos descritos na acusação, na contestação, do pedido de indemnização civil e da contestação que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes, nomeadamente, os seguintes:
1.- A partir de junho de 2022 e até ao dia ../../2023, o arguido, pelo menos três vezes por semana, quando se cruza com a ofendida na parte exterior da habitação de ambos, apelida-a de puta e bêbeda.
2.- E diz-lhe: vai para os amantes; qualquer dia vou te matar.
3.- Em dia não concretamente apurado de fevereiro de 2023, no quintal da habitação, a ofendida e o arguido iniciaram uma discussão por motivos não concretamente apurados; então o arguido desferiu duas bofetadas no rosto da ofendida
4.- No dia 07.04.2023, em momento anterior às 12h45, o arguido dirigiu-se ao quintal da habitação e arrancou número indeterminado de pés de batata e couve que haviam sido plantados pela ofendida, assim a perturbando.
5.- No dia 07-04-2023, pelas 12h45, no quintal da habitação, o arguido apodou a assistente de puta e bêbeda.
6.- No dia 08.05.2023, pelas 13h15, no exterior da residência comum, o arguido apodou a assistente de puta, vaca e bêbeda.
7.- E, depois, o arguido desferiu um empurrão no corpo da ofendida, fazendo-a embater num tanque existente no local.»

3. Motivação
«O Tribunal formou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada à luz das regras de experiência comum e de normalidade, designadamente, na ponderação e conjugação das declarações do arguido e da ofendida/assistente com a certidão do assento de nascimento da ofendida de fls. 30, com o teor dos registos clínicos do Centro Hospitalar ... de fls. 70 e com o teor do relatório médico legal de fls. 90.
O arguido e a assistente apresentaram versões contraditórias dos factos no período em discussão, ou seja, após a separação do casal.
Na versão do arguido, ele é que é a vítima das constantes injúrias e ameaças por parte da assistente, dada a sua proximidade física diária.
Assim, no essencial, o arguido negou qualquer injúria, negou qualquer ameaça e negou qualquer agressão nos termos que lhe são imputados no libelo acusatório.
Por sua vez e no que diz respeito ao episódio que envolveu o “estendal” (“tubo metálico”), invocou que o ferimento que a assistente apresentava nesse dia e hora no respetivo peito foram resultados da sua própria ira (da assistente), uma vez que a assistente agarrou o estendal contra o seu peito, causando, assim, tal ferimento.
Por fim, elucidou o tribunal de que nunca podia ter agredido a assistente com a corrente que prende o cão porquanto esta não mede mais de um metro e meio e estas suas características não permitem o seu arremesso contra o corpo de qualquer pessoa.
Já na versão da assistente, o arguido chama-lhe constantemente “puta, vaca e bêbeda”; ameaça-a frequentemente que a “mata”; agrediu-a com o estendal; agrediu-a com as correntes do cão e ainda lhe desferiu duas bofetadas nas circunstâncias de tempo e lugar descritos no libelo acusatório.
Ora, ambas as versões, apesar de contraditórias, merecem a mesma credibilidade.
Com efeito, do confronto apenas destas duas versões, não existe nenhum elemento probatório que nos permita desvalorizar, sem mais, qualquer uma delas.
Neste contexto, do simples confronto dessas duas versões, sem mais, e por força do Principio Constitucional in dubeo pro reo, impunha-se dar como não provada toda a factualidade uma vez que ambas são credíveis e nenhuma das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento, nomeadamente, as testemunhas DD, EE e CC, como referiram expressamente, no período de tempo limitado em apreço nos autos, assistiu a qualquer injúria proferida pelo arguido na direção da assistente; presenciou qualquer ameaça do arguido ao bem-estar da assistente e não testemunhou qualquer agressão do arguido à assistente.
Acontece que, se tal entendimento até merece aceitação no que diz respeito às putativas injúrias, às alegadas ameaças e às supostas bofetadas descritas no libelo acusatório, já fica prejudicado no que diz respeito às duas agressões ocorridas no dia 07-04-2023 e 08-05-2023, uma vez que existe prova bastante nos autos que corrobora, nesta parte, a versão credível da assistente.
Com efeito, atento o teor dos registos clínicos do Centro Hospitalar ... de fls. 70 e o teor do relatório médico legal de fls. 90, temos como certas estas duas agressões do arguido à assistente, nos termos por esta descritos, porquanto esta sua versão é complementada por registos médicos que indicam claramente como causa desses ferimentos uma agressão.
Assim, se é verdade que a virtualidade processual do Principio Constitucional in dubeo pro reo teve aceitação no que diz respeito aos demais factos relatados pela assistente e pelo arguido, porque contraditórios entre si e, por essa razão, duvidosos quanto à sua ocorrência, já no que concerne às duas identificadas agressões, o tribunal ajuizou que as mesmas ocorreram porquanto foi apresentada prova pericial que corrobora a causa dos relatados ferimentos na mão da assistente na sequência da apontada agressão com a corrente nos termos relatados pela assistente e informação clínica que confirma as consequências da agressão com o dito estendal nos termos relatados pela assistente.
E este nosso juízo não fica prejudicado com o argumento de que as correntes que prendem o cão não têm comprimento suficiente para agredir a assistente uma vez que aquando dessa agressão, como disse circunstanciadamente a assistente, esta estava debruçada sobre o prato da comida do cão e muito próxima dessa mesma corrente, ou seja, estava ao alcance da mesma, com aconteceu.
O comprimento dessa corrente, como reiterado na audiência de julgamento, não obstaculizou, assim, a concretização dessa agressão do arguido nos termos relatados pela assistente.
E o mesmo se dirá quanto à agressão com o dito estendal pois o ferimento que a assistente apresentava na sequência dessa agressão – cfr. registo clínico junto aos autos a fls. 70 - não resulta de um mero “encostar” do estendal no seu peito, como pretendeu fazer crer o arguido.
