Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | SÓNIA MOURA | ||
Descritores: | PROCESSO DE INVENTÁRIO SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA PATRIMÓNIO INDIVISO DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL | ||
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Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | 1. A suspensão da instância no âmbito do processo de inventário deve ser ponderada à luz do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º do Código de Processo Civil, decorrendo da comparação entre as duas normas que o artigo 1093.º regula as situações que não se mostram abrangidas no artigo 1092.º e que se reconduzem à suspensão do processo de inventário quando esteja em causa a determinação do património hereditário a partilhar. 2. Se, todavia, se mostrar já pendente a ação que o Requerente reputa de causa prejudicial, cabe apreciar a questão à luz do disposto no n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Civil. 3. A suspensão da instância por virtude da pendência de causa prejudicial reconduz-se à situação em que a decisão proferida num processo constitui um pressuposto da decisão a proferir noutro processo ou afecta a decisão a proferir nesse outro processo. 4. Assim, se a fase em que o processo que ficaria parado a aguardar o trânsito em julgado da causa prejudicial torna inviável que a decisão desta causa prejudicial se repercuta naquele, não deve ser decretada a suspensão da instância. 5. O apelo ao dever de gestão processual e aos princípios da cooperação e do inquisitório não permite obter solução diferente para o caso, na medida em que estes devem ser articulados com os demais princípios que presidem à arquitectura da tramitação processual, desde logo, os princípios do dispositivo, da igualdade das partes e da auto-responsabilidade. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 1/23.0T8ORM-A.E1 (1ª Secção)
Sumário: (…) (Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil) *** I - Relatório 1. Em 07.04.2015 foi instaurado processo de inventário para partilha da herança deixada por (…), sendo Interessados a viúva (…), a Cabeça-de-Casal (…), (…), o Requerente (…) e (…).
2. Atento o óbito de (…) foi deferida a cumulação de inventários e nomeado o Interessado (…) como cabeça-de-casal, por despacho proferido em 23.08.2021.
3. A 20.10.2022 foi requerida a remessa dos autos, que corriam termos no Cartório Notarial da Dra. (…), em Ourém, para o Tribunal competente, ao abrigo da alínea b) do n.º 2 do artigo 12.º da Lei n.º 117/2019, de 13.09, o que foi deferido, pelo que os autos foram remetidos ao Juízo Local Cível de Ourém.
4. Em 06.07.2023 foi proferido despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, nos termos do artigo 1110.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil; foi realizada conferência de interessados; procedeu-se ao sorteio de lotes; foi proferido despacho determinativo da forma da partilha e corrigido o mesmo por despacho proferido a 29.05.2024; foi elaborado “mapa informativo”; e, após decisão da reclamação deduzida pelo Requerente contra o aludido mapa, foi o Requerente (…) notificado para proceder ao depósito das tornas devidas aos demais Interessados, sob cominação dos n.ºs 2 e 3 do artigo 1122.º do Código de Processo Civil, por despacho proferido a 15.10.2024.
5. De seguida, em requerimento submetido a juízo em 28.10.2024, veio o Requerente (…) requerer a suspensão do processo de inventário e, consequentemente, do prazo para depósito das tornas, até que se mostre decidida a ação n.º 730/24.1T8ORM. Alega, para tanto, que o Interessado (…), intencional e malevolamente, não disse que havia celebrado escritura de justificação notarial relativa ao imóvel que constitui a verba n.º 58, licitada pelo Requerente, da qual resulta a redução da área do imóvel e, consequentemente, do respetivo valor. Assim, o Requerente intentou ação de impugnação da referida escritura, aduzindo que em face da redução substancial da área do prédio e do seu valor, pode até nem manter interesse na licitação efetuada, e que se não lograr êxito na ação de impugnação, irá requerer emenda e anulação da partilha.
6. Os demais Interessados responderam, alegando, essencialmente, que a situação apontada pelo Requerente já era do seu conhecimento quando licitou o bem imóvel em causa.
