Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
878/23.0T8EPS.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: INTERESSE EM AGIR
PRESSUPOSTO PROCESSUAL
EXCEÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O recurso à via judicial tem como finalidade dirimir conflitos entre particulares, quando haja necessidade que o tribunal decida da questão submetida a juízo.
II- Esta necessidade processual circunscreve-se ao chamado interesse processual ou interesse em agir, definido como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação, quando o autor se encontre em situação de carência que o faça necessitar de recorrer aos tribunais.
III- O interesse em agir constitui um pressuposto de natureza processual, e traduz-se na necessidade, objetivamente justificada, de recorrer à ação judicial para satisfação de um direito em relação a cuja existência existe incerteza objetiva e grave.
IV- Trata-se de um pressuposto processual inominado, cuja falta conduz à absolvição dos RR. da instância.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Paula Ribas
2ª Adjunta: Fernanda Proença
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AA e BB, casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens, contribuintes fiscais n.º ...29 e n.º ...66 respetivamente, residentes na Rua ..., lugar..., ... ..., ..., e CC, solteira, maior, contribuinte fiscal n.º ...68, maior acompanhada, neste ato representada pela acompanhante com poderes para o ato, DD, contribuinte fiscal n.º ...21, residente na Rua ..., lugar..., ... ..., ..., propuseram a presente ação declarativa de processo comum contra EE e FF, casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens, ela contribuinte fiscal n.º ...37, residentes na Rua ..., lugar..., ... ..., ..., e Herança Ilíquida e Indivisa Aberta Por Óbito de GG, contribuinte fiscal n.º ...87, representada pelos herdeiros: a) HH, viúva, contribuinte fiscal n.º ...90, cabeça de casal da herança; b) II, contribuinte fiscal n.º ...18; c) JJ, contribuinte fiscal n.º ...26; e d) KK, contribuinte fiscal n.º ...50, peticionando que:
a) Se declare que, por efeito de anexação de uma parcela de terreno com a área de 440 m2, desanexada do prédio descrito sob a descrição ...25, da freguesia ..., concelho ..., a casa de habitação dos 1º autores tem atualmente a seguinte composição: Casa com logradouro, destinada a habitação, com área coberta de 209,60 m2 e logradouro de 645,40 m2, num total de área de 855 m2, sita na Rua ..., lugar..., freguesia ..., da atual União de freguesias ..., ... e ..., concelho ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...43º de ..., concelho ..., e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição ...81;
b) Se declare que o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição ...25, de ..., ficou dividido e demarcado há mais de 25 anos, em três parcelas de terreno autónomas e distintas umas das outras, com as áreas de 790 m2, 725 m2 e 870 m2;
c) Se declare que aos 1ºs autores pertence, com exclusão de outrem, a parcela de terreno composta por prédio rústico, com a área de 725 m2, sito no lugar..., freguesia ..., da atual União de freguesias ..., ... e ..., concelho ..., a confrontar do Norte com a 2ª autora, CC, do Sul com a 1ª ré, EE, do nascente com Herdeiros de LL, e do poente com caminho, omisso na respetiva matriz predial, e descrita na Conservatória do Registo Predial ... como parte da desc. 1425;
d) Se declare que essa parcela de terreno é a desanexar do prédio rústico sito no mesmo lugar e freguesia, inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., da atual União de freguesias ..., ... e ..., concelho ..., sob o artigo ...84º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a desc. 1425, correspondente à parcela de terreno assinalada a cor amarela por referência ao levantamento topográfico junto como documento n.º ...5;
e) Se declare que à 2ª autora pertence, com exclusão de outrem, a parcela de terreno com a área de 790 m2, sita no lugar..., freguesia ..., da atual União de freguesias ..., ... e ..., concelho ..., a confrontar do norte com MM, do sul com, atualmente, a 1ª autora AA, do nascente com Herdeiros de LL, e do poente com a 2ª ré, Herdeiros de GG;
f) Se declare que essa parcela de terreno é a desanexar do prédio rústico sito no mesmo lugar e freguesia, inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., da atual União de freguesias ..., ... e ..., concelho ..., sob o artigo ...84º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a desc. 1425, da ... sob a desc. 1425, correspondente à parcela de terreno assinalada a cor roxa por referência ao levantamento topográfico junto como documento n.º ...5; e que
g) Se condenem os réus a reconhecer aqueles direitos de propriedade dos 1ºs autores e da 2ª autora, e a absterem- se da prática de quaisquer atos que ofendem tais direitos.