Na verdade, se dúvidas existem quanto aos demais factos, como já evidenciado, nenhuma dúvida nos assola quanto às duas agressões ocorridas nos dias 07-04-2023 e 08-05-2023, respetivamente, porquanto a credibilidade da versão da assistente, quanto às mesmas, está parcialmente comprovada pelo relatório pericial e pelo registo hospitalar juntos aos autos.
A credibilidade da versão da assistente quanto a estas duas agressões está, portanto, reforçada por estes registos médicos e periciais, prejudicando, assim, nesta parte, a versão do arguido.
Dúvidas não há, portanto, atento o quadro probatório supra evidenciado, que a ofendida sofreu duas agressões por parte do arguido no período em discussão nos autos.
Por sua vez, no que diz respeito aos factos descritos no pedido de indemnização civil, o tribunal, na sequência do depoimento credível da testemunha CC, dada a sua proximidade diária com a vítima, ajuizou que a assistente, após essas duas agressões, para além da indiscutível dor, sentiu tristeza, humilhação e vergonha.
Ainda no que diz respeito à prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, o depoimento da testemunha FF foi desvalorizado pelo tribunal uma vez que se limitou a dizer que ouviu, “duas ou três vezes”, o arguido a apodar a assistente de “puta e vaca”, sem, porém, concretizar se essas palavras foram proferidas pelo arguido no período em discussão nos autos (note-se que o arguido já foi julgado pela prática de um crime de violência domestica).
Para além disso, esta testemunha apenas confirmou os ferimentos no peito e na mão da ofendida, nada mais acrescentando aos registos médicos juntos aos autos.
Os demais factos não provados resultaram da inexistência de qualquer prova quanto à sua ocorrência ou a prova produzida foi manifestamente insuficiente para os dar como provados.
Por fim, foi relevante o CRC junto aos autos quanto aos antecedentes criminais do arguido, e as declarações deste quanto à sua situação sócio económica.»

4. Enquadramento jurídico dos factos provados[4]
«O arguido vem acusado pela prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a), 4 e 5 do Código Penal.
De harmonia com o preceituado nos citados preceitos legais, pratica os ilícitos em causa quem infligir:
- maus-tratos físicos ou psíquicos, castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.
- ao cônjuge ou ex-cônjuge;
- de modo reiterado ou não.
O bem jurídico protegido com o aludido tipo é a saúde física, psíquica e mental do cônjuge, ex-cônjuge ou de pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou de pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou dependência económica que com ele habite, bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge ou dessa pessoa.
As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies, como seja, designadamente, o caso de maus-tratos físicos, isto é, ofensas corporais simples, privações de liberdade e ofensas sexuais.
Atualmente, e como já vinha sido defendido pela nossa jurisprudência[5] e alguma doutrina, o crime de violência doméstica é, de facto, preenchido apenas com uma conduta agressiva[6] .
A criminalização das condutas inseridas na chamada "violência doméstica", e consequente responsabilização penal dos seus agentes, resulta da progressiva consciencialização da sua gravidade individual e social, sendo imperioso prevenir as condutas de quem, a coberto de uma pretensa impunidade resultante da ausência de testemunhas presenciais, inflige ao cônjuge ou a pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou de pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou dependência económica que com ele habite maus tratos físicos ou psíquicos que ocorrem normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservado da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada dum casal.[7]
A maior gravidade do ilícito reside, desde logo, na circunstância de os maus-tratos ao cônjuge traduzirem uma marca visível de sinal contrário aos deveres específicos, legalmente descritos, de forma igualitária, para ambos os cônjuges.
Em síntese, decorre da qualidade de cônjuge, ex-cônjuge, de menor, de pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou de pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou dependência económica que com ele habite, e da sua relação de proximidade da vítima. A especificidade deste tipo de crime encontra o seu fundamento no especial desvalor da ação e na particular danosidade social do facto[8].
Deste modo, o fundamento da agravação especial é um fundamento duplo de maior ilicitude do facto e, com isso, da maior culpa espelhada no facto.
Trata-se do exercício ilegítimo do poder de um cônjuge, ex-cônjuge ou de pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, sobre o outro que põe em causa a igualdade e a família que é um espaço de realização pessoal dos seus membros e, havendo filhos, os maus tratos conjugais põem em causa e afetam o normal desenvolvimento e crescimento sadio e integral dos mesmos que, aliás o estado tem o dever de promover e proteger, face ao artigo 69.º, da C.R.P..
Quanto ao elemento subjetivo, o tipo legal basta-se com o dolo em qualquer das suas modalidades, nos termos do art.º 14º - direto, necessário ou eventual, o que constitui uma inovação à versão originária do Código que exigia, como elemento constitutivo do crime, que o agente agisse com malvadez ou egoísmo (dolo específico).
Ora, apreciando o comportamento do arguido à luz do exposto, é indubitável que o arguido incorreu na prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do Código Penal, que lhe é imputado na acusação pública.
Assim, preenchendo a factualidade apurada todos os elementos constitutivos do crime, tanto de natureza objetiva, como subjetiva (na veste de dolo direto), julgamos que o arguido cometeu o crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal.»

5. Determinação da medida da pena
«Concluindo-se que o arguido incorreu na prática do referido crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, e 152.º, n.º 1, al. a), e n.ºs 2, al. a) 4 e 5, do C. Penal, importa agora determinar a natureza e medida concreta da pena a aplicar-lhe.
Nos termos do citado artigo, o mencionado crime só é punido com pena de prisão.
Assim, considerando que o arguido terá de ser punido com uma pena de prisão, uma vez que este tipo legal não prevê qualquer pena alternativa, só falta agora proceder à sua determinação concreta.
E quanto a este aspeto, dever-se-á ter em atenção, em primeiro lugar, os limites mínimos e máximos da pena de prisão que são aplicáveis, em abstrato, ao crime de violência doméstica, o que, em face do disposto no artigo 152.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, significa que a concreta pena de prisão deverá ser encontrada dentro do limite mínimo de dois anos e o limite máximo de cinco anos.