7. Relativamente ao requerimento aludido, foi proferido, a 05.12.2024, o seguinte despacho: “Compulsados os autos constata-se que o interessado (…) veio apresentar nova reclamação contra a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, nomeadamente quanto à composição e quanto ao valor do bem identificado na relação de bens sob a verba n.º 58. Alega para o efeito que o bem em causa não tem a composição, a área, nem o valor que consta nos autos. Contudo, verifica-se que já decorreu há muito o prazo para este interessado poder vir apresentar reclamação contra a relação de bens. Designadamente, esse prazo é o que se encontra previsto no artigo 1104.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, que determina que os interessados têm o prazo de 30 dias a contar da sua citação para o processo de inventário e da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal para poderem vir deduzir reclamação contra a relação de bens. Reitera-se que este prazo de 30 dias desde a data em que o interessado (…) foi notificado da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal já decorreu há muito. Deste modo, verifica-se que a reclamação agora apresentada pelo interessado (…) é manifestamente extemporânea, não podendo assim ser admitida. Acresce que, actualmente e nos termos da actual Lei que regula o processo de inventário, os interessados dispõem apenas daquele prazo de 30 dias após serem notificados da relação de bens para poderem apresentarem a reclamação contra essa relação. Após ter decorrido esse prazo, fica precludido o direito dos interessados apresentarem reclamação contra a relação de bens no processo de inventário. Na verdade, com o novo regime do processo de inventário foi eliminada a norma constante do regime anterior, que previa a possibilidade de os interessados poderem deduzir reclamação contra a relação de bens, a todo o tempo, mediante o pagamento de uma multa, se essa reclamação ocorresse para além daquele prazo de 30 dias após a notificação da relação. Para além disso, se o interessado (…) tinha dúvidas quanto à composição ou em relação ao valor do bem em causa, não deveria ter licitado, ou licitado pelo valor que atribuiu ao bem na licitação que efectuou do mesmo. Tendo em conta que licitou o bem por aquele valor é porque considerou que seria o valor correcto. Não existe assim qualquer fundamento legal para dar sem efeito a licitação realizada pelo interessado (…) ou para alterar o valor da mesma, designadamente reduzindo em parte o mesmo, conforme ele veio requerer. Por outro lado, a composição e a área do bem em causa, são aquelas que constam da verba n.º 58 da relação de bens. Se houver alguém que tiver adquirido uma parte desse bem e autonomizado o mesmo, caberá a essa pessoa, e não ao interessado (…) diligenciar para que seja retirada essa parte do bem em causa. Para o efeito esse interessado terá de instaurar uma acção judicial a requerer essa autonomização e desanexação. Conforme se referiu vem o interessado (…) solicitar que o presente Processo de Inventário seja suspenso até ser decidida a referida acção de apreciação negativa quanto à validade da escritura de justificação. Esta situação de suspensão da instância do processo de inventário encontra-se regulada no n.º 1 do artigo 1092.º do Código de Processo Civil, que determina que se poderá ordenar a suspensão da instância quando estiver pendente causa prejudicial em que se debatam as questões referidas no n.º 1, alínea a), desse preceito. Essas questões prejudiciais consistirão na admissibilidade do processo de inventário ou na definição dos direitos dos interessados directos na partilha. Ora, verifica-se que a acção judicial que o interessado (…) instaurou e cuja cópia da P.I. juntou aos autos, em nada interfere com os presentes autos de inventário, e com a adjudicação do bem identificado sob a verba n.º 58. Na verdade, nessa acção o interessado Manuel dos Santos apenas veio requerer que seja declarada a ineficácia de uma escritura de justificação em que foi declarada a aquisição de um bem imóvel por usucapião. Além disso, também vem requerer que se declare que o declarante na escritura não adquiriu o bem imóvel por usucapião. Nessa acção o interessado (…) não vem solicitar que se declare que o bem imóvel justificado faz parte do bem identificado sob a verba n.º 58 da relação de bens. Além disso, também não vem solicitar que se declare que o justificante ocupou indevidamente essa parte do imóvel identificado sob a verba n.º 58, devendo assim restituir o mesmo à herança em causa nos presentes autos. Deste modo, as questões debatidas naquele processo instaurado pelo interessado (…), não poderão integrar-se na previsão do artigo 1092.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e o presente processo de inventário não poderá ser declarado suspenso com base nessas normas. Consequentemente, haverá que indeferir esse pedido de suspensão. * DECISÃO: Em conformidade, pelo exposto, decide-se indeferir liminarmente a nova reclamação apresentada pelo interessado (…) contra a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, nomeadamente quanto à composição e ao valor da verba n.º 58, na medida em que a mesma é extemporânea. Além disso, decide-se indeferir o pedido formulado pelo interessado (…), para que se ordene a suspensão dos presentes autos fundado no facto de o mesmo ter instaurado uma acção em que vem solicitar a declaração de ineficácia de uma escritura de justificação, por se considerar que o mesmo não tem fundamento.”
