Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1111/20.1T8MMN.E1
Relator: SÓNIA MOURA
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
TEMPO IMEMORIAL
Data do Acordão: 10/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:
1. Os atravessadouros e os caminhos públicos têm em comum a circunstância de serem vias de comunicação utilizadas pela população, mas distinguem-se porque os caminhos públicos servem os interesses comuns de um conjunto alargado e indiscriminado de pessoas.

2. Se um caminho não é propriedade de uma entidade de direito público ou de um particular, a sua qualificação como público depende apenas da verificação dos requisitos atinentes à sua utilização coletiva e ao caráter imemorial dessa utilização, à luz do Assento de 19.04.1989, hoje com valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, e da sua interpretação subsequente efetuada pela jurisprudência.


3. Tem sido discutido se a imemoriabilidade é compatível com o estabelecimento de uma duração mínima dessa utilização e, paralelamente, qual a duração mínima adequada para esse efeito, admitindo-se que uma utilização que se prolonga por mais de 60 anos preenche este requisito.


4. Se o caminho era usado pelos habitantes das residências que o ladeavam e ainda por pessoas que aí se deslocavam à lavandaria e à peixaria, e veio a deixar de ser usado por causa dos obstáculos opostos por proprietário de prédio confinante, aquele desuso não releva para desqualificar a natureza pública do caminho.


(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil)

Decisão Texto Integral: ***

Apelação n.º 1111/20.1T8MMN.E1


(1ª Secção)


***


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


I. Relatório


1. AA, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de sua mãe BB, intentou contra CC e DD, a presente ação declarativa de condenação, em processo comum, formulando o seguinte pedido:


“a. Declarar que o caminho “sub judice” seja considerado de natureza pública, pelo menos no troço de 52 metros a partir da Rua 1, permitindo o livre acesso e circulação de pessoas e bens;


b. Condenar os Réus a reconhecer tal caminho como público, abstendo-se de praticar atos como se de sua propriedade se tratasse;


c. Notificar a Câmara Municipal de Cidade 1 sobre a douta decisão.”


2. Os RR. contestaram, invocando as exceções da ilegitimidade passiva e ativa, defenderam-se também por impugnação, e deduziram ainda reconvenção, formulando o seguinte pedido:


a) declarar o caminho particular, a favor dos RR., e condenar a A. no seu reconhecimento, com todas as consequências legais.


3. A A. apresentou réplica.


4. Na sequência do convite formulado pelo Tribunal, a A. veio deduzir incidente de intervenção principal provocada, tendo sido, então, admitida a intervenção principal ativa de EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN e de OO, e a intervenção principal passiva de PP, QQ e RR.


5. Foi admitida a reconvenção, proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, após o que se realizou a audiência de julgamento e foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:


“Face ao exposto, decide o Tribunal julgar a ação totalmente procedente, por provada, e em consequência:


a) Declarar a natureza pública do caminho, pelo menos no troço de 52 metros em linha reta, a partir da Rua 1, que se situa a nascente do prédio dos autores identificado no facto 1 e a poente do prédio dos réus identificado no facto 6.


b) Condenar os réus a reconhecerem a natureza pública do referido caminho e a absterem-se da prática de atos que impeçam a livre circulação e utilização do caminho;


c) Absolve os autores do pedido reconvencional deduzido.


Indefere-se o pedido de notificação da decisão à Câmara Municipal.”


6. Inconformados com a sentença, vieram os RR. interpor recurso da mesma, que terminaram com as seguintes conclusões:


“1 - Foi julgado como tendo natureza de “caminho publico” , alegadamente, como se refere na sentença porque se considerou existir um “ uso direto e imediato pelo público, isto é, pela generalidade das pessoas que integram certa coletividade, no caso, a freguesia de Cidade 1”, um “troço pelo menos no troço de 52 metros em linha reta, a partir da Rua 1, que se situa a nascente do prédio dos autores.


2 - Esse “troço”, inicia-se na Rua 1, terá a extensão de 52 metros e termina num poço (propriedade dos autores), conforme se pode constatar da fundamentação da sentença (e no doc.8 junto à PI, bem como nas fotos constantes do auto de inspecção judicial), designadamente quando se refere à prova por inspecção judicial.


3 - Esse “troço” apenas permitirá o acesso à propriedade dos Réus e à propriedade dos Autores, não se vislumbrando como alguma vez possa ser qualificado como publico, por não se destinar ao uso directo e imediato pelo publico, isto é, “pela generalidade das pessoas que integram certa coletividade, no caso, a freguesia de Cidade 1” - tratando-se antes, e tão somente, de um “caminho privado”, destinado a ser utilizado por apenas um conjunto determinado de pessoas, no caso, os proprietários e utilizadores dos dois prédios em causa, isto é, autores e réus.


4 - Não deixa de ser no mínimo curioso que os autores, depois de terem visto ser julgado improcedente o seu pedido de reconhecimento do “caminho” em causa nos presentes autos (cfr. certidão do proc. 940/14.0..., junto aos autos) como “servidão”, venham agora, face a esse decesso, pretender que o “caminho” em causa tenha agora, afinal, a natureza de caminho publico, numa inversão completa do que seria normal, pois que se verdadeiramente o considerassem caminho publico não teriam pretendido antes ver reconhecida para eles a servidão de passagem relativamente ao mesmo.


