Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA | ||
Descritores: | ACÇÃO DE SUB-ROGAÇÃO REQUISITOS DA ACÃO DE SUB-ROGAÇÃO SUB-ROGAÇÃO INDIRECTA SUB-ROGAÇÃO DIRECTA | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 11/30/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I- A ação de sub-rogação do credor ao devedor (art. 606º, C. Civil) tem sobretudo em vista evitar que a inação do devedor possa afetar a consistência prática da garantia patrimonial do credor. II- Assim, com tal ação, a lei admite que o credor – defendendo-se da inércia do devedor – se substitua ao devedor no exercício de direitos ou poderes que a este último competem e que ele se abstém de efetivar. III- Estamos, pois, perante uma ação sub-rogatória “indireta” ou “oblíqua”, em que o credor age na qualidade de representante ou substituto legal do devedor, tudo se passando como se os atos fossem praticados por este. IV- Figura diversa é a chamada sub-rogação “direta”, mediante a qual o credor exerce em nome e em proveito próprio um direito do seu devedor, fazendo-se pagar, direta e imediatamente, por um devedor deste, o que lhe atribui preferência no pagamento sobre os restantes credores; a sub-rogação direta não é admitida pela lei com carácter generalizado, mas só em certos casos excecionais, onde concorrem razões que a justificam - cfr. designadamente o “commodum” de representação (arts. 794º e 803º, do C. Civil); e mandato sem representação (art. 1181º, n.º 2, do C. Civil. V- Tal ação de sub-rogação (do credor ao devedor) depende da verificação, em concreto, de 3 requisitos, a saber: a) omissão pelo devedor de exercer os seus direitos contra terceiros; b) conteúdo patrimonial desses direitos e não atribuição do seu exercício exclusivo, por natureza ou disposição da lei, ao seu titular; c) essencialidade do exercício desses direitos para a satisfação ou garantia do direito do credor. VI- Neste último requisito, caberá ao interessado credor no exercício da sub-rogação, provar e alegar uma de duas coisas: i) que do ato omitido pelo devedor resultou a insolvência ou o agravamento da insolvência dele, sendo o exercício do direito indispensável para eliminar tal resultado; ii) ou que da omissão resultou a impossibilidade de satisfação (cumprimento) do direito do credor, como sucede quando a inação do devedor provoque a privação, para o seu património, da coisa não fungível essencial à realização da prestação devida. VII- Uma vez efetivada a sub-rogação, os bens entram (ou reentram) no património do devedor, pelo que o autor da sub-rogação não adquire qualquer vantagem especial pelo facto de a ela ter recorrido, sendo a sua atuação exercida em benefício de todos os outros credores (art. 609º, C. Civil). | ||
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Decisão Texto Integral: | Recorrente: Empresa A – Comércio e Aluguer de Automóveis, Lda. Recorridos: Empresa X, Lda. AF Empresa T – Imobiliária, S.A. * Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Braga – Juiz 5* Relator: António José Saúde Barroca Penha.1º Adjunto: Desembargadora Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha. 2º Adjunto: Desembargador José Manuel Alves Flores. * Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:I. RELATÓRIO EMPRESA A – Comércio e Aluguer de Automóveis, Lda. intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Empresa X, Lda.; AF; e Empresa T – Imobiliária, S.A. pedindo: a) que sejam declaradas nulas e de nenhum efeito as compras e vendas do veículo NN, datadas de 30 de Maio de 2012; b) a condenação da 3ª. Ré a restituir-lhe esse veículo em bom estado de conservação e funcionamento; c) que se determine o cancelamento dos registos de propriedade correspondentes às aps. 063.., 063.. e 0631..; d) a condenação da 3ª. Ré a pagar-lhe a quantia de € 20 000,00, a título de depreciação do veículo; e subsidiariamente, caso assim não se entenda: e) a condenação dos réus a pagar-lhe o valor de € 50 000,00, a título de preço de veículo, acrescido de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, desde 30 de Maio de 2012. Alegou para o efeito, em suma, que as vendas do referido veículo efetuadas em 30 de Maio de 2012 de si para a 1ª. ré, desta para o 2º réu e deste para a 3ª. ré são fictícias, pois nenhum dos supostos vendedores quis efetivamente vender esse veículos, nem nenhum dos indicados compradores o quis realmente comprar, não tendo sido pago ou recebido qualquer valor respeitante a essas declarações de vontade. Acrescentou que as partes apenas efetuaram tais declarações com vista a evitar que o veículo viesse a ser penhorado e executado por dívidas da autora e que a 3ª ré tem vindo a usufruir do mesmo desde aquela data, o que lhe causou uma depreciação de € 20.000,00, sendo certo que tinha à data um valor comercial de € 50.000,00. Os 2º e 3º réus contestaram, invocando, em primeiro lugar, a irregularidade de representação da autora e impugnando os factos alegados pela A. na petição inicial, defendendo que não existiu qualquer negócio simulado, mas antes uma transmissão válida do direito de propriedade do veículo para a 3ª ré, cujo representante legal (o aqui 2º réu) era detentor de um crédito sobre a 1ª ré de € 50.000,00 e que assim ficou liquidado. Invocaram, ainda, o abuso de direito, pedindo a condenação da autora no pagamento de uma indemnização de € 10.000,00 como