8. Inconformado, veio o Requerente (…) recorrer do despacho acima transcrito, concluindo as suas alegações nos seguintes termos: “a)- Para além do disposto no artigo 1092.º/1, do CPC, é admissível a suspensão do processo de inventário, nos termos do artigo 272.º e seguintes do CPC; b)- Se um interessado licitou determinada verba, que afinal não corresponde, de facto, à sua descrição, tem direito a ver suspenso o processo de inventário, até que se defina cabalmente a composição de tal verba; c)- Se a licitação dessa verba foi efectuada por € 500.000,00 e afinal se verifica que um dos interessados, que é o cabeça de casal e foi quem elaborou a relação dos bens a partilhar, já se “apropriou” de uma área de 2020m², correspondente a € 118.502,87 (em relação ao valor da licitação), é legítima a recusa do licitante em depositar as tornas devidas até que se defina a situação; d)- Para mais, tendo este interessado licitante intentado acção judicial com vista a ser declarada ineficaz a justificação da posse efectuada pelo cabeça de casal; e)- Devendo esta acção ser havida como prejudicial em relação ao referido inventário; f)- O dever de gestão processual e o princípio da colaboração, ambos tendentes à justa composição do litígio, impunham a suspensão do inventário, com vista à definição correta da verba licitada; por forma a obter-se uma partilha igualitária; g)- Ao não o fazer, foram incorrectamente valoradas e aplicadas as disposições processuais dos artigos 6.º, 7.º, 272.º, 411.º, 611.º e 1093.º, todos do CPC”.
9. Não foram apresentadas contra-alegações.
10. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Questões a Decidir O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). No caso em apreço importa apreciar se deve ser revogado o despacho sindicado e, em conformidade, se deve ser ordenada a suspensão da instância.
III – Fundamentação de facto A) Os factos relevantes são os que constam do relatório que antecede e, ainda, os seguintes: 1. Corre termos no Juízo Local Cível de Ourém, sob o n.º 730/24.1T8ORM, ação de impugnação de justificação notarial, na qual é A. (…) e são RR. (…) e outros. 2. Nessa ação é formulado o seguinte pedido: a) Declarar-se que os RR. prestaram declarações falsas na escritura de justificação da posse outorgada em 29/07/2013, no Notário (…), em Ourém, lavrada a fls. 105 e seguintes do Livro (…); b) Declarar-se que tal escritura é ineficaz e não suscetível de permitir o registo nela identificado; c) Declarar-se que os RR. (…) e mulher (…) não adquiriram por usucapião o direito de propriedade em relação ao prédio inscrito na matriz sob o artigo rústico (…), da freguesia de (…), concelho de Ourém; d) Ordenar-se o cancelamento do registo predial correspondente à ficha n.º (…), da freguesia de (…). 3. Em suporte do pedido formulado naquela ação, alega o aqui Requerente e aí autor (…) que o aqui Interessado e aí réu (…) outorgou, em 09.07.2013, escritura de justificação notarial, onde declarou que é o proprietário exclusivo do prédio que aí é identificado, o qual resultou de uma nova descrição no registo predial que o Interessado logrou obter, mediante invocação de omissão de descrição no registo predial. Alega ainda o Requerente que o aludido prédio novo corresponde à área de 2.020m2 que integra o prédio relacionado no inventário como verba n.º 58 e que foi licitado pelo Requerente.