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Invocam, para tanto, que Autores e réus são comproprietários de um prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição ...25, que lhes foi adjudicado em processo de Inventário obrigatório, na proporção de ¼ para a 2ª autora, ¼ para a 1ª ré mulher, ¼ para a filha DD, 1/8 para a 1ª autora, e 1/8 para o falecido GG, sendo que, por escritura pública outorgada no dia 18 de maio de 2000, a DD vendeu à 1ª autora aquele ¼ que detinha no prédio, na sequência do que a 1ª autora passou a ser proprietária de 3/8 do referido prédio.
Ora, pese embora tivesse ficado registada a adjudicação a cada um dos filhos, de uma parte do prédio rústico em proporções diferentes, cada um dos 5 filhos do casal ficou com uma parcela de terreno com uma área mais ou menos idêntica.
Com efeito, imediatamente após o inventário, ocorrido em 1994, por morte do NN, os filhos do falecido procederam à divisão material daquele prédio rústico, por forma a determinar a parcela de terreno que passou a pertencer a cada um deles em exclusividade.
Concretamente, dividiram materialmente o prédio “mãe” em cinco parcelas, incluindo-se nessas cinco parcelas as duas parcelas destacadas e doadas à 1ª autora e ao falecido GG, sendo que a cada uma dessas duas parcelas foi anexada uma parte do prédio rústico “mãe”, por forma a aumentar-lhes a área total, para que cada uma delas ficasse com uma área mais ou menos idêntica à das três outras parcelas.
 Assim, foi anexada à parcela doada à 1ª autora mulher uma faixa de terreno com 440 m2, de modo a que a sua parcela ficasse com uma área total de 855 m2, e foi anexada à parcela doada ao GG uma faixa de terreno com 306 m2, de modo a que a sua parcela ficasse com uma área total de 806 m2.
Assim e por via dessas demarcações e adjudicações, a casa da 1ª autora passou a ter a seguinte composição: Casa com logradouro, destinada a habitação, com área coberta de 209,60 m2 e logradouro de 645,40 m2, num total de área de 855 m2, deixando a 1ª autora de ser comproprietária de qualquer área, quota ou percentagem no prédio sobrante, e os seus irmãos deixaram de ser coproprietários da área que foi integrada no logradouro da casa da 1ª autora.
A 1ª autora entrou na posse pública, pacifica e de boa fé da área anexada ao seu logradouro, correspondendo a cerca de 440 m2, passando a usufruir da parcela anexada juntamente com a sua habitação, como se de um único e só prédio se tratasse, com a área total de 855m2. Fê-lo e continua a fazê-lo em exclusivo e sem oposição de ninguém, mormente dos seus demais irmãos, à vista de toda a gente, e sempre na convicção de que essa parcela anexada somente a ela pertence, pelo que, mesmo que não tivesse titulo legitimo de aquisição dessa parcela anexada, sempre teria adquirido a mesma por usucapião.
Da mesma forma, o falecido GG anexou ao logradouro da sua casa uma parcela com cerca de 306 m2, passando a sua casa a ter a seguinte composição: Prédio urbano composto de uma casa com logradouro, destinada a habitação, com a área de 178 m2 e logradouro de 628 m2, num total de área de 806 m2.
Após essa anexação, o falecido GG vedou todo o logradouro da sua habitação, passando a utilizá-lo como de um único prédio se tratasse, de forma pública, pacífica e sem oposição de ninguém, desde pelo menos 1994, isto é, há mais de 5, 10, 15, 20, 25 anos, pelo que, mesmo que não tivesse título originário de aquisição dessa parcela, sempre a teria adquirido por usucapião.
Por via dessa anexação, o falecido GG deixou de ser coproprietário de qualquer área, quota ou percentagem no prédio sobrante, e os seus demais irmãos, nomeadamente as aqui 1ª e 2ª autoras deixaram de ser coproprietários da área que foi integrada no logradouro da casa do falecido GG.
