Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE | ||
| Descritores: | INDEFERIMENTO DO RECURSO FALTA DE MOTIVAÇÃO DA RECLAMAÇÃO REJEIÇÃO IN LIMINE | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 09/14/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECLAMAÇÃO (ART.º 643.º CPC.) | ||
| Decisão: | RECLAMAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I - A reclamação do indeferimento do recurso (art.º 643º do CPC) deve ser motivada, quer por assim o impor os princípios gerais de processo civil – dispositivo, a autorresponsabilidade das partes e contraditório – quer porque da mesma forma que se exige a motivação do recurso (cfr. art.º 639º n.º 1 do CPC), também se exige a motivação da reclamação, outra forma de impugnação de uma decisão judicial, no caso, de não admissão de um recurso. II – A reclamação do indeferimento do recurso que não contenha motivação deve ser rejeitada in limine, por interpretação extensiva do art.º 641º, n.º 2, alínea b) do CPC, não sendo susceptível de despacho de aperfeiçoamento. III – Esta solução não viola o art.º 20º da CRP. | ||
| Decisão Texto Integral: | Reclamação 643º do CPC Conferência os termos do art.º 652º n.º 3, aplicável ex vi art.º 643º n.º 4, ambos do CPC * ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES1. Relatório A 02/03/2023 AA requereu a junção aos autos de documento e a consequente suspensão de qualquer diligência no sentido de prosseguimento com as operações de liquidação do activo, nos termos ordenados nos autos, conforme pretende o Sr. Administrador de insolvência, por ter sido interposta acção declarativa constitutiva de contrato promessa, pelo requerente e Autor relativa ao imóvel objecto deste processo, conforme documento que se junta em anexo, por se encontrarem direitos e obrigações a ser exercidos. A 03/03/2023 e apreciando o requerido, foi proferido o seguinte despacho: Antes do mais, deverá a requerente juntar aos autos os documentos a que faz referência na sua versão integral.--- Notifique.--- A 16/03/2023 a requerente requereu o prazo de 10 dias, porquanto dele necessita para dar cumprimento ao ordenado devido a um problema informático. A 20/03/2023 e apreciando o requerido foi proferido o seguinte despacho: «Concede-se a prorrogação de prazo requerida, advertindo-se porém a requerente que o prazo ora concedido não importa a suspensão da liquidação em curso.--- Notifique, dando igualmente conhecimento ao AI, este com vista a dar andamento às diligências de liquidação.»--- A 04/04/2023 a requerente veio interpor recurso do despacho de 20-03-2023. A 16/05/2023 e após várias vicissitudes foi proferido o seguinte despacho: «Uma vez que o despacho em crise se limita a conceder uma prorrogação de prazo (que favorece aliás a própria recorrente) e a fazer uma mera advertência, sendo por isso entendido como um despacho de mero expediente ou, pelo menos, proferido no uso de um poder discricionário do juiz, não é legalmente admissível o respectivo recurso em face do disposto no artigo 630º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, assim não se admitindo o recurso ora interposto por AA.»--- A 29/05/2023 a requerente apresentou requerimento com o seguinte teor: «AA, recorrente no processo supra referido, vêm após notificação, do despacho a não admitir o recurso interposto, e ao abrigo do artigo 643º nº 1 do Código de Processo Civil reclamar contra o indeferimento do recurso apresentado para o Tribunal Judicial da Comarca ..., nos termos do artigo 629º e segts., que subirá imediatamente, nos próprios autos, nos termos do artigo 645º nº 1 alinea b) do C.P.C. e com efeito suspensivo, nos termos do artigo 647º nº 3 alinea b) do C.P.C. tendo apresentado as suas alegações (motivações e conclusões) Junta: requerimento de interposição de recurso e as alegações, decisão recorrida e o despacho objecto da reclamação». Pelo Relator foi proferido despacho de indeferimento liminar da reclamação. A reclamante requereu a conferência nos termos do art.º 643º n.º 4 e 652º n.