B) Suspensão da instância no processo de inventário 1. A questão a dirimir nos presentes autos é a de saber se deve o inventário ser suspenso com fundamento na pendência de causa prejudicial. Para o efeito, invoca o Requerente o disposto no artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, norma geral que disciplina o instituto da suspensão da instância. Atendendo, porém, a que nos encontramos no âmbito de um processo de inventário, devemos começar por convocar as normas especiais dos artigos 1092.º e 1093.º do Código de Processo Civil, sublinhando que o atual regime do processo de inventário é aqui aplicável, por virtude da remessa dos autos para o Tribunal, atento o disposto no artigo 11.º, n.º 1, da Lei n.º 117/2019, de 13.09. Assim, diz-se o seguinte nos indicados preceitos legais: - Artigo 1092.º (“Suspensão da instância”) “1 - Sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância: a) Se estiver pendente uma causa em que se aprecie uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha; b) Se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas; c) Se houver um interessado nascituro, a partir do conhecimento do facto nos autos e até ao nascimento do interessado, exceto quanto aos atos que não colidam com os interesses do nascituro. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens. 3 - O tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado direto, autorizar o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração em conformidade com o que vier a ser decidido: a) Quando os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória; b) Quando se afigure reduzida a viabilidade da causa prejudicial; c) Quando ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial. (…)” - Artigo 1093.º (“Outras questões prejudiciais”) “1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns. 2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.” Como explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ª ed., Coimbra, 2024, pág. 576), da comparação entre as duas normas decorre que o artigo 1093.º regula as situações que não se mostram abrangidas no artigo 1092.º e que se reconduzem à suspensão do processo de inventário quando esteja em causa a determinação do património hereditário a partilhar. Assim, estão aqui incluídas as questões relacionadas com a definição dos bens que integram a herança, dos que devam ser considerados para o cálculo da massa da herança, nos termos do artigo 2162.º do Código Civil, e/ou com direitos de terceiros (idem, pág. 581). Por outro lado, no que tange à ponderação das garantias oferecidas pelo processo de inventário no confronto com a tramitação do processo comum, relevam, designadamente, as limitações em matéria de prova testemunhal, por força do regime dos incidentes (artigo 294.º, n.º 1, ex vi do 1091.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Os Autores apontam, à luz deste critério legal, a inadequação da tramitação incidental nos casos em que “esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação, por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cfr. n.º 5 do artigo 1105.º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um bem relacionado (cfr. artigo 1339.º do CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada com a realização de benfeitorias” (ibidem). Por último, quanto a saber se a questão em apreço afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha, “importa aquilatar nomeadamente o peso relativo do bem ou do direito sobre que versa o litígio autónomo no cômputo global do acervo a partilhar, assim como a maior ou menor probabilidade de o interessado obter vencimento” (idem, pág. 582). Sem prejuízo, se em lugar de se debater no processo de inventário a remessa dos interessados para os meios comuns e a suspensão da instância, for, desde logo, invocada a pendência de uma ação autónoma com alegados reflexos na partilha, a norma aplicável é o artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (ibidem).
2. Revertendo ao caso dos autos, o Requerente alega que licitou e foi-lhe adjudicado um imóvel relacionado no inventário, o qual constitui a verba n.º 58, mas cuja descrição e avaliação se mostram desajustadas da realidade, por virtude de escritura de justificação notarial que extirpou a área de 2.200m2 a este imóvel (correspondente a cerca de ¼ da sua área indicada na relação de bens), pelo que esta situação seria suscetível de recondução ao disposto no artigo 1093.º do Código de Processo Civil, considerada a natureza da questão colocada. Mas o Requerente alega também que já intentou ação declarativa sob forma de processo comum, na qual procedeu à impugnação daquela escritura de justificação notarial outorgada pelo Interessado (…). Deste modo, mostrando-se já pendente a ação que o Requerente reputa de causa prejudicial, cabe apreciar a questão à luz do disposto no n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Civil, onde se diz que: “1 - O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado. (…). A suspensão da instância por virtude da pendência de causa prejudicial reconduz-se, assim, à situação em que a decisão proferida num processo constitui um pressuposto da decisão a proferir noutro processo ou afeta a decisão a proferir nesse outro processo, pelo que este último fica parado, a aguardar o trânsito em julgado do primeiro (Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª ed., Coimbra, 2014, pág. 535; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., Coimbra, 2024, pág. 350). A economia e a coerência de julgados constituem, deste modo, a razão de ser deste instituto (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., vol. I, pág. 350). A leitura global e integrada do n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Civil, à luz da sua génese, conduz à conclusão de que a razão da suspensão aí prevista é a existência de um motivo justificado, constituindo a causa prejudicial uma específica modalidade de motivo justificado (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.09.2023 (Nuno Pinto Oliveira), Proc. 18/21.0YQSTR.L1.S1, http://www.dgsi.pt/). Distingue-se, depois, no âmbito do conceito de causa prejudicial, entre uma “dependência necessária” e uma “dependência meramente facultativa ou de conveniência”, distinção esta com influência na ponderação da conveniência da suspensão: “Inspirando-se em Manuel de Andrade, José Alberto dos Reis distinguia dois casos de prejudicialidade. Em primeiro lugar, encontrar-se-ia preenchido o requisito da primeira parte do artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil “quando na primeira acção se [discutisse], em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não [pudesse] resolver-se nesta em via incidental”. Entre as duas acções haveria então uma relação de dependência necessária. Em segundo lugar, encontrar-se-ia preenchido o requisito da primeira parte do artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ainda que na primeira acção se discutisse, em via principal, uma questão que pudesse resolver-se na segunda, desde que só em via incidental. Entre as duas acções haveria então uma relação de “dependência meramente facultativa ou de pura conveniência”. Enquanto, no primeiro caso, a decisão proferida na primeira acção afectaria necessariamente, teria de afectar a decisão a proferir na segunda, no segundo caso, a decisão proferida na primeira acção não a afectaria necessariamente, não teria de a afectar — simplesmente, poderia afectá-la” (ibidem).