litigante de má fé. Concluíram, pedindo a absolvição da instância de todos os réus e, subsidiariamente, a sua absolvição do pedido. A autora respondeu, pugnando pela inexistência de irregularidade de representação e pelo indeferimento das restantes questões suscitadas pelos réus na sua contestação, concluindo como na petição inicial. Realizou-se uma audiência prévia, no decurso da qual foi proferido despacho saneador, negando-se provimento à exceção dilatória de irregularidade de representação. De seguida foi fixado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova. Após produção de prova pericial, procedeu-se a realização da audiência de julgamento. Na sequência, por sentença de 12.07.2017, veio a julgar-se parcialmente procedente a ação e, em consequência, foi a 1ª ré “Empresa X, Lda.” condenada a pagar à autora a quantia de € 50.000,00, acrescida de juros contados desde a citação, às taxas legais em cada momento em vigor para as operações comerciais, até integral e efetivo pagamento. Mais se decidiu em absolver a 1ª ré do restante pedido; assim como se absolveu os 2º e 3º réus de todo o pedido. Inconformada com o assim decidido, veio a autora EMPRESA A – Comércio e Aluguer de Automóveis, Lda. interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes CONCLUSÕES 1ª Sendo a obrigação de pagar o preço um dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda, competia aos réus o respetivo ónus da prova, não tendo estes logrado provar o pagamento do preço do veículo NN - cfr. al. c) do art.º 879.° e n.º 2 do art.º 342.°, ambos do C. Civil; 2ª Da prova pericial realizada à escrituração da ré "Empresa X, Lda." e dos depoimentos das testemunhas Manuel e Joaquim resulta, inequivocamente, que o preço de aquisição do veículo não foi pago pelos réus, pelo que deve considerar-se como provado que "nenhum dos réus pagou, nem a autora ou os réus receberam qualquer valor pela compra e venda do veículo NN" - cfr. relatório pericial de fls. e depoimento gravado da testemunha Manuel, com início às 10h:29m:03s e termo às 10h:40m:44s (vd. passagens aos 02m:45, 03m:36, 05m:21, 05m:30 e 06m:45) e depoimento gravado da testemunha Joaquim, com início às 10h:41m:26s e termo às 11h:12m:39s (vd. passagens aos 03m:29 a 4m:20, 04m:30, 05mA8, 09m:33, 10m:26) - vd. n.º 1 art..º 662.° e art.º 640.° C. P. Civil; 3ª A autora alegou e provou não apenas o seu crédito sobre a 1ª ré, mas também o crédito desta perante o 2º réu e deste perante a 3ª ré, emergente do não pagamento do preço da compra e venda do veículo NN celebrada entre ambos - vd. al. c) do art.º 879.° e art.º 342.° C. Civil; 4ª Ficou também demonstrado que os réus adquirentes/transmitentes não exigiram, nem exigem esse valor à ré "Empresa T", havendo por isso uma inatividade consciente por parte dos mesmos que leva, naturalmente, ao agravamento da já difícil situação económica da 1ª ré; 5ª Resulta da certidão comercial desta ré, junta à petição inicial como doc. n.º 2, que a mesma foi objeto de um processo especial de revitalização no final do ano de 2012 e que, desde aí, não apresenta contas, corroborando a testemunha Manuel, contabilista da ré, que esta já desde esse ano se encontra com graves dificuldades económicas, estando mesmo inativa desde então; 6ª A sub-rogação da autora é, pois, essencial à satisfação ou garantia do seu direito de crédito - vd. n.º 2 do art.º 606.° CC; 7ª Encontram-se verificados os 3 requisitos da sub-rogação, tendo por isso a autora direito a receber também dos réus o valor do preço de € 50 000,00, acrescido de juros contados desde a citação, às taxas legais, até efetivo e integral pagamento - vd. n.º 1 art.º 606.° C. Civil. Finaliza, pugnando pelo provimento do recurso de apelação e, em consequência, deve revogar-se a sentença proferida, condenando-se todos os réus a pagar à autora a quantia de € 50.000,00, acrescida de juros contados desde a citação, às taxas legais, até efetivo e integral pagamento. * Os réus contestantes apresentaram contra-alegações nas quais formularam as seguintesCONCLUSÕES 1) A sentença proferida nos presentes autos em primeira instancia mostra-se ajustada, de facto e de direito, à questão posta a Tribunal; 2) A recorrente limitou o seu recurso ao pedido subsidiário que peticionou e não impugnou a matéria de facto que se tem de ter por assente, definitivamente, nestes autos; 3) A ora recorrente não alegou quaisquer factos no sentido de se verificar uma inação da ré PS e AF perante os seus credores; 4) Em especial em relação à ré “Empresa T”; 5) Não tendo sido sequer alegado que esta “Empresa T” tivesse qualquer dívida para com aquela PS e AF; 6) Ou, ainda, que a sua conduta tivesse resultado a perda de património e que a situação da PS e AF seja de insolvência; 7) Desta forma, não estão verificados os elementos necessários que justifiquem a aplicação do disposto no artigo 606º do Código Civil. 8) Devendo, assim, improceder o presente recurso. * Após os vistos legais, cumpre decidir.* II. DO OBJETO DO RECURSO: O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil). No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso. Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes: Ø Saber se cumpre proceder à alteração da factualidade dada como provada e não provada pelo tribunal a quo nos moldes preconizados pela recorrente. Ø Saber se assiste direito à autora recorrente em ver os demais réus condenados no pagamento do respetivo valor do veículo por via de sub-rogação da autora nos direitos de crédito da 1ª ré sobre aqueles réus. * III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO* A) Factos Provados O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos: 1. No dia 30 de Maio de 2012, a autora declarou vender à ré “Empresa X, Lda.” o veículo de matrícula NN, marca Audi, modelo Q7; 2. Nesse mesmo dia, a ré “Empresa X, Lda.”, declarou vender esse veículo ao réu AF e este último, por sua vez, declarou vendê-lo à ré “Empresa T – Imobiliária, S.A.”; 3. A ré “Empresa T – Imobiliária, S.A.” passou a usufruir do veículo desde essa data, circulando e beneficiando do mesmo, que passou a ser conduzido pelo seu representante legal, o réu AF; 4. Nessa data, o veículo encontrava-se em perfeito estado de conservação, interior e exterior, de chaparia, pintura e mecânica; 5. É do ano de 2012, a diesel, com 2.967 cm3 de cilindrada e tinha cerca de 100.000 kms rodados; 6. Nessa altura, o valor comercial do NN era de € 50.000,00; 7. A autora é detentora de vários veículos automóveis. * B) Factos não provados Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a discussão da causa, nomeadamente os seguintes: a) Nenhum dos referidos “vendedores” quis vender esse veículo, nem, correspondentemente, nenhum dos réus o quis comprar; b) Nenhum dos réus pagou, nem a autora ou os réus receberam qualquer valor pela “compra e venda” declarada desse veículo; c) As declarações manifestadas tiveram por fim, apenas, fazer constar esse veículo em nome da ré “Empresa T – Imobiliária, S.A.”, evitando que o mesmo viesse a ser executado por quaisquer dívidas da autora; d) Até hoje a ré percorreu com esse veículo cerca de 80.000 kms; e) Por efeito dessa utilização, o veículo sofreu uma depreciação de € 20.000,00; f) As partes acordaram que o pagamento do preço seria efetuado em 30 de Maio de 2012; g) A dada altura, quer o representante legal da autora, quer o 2º réu tiveram de se endividar perante a Banca para pagar os salários aos trabalhadores da co-ré “Empresa X, S.A.”; h) O réu AF teve de pagar o crédito pedido à Banca no montante de € 50.000,00 e o NN passou para a propriedade do 2º réu como pagamento. A) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto. A primeira questão que importa agora dirimir refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida. Ora, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente. Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objeto da impugnação. Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto», dispõe o n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” Por seu turno, ainda, em conformidade com o n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “ (…) os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.” (sublinhado nosso). Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar ainda o seu recurso através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão diversa da que foi proferida sobre a matéria de facto. Os aspetos fundamentais que o recorrente deve assegurar neste particular prendem-se com a definição clara do objeto da impugnação (clara enunciação dos pontos de facto em causa); com a seriedade da impugnação (meios de prova indicados ou meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido (indicação da decisão da matéria de facto diversa da decisão recorrida). Porém, importa que não se sobrevalorizem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com a invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador. Assim, como salienta Abrantes Geraldes(1), o Supremo Tribunal de Justiça “vem batalhando precisamente no sentido de evitar os efeitos de um excessivo formalismo que ainda marca alguns acórdãos das Relações, promovendo que o esforço que é aplicável na justificação de soluções que exponenciam aspectos de natureza meramente formal sem suficiente tradução na letra da lei, nem no espírito do sistema, seja canalizado para a efectiva apreciação das impugnações de matéria de facto”. (2) Por outro lado, na fase da admissão formal do recurso de apelação em que é impugnada a decisão da matéria de facto, importa que se estabeleça uma clara separação entre os requisitos formais e os ligados ao mérito ou demérito da pretensão que será avaliado em momento posterior. Deste modo, havendo “sérios motivos para a rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto, quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afectados, não colidindo com a admissibilidade do recurso quanto aos demais aspectos. (3) Tendo, assim, presente este enquadramento legal, cumpre decidir. No caso em apreço, a recorrente, cumprindo, no essencial, os apontados requisitos formais, pretende que a factualidade dada como não provada sob a al. b) seja considerada provada. A recorrente defende, desde logo, que nenhum dos réus logrou demonstrar, tal como lhes competia, um dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda celebrado, mais concretamente o pagamento do preço do veículo NN, sendo certo que a ré “Empresa X, Lda.” não apresentou qualquer contestação, devendo considerar-se admitidos por acordo quanto a ela os factos alegados pela autora contra ela. Por outro lado, da conjugação da prova pericial realizada à escrituração da ré “Empresa X, Lda.” com os depoimentos das testemunhas Manuel e Joaquim resulta, inequivocamente, que o preço de aquisição do veículo não foi pago pelos réus, pelo que deve considerar-se como provado que “nenhum dos réus pagou, nem a autora ou os réus receberam qualquer valor pela compra e venda do veículo NN”. Tendo presente, assim, a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pela recorrente, importa saber se, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise. Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes (4), que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia. Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. De facto, o acesso direto do Tribunal da Relação à gravação integral do julgamento antes efetuado, terá de permitir-lhe, na formação da sua própria e autónoma convicção, sustentada numa análise crítica da prova, para além da apreciação dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente, a ponderação e a reanálise de todos os meios probatórios produzidos, sujeitos às mesmas regras de direito probatório material a que se encontra sujeito o tribunal de 1ª instância, enquanto forma, por um lado, de atenuar a inevitável quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, e, por outro, ainda, de evitar julgamentos descontextualizados ou parciais, submetidos apenas à leitura dos meios probatórios convocados pelo recorrente. Pretende-se, pois, uma visão global, integrada e contextualizada de todos os meios probatórios produzidos, como garantia de uma decisão de facto o mais próxima possível da realidade, sem que tal implique a procura de uma verdade ou de uma certeza naturalística ou absoluta, que é, por princípio, insuscetível de ser alcançada. Por outro lado, ainda, no que se refere à reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos/declarações prestados pelas partes ou por testemunhas ou, ainda, a reapreciação da prova pericial, é de recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova (5), princípio que expressamente se consagra no art. 607º, n.º 5, do C. P. Civil. (6) De facto, ao contrário do que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, sem pré-fixação legal do mérito de tal julgamento, mas sempre sendo de exigir que esse mérito decorra de uma apreciação crítica e integrada de todo o acervo probatório produzido, ou seja, de uma ponderação da prova produzida à luz das regras da experiência humana, da lógica e, se for esse o caso, das regras da ciência convocáveis ao caso, ponderação essa que deverá ficar plasmada na fundamentação do decidido (art. 607º, n.º 4, do C. P. Civil). Como refere Miguel Teixeira de Sousa (7) a propósito do sistema de prova livre, o que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão.” Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência ou da experiência, à partida, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção. Todavia, face aos atuais poderes da Relação ao nível da reapreciação da decisão de facto, daí não decorre que não possa e não deva o tribunal ad quem analisar, também ele, criticamente, e sujeito às mesmas regras da experiência, da lógica e da ciência, a prova produzida, formando ele próprio, uma nova e autónoma convicção, caso em que, constatando, que ela não é coincidente com a convicção formada pelo Sr. Juiz de 1ª instância, deverá efetuar as correções na matéria de facto que aquela sua convicção lhe imponha. Quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, afirmando os reconhecidos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição. Deste modo, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo. (8) Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”. (9) Feitas estas considerações prévias, cumpre-nos, pois, conhecer da factualidade impugnada pela recorrente. O tribunal a quo considerou como não provado a apontada factualidade ora impugnada [al. b)], salientando para, o efeito, designadamente o seguinte: “ (…) Para além dos factos desde logo admitidos por acordo nos articulados e dos documentos juntos relativos a esta factualidade (nomeadamente as informações da Conservatória do Registo Automóvel de fls. 45 a 56), desde logo se faz notar a grande ausência de meios probatórios produzidos em audiência de julgamento com vista à demonstração da restante factualidade alegada pela Autora, fundamentalmente no tocante aos requisitos do negócio simulado. Com efeito, foram inquiridas apenas três testemunhas, duas das quais arroladas pela Autora: Manuel (que foi contabilista das sociedade envolvidas nos presentes autos, incluindo a Autora, sendo actualmente apenas contabilista da 3ª. Ré) e Joaquim (empregado de escritório da 1ª. Ré). O primeiro referiu que o veículo NN figura, ainda, como activo na contabilidade da Autora e referiu não ter conhecimento de qualquer venda, pelo que analisou na contabilidade. No entanto referiu que deixou de fazer a contabilidade da 1ª. Ré em finais de 2012 e acrescentou que a Autora também não tem actividade desde então. Esta testemunha nada mais soube esclarecer, não tendo revelado conhecimento da factualidade relevante para os presentes autos, assegurando no entanto que a Autora não tinha quaisquer processos em tribunal e que os sócios não andariam a esconder bens da empresa para se furtarem ao pagamento de dívidas, o que evidencia que a eventual compra e venda não se destinaria a enganar terceiros. Quanto à segunda testemunha