º 3 do CPC, dizendo: - como consta da decisão singular, a lei nada refere relativamente à necessidade de motivação na reclamação; - a não apreciação do recurso, por falta de motivação da reclamação, como foi proferido na douta decisão singular, é inconstitucional, pois põe em causa o processo equitativo consagrado no nº 4 do artigo 20º da Constituição; - uma falha processual que não acarrete, de forma significativa, o comprometimento da regularidade processual ou que não reflicta considerável grau de negligência, não poderá colocar em causa, de forma irremediável ou definitiva, os fins substantivos do processo; - mesmo que se exigisse que a reclamação fosse motivada, deverá sempre existir a possibilidade de aperfeiçoamento da mesma. 2. Questão a apreciar Tendo sido proferida decisão singular de indeferimento liminar da reclamação e tendo a reclamante requerido que sobre a questão recaia acórdão (conferir art.º 652º n.º 3, aplicável ex vi art.º 643º n.º 4, ambos do CPC), a questão a apreciar é a de saber se aquela decisão deve ser substituída por outra que, em primeira linha, admita a reclamação e, num segundo momento, apreciando a mesma, admita o recurso não admitido em 1ª instância. 3. Mérito A decisão singular tem o seguinte teor: “O art.º 643º n.º 1 do CPC dispõe que do despacho que não admita o recurso pode o recorrente reclamar para o tribunal que seria competente para dele conhecer no prazo de 10 dias contados da notificação da decisão. E o n.º 3 dispõe que a reclamação, dirigida ao tribunal superior, é apresentada na secretaria do tribunal recorrido, autuada por apenso aos autos principais e é sempre instruída com o requerimento de interposição de recurso e as alegações, a decisão recorrida e o despacho objeto de reclamação. Muito embora o normativo não o refira, a reclamação deve ser motivada, ou seja, o reclamante deve apresentar o raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, com base no qual entende que o recurso deve ser admitido. E neste sentido refere Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 227-228: “Podendo o (…) fundamento [da reclamação] variar em função do motivo da rejeição (irrecorribilidade, extemporaneidade, falta de legitimidade, etc) ou da retenção indevida, cabe ao reclamante argumentar no sentido de convencer o Tribunal superior do desacerto da decisão reclamada.”. E na 382 refere: “ Como se decidiu na decisão singular do STJ, de 22-2-2016, 490/11 – Abrantes Geraldes, www.dgsi.pt, a reclamação deve ser motivada. Aí se referiu que: “A reclamação contra o despacho de não admissão do recurso (…) constitui uma das modalidades que pode assumir a impugnação de decisões judiciais, devendo integrar a exposição dos fundamentos da revogação do despacho em causa.” No caso em apreço verifica-se que a 29/05/2023 AA apresentou requerimento com o seguinte teor: AA, recorrente no processo supra referido, vêm após notificação, do despacho a não admitir o recurso interposto, e ao abrigo do artigo 643º nº 1 do Código de Processo Civil reclamar contra o indeferimento do recurso apresentado para o Tribunal Judicial da Comarca ..., nos termos do artigo 629º e segts., que subirá imediatamente, nos próprios autos, nos termos do artigo 645º nº 1 alínea b) do C.P.C. e com efeito suspensivo, nos termos do artigo 647º nº 3 alínea b) do C.P.C. tendo apresentado as suas alegações (motivações e conclusões) Junta: requerimento de interposição de recurso e as alegações, decisão recorrida e o despacho objecto da reclamação Não consta deste requerimento, nem dos elementos juntos, a motivação da reclamação. O requerimento tem apenas e tão só o teor descrito. Os elementos juntos são apenas os indicados: requerimento de interposição de recurso, alegações, decisão recorrida e o despacho objecto da reclamação. Exigindo-se que a reclamação seja motivada e não contendo o requerimento de reclamação em apreço a motivação, nem sendo acompanhada em documento autónomo da mesma, impõe-se o seu indeferimento liminar, por aplicação extensiva do art.º 641º n.º 2, alínea b), 1ª parte, do CPC (neste sentido Abrantes Geraldes, ob. cit., nota 382, pág. 228). 3. Decisão Termos em que se indefere liminarmente a reclamação do despacho de não admissão do recurso proferido em 1ª instância a 16/05/2023. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s” Impõem-se, em primeiro lugar, algumas precisões ao alegado pela reclamante. 1) Dispõe o n.º 1 do art.