3. Importa, então, que nos detenhamos, em particular, sobre a ideia de que a suspensão deve afetar ou ter aptidão para afetar a causa que sofrerá a paragem induzida pela pendência da causa prejudicial. Considerados os termos em que o Requerente coloca a questão, dir-se-á que se o prédio por si licitado se mostra, afinal, reduzido em ¼ da sua área, e se a decisão a proferir na ação de impugnação pode reverter essa situação, a aludida ação de impugnação revela-se objetivamente apta a afetar a posição do Requerente no inventário. Porém, para este efeito devemos ainda atender à fase em que se encontra o processo de inventário, pois semelhante afetação implica que possam ser extraídas consequências, na ação suspensa, da decisão proferida na causa prejudicial. Ora, os presentes autos constituem um processo de inventário, cuja tramitação se encontra na sua fase final, pois o Requerente foi já notificado para proceder ao depósito das tornas devidas aos demais Interessados. Conjugando as alegações de recurso com o requerimento que deu origem ao despacho sindicado podemos concluir que são os seguintes os objetivos visados pelo Requerente com a peticionada suspensão da instância: - Em primeira linha, pretende o Requerente assegurar que o prédio que licitou conserva a área que consta da relação de bens, depreendendo-se que só em tal caso está disposto a satisfazer as tornas apuradas, situação que depende do Requerente ter êxito na ação de impugnação da escritura de justificação notarial; - Subsidiariamente, para a eventualidade do Requerente não ser bem sucedido nessa ação, pretende o Requerente que se reduza o valor do prédio ao que corresponda à área remanescente e, consequentemente, que se reduza também o valor das tornas, ou, em alternativa, que se dê sem efeito a partilha. No que respeita à intenção de suspender o prazo para o pagamento das tornas, de modo a garantir que o Requerente só satisfaça o valor que na sua atual perspetiva se revele justo, devemos ter presente que o depósito das tornas não representa uma condição para a prolação de sentença no processo de inventário. Com efeito, no próprio despacho que ordenou o depósito das tornas o Tribunal a quo indicou, e bem, que a falta de depósito tinha as consequências previstas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 1122.º do Código de Processo Civil, ou seja, após o trânsito em julgado da sentença, os credores das tornas podem requerer, no próprio processo de inventário, a venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o pagamento das tornas. Aliás, a sentença homologatória da partilha é um ato “de natureza essencialmente formal”, considerada toda a tramitação que a antecede (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., vol. II, pág. 647). Significa isto que não encontra razão de ser a suspensão da instância para evitar o pagamento imediato das tornas, porquanto a circunstância desse pagamento não ser efetuado após a notificação correspondente não impede o prosseguimento dos autos até ao momento final da prolação da sentença homologatória da partilha. Por outro lado, quanto à pretensão subsidiária do Requerente de ajustar o valor das tornas em função do valor do imóvel resultante da consideração da redução da sua área, devemos ponderar que todos os despachos proferidos no inventário até à presente data se mostram transitados em julgado, e no que respeita especificamente à relação de bens, como acertadamente aponta o Tribunal a quo, a mesma já não é suscetível de reclamação, atentos os termos do artigo 1104.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Nem é já possível questionar o valor atribuído aos bens, atento o limite temporal imposto no artigo 1114.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Ou seja, ainda que o processo de inventário aguardasse o desfecho da ação de impugnação, não seria então possível reverter as decisões que condicionam o cálculo do valor das tornas, aliás, em momento algum o Requerente aponta o dispositivo legal ou instituto que lhe facultariam esse procedimento.