supra identificada, apenas sabe que não foi emitida qualquer factura referente à transacção comercial do veículo e que não deu entrada na 1ª. Ré de qualquer pagamento. Quanto a dívidas da Autora, referiu-se a montantes respeitantes a passagens nas antigas “Scut” em 2012 e que existiriam dívidas fiscais daí decorrentes. No entanto, quando confrontado com o lapso temporal já decorrido desde então, não soube explicar que processos seriam esses e em que fase processual estariam, pois seria normal se tivessem já ocorrido penhoras e vendas executivas, tendo vacilado. Também referiu que a Autora teria dezenas de viaturas e não soube explicar porque razão tais veículos não teriam sido penhorados, caso existissem essas dívidas. Daí que este depoimento não tenha sido considerado credível, revelando-se incoerente, inconsistente e alheado do senso comum. (...) Quanto à perícia à contabilidade, resultou da mesma que, contabilisticamente, o 2º Réu ficou credor da 1ª. Ré apenas no valor de € 2.252,18, não tendo assim ficado demonstrada a ocorrência de qualquer compensação de créditos efectuada com a entrega do veículo NN àquele 2º Réu. Assim, relativamente ao alegado acordo simulatório, à divergência entre a vontade real e a vontade declarada e ao intuito de enganar terceiros, nenhuma prova foi produzida em audiência de julgamento. Efectivamente, dos depoimentos supra indicados e analisados nada resultou nesse sentido. Acresce que a própria Autora alegou na sua petição inicial (facto que foi aceite por acordo) que a partir da data da compra e venda a 3ª. ré “Empresa T – Imobiliária, S.A.” passou a usufruir do veículo, circulando e beneficiando do mesmo, que passou a ser conduzido pelo seu representante legal, o réu AF. Ora, esta factualidade indicia precisamente o contrário de um acordo simulatório, pois se o mesmo tivesse efectivamente existido não teria ocorrido qualquer alteração quanto à fruição do veículo e o mesmo teria permanecido na posse da Autora. Como tal, não tendo sido produzida qualquer prova susceptível de pôr em causa a real concretização da compra e venda nos moldes em que foi formalizada e de demonstrar a existência do invocado acordo simulatório e do intuito de enganar os credores da Autora (que nem sequer se provou que existissem), foram naturalmente dados como não provados os respectivos factos alegados pela Autora. Por sua vez, como vimos, também não foi feita prova do pagamento do preço do veículo NN. Em conclusão, em face à prova produzida nos termos que se relataram, analisada conjugadamente com todos os elementos acabados de descrever, não foram reunidos dados probatórios susceptíveis de sustentar a factualidade alegada com vista à demonstração da invocada simulação, nem mesmo que pudessem sequer possibilitar o recurso a presunções judiciais, nos termos dos arts. 349º e 351º do Código Civil.” Aqui chegados, desde logo, cumpre salientar que a causa de pedir que serve de base ao pedido principal formulado pela autora traduz-se na simulação dos apontados contratos de compra e venda que tiveram como objecto o identificado veículo NN. Segundo a lição dos nossos civilistas, a simulação é um caso de divergência intencional entre a vontade e a declaração (declara-se, livre e conscientemente, que se quer uma coisa que realmente não se quer), divergência esta acordada entre as partes e não feita por gracejo, fim didático ou teatral, mas sim com o intuito de enganar terceiros, de os iludir, de fazer com que terceiros aceitem a aparência como se fosse realidade. (10) Temos assim como essencial à verificação da simulação três requisitos: a) divergência entre a vontade real e a vontade declarada isto é, entre a aparência criada (o negócio exteriorizado) e a realidade negocial (negócio realmente celebrado); b) o acordo simulatório, ou seja, o acordo entre as partes com o fim de criar uma falsa aparência do negócio (pactum simulationis); c) e o intuito de enganar ou de iludir terceiros (animus decipiendi). (11) Sempre que se verifiquem os três elementos apontados, poderá dizer-se, segundo os mencionados civilistas, que existe simulação no ato. O art. 240º, n.º 1, do C. Civil, consagra tal doutrina quando estipula que “se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”; consagrando-se ainda o vício da nulidade ao negócio simulado (art. 240º, n.º 2, do C. Civil). Por sua vez, aquele que alega a simulação, cabe-lhe o ónus de provar (art. 342º, n.º 1, do C. Civil), o preenchimento de todos os apontados requisitos legais necessários à verificação da invocada nulidade jurídica do negócio, por simulação. A ser assim, com base na invocação que é feita pela autora de que os apontados negócios jurídicos de compra e venda incidentes sobre o mencionado veículo NN são nulos, porque simulados, cabe à autora a prova dos mencionados requisitos legais, como factos constitutivos do seu direito, designadamente a prova de que nenhum dos vendedores quis vender esse veículo, nem, correspondentemente, nenhum dos compradores o quis comprar, tanto mais que estes não pagaram qualquer preço, nem aqueles o receberam (tal como aliás a autora alega nos arts. 8º e 9º da p.i.). Por outro lado, cabe dizer que, não obstante a 1ª ré “Empresa X, Lda.” não ter apresentado contestação, não poderá considerar-se confessado por esta, por efeito da revelia (art. 567º, n.