Com a divisão material do prédio, ocorrida em 1994, logo após o inventário, também a 2ª autora entrou na posse da sua parcela, um prédio rústico, com a área de 790 m2, pelo que, há quase 30 anos que a 2ª autora, através da sua representante, tem estado na posse exclusiva, pacífica e pública dessa parcela de terreno, como sendo um prédio autónomo, distinto e materialmente separado, na convicção de exercer um direito próprio, deixando a 2ª autora de ser coproprietaria do prédio sobrante, e os seus irmãos de serem comproprietários da parcela que lhe foi adjudicada, pelo que, mesmo que não tivesse título válido de aquisição daquele terreno, sempre o teria adquirido por via de usucapião.
Por sua vez, a OO, passou também, após a divisão material do prédio “mãe”, a ser proprietária da sua parcela, um prédio rústico, com a área de 725 m2, parcela que vendeu à 1ª autora por via da escritura pública, pelo que, desde 1994, que a 1ª autora, por si e seus antepossuidores, nomeadamente a sua irmã OO, detém materialmente aquela parcela de terreno, como sendo um prédio autónomo, distinto e separado, que passou a usufruir de forma individual, separada e em exclusividade, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, mormente dos seus outros irmãos, sempre na intenção e com a convicção de que exercia e exerce um direito próprio, e sem ofender direitos de terceiros, deixando a 1ª autora de ser coproprietaria do prédio sobrante, e os seus irmãos de serem comproprietários da parcela comprada à irmã OO.
Finalmente, e por via dessa mesma divisão, a 1ª ré passou a ser proprietária da sua parcela, o prédio rústico com a área de 870 m2, que usufrui de forma pública, pacífica e interrupta, à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja, mormente dos seus irmãos, na convicção plena de exercer o seu direito de propriedade exclusivo e de não ofender o de ninguém, pelo que, se outro título não tivesse, teria adquirido a referida parcela por usucapião, deixando a 1ª ré de ser coproprietaria do prédio sobrante, e os seus irmãos de serem coproprietários da parcela que lhe foi adjudicada.
Necessitando os autores de regularizar a situação matricial e registral dos seus prédios, vêm-se obrigados a propor a presente ação.
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Citados, os réus não contestaram a ação, tendo as partes formalizado uma transação extrajudicial, que fizeram juntar aos autos, constando da mesma a divisão dos prédios entre todos (AA e RR), conforme descrito na PI.
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Foi então proferida, no despacho saneador, a seguinte decisão (Saneador/Sentença):

“Analisada a PI, da mesma emerge, de forma clara, que não existe qualquer litígio entre as partes quanto ao direito de cada uma sobre o prédio em causa, já que não é invocado qualquer facto de onde decorra a existência de um litígio que cumpra ao Tribunal dirimir.
Pelo contrário, pretendem as partes que o Tribunal declare a divisão, por usucapião, do prédio em causa, pondo fim à compropriedade jurídica existente sobre o referido prédio, pretendendo obter por via da homologação de uma transação, a tutela jurídica que a Administração Local não lhes concede, já que, como referem, “pela via camarária só é possível destacar uma única parcela de terreno e não 5”, assim como “Não sendo sequer possível fazer um loteamento das 3 parcelas de terreno situadas mais atrás (…)”
Não existe, por isso, um litígio entre as partes: os direitos de cada uma das partes não se mostra em conflito; não há sequer divergências na matéria de facto.
Ora, quando assim é, considera-se, salvo o devido respeito, inadmissível o recurso a Juízo, existindo uma manifesta e patente falta de interesse em agir.
Sem prejuízo de outros instrumentos jurídicos, nomeadamente da obtenção da autorização judicial da prática dos atos da requente maior acompanhada, e da legalização das invocadas construções junto da administração local, deverão as partes antes (…) lançar mão do mecanismo previsto no artigo 116º do Código do Registo Predial (…).
Emerge dos normativos citados (…) que os interessados podem continuar a recorrer diretamente aos meios comuns para obterem o reconhecimento do seu direito de propriedade.
O recurso a juízo pressupõe, no entanto, litigiosidade ou, no mínimo, um estado de incerteza que imponha uma decisão judicial para acautelar o direito. O que não acontece no caso concreto. Salvo o devido respeito, não há sequer qualquer estado de incerteza que cumpra dirimir.
O estado de incerteza sempre teria de emergir da matéria de facto alegada e não é invocado qualquer facto de onde esse estado resulte. Pelo contrário, da matéria de facto alegada resulta que não há qualquer estado de incerteza, uma vez que as partes estão de acordo quanto aos direitos de cada uma sobre os prédios em causa. Daí, de resto, a invocação da posse e consequente propriedade exclusiva de cada uma sobre o prédio.