4. Por último, admite o Requerente que o naufrágio da sua pretensão na ação de impugnação o faça perder interesse no imóvel licitado e, neste âmbito, declarou no requerimento onde peticionou a suspensão da instância, que “irá requerer a anulação ou emenda da partilha”. Ora, prevê-se o seguinte nos artigos 1126.º e 1127.º do Código de Processo Civil: - Artigo 1126.º (“Emenda da partilha”) “1 - Ainda que a decisão homologatória tenha transitado em julgado, a partilha pode ser emendada no próprio inventário por acordo de todos os interessados, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro suscetível de viciar a vontade das partes. 2 - Na falta de acordo quanto à emenda, o interessado requer fundamentadamente, no próprio processo, que a ela se proceda, no prazo máximo de um ano a contar da cognoscibilidade do erro, desde que esta seja posterior à decisão, aplicando-se à tramitação o disposto quanto aos incidentes da instância.” - Artigo 1127.º (“Anulação da partilha”) “1 - Sem prejuízo dos casos de recurso extraordinário de revisão, a partilha confirmada por sentença homologatória transitada em julgado só pode ser anulada quando tenha havido preterição ou falta de intervenção de algum dos co-herdeiros e se mostre que os outros interessados procederam com dolo ou má-fé, seja quanto à preterição, seja quanto ao modo como a partilha foi preparada. 2 - O pedido de anulação constitui incidente do processo de inventário, ao qual se aplicam as regras gerais dos incidentes da instância.” Do confronto dos dois preceitos legais concluímos que o fundamento da anulação da partilha é, exclusivamente, a preterição ou falta de intervenção de um co-herdeiro, pertencendo à esfera da emenda da partilha todos os casos em que tenha ocorrido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro de facto ou de direito suscetível de viciar a vontade das partes (Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. II, 4ª ed., Coimbra, 1990, págs. 547-554). Sublinha Lopes Cardoso (idem, pág. 550) que “erro susceptível de viciar a vontade das partes é uma fórmula muito ampla, abrange uma generalidade de erros, designadamente os casos de se atribuírem valores superiores ou inferiores aos bens da herança, na hipótese de se não terem averbado na descrição os novos valores constantes duma segunda avaliação e aos quais se não atendeu ou nos casos de desconhecimento completo da extensão, natureza, características e valor dos bens da herança partilhada na convicção errada de equilíbrio de valores, na composição de cada um dos quinhões hereditários.” Assim, a situação vertente seria suscetível de ser reconduzida à figura da emenda da partilha, com fundamento em erro que viciou a vontade, atento estritamente o facto invocado pelo Requerente em suporte desta anunciada reação judicial – licitação de um imóvel, cuja descrição de facto não corresponde à realidade, o que era desconhecido do Requerente nessa data. Sendo, depois, evidente a inexistência de acordo entre os Interessados, a questão teria de ser colocada sob a perspetiva do n.º 2 do artigo 1126.º, à luz do qual a emenda da partilha constitui um incidente do processo de inventário, a ser tramitado segundo as regras gerais dos incidentes. Todavia, segundo a mesma norma, o erro relevante para este efeito é aquele que é conhecido posteriormente à sentença, dispondo o interessado do prazo de um ano, contado desse conhecimento, para instaurar o incidente. Ora, no caso em apreço o Requerente alegou a tomada de conhecimento do invocado erro antes da sentença, que ainda não foi proferida, pelo que o incidente de emenda da partilha está inviabilizado, por falta de verificação de um requisito. De todo o modo, veja-se que ambos os institutos se reportam à sentença transitada em julgado, aliás, como o recurso extraordinário de revisão, também aludido no artigo 1127.º, pelo que também sob esta perspetiva a suspensão da instância não permitiria que se produzisse qualquer efeito útil no processo de inventário em curso. Em conclusão, se a fase em que o processo que ficaria parado a aguardar o trânsito em julgado da causa prejudicial torna inviável que a decisão desta causa prejudicial se repercuta naquele, não deve ser decretada a suspensão da instância.
4. Invoca ainda o Requerente a violação do disposto nos artigos 6.º, 7.º, 411.º e 611.º do Código de Processo Civil. Alega o Requerente, nesta sede, que o dever de gestão processual, conjugadamente com os princípios da cooperação e do inquisitório, imporiam ao Tribunal que notificasse o cabeça-de-casal a prestar nos autos de inventário os necessários esclarecimentos à exata definição da verba 58, a fim deste processo seguir os seus termos sem prejuízo para qualquer dos interessados.