º 1, do C. P. Civil), os factos alegados pela autora sob o art. 9º da p.i.: “Nenhum dos réus pagou, nem a autora ou os réus receberam qualquer valor pela “compra e venda” declarada desse veículo”. Na realidade, conforme prescreve o disposto no art. 568º, al. a), do C. P. Civil, tal revelia não opera “quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar” (nosso sublinhado). A propósito desta norma e da sua ratio essendi referia Antunes Varela, que “na base da solução adoptada encontra-se não só a intenção de afastar a solução chocante de os mesmos factos se terem, na mesma acção, como provados em relação a um dos réus e não provados em relação a outro, mas ainda o propósito de facilitar aos réus a possibilidade de delegarem, expressa ou tacitamente, em algum ou alguns deles, o ónus de contestar no interesse de todos”. (12) Destarte, sendo essa a razão de ser do preceito, o benefício concedido aos réus revéis circunscreve-se à matéria factual efectivamente impugnada pelo réu ou réus contestantes, cuja impugnação lhes aproveitará. Pelo contrário, quanto à matéria de facto não impugnada por qualquer um dos réus contestantes, funcionará, de pleno, o efeito cominatório resultante da ausência de impugnação – a admissão da mesma por acordo –, em conformidade com o princípio consignado no art. 574º, n.º 2, do C. P. Civil. Neste sentido, refere J. Lebre de Freitas (ob. e loc. cit.), que “o benefício concedido aos réus revéis circunscreve-se à matéria efectivamente impugnada pelo réu contestante. Por isso, os factos da petição inicial que não hajam sido impugnados são dados como assentes, em relação a todos os réus, pelo que a eficácia da norma excepcionante acaba por se limitar aos factos de interesse para o réu revel e para o réu contestante, dado não ser relevante, fora de uma relação formal de representação, a impugnação de factos que, por só respeitarem ao revel, o réu contestante não tem interesse em contradizer.” (sublinhámos). Assim, nesta interpretação, apenas se consideram impugnados os factos que, possuindo interesse para o réu contestante, este último impugne nos termos do disposto no art. 574º, n.º 2, do C. P. Civil, aproveitando essa impugnação a todos os demais RR., incluindo os não contestantes. Ora, no nosso caso, dúvidas não há que a matéria do art. 9º da petição inicial foi claramente impugnada pelos réus contestantes (cfr. art. 32º da contestação), pelo que a mesma não se pode ter admitida por acordo no que se refere à 1ª ré não contestante. Como é fácil de ver, a exposição dos motivos que levaram o tribunal a quo a decidir pela não verificação da factualidade incluída sob a matéria da alegada simulação dos negócios jurídicos de compra e venda da dita viatura (entre as quais se inclui a al. b) dos factos não provados) revela-se esclarecedora, seguindo sempre um raciocínio consistente e estruturado. Segundo aqueles princípios de imediação, oralidade e livre apreciação da prova, o tribunal a quo retirou a conclusão que as indicadas testemunhas Manuel (contabilista da autora e das sociedades rés) e Joaquim (funcionário de escritório da 1ª ré) apresentaram depoimentos que não foram suficientemente esclarecedores e convincentes no que se refere aos factos consubstanciadores da alegada simulação negocial. Resulta do seu depoimento que os mesmos não tiveram conhecimento direto sobre a realização dos negócios em causa, limitando-se o primeiro (Manuel) a afirmar que “tanto quanto sei” não houve qualquer venda do mencionado veículo; “que eu tenha conhecimento não houve facturas de venda desse veículo” – sendo certo que, tal como resulta da motivação do juiz a quo, esta mesma testemunha deixou de trabalhar para a autora e 1ª ré em finais de 2012. De igual modo, o segundo (Joaquim) referiu que não foi emitida qualquer factura referente à transacção comercial do veículo e que não houve cobrança de valores, justificando que tudo se tratou de uma salvaguarda para a viatura não ser penhorada, face às dívidas que a sociedade autora tinha às Finanças – ao invés, a testemunha Manuel referiu que a autora não tinha, em 2012, processos em tribunal por dívidas. Esta testemunha Joaquim, cujo depoimento revelou claro comprometimento com a versão defendida pela autora (o mesmo trabalha para outras empresas geridas pelo sócio-gerente da autora), referiu ainda que houve um entendimento entre os sócios no que se refere a entradas de capital que fizeram nas empresas e em relação à referida viatura, mas sem saber concretizar esse mesmo entendimento. No que se refere à prova pericial realizada à escrituração da ré “Empresa X, Lda.” (cfr. fls. 130 a 135), da mesma igualmente apenas se retira a existência de uma entrada de capital por parte do 2º réu junto daquela sociedade, ficando credor da mesma no valor de € 2.252,18. Por conseguinte, analisada a prova produzida, em especial os depoimentos das apontadas testemunhas arroladas pela autora e a referida prova pericial, da mesma não foi possível, de facto, concluir, com a necessária segurança, pela existência de um erro de apreciação relativamente ao ponto de facto impugnados. Daqui resulta, em suma, que este tribunal ad quem não possui qualquer elemento idóneo que possa abalar a livre convicção do tribunal recorrido quanto aos fundamentos da decisão sobre a matéria de facto, face à prova produzida. Deverá pois, soçobrar integralmente a pretensão da recorrente, mantendo-se totalmente inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida. * B) Da sub-rogaçãoAlegando, designadamente, que os réus adquirentes/transmitentes não exigiram, nem exigem o respetivo valor à ré “Empresa T”, estando consequentemente a 1ª ré com graves dificuldades económicas e inativa, pretende a autora exigir daquela ré “Empresa T” o valor em dívida por via da figura da sub-rogação do credor ao devedor. Nos termos do disposto no art. 606º, n.