E depois, tendo em consideração a culpa do agente e as exigências de prevenção (cfr. artigo 71.º, n.º1, do C.P.), que significa a consagração, como critérios fundamentais para a aplicação de uma pena, para além do chamado princípio da culpa (cfr. também artigo 40.º, n.º 2, do C.P.), a teoria da prevenção geral positiva ou de integração (a qual tem por função fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa, e, no mínimo, fornecido pelas exigências irrenunciáveis da defesa do ordenamento jurídico, ou seja, pela tutela das expectativas da comunidade na manutenção - ou mesmo reforço - da vigência da norma infringida), e a teoria da prevenção especial ou de socialização, cuja função é encontrar o “quantum” exato da pena que melhor sirva as exigências de socialização ou reintegração do agente na sociedade.
Assim, no presente caso, considerando a intensidade da culpa do agente (dolo direto), o período temporal em que essas agressões físicas e verbais perduraram, a gravidade das ofensas físicas e morais, as consequências diminutas dessas agressões físicas na saúde da ofendida, as elevadas exigências de prevenção geral (nos dias de hoje a violência conjugal é um dos grandes flagelos da nossa sociedade), e as medianas exigências de prevenção especial (o arguido não tem antecedentes criminais), julgamos adequado e justo condenar o arguido numa pena de dois anos e seis meses de prisão.
(..) Prescreve o n.º 1, do artigo 50.º, do Código Penal que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Ora, no caso dos autos, atendendo ao facto do arguido estar inserido do ponto de vista social, conclui-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades subjacentes à aplicação das penas: proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Dito isto, determinamos que a pena de prisão em que o arguido foi condenado seja suspensa na sua execução, pelo mesmo período, sujeita a regime de prova.»

C. Apreciação do recurso

1. Do erro notório, da contradição insanável da fundamentação e entre esta e os factos provados
Prevê o art. 410.º, n.º 2: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: (…) b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova”.
Como é transparente na leitura desta norma, só há uma fonte possível para avaliar a existência de qualquer um destes vícios: a decisão recorrida (e não os elementos exteriores a ela, como é o caso dos meios de prova produzidos no processo), sozinha ou em conjunto com as regras da experiência (critério orientador do princípio da livre apreciação da prova do art. 127.º).
Assim, haverá contradição insanável da fundamentação (da motivação da sentença) caso, por exemplo, constem dela, como suporte de um ou mais pontos de facto, meios de prova incompatíveis entre si (quando se invoca, para a prova do mesmo facto, apenas dois depoimentos completamente contraditórios); e contradição entre a fundamentação e a decisão se o raciocínio explanado na motivação levaria necessariamente o julgador a concluir precisamente o contrário do que deu como provado.
Já o erro notório na apreciação da prova é, como a própria semântica demonstra, um engano que não escapa a um observador médio.
Tal acontece, por exemplo, “quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.[9]
Ora, lida atentamente a sentença recorrida, constata-se não só a inexistência de qualquer contradição insanável da fundamentação – onde se explica em detalhe quais foram os meios de prova produzidos, não se vislumbrando incompatibilidade entre eles – como também de contradição entre a fundamentação e os factos provados e não provados – já que o Mm.º Juiz a quo explica de forma coerente como chegou a estes através daquela, sem que se verifique arrepio às regras da experiência comum.
Também não há naquela peça processual nenhum erro notório: os factos provados aí narrados são naturalisticamente possíveis, não são incompatíveis com os não provados e do conjunto não tirou o Mm.º Juiz a quo conclusões ilógicas ou sem fundamento.
Aliás, quando lidas todas as conclusões, verifica-se um manifesto lapso do nomen iuris usado (conclusão V): “o que o recorrente alega, (…), mergulhando na análise dos depoimentos e de outras provas, é que a apreciação da prova é manifestamente errada. Mas isto é uma realidade que se não confunde com o erro notório na apreciação da prova[10] (nem, acrescente-se, com a previsão da alínea b) do art. 410.º, n.º 2).
Ou seja, o recorrente entende que a prova produzida não era suficiente para que o Tribunal a quo a interpretasse da forma como o fez, e que o devia ter feito de outra maneira, pelo que impugna a matéria de facto; ora, isso obviamente transcende o texto da decisão recorrida e deve ser analisado por este Tribunal – desde que cumpridos os respectivos requisitos legais – como erro de julgamento, que já se situa no âmbito do art. 412.º, n.º 3. O erro notório do art. 410.º “não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido” a do recorrente[11].
Quer dizer, “o recorrente limita-se a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe à do julgador, sem que da análise da leitura do próprio texto da sentença recorrida decorra a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.[12]
Carecem, assim, de fundamento os vícios do art. 410.º, n.º 2, supra analisados.

2. Do erro de julgamento

A decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada, nos termos do art. 431.º, b), “se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º”.
Prevê esta última disposição legal: “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Deixando de lado esta última alínea, já que o recorrente não pretende qualquer renovação da prova, restam as duas primeiras.
O recorrente observou o requisito da alínea a), porque especificou os pontos de facto que considera incorrectamente julgados – pontos 5, 6, 5, 6 (repetidos na sentença), 7, 9, 17, 18, 19 e 20 dos factos provados – e o destino (oposto) que para eles pretende.[13]
Quanto ao da alínea b), foi formalmente cumprido em relação aos factos 6, primeiro e segundo – com reflexos na parte inicial dos factos 5, segundo, e 7, bem como nos factos 9, 17, 18, 19 e 20 –, já que o recorrente indica, por referência aos minutos da gravação de cada uma, as passagens dos depoimentos em que funda a sua impugnação (conforme prevê o art. 412.º, n.º 4), bem como os elementos médicos (conclusões VIII a XIX).