Considerando-se, por isso, inexistir interesse em agir. Como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-1999, “interesse em agir consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial, representando o interesse em utilizar a acção judicial e em recorrer ao processo respectivo, para se ver satisfeito o interesse substancial lesado pelo comportamento da parte contrária”(…) consultado em www.dgsi.pt.
Enquanto pressuposto processual, o interesse em agir “consiste na necessidade de se usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”, nas palavras de Antunes Varela, in Manual do Processo Civil, 2ª edição, pág. 179 (…).
A falta de interesse em agir constitui uma exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, e que conduz à absolvição da instância, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 278º, nº 1, al. d) e 576º, nº 2, e 578º todos do CPC (…).
Pelo exposto, declaro a existência de exceção dilatória de falta de interesse em agir e, em consequência, absolvo os réus da instância.
Custas pelos autores, que deram causa à ação, artigo 527º, nº1 e 2, do CPC…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela vieram os AA interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
“A- Veio o presente recurso interposto pelo facto dos recorrentes não se conformarem com a douta sentença que absolveu os recorridos da instância por ter verificado a exceção de inexistência de litígio entre as partes e consequente interesse em agir.
B- É verdade que, no caso concreto, cada um dos recorrentes e recorridos delimitaram a parcela de terreno de que são proprietários e de que não existe entre eles dúvidas sobre os limites e as configurações das parcelas de cada um.
C- No entanto tal facto não faz com que não haja litígio entre as partes.
D- O litígio resulta da realidade material da propriedade de cada um dos recorrentes e recorridos sobre a sua parcela de terreno não corresponder com a realidade jurídica.
E- Juridicamente, a 1ª recorrente é coproprietária, na proporção de 3/8, da totalidade do prédio rústico descrito sob a descrição ...25, e de 3/8 das áreas em falta nos dois prédios urbanos. O que significa que a parcela que comprou à acompanhante da 2ª recorrente, OO, só lhe pertence na proporção de 3/8, tal como só lhe pertence na referida proporção de 3/8 a parte do logradouro da sua casa que se encontra juridicamente em falta.
F- Da mesma forma e juridicamente, a 2ª recorrente é coproprietária, na proporção de ¼ da totalidade do prédio rústico desc 1425, e de 1/4 das áreas juridicamente em falta nos dois urbanos, o que significa que só é proprietária, na referida proporção de ¼, da parcela de terreno que materialmente detém.
G- Devido a tal divergência, nenhum deles pode dispor livremente da sua parcela de terreno, dando-a, cedendo-a, arrendando-a, vendendo-a, onerando-a, etc....
H- O máximo que cada um pode fazer é dispor da quota-parte de todo o prédio mãe, mas já não pode dispor da parcela de terreno que materialmente detém.
I- E não há que esquecer, que mesmo dispondo da sua parte, dependendo do ato jurídico que estiver em causa, os demais recorrentes e recorridos terão direito de preferência.
J- Pelo que cada um dos recorrentes e recorridos vive com a angustia e o desespero da sua propriedade não ser plenamente reconhecida, e vive com o receio de que qualquer um deles possa vir a prejudicá-lo, dificultando ou impedido qualquer ato que possa querer fazer no seu prédio.
K- Os presentes autos são a única solução jurídica para por termo ao litígio entre as partes porquanto não é possível solucionar o problema instalado senão através destes meios.
L- Com efeito, não é possível recorrer-se à obtenção da autorização judicial da prática de atos da requerente maior acompanhada, na medida em que aqui não há nenhum ato jurídico a praticar, visto que a maior acompanhada não quer vender, comprar, dar, ceder, nem tão pouco praticar qualquer ato jurídico sobre a sua parcela de terreno.
M- O que a maior acompanhada pretende é o reconhecimento jurídico de uma realidade material, a saber, o reconhecimento jurídico da sua propriedade exclusiva sobre a sua parcela de terreno e não praticar um ato.
N- Por outro lado, dir-se-á que legalizar as construções existentes é totalmente diferente de reconhecer a propriedade exclusiva dessas construções e das parcelas de terreno onde as mesmas foram edificadas.