4.1. Dever de gestão processual O dever de gestão processual está previsto no artigo 6.º do Código de Processo Civil, onde se estabelece que: “1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. 2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.” O dever de gestão processual está conexionado com o dever de direção do processo, sendo seu norte a ideia da justa composição do litígio em prazo razoável. Os dois vetores essenciais da gestão processual que daqui emanam são a “instrumentalidade dos mecanismos processuais em face do direito substantivo e o da prevalência das decisões de mérito sobre as formais” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., vol. I, pág. 35). Sem prejuízo, a norma aponta diretrizes de caráter genérico, e, como se repetirá adiante relativamente aos princípios da cooperação e do inquisitório, deve ter-se sempre presente que os diversos princípios que presidem à arquitetura do processo se envolvem mutuamente, articulando-se entre si, pelo que importa ponderar também os princípios do dispositivo, da igualdade das partes (artigo 4.º do Código de Processo Civil) e da autorresponsabilidade. Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.06.2022 (Fátima Reis Silva) (Processo n.º 18588/16.2T8LSB-DT.L1-1, in http://www.dgsi.pt/): “1 – O princípio da gestão processual conforma a atuação do juiz que deve providenciar pelo andamento célere e regular do processo, sendo que os concretos poderes do impulso dependem do modelo programático do processo. 2 – Trata-se de um poder dever de geometria variável, que encontra os seus limites nos direitos das partes. Esta regra tanto se aplica ao aspeto substancial como formal, havendo, claramente, limites traçados que não podem ser ultrapassados, desde logo o assegurar de um processo equitativo e os princípios previstos no n.º 2 do artigo 630.º do CPC: igualdade das partes, contraditório, aquisição processual ou admissibilidade de meios de prova, bem como o princípio do dispositivo e o da autorresponsabilidade das partes.”
4.2. Princípio da cooperação Preceitua-se no artigo 7.º do Código de Processo Civil, atinente ao “Princípio da cooperação”, que: “1 - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. 2 - O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência. 3 - As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 417.º. 4 - Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.” As diversas vertentes que assume o dever de cooperação são aqui enunciadas de forma clara, delas resultando a ideia geral de que o processo é instrumental, quer dizer, é um meio para se obter a definição do direito aplicável ao caso, pelo que deve ser conduzido de uma forma leal e correta, em ordem a uma solução final que seja justa (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, idem, pág. 37). Porém, o princípio da cooperação não pode implicar que seja, por essa via, cometido ao juiz que auxilie uma das partes a ver reconhecida a sua pretensão em quaisquer circunstâncias, isto é, o dever de cooperação do Tribunal deve ser exercido com respeito pelos princípios da igualdade das partes e da sua autorresponsabilidade. Como se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.06.2020 (Rita Romeira) (Processo n.º 110/18.8T8VLG-B.P1), “(…) aquele poder-dever que incumbe ao juiz, no âmbito do princípio da cooperação consagrado naquele artigo 7.º, não é um poder ilimitado que se sobreponha ao princípio da auto-responsabilidade das partes e aos ónus de alegação e de prova que incumbem a cada uma das partes” (no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.06.2023 (Jorge Teixeira), Processo n.º 2121/11.5TBVCT-B.G1, todos in http://www.dgsi.pt/). Assim, desde logo, deve o Tribunal desenvolver diligências para auxiliar o cumprimento de ónus ou deveres por uma das partes, mas apenas se existir uma séria dificuldade da parte em fazê-lo (n.º 4), e, no mais, a cooperação manifesta-se em múltiplas formas que revelam aquele respeito pela igualdade do posicionamento das partes, como sucede com a solicitação de esclarecimentos, a prolação de despacho de convite de aperfeiçoamento dos articulados, entre outros (ibidem).