 Já o mesmo não se pode dizer quanto ao facto 5, primeiro, em relação ao qual o recorrente afirma apenas que «nada nos autos permite sustentar que existe uma constante troca de palavras entre o arguido e a assistente»; porém, sendo notória (e até afirmada pelo recorrente) a inocuidade desse facto para a decisão desta causa – ou de qualquer outra, porque a circunstância de, sempre que se cruzam no quintal da residência, existir entre assistente e arguido uma troca de palavras entre ambos cujo conteúdo se desconhece não configura, como é evidente, nenhum crime –, daí sempre resultaria a desnecessidade deste Tribunal analisar criticamente a prova que o fundamenta, ainda que os citados requisitos legais do art. 412.º, n.º 3, tivessem sido cumpridos.
Nada há, por isso, a alterar nesse facto.
Quanto aos demais, importa uma observação prévia com particular relevância: para a reapreciação da matéria de facto, no âmbito pretendido pelo recorrente e com observância da citada norma, torna-se necessário que este indique provas concretas que teriam de determinar decisão diversa. Ou seja, não apenas provas que o Mm.º Juiz a quo poderia ter interpretado ou avaliado de forma diferente, mas as que o obrigariam a fazê-lo: nisso se traduz a opção legal em usar o verbo “impor”, no sentido de “obrigar a aceitar[14].
É que “a Relação não vai fazer um segundo julgamento da matéria de facto. O seu âmbito de cognição circunscreve-se aos pontos concretos e precisos dessa matéria que sejam contestados e identificados pelo recorrente, a partir das provas específicas por ele indicadas. Só se essas provas impuserem, o que significa determinarem necessariamente, inequivocamente, uma decisão diferente sobre aquele específico ponto, a Relação poderá modificar a matéria de facto (nesse ponto preciso).[15]
Compete ao Tribunal da Relação analisar os excertos para os quais (obrigatoriamente) remete o recorrente, bem como os aludidos elementos médicos, de forma a avaliar se, com base neles, se impunha que o Mm.º Juiz a quo tivesse, no caso, dado como não provados os factos 6, segundo, 5, segundo (inciso inicial), e 7 (inciso inicial), 9, 17, 18, 19 e 20.
Porém, não pode este Tribunal fazer essa análise de forma descontextualizada, como se especifica no n.º 6 do art. 412.º: “No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Ouvidas as declarações quer do arguido quer da assistente, e apreciadas em conjunto com os dados médicos – o episódio de urgência de 9.4.2023 (pág. 37 da ref.ª ...98) e o relatório de perícia médico-legal resultante do exame da assistente a 10 de Maio do mesmo ano (ref.ª ...64) –, pode retirar-se uma ilação principal: ao contrário do que pretende o recorrente, não há qualquer razão para dar mais credibilidade às declarações do arguido (de negação da prática dos factos) do que às declarações da assistente, não só porque esta explica de forma circunstanciada em que condições sofreu as duas agressões e como – precisando posições relativas de ambos, objectos usados e consequências delas resultantes, bem como datas (na primeira, referindo “sexta-feira Santa”, um feriado móvel que antecede o domingo de Páscoa, e na de Maio, a segunda feira a seguir ao “Dia da Mãe”, que é sempre no primeiro domingo de Maio) – mas também, tal como é referido na decisão recorrida, porque aqueles elementos clínicos confirmam a existência de lesões compatíveis com a actuação do arguido descrita pela assistente: no primeiro caso, equimose no peito (o episódio de urgência refere, no exame objectivo, que esta se situa “à volta da ferida”, sendo esta “ferida incisa mamária direita”); no segundo, “escoriação avermelhada, com crosta hemática puntiforme, localizada na região entre o 1º e 2º dedo” da mão esquerda.
O Mm.º Juiz a quo explica detalhadamente quais foram as razões que o levaram, no que respeita apenas a ambas as agressões, a dar mais credibilidade à assistente do que ao arguido, apenas nessa matéria havendo prova bastante para afastar a aplicação do princípio in dubio pro reo (ao contrário do que, também acertadamente, fez em relação aos demais episódios relatados na acusação e imputados ao arguido).
 Nos termos do art. 127.º, “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. A regra é, portanto, que o tribunal aprecie a prova de forma livre – ou seja, sem que haja critérios legais que a priori definam o valor a atribuir-lhe –, mas não ilógica, arbitrária ou baseada em impressões: “a liberdade de apreciação da prova, é, no fundo uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo. (…) a «livre» ou «íntima» convicção não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. (…) Se (…) se procura (…) uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal (…) mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. [Esta convicção] existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.[16]
Foi precisamente o que aconteceu quanto aos dois episódios ora em causa (factos 6, primeiro e segundo): conjugando as declarações da assistente com os elementos médicos, o Tribunal a quo encontrou fundamento bastante para concluir que as duas agressões tinham ocorrido da forma que ficou descrita, nas respectivas circunstâncias de tempo e lugar.
Quanto ao episódio do estendal, é irrelevante ter sido a assistente a pegar nele primeiro (tal como a própria confirma), uma vez que o recorrente também o fez: declarou a assistente, a instâncias do Mm.º Juiz a quo, “ele veio contra mim e deu-me com ele [estendal] no peito, cortou-me o peito”, “ele veio ao meu encontro e deu-me com uma vareta que me cortou o peito”, usando mais à frente a expressão “acaçou-me o estendal”; e, a pergunta do Ministério Público, disse que o recorrente tinha empurrado o estendal para ela.
Perante tal prova, é adequada a formulação usada pelo Tribunal a quo no facto 6, primeiro: é verdade que o arguido pegou no estendal, constituído por tubos de metal, e com ele desferiu uma pancada no peito da assistente, sendo inócua, para a descrição desta acção do recorrente, a circunstância de o estendal estar, ao mesmo tempo, na mão da assistente.