º 1, do C. Civil, “sempre que o devedor o não faça, tem o credor a faculdade de exercer, contra terceiros, os direitos de conteúdo patrimonial que competem àquele, exceto se, por sua própria natureza ou disposição da lei, só puderem ser exercidos pelo respetivo titular”. Esta sub-rogação, porém, só é permitida quando seja essencial à satisfação ou garantia do direito do credor (art. 606º, n.º 2, do C. Civil). A ação de sub-rogação do credor ao devedor tem sobretudo em vista evitar que a inação do devedor possa afetar a consistência prática da garantia patrimonial do credor. “Parece razoável que os credores possam defender-se contra a inacção do seu devedor, de que resulte perder-se, diminuir ou deixar de aumentar o seu património. O devedor pode não ter interesse em praticar actos destinados a evitar a diminuição do seu património ou a acrescentá-lo, por saber que com isso apenas lucrarão os seus credores; ou pode ser só negligente, com prejuízo para estes. As consequências da sua inacção serão suportadas mais pelos credores do que por ele mesmo ou serão, em todo o caso, suportadas por eles e é justo, por isso, que os credores sejam autorizados a substituir-se ao devedor, praticando, no lugar dele, os actos de que depende a conservação ou até o aumento do património.” (13) Assim, com tal ação, a lei admite que o credor – defendendo-se da inércia do devedor – se substitua ao devedor no exercício de direitos ou poderes que a este último competem e que ele se abstém de efetivar. Estamos, pois, perante uma ação sub-rogatória indireta ou oblíqua, em que o credor age na qualidade de representante ou substituto legal do devedor, tudo se passando como se os atos fossem praticados por este. Como defende Luís Menezes Leitão (14), “consiste esta num meio de conservação da garantia geral, representado pela possibilidade que os credores têm de exercerem contra terceiro os direitos de conteúdo patrimonial que competem ao devedor, mas que não atribui qualquer preferência no pagamento aos credores que a ela recorram, uma vez que é exercida em proveito de todos os credores (cfr. art. 609º)”. Figura diversa é a chamada sub-rogação direta, mediante a qual o credor exerce em nome e em proveito próprio um direito do seu devedor, fazendo-se pagar direta e imediatamente por um devedor deste, o que lhe atribui preferência no pagamento sobre os restantes credores; a sub-rogação direta não é admitida pela lei com carácter generalizado, mas só em certos casos excecionais, onde concorrem razões que a justificam - cfr. designadamente o “commodum de representação (arts. 794º e 803º, do C. Civil); e mandato sem representação (art. 1181º, n.º 2, do C. Civil). (15) Tal ação de sub-rogação depende da verificação, em concreto, de 3 requisitos, a saber: a) omissão pelo devedor de exercer os seus direitos contra terceiros; b) conteúdo patrimonial desses direitos e não atribuição do seu exercício exclusivo, por natureza ou disposição da lei, ao seu titular; c) essencialidade do exercício desses direitos para a satisfação ou garantia do direito do credor. No que se refere a este último requisito, escreve Luís Menezes Leitão (16) que: “efectivamente, e ao contrário do que sucede com a declaração de nulidade (art. 605.º, n.º 2), não basta qualquer interesse do credor para que a sub-rogação possa ser decretada, exigindo-se a sua essencialidade para a satisfação ou garantia do seu direito. Tal pressupõe a demonstração de que sem o exercício daqueles direitos se verifica a impossibilidade de satisfação da obrigação (porque, por exemplo, o devedor não chega a adquirir a coisa infungível necessária para tal), ou de que o património do devedor se encontra insolvente, permitindo a sub-rogação eliminar ou reduzir essa situação”. De igual modo, Antunes Varela (17) defende, neste particular, que, “para o exercício da sub-rogação, necessita o credor de alegar e provar uma de duas coisas: a) Que do acto omitido pelo devedor resultou a insolvência ou o agravamento da insolvência dele, sendo o exercício do direito indispensável para eliminar tal resultado; b) Ou que da omissão resultou a impossibilidade de satisfação (cumprimento) do direito do credor, como sucede quando a inacção do devedor provoque a privação, para o seu património, da coisa não fungível essencial à realização da prestação devida”. Acresce ainda que, quando o credor atua judicialmente pelo devedor, será necessária a citação dele (art. 608.º do C. Civil) (18); exigência que tem uma dupla função: assegurar à decisão judicial eficácia de caso julgado em relação ao devedor e permitir a este – que é o verdadeiro titular do direito exercido pelo credor – a defesa dos seus interesses. E dispondo ainda a lei – quanto aos efeitos (art. 609.