O- A legalização das construções implicaria exatamente e só isso: de que tais construções ficariam legais e consequentemente, juridicamente, uma vez legalizadas, essas construções passariam a ser propriedade de todos os recorrentes e recorridos, nas respetivas proporções, e não unicamente do recorrente ou recorrido que as tenha feito.
P- Dir-se-á ainda que o mecanismo previsto no artigo 116º do Código de Registo Predial também não é solução para o caso concreto, porquanto no caso concreto o trato sucessivo encontra-se perfeitamente estabelecido. Os prédios vieram à propriedade dos recorrentes e recorridos por partilha por óbito dos seus falecidos pais.
Q- Relativamente ao prédio urbano propriedade dos 1ºs recorrentes, resulta dos documentos juntos aos autos que a parcela de terreno onde os 1ºs recorrentes construíram a sua habitação foi doada à 1ª recorrente mulher pelos seus falecidos pais após desanexação dessa parcela do prédio mãe descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição ...25.
R- Ora, tendo ocorrido destaque de parcela, não é legalmente possível proceder-se a retificação da área destacada em virtude da área destacada corresponder à própria operação de destaque.
S- Os mecanismos de retificação de áreas previstos nos artigos 28º-A, 28ºB, 28º-C, do CRP não são subsumíveis ao caso dos autos.
T- Por outro lado e relativamente às três parcelas de terreno existentes no prédio rústico mãe, nenhum mecanismo não judicial permite solucionar o problema dos 1º e 2º recorrentes.
U- Na verdade, não é possível efetuar-se um destaque porquanto a parcela a destacar teria de confrontar com a via pública. – cfr artigo 6º, n.º 5, do Dec-Lei 555/99, de 16 de Dezembro (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação).
V- Ora, no caso concreto, o caminho existente que dá acesso a essas parcelas de terreno é um caminho de servidão criado pelos próprios recorrentes e recorridos.
W- Mesmo que esse caminho fosse cedido ao domínio público, só poderia ser destacada uma única parcela, permanecendo as duas restantes parcelas em comum pelo prazo mínimo de 10 anos, conforme estipula o artigo 6º, n.º 6, do citado Dec-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro.
X- Igualmente não é possível lançar mão da escritura notarial de usucapião porquanto seria necessário cada um dos 1º e 2º recorrentes e 1ª recorrida possuir um artigo matricial em nome deles, e o título que serviria de registo seria a escritura notarial de usucapião.
Y- Nem podem sequer qualquer um deles tentar “simular” a criação ilegal de um artigo matricial para conseguirem efetuar uma escritura de usucapião.
Z- Na verdade, para promover a inscrição na matriz de um prédio rústico, é necessário fazer-se o pedido de inscrição à matriz do prédio omisso, acompanhado da declaração de aceitação de, pelo menos, um dos proprietários confinantes e do ..., isto é, da representação gráfica georreferenciada do prédio através dos balcões do ....
AA- Ora, como é bom de perceber, nenhum dos recorridos confinantes iria aceitar declarar que a parcela de terreno de qualquer um dos recorrentes está omissa sem que se lhe fizessem reciprocamente o mesmo “favor” ilegal, e relativamente aos 2º recorridos esse favor reciproco não é possível porquanto não é através de uma escritura de usucapião de prédio omisso que os 2º recorridos conseguiriam integrar na área do seu prédio urbano a área que lhes falta.
BB- Por outro lado, nos balcões do ... os recorrentes nunca conseguiriam fazer a representação gráfica georreferenciada da sua parcela de terreno porquanto aparece no sistema do ... o prédio rústico mãe como único prédio e não três prédios autónomos.
CC- Tão pouco podem recorrentes e recorridos lançar mão de uma escritura de divisão de coisa comum pois que seria necessário existirem cinco artigos rústicos com uma só descrição predial nos quais todos seriam coproprietários e dos quais acordariam que cada um deles ficasse na propriedade exclusiva de um desses cinco artigos, criando-se deste modo desanexações à descrição mãe e criação de novas descrições.
DD- Os 1º recorrentes e os 2º recorridos seguidamente teriam de fazer uma anexação desse artigo rústico que lhes pertenceria em exclusivo ao urbano que já possuem.
EE- Recorrentes e recorridos também não conseguem realizar uma escritura de cedência das quotas-partes que detêm nas parcela de terreno dos outros porque mais uma vez para tal ser possível teriam de existir cinco artigos rústicos para que, depois, à semelhança da escritura de divisão de coisa comum, cada um deles cederia a outro a quota-parte que detém na parcela do outro e assim respetivamente até ficar na propriedade exclusiva da sua parcela.