Relativamente ao sucedido com a corrente do cão (facto 6, segundo), duas observações se impõem, face ao alegado pelo recorrente:
- carece de qualquer relevância o depoimento da filha CC, uma vez que não estava no local no momento dos factos, pelo que se trata, nesta matéria, de um depoimento indirecto de valoração proibida (art. 129.º, n.º 1, 2.ª parte), não podendo por isso servir para basear a invocada falta de credibilidade da assistente;
- a assistente declarou, a instâncias do Mm.º Juiz a quo, que, quando estava a deitar comida aos cães (precisando, já a perguntas do Ministério Público, encontrar-se “aninhada”), o arguido “pegou na corrente, deu-me na cabeça, no ombro e cortou-me aqui neste dedo”, estando a corrente presa ao muro (pormenor que esclareceu quando, por iniciativa do Tribunal, lhe foi exibida a respectiva fotografia, junta com a contestação – doc. ... da ref.ª ...91); ora, o Mm.º Juiz a quo, como bem explica na motivação da sentença, deu credibilidade a essa narração quanto à existência da agressão e relativamente à parte do corpo da assistente que apresentava lesões, a mão esquerda, deixando de fora, exactamente porque não tinha outra prova a corroborar as declarações da assistente, o atingimento da cabeça e do ombro desta pela corrente, bem como justifica de forma adequada que, face à posição da assistente, a agressão era possível apesar do curto comprimento da corrente (ao qual se referiram, aliás, e de forma concordante, as declarações do arguido e da assistente); porém, sempre se dirá que, do ponto de vista naturalístico e face às características de uma corrente, composta por elos, não só o impacto pode ocorrer em várias partes do corpo quase em simultâneo como a respectiva contundência pode ser diferente conforme as zonas do corpo atingidas tenham maior ou menor estrutura óssea.
Perante tudo isto, não teve o Mm.º Juiz a quo, como não tem este Tribunal, quaisquer dúvidas de que os factos ora em análise ocorreram tal como se apuraram, pelo que não há qualquer violação do princípio in dubio pro reo, que pressupõe, como a sua própria formulação indica, a existência daquele estado de dúvida por parte do julgador.
Assim, é de concluir que a audição das declarações e a análise dos documentos feita por este Tribunal torna claro não haver qualquer fundamento para alterar a matéria dos factos 6, primeiro e 6, segundo, nem os incisos iniciais dos factos 5, segundo, e 7, donde resulta a relação de causalidade entre os actos do recorrente e as lesões sofridas pela assistente.
Do que se vem escrevendo decorre, também, que não há qualquer prova a impor a alteração dos factos 18, 19 e 20: é evidente que, ao ter atingido a assistente quer com o estendal quer com a corrente, não só o recorrente o fez de forma voluntária e sabendo que esses actos configuravam agressões, como o fez com o conhecimento das consequências que poderiam advir para o corpo e a saúde da assistente, atentas as características de ambos os objectos e as circunstâncias em que os factos ocorreram; também é de meridiana clareza que as agressões causam dores, às quais a assistente se referiu nas suas declarações, além da humilhação, sendo também certo que, como regra, a ninguém agrada ser agredido.
Em suma, do que claramente o recorrente discorda é da apreciação da prova produzida em julgamento por parte do Mm.º Juiz a quo, tentando impor a sua própria avaliação; ora, como escreveu o Tribunal Constitucional[17], “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode (…) assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.
De toda esta linha de raciocínio, da inexistência de erro de julgamento, há que ressalvar, porém, a matéria constante dos factos 9 e 17.
Sem entrar na querela (não destituída de fundamento) de ajuizar se no seu conteúdo estão factos – que devem ser objecto de prova – ou conclusões – que já não o podem ser, por se tratarem de ilações que se retiram dos factos –, a verdade é que, depois da audição das declarações do arguido e da assistente, se afiguram carecer os autos de elementos bastantes para corporizar a demonstração daqueles dois itens.
Sendo embora objectivo que assistente e arguido são ex-cônjuges e que têm uma filha em comum (a aludida testemunha CC), e que cada um deles vive em diferentes pisos da mesma casa, resulta das declarações de ambos que já têm novos companheiros, com quem aí coabitam. Ou seja, seguiram com as suas vidas e, pese embora a sua relação não esteja em bons termos (longe disso…), o que resultou da prova foi apenas a existência de duas agressões físicas do recorrente à assistente; como incisivamente se escreveu no parecer destes autos, “tudo leva a crer que as agressões surgiram no âmbito do mau relacionamento que mantêm por partilharem espaços comuns e não exactamente por motivos relacionados com a conjugalidade.
Quer dizer, face à demais matéria provada (de muito menor âmbito do que a não provada, como decorre da sentença), a circunstância de ter havido uma relação conjugal entre ambos não é suficiente para enquadrar a actuação do recorrente na dinâmica descrita em 9 e 17: não há sinais distintivos da motivação do arguido ser maltratar física e psicologicamente, bem como de forma reiterada, a assistente pela específica razão de ser sua ex-mulher e mãe da sua filha, ou ser intenção daquele atingir a sua honra, dignidade e auto-estima.
Entende-se, por isso, que o teor de 9 e 17 deve passar a constar da matéria não provada, pelo que, ao abrigo do previsto nos arts. 412.º, n.º 3, b), e 431.º, b), os mesmos passarão a constituir os pontos 8. e 9. dos factos não provados, acrescentando-se, no primeiro deles, a seguir a “descritas”, a expressão “na matéria provada”.

3. Do enquadramento jurídico dos factos provados

Fazendo agora uma síntese e expurgando o que de irrelevante consta na matéria provada, são os seguintes os factos a considerar[18]:
«1.- A ofendida BB e o arguido contraíram matrimónio a 26.12.1971 e separaram-se judicialmente de pessoas e bens por sentença transitada em julgado em 03.05.2021.
2. A ofendida e o arguido têm uma filha em comum, CC, nascida a ../../1973.
3. Durante o matrimónio, a ofendida e o arguido fixaram residência em habitação sita na Rua ..., em ..., ....
4.- Após a separação do casal, ou seja, a partir de junho de 2022, o arguido passou a residir no piso superior da referida habitação e a ofendida ficou a residir no ... da habitação, fazendo, desde então, a ofendida e o arguido vidas separadas. (…)
6.- Em data não concretamente apurada, mas próximo do dia ../../2023, no quintal da habitação, após uma troca de palavras de conteúdo não concretamente apurado, o arguido pegou no estendal, constituído por tubos de metal e, com o mesmo, desferiu uma pancada no peito da ofendida.