º do C. Civil) – que “a sub-rogação exercida por um dos credores aproveita a todos os demais” – o que quer dizer que, uma vez efetivada a sub-rogação, os bens entram (ou reentram) no património do devedor em benefício de todos os credores e do próprio devedor; que é um meio conservatório da garantia patrimonial que não aproveita apenas ao credor que o utiliza. Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela (19) “mostra esta disposição que a procedência da acção subrogatória não tem como consequência a entrada de bens no património do credor; os bens entram no património do devedor em benefício de todos os credores e em benefício do próprio devedor”. (nosso sublinhado). E ainda, como conclui Luís Menezes Leitão (20): “Assim, o autor da sub-rogação não adquire qualquer vantagem especial pelo facto de a ela ter recorrido, sendo a sua actuação exercida em benefício de todos os outros credores.” (sublinhámos). Ora, como é fácil de ver, no caso em apreço, a autora recorrente pretende exercer uma ação sub-rogatória direta (e não indireta ou oblíqua) contra a 3ª ré “Empresa T”, tanto mais que pede a final a condenação desta, em substituição dos anteriores réus vendedores, no pagamento, diretamente à autora, do valor do preço (€ 50.000,00) do identificado veículo NN. Tal não lhe é legalmente admitido, nos termos sobreditos, designadamente em face do disposto nos arts. 606º e 609º, do C. Civil. Ainda assim, cabe dizer que a autora recorrente não alegou e, consequentemente, não logrou provar – tal como lhe competia (art. 342º, n.º 1, do C. Civil) – factos donde fosse possível concluir pela essencialidade do exercício do direito do devedor para a satisfação ou garantia do direito do credor. Mais concretamente, não alegou nem provou que, da inércia da 1ª e do 2º réus no exercício dos seus direitos, resultou a impossibilidade da satisfação (cumprimento) do direito da credora autora ou tivesse como resultado a insolvência ou o agravamento da insolvência daqueles réus devedores, sendo o exercício daqueles direitos indispensável para eliminar tal resultado. Termos em que, improcede na sua totalidade a apelação em presença. * V. DECISÃOPelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, pois, a sentença recorrida. Custas pela apelante (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil). * * Guimarães, 30.11.2017 Relator António José Saúde Barroca Penha Des. Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha Des. José Manuel Alves Flores 1. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, pág. 164. 2. Cfr. ainda diversos Acs. do STJ, aludidos na ob. citada, págs. 161 a 165. 3. Abrantes Geraldes, ob. citada, págs. 165-166. 4. Ob. citada, págs. 274 e 277. 5. Segundo Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 569, prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos, isto é, ditados pela lei.” 6. O princípio da livre apreciação dos meios probatórios resulta, ainda, em sede de direito probatório material, no que se refere à prova por declarações de parte (não confessórias), à prova testemunhal, à prova por inspeção e à prova pericial, do estipulado nos arts. 361º, 389º, 391º e 396º, todos do C. Civil. 7. Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348. 8. Vide, neste sentido, por todos, Acs. do STJ de 03.11.2009, proc. n.º 3931/03.2TVPRT.S1, relator Moreira Alves; e Ac. do STJ de 01.07.2010, proc. n.º 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1, relator Bettencourt de Faria, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. 9. Cfr. Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 609. 10. Cfr. Beleza dos Santos, A Simulação em Direito Civil, Vol. I, págs. 59 e segs.; Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, pág. 168; Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, Vol. I, pág. pág. 319. 11. Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 520 e segs. e Acs. do STJ de 09.10.2003, relator Oliveira Barros, proc. n.º 03B2536; de 03.03.2005, relator Ferreira de Almeida, proc. n.º 05B200; de 14.02.2008, relator Oliveira Rocha, proc. n.º 08B180; e de 08.10.2009, relator Serra Baptista, proc. n.º 4132/06.3TBVCT.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt. 12. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 348-349; e, no mesmo sentido, por todos, J. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2001, pág. 274. 13. Vide Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, págs. 622 e 623, citando Vaz Serra, Responsabilidade Patrimonial, n.º 37; separata do BMJ n.º 75, págs. 171 e segs,. 14. Garantia das Obrigações, 2ª edição, págs. 62-65. 15. Neste sentido, vide ainda Antunes varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, págs. 438-445; e Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 9.ª edição, págs. 790-795 – em particular nota 3 de pág. 791, citando Vaz Serra, ob. e loc. cit. “as principais características da sub-rogação directa, quando confrontada esta figura com a sub-rogação propriamente dita, resumem-se a duas: não podem ser opostas ao credor as exceções pessoais do devedor; e o benefício da acção reverte apenas em proveito do credor que dela usa, equivalendo, portanto, a um privilégio”. 16. Ob. cit., pág. 64. 17. Ob. cit., págs. 441 e 442. 18. Trata-se de um caso de litisconsórcio necessário passivo, cuja preterição acarreta a ilegitimidade do réu – cfr. Luís Menezes Leitão, ob. cit. pág. 65; e Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 624. 19. Ob. cit., pág. 64. 20. Ob. cit. pág. 65. |