FF- Também não é possível no caso concreto constituir-se um loteamento porque não é possível a criação de áreas destinadas à implantação de espaços verdes e de utilização coletiva.
GG- Mesmo que se criasse um “loteamento privado”, ou chamado condomínio fechado, em que os espaços verdes e de utilização coletiva seriam da exclusiva utilização dos recorrentes e recorridos, a verdade é que inexiste no caso área “sobrante” para criar esses espaços verdes.
HH- Nem tão pouco existe área sobrante para cedência ao domínio público.
II- E o caminho não tem largura suficiente prevista nos artigos 99º, n.º 2, e 103º, n.º 1, do PDM do concelho ..., publicado a 18/09/2015, no Diário da República, 2ª Série, pelo Aviso ...15.
JJ- O recurso a via judicial é a única solução possível e adequada ao caso concreto. E é permitida e possível.
KK- Citar-se-á o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/11/2018, in www.dgsi.pt, que esclarece que “é perfeitamente admissível, em termos lógicos e jurídicos, pedir-se ao tribunal que reconheça e declare a divisão em parcelas do prédio e, depois, relativamente a cada uma das parcelas, reconheça e declare a propriedade do respectivo possuidor, ex vi da usucapião.(...) “Se os autores pedem que o Tribunal declare que um prédio mãe está dividido em parcelas, já prédios autónomos, e que o Tribunal declare que eles são proprietários de algumas, via usucapião, tal não constitui uma cumulação de pedidos – divisão de coisa comum e declaração de propriedade –; e, se esta existisse, ela não seria de pedidos substancialmente incompatíveis, pois que aquele pedido não implicaria a exclusão deste”.
LL- A idêntico entendimento chegaram os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa no seu acórdão de 04/07/2006, do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/11/2023, do Tribunal da Relação de Coimbra, no seu acórdão de 21-02-2017, do Tribunal da Relação de Coimbra, no seu acórdão de 26/09/2006, do acórdão do STJ datado de 20/01/2008, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07-05-2013, que se citam a título meramente exemplificativos.
MM- Pelo que conclui pela necessidade de revogação da sentença recorrida e substituição da mesma por outra que homologue a transação junta aos autos…”.
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Dos autos não consta que tenha sido apresentada Resposta ao recurso.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), a questão a decidir no presente recurso de Apelação é apenas a de saber se os AA têm interesse processual em agir na ação que intentaram contra os RR.
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A matéria de facto a ponderar para a decisão da questão suscitada é a que consta do relatório deste acórdão (propositadamente extenso para melhor se aferir da questão colocada).
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Do Interesse processual em agir por parte dos AA:

Como decorre do despacho recorrido, considerou-se no mesmo que inexiste nos autos interesse em agir por parte dos AA, por inexistir litígio entre as partes.
Insurgem-se os AA contra a decisão proferida, começando por afirmar que é verdade que cada um dos recorrentes e recorridos delimitaram a parcela de terreno de que são proprietários, e que não existe entre eles dúvidas sobre os limites e as configurações das parcelas de cada um.
No entanto, dizem, existe litígio (e sério) entre as partes, o qual resulta do facto de a realidade material da propriedade de cada um (recorrentes e recorridos) sobre a sua parcela, não corresponder à realidade jurídica das mesmas.
Dizem que devido a essa divergência, nenhuma das partes pode dispor livremente da sua parcela de terreno; que o máximo que cada um pode fazer é dispor da quota-parte de todo o prédio mãe, mas já não da parcela de terreno que materialmente detém.
E que essas situações jurídicas distintas - ser proprietário de quotas partes de um todo, mas não da totalidade de uma parte autónoma desse todo –, criam animosidades e conflitos entre ambos, além de que, mesmo dispondo da sua parte, dependendo do ato jurídico que estiver em causa, os demais recorrentes e recorridos terão direito de preferência nessa disposição, situação que já ocorreu no passado, levando a 1ª recorrente a adquirir a quota-parte que a irmã OO quis vender a terceiro.