5.- Em virtude da atuação do arguido, a ofendida sofreu equimose e, no dia 09.04.2023, dirigiu-se ao Centro Hospitalar ... para tratamento.
6.- No dia 08.05.2023, pelas 13h15m, no exterior da residência comum, após uma breve troca de palavras por causa dos cães que ambos cuidam, o arguido agarrou numa das correntes que prendem os aludidos cães e, com as mesmas, desferiu uma pancada na mão esquerda desta, causando-lhe dores.
7.- Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, sofreu a ofendida as seguintes lesões: membro superior esquerdo: escoriação avermelhada, com crosta hemática puntiforme, localizada na região entre o 1º e 2º dedo.
8.- Tais lesões determinaram 5 (cinco) dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral.
18. Sabia o arguido que molestava o corpo e a saúde da ofendida, resultado que quis e previu.
19. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
20.- Na sequência da conduta do arguido supra evidenciada, a demandante sofreu dores, tristeza e humilhação.
21.- O arguido não tem antecedentes criminais.
22.- O arguido aufere uma reforma de 670,00 euros, vive em casa própria e tem o 4.º ano de escolaridade.»
Foi o recorrente condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º do Código Penal, que estabelece, no seu n.º 1, a): “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns, ao (…) ex-cônjuge (…), é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Pretende-se, com este tipo de crime, proteger a dignidade humana individual, e não qualquer valor comunitário: “a ratio deste art. 152.º vai muito para além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p.ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.)”, devendo por isso concluir-se que “o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que (…) afectem a dignidade pessoal do cônjuge[19].
A nível internacional, o Conselho da Europa[20] sugere como noção de violência doméstica “todo o acto de violência baseada no género, da qual resultem, ou seja provável que resultem, danos físicos, sexuais e psicológicos ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças de tais actos, coacção ou privação arbitrária de liberdade, ocorra esse acto na vida pública ou privada”.
Porém, não se pode cair no exagero de considerar que todas as ofensas, quer à integridade física, quer à honra e consideração de um dos cônjuges configuram violência doméstica. Este, como muitos outros termos que, fruto da mediatização da vida judiciária, entraram na linguagem comum (“pedofilia”, “corrupção”, “tráfico de influências”), tem de ser usado com moderação em sede própria. Sempre houve, e seguramente haverá, casais com vida diária conflituosa, a quem nunca passaria pela (própria) cabeça classificar o seu modus vivendi como violência doméstica; até nalguns desses se cometerão (mais ou menos) ocasionalmente crimes de injúrias ou de ofensa à integridade física, e nem por isso os intervenientes – ou o Estado – terão qualquer acção penal. O mesmo se diga a ex-casais, cuja convivência, às vezes em espaços contíguos, pode ser difícil e tumultuosa.
Para haver crime de violência doméstica, é preciso que haja maus tratos, traduzidos em condutas especialmente intensas, reveladoras de “uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente[21]. Quer dizer, aqueles maus tratos têm de se enquadrar num tipo de “comportamento violento, [que] visto em toda a sua amplitude, seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima[22]. Constituindo uma tutela especial reforçada (em relação aos crimes que protegem a honra e a integridade física), os factos que o integram devem evidenciar “um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima[23].
Ora, analisada a matéria de facto provada nestes autos, é patente que não era esse o quadro da relação de assistente e arguido; apenas se apurou a existência de duas agressões deste àquela, em dois momentos diferentes do mesmo ano, ocorridas no quintal da habitação onde cada um deles reside (em pisos e vidas separadas).
Deve, por isso, o recorrente ser absolvido da prática do crime de violência doméstica pelo qual foi condenado em 1.ª instância, ficando assim prejudicadas as questões que levantava no recurso quanto ao enquadramento jurídico deste (no n.º 1 ou no n.º 2 do art. 152.º) e à pena aplicável.
Porém, afigura-se deverem as condutas do recorrente ser analisadas quanto à sua relevância criminal, embora à luz de outro tipo legal.
Nos termos do art. 143.º, n.º 1, Código Penal, “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Não há dúvida, perante a factualidade provada, que quer em Abril de 2023 quer no mês seguinte, o arguido cometeu, na pessoa da assistente, actos susceptíveis de o fazer incorrer na prática deste crime:
- na primeira situação, desferiu uma pancada no peito da assistente com um estendal composto por tubos de metal, causando uma equimose na assistente, que demandou tratamento hospitalar;
- na segunda, o arguido desferiu uma pancada na mão esquerda da assistente com a corrente do cão, causando-lhe dores e uma escoriação avermelhada entre o 1.º e o 2.º dedo, com crosta hemática punctiforme, que necessitou de cinco dias para a cura, embora sem afectação da capacidade de trabalho.
Assim preencheu o recorrente, das duas vezes, os elementos objectivos do tipo de crime ora em análise, bem como o respectivo elemento subjectivo, uma vez que sabia estar a molestar o corpo e a saúde da assistente, resultado que quis e previu.
Cometeu, por isso, o recorrente dois crimes de ofensa à integridade física simples, conforme previsto no citado art. 143.º, n.º 1, na pessoa da assistente.