º 639º do CPC que O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. Este normativo impõe dois ónus: o de alegação e o de conclusão. O último traduz-se na necessidade de finalizar as alegações recursivas com a formulação sintética de conclusões, em que é suposto que o apelante resuma ou condense os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão proferida pelo tribunal a quo. (Ac. RP de 09/11/2020, proc. 18625/18.6T8PRT.P1, consultável in). A decisão singular indeferiu liminarmente a reclamação por falta de motivação e não por falta de conclusões 2) A reclamante cita o 685.º-A, n.º 3 do CPC. O referido normativo foi introduzido no CPC revogado, pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto e corresponde, actualmente, ao n.º 3 do art.º 639º do CPC. Entrando agora na apreciação do invocado pela reclamante, dir-se-á, em primeiro lugar, que é certo que na decisão singular consta que o art.º 643º não refere que a reclamação deve ser motivada. Porém logo se acrescenta que o reclamante deve apresentar o raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, com base no qual entende que o recurso deve ser admitido, citando-se nesse sentido quer doutrina, quer jurisprudência. A reclamante nada invoca de concreto que coloque em causa tal exigência. Sempre se acrescenta que a mesma radica nos princípios gerais de processo civil que são o principio do dispositivo e o da autorresponsabilidade das partes que, no que tange aos instrumentos de impugnação das decisões judiciais, se traduzem no seguinte: não basta à parte pedir a revogação, substituição ou alteração da decisão impugnada; há-de invocar, também, as razões para tal, quer para permitir o cabal exercício do contraditório pela parte contrária, quer para conferir ao tribunal uma base de trabalho e balizar as questões que o mesmo pode conhecer, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, sendo certo que não cabe na função do tribunal “adivinhar” os fundamentos, que, porventura, tenham interesse para a decisão da impugnação. Quer o recurso, quer a reclamação são formas de impugnação de decisão judiciais. Por isso e da mesma forma que se exige a motivação do recurso (cfr. art.º 639º n.º 1 do CPC), também se exige a motivação da reclamação, outra forma de impugnação de uma decisão judicial, no caso, de não admissão de um recurso. Destarte, a exigência de motivação da reclamação está perfeitamente justificada. Em segundo lugar, nos recursos dispõe o n.º 3 do art.º 639º do CPC que, quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, ou complexas, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, e esclarecê-las ou sintetizá-las. Este normativo prevê a prolação de despacho de aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso única e exclusivamente nas situações em que as conclusões são deficientes, obscuras, ou complexas. Nem este normativo, nem qualquer outro, prevê a prolação de despacho de aperfeiçoamento quando se verifique uma falta (absoluta) de motivação, o que se compreende, pois tal colocaria em causa toda a regularidade processual, já que, no fundo, seria conceder à parte a possibilidade de praticar o acto, em conformidade, quando o primeiro não reunia os mínimos legais, muito para além do prazo concedido por lei. O que a lei prevê – cfr. art.º 641º, n.º 2, alínea b) do CPC - é que não contendo o requerimento de recurso a motivação, nem sendo acompanhada em documento autónomo da mesma, impõe-se o seu indeferimento. E, como referido na decisão singular, tal solução é aplicável à reclamação, por aplicação extensiva (neste sentido Abrantes Geraldes, ob. cit., nota 382, pág. 228). No caso é patente e manifesta a falta (absoluta) de motivação da reclamação, pelo que não havia lugar à prolação de despacho de aperfeiçoamento, mas ao seu indeferimento liminar. Finalmente, a solução de considerar que não contendo a reclamação qualquer motivação, não há lugar a despacho de aperfeiçoamento, mas a indeferimento liminar, não coloca em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (art.º 20º da CRP). Expliquemo-nos O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 434/2011, 2.