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Ora, como é bom de ver, inexiste litígio algum entre as partes, uma vez que “o problema” denunciado pelos recorrentes - de legalização das parcelas, com a definição do direito de propriedade individual de cada um sobre a sua parcela, desanexada do prédio rústico como um todo -, é o problema de todos (recorrentes e recorridos), litigando no fundo os AA em benefício de todos os seus irmãos e sobrinhos.
Como bem se refere na sentença recorrida, a ação judicial destina-se (apenas) a solucionar um conflito existente entre as partes; não a permitir que as partes usem a via judicial para outro fim que não seja a solução de algum conflito existente - nomeadamente a legalização de prédios.
Persistem os recorrentes que existe litígio entre todos, porquanto cada um dos proprietários das frações - recorrentes e recorridos -, vive com a angustia e o desespero da sua propriedade não ser plenamente reconhecida, e com o receio de que qualquer um deles possa vir a prejudicá-lo, dificultando ou impedido qualquer ato que possa querer fazer no seu prédio.
Mas sem razão, como é bom de ver, pois elevam os recorrentes os sentimentos manifestados, a situações litigiosas, que consideram dignas de proteção judicial, que manifestamente não têm.
Essa angústia e desespero, que é transversal a todos AA e RR – de que a propriedade plena sobre cada uma das parcelas não seja reconhecida –, decorre apenas do facto de a situação dos prédios não se encontrar legalizada, o que demandará o empenho de todos nessa legalização (independentemente da forma de o fazer, e, que, salvo o devido respeito, não compete a este tribunal, no âmbito desta ação, elucidar).
E o mesmo se passa relativamente ao receio que dizem ter uns dos outros - de que qualquer um deles possa vir a prejudicá-los, dificultando ou impedido qualquer ato que possa querer fazer no seu prédio.
O receio de que algum dos RR (ou dos AA) possa via a desfazer o que fizeram amigavelmente e por acordo – a divisão igualitária das frações que constituíam o prédio rústico unitário -, não é suficiente para concluir que existe litígio entre as partes. Esse simples receio não chega para justificar uma demanda judicial; é necessário que haja atos materiais concretos, lesivos dos direitos de cada um sobre as aludidas parcelas.
Não restam assim dúvidas de que o tribunal recorrido concluiu e muito bem – contrariamente ao defendido pelos recorrentes –, pela inexistência de litígio entre as partes.
E analisada a matéria de facto alegada pelos AA na petição, inexiste ali qualquer facto que impute aos RR qualquer ato lesivo do direito de propriedade dos AA sobre as suas parcelas. Aliás, a prova disso é que os RR nem sequer contestaram a ação, aceitando tudo quanto é alegado pelos AA na petição – como vieram fazer constar da transação que lavraram em documento que juntam aos autos no requerimento de 11.12.2023, em cujo artigo 1º consta expressamente que “Os RR reconhecem que tudo o que foi alegado em sede de p.i. corresponde à verdade”.
E inexistindo litígio entre as partes, inexiste interesse processual em agir.
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Consabidamente, o recurso à via judicial tem como finalidade dirimir conflitos entre particulares, quando haja necessidade que o tribunal decida da questão submetida a juízo.
Esta necessidade processual circunscreve-se ao chamado interesse processual ou interesse em agir, definido como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação, quando o autor se encontre em situação de carência que o faça necessitar de recorrer aos tribunais.
O interesse em agir constitui assim um pressuposto de natureza processual, e traduz-se na necessidade, objetivamente justificada, de recorrer à ação judicial para satisfação de um direito em relação a cuja existência existe incerteza objetiva e grave (Acs. RP de 19.11.2002 e de 15.10.2002, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Ele tem sido definido como um pressuposto processual inominado, que consiste na necessidade de se usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação (Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 179).
Dir-se-á que o interesse em agir, também apelidado na doutrina e na jurisprudência (que genericamente vão admitindo este pressuposto processual autonomizado) de “interesse de agir”, “interesse processual”, “causa legítima da ação”, “motivo justificativo dela”, “necessidade de agir ou necessidade de tutela jurídica”, consiste na necessidade de recorrer ao processo, de utilizar a máquina judiciária, para obter a tutela judicial de um direito subjetivo legalmente consagrado. (Manuel de Andrade - Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 79 e ss.).
A propósito da destrinça entre legitimidade e interesse em agir, Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 2008, pag. 191), fala, quanto a este, que supõe a verificação de uma utilidade efetiva na intervenção do tribunal, arredando manifestações de interesse baseadas em puro academismo, em diletantismo jurídico, em meras dúvidas subjetivas, ou na ideia de importunar, com questões cuja resolução não advém qualquer efeito palpável.