Sendo tais crimes semi-públicos (n.º 2 do mesmo artigo), tendo o direito de queixa de ser exercido no prazo de 6 meses (art. 115.º, n.º 1, do Código Penal) e, em regra, pelo “titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação” (art. 113.º, n.º 1, do mesmo Código), resulta dos autos que a assistente manifestou expressamente a vontade de apresentar queixa do primeiro na parte final da inquirição que lhe foi feita na GNR, a 24 de Abril de 2023 (pág. 35 da ref.ª ...98); e, embora não tenha havido acto semelhante quanto ao segundo – porquanto os autos corriam como sendo relativos ao crime de violência doméstica –, não apenas foi a assistente a deslocar-se ao posto da GNR no próprio dia 8 de Maio de 2023 para dar conta da (nova) actuação do arguido para consigo (fls. 56 a 58 da ref.ª ...96), o que claramente já vinha na sequência da manifestação de vontade supra referida, como aderiu à acusação pública no momento de deduzir pedido de indemnização civil nestes autos, a 24 de Julho de 2023 (ref.ª ...85) e requereu a sua constituição como assistente nesse mesmo dia (ref.ª ...96), actos que devem ser entendidos como expressão inequívoca da vontade da ofendida em apresentar queixa contra o arguido (diligência para a qual a lei não estabelece formalidades especiais).
Conclui-se, assim, estarem reunidos todos os requisitos processuais e substantivos para que o recorrente deva ser punido pela prática, na pessoa da assistente, de dois crimes de ofensa à integridade física simples, previsto no art. 143.º, n.º 1, do Código Penal.
Recorde-se que, face à irrecorribilidade do pedido de indemnização civil, supra referida em II-A., o valor da indemnização a esse propósito fixada na 1.ª instância não sofrerá qualquer alteração.

4. Da pena aplicável ao caso

Começando pela escolha do tipo de pena, cabe chamar à colação o art. 70.º do Código Penal: “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as necessidades da punição”.
Esta preferência justifica-se desde logo pela circunstância de um dos fins das penas ser a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1, do mesmo Código), que é claramente mais fácil de alcançar se a pena for não detentiva.
No caso, o arguido carece de antecedentes criminais, tendo, à data dos factos, 71 anos; por outro lado, afigura-se que, face à pouca gravidade das lesões sofridas pela assistente, a aplicação da pena de multa em ambos os crimes – cada uma entre 10 e 360 dias, face ao disposto no art. 47.º, n.º 1, do Código Penal – será bastante e ajustada para a sua punição, tanto mais porque resulta dos autos ter o recorrente uma vida organizada e integrada, estando reformado.
Para chegar à pena concreta, o tribunal deve ter em conta a culpa do agente e as exigências de prevenção – art. 71.º, n.º 1 – bem como as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, e cuja enumeração exemplificativa consta do art. 71.º, n.º 2.
Começando pelas agravantes, comuns a ambos os crimes, há a intensidade do dolo (directo), o modo de execução do facto (no quintal da casa onde habitam, embora separadamente, recorrente e assistente) e o grau de violação dos deveres impostos ao agente, pela circunstância de a assistente ser sua ex-mulher, e não uma estranha.
A favor do arguido, há a considerar a sua estabilidade pessoal e financeira – habita em casa própria e tem rendimento certo, proveniente da sua reforma –, bem como as consequências dos factos para a assistente (num deles, uma equimose que requereu uma ida ao hospital, e na outra uma escoriação numa mão, com 5 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral, além das dores em ambos).
Tendo tudo isso em conta, e estando sempre presentes quer razões de prevenção geral – porque importa dissuadir os cidadãos de recorrerem à violência física, seja em que caso for – quer de prevenção especial – face à proximidade física entre arguido e assistente, resultante de habitarem em dois pisos da mesma casa e partilharem o espaço exterior –, julgam-se adequadas penas situadas bem abaixo do termo médio, mas suficientemente distanciadas do mínimo para que o arguido se consciencialize da gravidade da sua conduta. Tais penas serão de 80 dias para o primeiro crime e de 90 dias para o segundo, face à maior gravidade das lesões sofridas pela assistente em resultado deste.
Importando fazer o cúmulo jurídico destas penas, ao abrigo do art. 77.º, n.º 1, do Código Penal, devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, o mínimo aplicável situa-se na pena individual mais alta – 90 dias de multa – e o máximo na soma material das duas penas – 170 dias de multa.
Aqui, os factos, embora não sejam suficientes para demonstrar um padrão, são ainda assim próximos no tempo, e o seu reflexo na personalidade do arguido revela neste uma censurável indiferença quer pelos valores vigentes em sociedade quer pela pessoa agredida, que o arguido vê quase necessariamente todos os dias e que, face à casa que ambos habitam e ao quintal comum, vai continuar a encontrar. Há, por isso, necessidade de lhe sinalizar claramente que não pode voltar a ter actuação semelhante em relação à assistente, pelo que se mostra adequada a pena única de 140 dias de multa.
Convém recordar que, embora a pena não possa ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 2, do Código Penal), tem de constituir um sacrifício real para o condenado, ou perderia a vertente da eficácia punitiva, não se realizando as desejadas finalidades da prevenção especial.
Quanto à taxa diária (art. 47.º, n.º 2, do Código Penal), deve ser entre “€ 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.” Sendo entendimento generalizado da jurisprudência – e, afigura-se, evidente – que o mínimo se destina apenas a quem carece em absoluto de fontes de rendimento, tem de se atender, no caso, à circunstância de o recorrente dispor de casa própria (o que o exime de encargos adicionais, como a renda) e auferir uma reforma de € 670,00 que, pese embora de valor inferior ao do actual salário mínimo nacional, é ainda assim indicativa de um rendimento certo.
Assim, mostra-se adequado fixar o valor da taxa diária da multa em € 6,00.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam as Juízas na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA, revogando-se parcialmente a sentença recorrida e, em consequência:
- alteram a matéria de facto provada e não provada, nos termos descritos em II-C.2 deste acórdão;
- absolvem o arguido AA da prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, nºs. 1, a), 2, 4 e 5, do Código Penal;
- condenam o arguido AA, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de 80 (oitenta) dias de multa e de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
- condenam o arguido AA na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfaz a quantia de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros);
- no mais, mantêm a decisão recorrida.
Sem custas (art. 513.º, n.º 1, parte final).