ª Secção, ponto 7, consultável in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110434.html, considerou o seguinte: «….uma falha processual – maxime que não acarrete, de forma significativa, comprometimento da regularidade processual ou que não reflita considerável grau de negligência - não poderá colocar em causa, de forma irremediável ou definitiva, os fins substantivos do processo, sendo de exigir que a arquitetura da tramitação processual sustente, de forma equilibrada e adequada, a efetividade da tutela jurisdicional, alicerçada na prevalência da justiça material sobre a justiça formal, afastando-se de soluções de desequilíbrio entre as falhas processuais – que deverão ser distinguidas, consoante a gravidade a e relevância - e as consequências incidentes sobre a substancial regulação das pretensões das partes.». E no Acórdão n.º 462/2016, da 2.ª Secção, ponto 2.2., consultável in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20160462.html, considerou que: «(…) a ampla liberdade do legislador no que respeita ao estabelecimento de ónus que incidem sobre as partes e à definição das cominações e preclusões que resultam do seu incumprimento está sujeita a limites, uma vez que os regimes processuais em causa não podem revelar-se funcionalmente inadequados aos fins do processo (isto é, traduzindo-se numa exigência puramente formal e arbitrária, destituída de qualquer sentido útil e razoável) e têm de se mostrar conformes com o princípio da proporcionalidade. Ou seja, os ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (cfr., sobre esta matéria, Carlos Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, in «Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa», Coimbra Editora, 2003, pp. 839 e ss. e, entre outros, os Acórdãos n.ºs 564/98, 403/00, 122/02, 403/02, 556/2008, 350/2012, 620/13, 760/13 e 639/14 do Tribunal Constitucional). O Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais: - a justificação da exigência processual em causa; - a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; - e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cfr., neste sentido, os Acórdãos n.ºs 197/07, 277/07 e 332/07).» Já deixámos referido que a exigência de motivação da reclamação está perfeitamente justificada à luz dos princípios do dispositivo, do contraditório e da autorresponsabilidade das partes. Por outro lado, é uma exigência cujo cumprimento não comporta uma especial onerosidade, apenas variando o seu conteúdo, em função do motivo da rejeição ou da retenção indevida do recurso, pelo que a falta de motivação é uma falha que revela um considerável grau de negligência da parte. Em terceiro lugar, e ao contrário do que invoca a reclamante, a não indicação do raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, ou seja, a falta de motivação da reclamação, não é uma falha menor, tanto assim que o legislador considerou, no caso do recurso, que a mesma determina o indeferimento do recurso – cfr. art.º 641º, n.º 2, alínea b) do CPC – sem qualquer possibilidade de aperfeiçoamento. A falta de motivação é uma falha processual que tem consequências graves, pois impede, desde logo, o cabal exercício do contraditório pelo recorrido (cfr. art.º 643º, n.º 2 do CPC) – se não existe motivação, nada se pode contradizer – e coloca o tribunal na posição de ter de adivinhar as razões fundantes do pedido, o que não está em conformidade com o princípio do dispositivo. Destarte, o indeferimento liminar da reclamação, como consequência da falta de motivação, não é desproporcional face à gravidade e relevância das consequências da mesma e, nessa medida, mostra-se compatível com um processo equitativo, um processo justo, que respeita a efetividade da tutela jurisdicional, alicerçada na prevalência da justiça material sobre a justiça formal, respeitando, assim, o disposto no art.º 20º, n.º 4 da CRP. Em conclusão: face à absoluta falta de motivação, a reclamação deve ser indeferida liminarmente, confirmando-se a decisão do relator. 4. Decisão Termos em que acordam os Juízes da 1ª Secção da Relação de Guimarães em indeferir liminarmente a reclamação e, assim, confirmar a decisão singular do relator. Custas do incidente pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, sem prejuízo do beneficio do apoio judiciário. Notifique-se 14/09/2023 (O presente acórdão é assinado electronicamente) Relator: José Carlos Duarte Adjuntos: Fernando Barroso Cabanelas Alexandra Viana Lopes |