Como se afirma no Ac. do STJ de 12.05.2011 (disponível em www.dgsi.pt) “só se justifica o recurso a juízo quando alguém tenha necessidade de dar concretização ao direito que, racionalmente, a sociedade lhe tem atribuído, e que lhe está a ser denegado por outrem…”
Também no Ac. do STJ de 24.11.2010 (disponível no mesmo sítio) se afirma que “…É então condição imprescindível ao conhecimento da ação, que o impugnante alegue ser titular de um direito prejudicado posto em dúvida (…) por tal forma que a declaração de inexistência do direito do justificante seja aptar a pôr termo à situação de dúvida objectiva e grave (ou seja, prejudicial) em que se encontra um direito invocado pelo autor.”
Denota-se assim, na configuração deste pressuposto processual, duas vertentes jurídicas bem distintas, mas coadjuvantes: A existência do direito subjetivo por parte do seu titular, o demandante; e a necessidade de o mesmo obter tutela judiciária para esse direito, decorrente de o mesmo lhe estar a ser negado ou perturbado por outrem.
Como salientam Antunes Varela, M. Bezerra, e Sampaio e Nora (Manuel de Processo Civil, 2ª ed., p. 134), "A pessoa pode ser o titular incontestável de certo direito e, nessa condição, ser parte legítima para discutir em juízo a validade ou o conteúdo da relação constituída, mas carecer de interesse em agir se, por exemplo, ninguém contestar a existência de tal direito".
A instauração de uma ação judicial deve ser, pois, absolutamente necessária para a defesa do direito, sendo-o apenas quando esse direito é ameaçado ou violado (José Beleza dos Santos, A Simulação no Direito Civil, II, 11, citado no Ac. da RP de 28-09-2010, in www.dgsi.pt). Como se concluiu no citado Ac. “O interesse em agir tem de seguir o seguinte princípio geral: para que o sujeito de um direito tenha ação contra outra pessoa, é preciso que um facto desta ou a sua inércia lese o direito do primeiro, ou que este direito não possa ser exercido inteiramente sem uma sentença proferida contra a outra parte. Quando se estiver perante este requisito específico o sujeito de direito tem interesse em agir.”
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Ora, como acima deixamos dito, não bastava aos AA alegarem e justificarem a titularidade do seu direito sobre as parcelas de terreno que lhe foram adjudicadas em partilha, por óbito do seu pai; teriam de justificar ainda a sua necessidade de recorrer a juízo para que tal direito lhes fosse reconhecido por via judicial. Necessário seria assim a alegação e prova de que esse direito lhe estava a ser negado pelos RR, ou por eles de alguma forma posto em causa – o que manifestamente não acontece.
Os AA não configuram de facto, com os factos alegados e relativamente aos pedidos formulados, a existência de um interesse processual - configurado o mesmo como uma situação de carência objetiva, justificada, razoável e atual, de recorrer a juízo -, que justifique o recurso à presente ação para peticionar o que fizeram constar da petição, impondo-se concluir, como se fez na decisão recorrida, pela sua falta de interesse em agir quanto a tais pedidos.
A falta de interesse em agir consubstancia, como bem se decidiu na sentença recorrida, uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, enquadrável nos artºs 576º, nºs 1 e 2 e 578º do CPC, e conduz à absolvição dos RR. da instância.
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DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se improcedente a Apelação, e confirma-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes (artºs 527º, nº1 e 2, do CPC).
Notifique e D.N
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Sumário:
I- O recurso à via judicial tem como finalidade dirimir conflitos entre particulares, quando haja necessidade que o tribunal decida da questão submetida a juízo.
II- Esta necessidade processual circunscreve-se ao chamado interesse processual ou interesse em agir, definido como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação, quando o autor se encontre em situação de carência que o faça necessitar de recorrer aos tribunais.
III- O interesse em agir constitui um pressuposto de natureza processual, e traduz-se na necessidade, objetivamente justificada, de recorrer à ação judicial para satisfação de um direito em relação a cuja existência existe incerteza objetiva e grave.
IV- Trata-se de um pressuposto processual inominado, cuja falta conduz à absolvição dos RR. da instância.
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Guimarães, 16.5.2024