Guimarães, 9 de Abril de 2024
(Processado em computador e revisto pela relatora)

As Juízas Desembargadoras

Cristina Xavier da Fonseca
Ana Teixeira
Isabel Gaio Ferreira de Castro



[1] Opta-se por manter os negritos e sublinhados de origem, corrigindo os escassos lapsos de escrita.
[2] Diploma legal donde provêm as normas a seguir citadas sem indicação de origem.
[3] A numeração subsequente, bem como a repetição da numeração dos factos 5 e 6, resulta certamente de lapso de escrita.
[4] As notas de rodapé do original resultam renumeradas pela sua inserção neste acórdão.
[5] Relação do Porto no Acórdão proferido em 31/01/2001, no proc. 11133, in www.dgsi.pt, entendeu que a incriminação pelos maus tratos sucederá, ainda que praticada por uma só vez, desde que a gravidade intrínseca das mesmas se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura dos maus tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana com afetação da sua saúde. Também neste sentido acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 14/11/97, CJ, ano V, tomo III, - 1997, pág. 235 e ss.
[6] Relação do Porto no Acórdão proferido em 31/01/2001, no proc. 11133, in www.dgsi.pt, entendeu que a incriminação pelos maus tratos sucederá, ainda que praticada por uma só vez, desde que a gravidade intrínseca das mesmas se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura dos maus tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana com afetação da sua saúde. Também neste sentido acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 14/11/97, CJ, ano V, tomo III, - 1997, pág. 235 e ss.
[7] Ac. RL de 06/06/01, www.dgsi.pt
[8] Ac. TRG de 4-03-2013: II. Para a prática do crime de violência doméstica, não são inócuos os factos que, globalmente considerados, são reveladores de um comportamento de perseguição agressiva, de um constante importunar, de uma vontade conseguida de amedrontar através da inesperada abordagem pessoal e da ameaça velada.
- Ac. TRE de 14-01-2014: 1. A realização do tipo de crime de violência doméstica previsto no art. 152º, nºs 1, al- a) e 2 do Código Penal não exige a imposição de maus-tratos físicos. 2. A reiteração da prolação de expressões injuriosas e a adoção de um comportamento psicologicamente agressivo e repetido ao longo de vários anos relativamente a cônjuge que se vai fragilizando e diminuindo enquanto «pessoa» consubstancia maus-tratos psíquicos no nível de intensidade contido no tipo.
- Ac. TRE de 19-12-2013: I. No crime de violência doméstica, a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, que se consuma com a prática do último ato de execução. II. Em face disso, quer para efeitos de escolha e decisão da lei aplicável (como seja da natureza pública do crime e consequente legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal), quer para efeitos de contagem do prazo de prescrição, o determinante é a data da execução do último facto praticado, isto é, o dia em que cessou a sua consumação. III. Para a caracterização do crime é relevante que os factos, isolados ou reiterados, praticados no âmbito de uma relação conjugal ou de vida em comum, possuam uma gravidade e importância tais que coloquem a pessoa ofendida numa situação inconciliável com a dignidade e a liberdade necessárias a qualquer membro do casal.
- Ac. TRC de 29-01-2014: 1. No crime de violência doméstica, tutela-se a dignidade humana da vítima. 2.Neste crime não se demanda a prática habitual dos atos ou a repetitividade das condutas, o normativo prevê tanto situações repetitivas ou plurimas como situações de natureza una. 3. O crime de violência doméstica apenas exige que alguém, de modo reiterado ou não inflija maus tratos físicos ou psíquicos no âmbito de um relacionamento conjugal, ou análogo, e determinada por força desse relacionamento e que, por força das lesões verificadas, se entenda que tenha ofendido a dignidade da vítima.
- Ac. TRG de 3-03-2014: I. A agravação do crime de violência doméstica, resultante do facto ser praticados na presença de menor (art. 152 nº 2 do Cod. Penal), espelha a intenção do legislador de estender a tutela penal a pessoas de maior vulnerabilidade, que possam tornar-se vítimas «indiretas» dos maus tratos inicialmente dirigidos a outras pessoas. II. Ocorre aquela circunstância agravante quando são perpetradas agressões físicas e dirigidos insultos á mãe de um menor de um ano e seis meses que está ao seu colo, pois, para além do risco do menor ser atingido fisicamente, nessa idade a criança já se apercebe da emoção dos adultos, vivendo a perturbação que a rodeia.
[9] Leal-Henriques e Simas Santos. Código de Processo Penal anotado, 2.ª ed., II, pág. 740.
[10] Sérgio Gonçalves Poças. Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, Julgar n.º 10, ed. ASJP, pág. 29.
[11] Ac. STJ de 9.3.23, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2023:1368.20.8JABRG.G1.S1.DE/.
[12] Ac. Rel. Lisboa de 22.2.23, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2023:482.20.4.PLLSB.L1.5.5A/.
[13] No caso dos factos 5 (segundo) e 7, o recorrente entende estar não provado o inciso inicial.
[14] Conforme https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/impor.
[15] Acórdão do STJ de 26.09.12, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2012:3.11.0PJAMD.L1.S1.95/.
[16] Figueiredo Dias. Direito Processual Penal, Primeiro Volume (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, págs. 202 a 205.
[17] Acórdão n.º 198/2004, de 24.03.2004, disponível in www.tribunalconstitucional.pt.
[18] Mantém-se a numeração original.
[19] A. Taipa de Carvalho. Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 332.
[20] Ponto 1 do Anexo à Recomendação Rec (2002) 5 do Comité de Ministros dos Estados-membros contra a Protecção das Mulheres contra a Violência, adoptada em 30 de Abril de 2002, citado por André Lamas Leite, in A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, Revista Julgar n.º 12, pág. 33.
[21] Plácido Conde Fernandes, in Violência doméstica – Novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, 2009, Número especial, 307, citado no ac. Rel. Porto de 2.12.15, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2015:864.13.8PCMTS.P1.74/.
[22] Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, na revista referida na nota 20, pág. 22.
[23] Ac. Rel. Porto de 28.9.11, https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2011:170.10.0GAVLC.P1.41/.