4.3. Princípio do Inquisitório Estabelece-se no indicado artigo 411.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Princípio do inquisitório”, que “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.” Esta norma tem, essencialmente, aplicação no âmbito da instrução da causa, como decorre da abundante jurisprudência produzida sobre o tema, onde ressalta, como preocupação transversal, o equilíbrio do sistema, concretamente: - entre o princípio do inquisitório e os princípios do dispositivo, preclusão e autorresponsabilidade das partes; - entre os interesses das partes e a posição de imparcialidade que o juiz deve preservar ao longo de todo o processo. Assim, tem sido entendido que os poderes do juiz não se limitam à prova de iniciativa oficiosa, incumbindo-lhe realizar ou ordenar as diligências relativas aos meios de prova propostos pelas partes (Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08.09.2020 (Carlos Querido), Proc. nº 2856/15.3T8AVR-A.P1, e de 11.01.2021 (Pedro Damião e Cunha), Proc. nº 549/19.1T8PVZ-A.P1, ambos in http://www.dgsi.pt/). Todavia, o princípio do inquisitório: - “não pode servir para colmatar toda e qualquer “falta” das partes a respeito da apresentação dos meios de prova, pois se assim fosse estaria a fazer-se do mesmo uma interpretação normativa e aplicação prática em colisão com outros importantes princípios, do processo civil e até constitucionais, mormente o dispositivo, a igualdade das partes, a independência do tribunal e a imparcialidade do juiz (20.º e 62.º da CRP)” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.06.2019 (Laurinda Gemas), Processo n.º 18561/17.3T8LSB-A.L1-2, in http://www.dgsi.pt); - não podendo ser invocado para “superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.10.2023 (Miguel Baldaia de Morais), Processo n.º 2518/21.2T8VNG-A.P1; no mesmo sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 29.09.2022 (Emília Ramos Costa), Processo n.º 6613/18.7T8STB-C-E1, do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.12.2022 (Rosália Cunha), Processo n.º 2685/19.5T8BCL-E.G1, e do Tribunal da Relação do Porto de 09.05.2024 (Judite Pires), Processo n.º 8237/18.0T8VNG-A.P1, todos in http://www.dgsi.pt).
4.4. Atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes Em conformidade com o preceituado no artigo 611.º do Código de Processo Civil, relativo à “Atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes”: “1 - Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão. 2 - Só são, porém, atendíveis os factos que, segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida. 3 - A circunstância de o facto jurídico relevante ter nascido ou se haver extinguido no decurso do processo é levada em conta para o efeito da condenação em custas, de acordo com o disposto no artigo 536.º.” Ora, esta norma deve ser articulada com o artigo 588.º do Código de Processo Civil, respeitante aos articulados supervenientes, pelo que a introdução de novos factos em juízo deve respeitar os tempos e o modo ali previstos.
4.5. Revertendo ao caso dos autos verificamos que a notificação do cabeça-de-casal pretendida pelo Requerente não permitiria alcançar qualquer efeito útil no inventário, porquanto a relação de bens já não consente reclamação e o valor dos bens já não pode ser impugnado. O dever de gestão processual não permite ao Tribunal que descaracterize a tramitação do processo, como sucederia se viesse admitir a alteração da relação de bens fora dos termos em que tal se encontra legalmente previsto e que correspondem a uma intenção clara do legislador de simplificar e agilizar o processo de inventário. Por outro lado, o âmbito de aplicação do artigo 411.º do Código de Processo Civil situa-se fora da questão suscitada pelo Requerente, pois não se discute aqui a instrução da causa, a que acresce a circunstância de este preceito não consentir que o juiz ultrapasse normas legais que estabelecem prazos preclusivos para a prática de atos integrados na tramitação dos autos, como sucede com a reclamação da relação de bens e a impugnação do valor dos bens. Finalmente, o processo de inventário não segue a forma de processo comum, e as normas do processo comum apenas são aplicáveis aos processos especiais quando se trate de questão que não se encontre regulada nas disposições próprias do processo especial ou nas disposições gerais e comuns (artigo 549.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Ora, não se afigura que esta questão se mostre omissa no regime do processo de inventário, antes a possibilidade de discutir factos com relevo para o objeto do processo de inventário deve ser aferida à luz das normas que disciplinam os atos a praticar no processo de inventário. Deve, assim, ser mantido o despacho sindicado, pelo que improcede o recurso.
5. Custas As custas são suportadas pelo Requerente, que fica vencido (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). Relativamente à dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça requerida no recurso, trata-se de questão que deve ser conhecida apenas na decisão final do processo, a qual não foi ainda proferida, pelo que não apreciaremos tal questão.
V – Dispositivo Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida. Custas pelo Requerente. Notifique e registe. Sónia Moura (Relatora) Manuel Bargado (1º Adjunto) António Marques da Silva (2º Adjunto) |