5 - E mais curioso ainda se manifesta o facto de o prédio dos autores não ser um prédio encravado, por confrontar a Norte com a Rua 1 (cfr. docs. 6, 8, 18 junto à PI, foto 5 do auto de inspecção judicial, foto 2 do requerimento de 30/10/2023), sendo perfeitamente perceptível, para além de uma segunda habitação dos autores (“2 - habitação autores”, no doc. 8 junto à PI) existe ainda uma larga faixa de terreno do terreno dos autores a confinar com a Rua 1 - que nos depoimentos de parte de MM, cfr. Minuto 25:00 e seguintes, não é utilizado para entrar na sua propriedade porque “tem oliveiras” e “fazem lá horta”, ou do testemunho de SS, filha da Autora, que no seu depoimento, ao minuto 15:00 e seguintes, refere que para passar pelo terreno , ao lado da casa do primo, “só a pé”, “pelo quintal do primo” e que “se o primo não deixar não pode passar”.


6 - Não pode deixar de se salientar que o prédio dos Autores e dos intervenientes principais se encontra inscrito a favor deles todos (KK, GG, MM, TT, JJ, NN, UU, II, OO, AA, FF, LL e EE), em comum, sem determinação de parte ou direito, pelo que se afigurará no mínimo caricato que, havendo comunicação directa do prédio para a Rua 1, seja colocada, por alguns dos consortes, a questão de não poderem atravessar “o quintal” do HH, que terá construído a habitação “2” no terreno de todos, e de estarem sujeitos a “autorização” do primo.


7 - Não deixa de ser curioso como não se pretende contender com o alegado “quintal” do primo, a quem até se reconhece a legitimidade para não autorizar a passagem, num terreno que juridicamente é de todos, mas ao invés se pretenda garantir a passagem por terreno que manifestamente não integra o prédio dos autores.


8 - Sempre se dirá que a passagem que os autores e intervenientes principais pretendem em terreno que manifestamente não é seu, sempre seria, e é, possível, pelo seu próprio terreno, apenas o não sendo porque, perdoe-se a expressão, não lhes convém - seja porque não querem arrancar ou contornar uma oliveira, ou várias, ou não querem desperdiçar parte da horta ou não querem perturbar o que seria “o quintal” do primo, mas sempre terreno de todos eles.


9 - Na audiência prévia ocorrida em 30/05/2022, foi fixada a seguinte base instrutória:


“1. O acesso exclusivo a parte do edificado dos autores no prédio sito na Rua 1, Cidade 1, através do caminho em início nessa artéria, bem como a inexistência de acesso diverso.


2. A utilização e livre circulação pelos autores e pelos antecessores do aludido caminho.


3. A (in)existência da utilização do caminho pela população desde tempos imemoriais, de modo público, a (in)existência de infraestruturas (água, esgotos e electricidade) no mesmo e, ainda, a (eventual) intervenção da autarquia na sua manutenção.


4. A prática de actos por DD impeditivos da circulação dos autores no caminho.


5. A abertura do caminho pelo progenitor da ré CC.


6. A utilização pelos réus e pelos seus antecessores do dito caminho, a título exclusivo, com a convicção de exercerem um direito próprio; a sua conformação e a duração no tempo de tal exercício.” (sublinhados e negritos nossos)


10 - Efectuado o julgamento da causa, consta da respectiva sentença, quanto à fundamentação de facto, os factos julgados provados e não provados, com parte substancial dos quais os recorrentes não se pode conformar e por isso vêm interpor o presente recurso, para reapreciação da matéria de facto, com reapreciação da prova gravada.


Passemos a apreciar o que se consideram notórios erros na apreciação da prova, impondo- se a respectiva correcção, como segue abaixo:


11 - No ponto 11 da matéria de facto provada, foi considerado provado que:


“O caminho sito entre a Rua 1 e a Rua 2 e que liga estas duas ruas, representado com o n.º 1 no referido documento n.º 8, junto com a petição inicial foi sempre o único acesso utilizado para duas habitações do prédio dos autores, mais concretamente, as existentes na construção representada como habitação n.º 3 no referido documento n.º 8 junto com a petição inicial.”


12 - Este ponto encontra-se incorrectamente provado, porquanto:


a) - como já referido supra o prédio dos autores não é um prédio encravado, por confrontar a Norte com a Rua 1 (cfr. docs. 6, 8, 18 junto à PI, foto 5 do auto de inspecção judicial, foto 2 do requerimento de 30/10/2023), sendo perfeitamente perceptível, para além de uma segunda habitação dos autores (“2 - habitação autores”, no doc. 8 junto à PI) existe ainda uma larga faixa de terreno do terreno dos autores a confinar com a Rua 1 (cerca de 16,5 metros);


b) - Apesar de os autores e intervenientes principais nos seus depoimentos de parte corroborarem esta versão, a mesma é desmentida pelos próprios factos, uma vez que o prédio dos autores não é encravado e tem acesso direto a Norte à Rua 1, sendo por isso possível o acesso ao mesmo directamente por essa via, em toda a extensão do terreno não ocupada pela habitação designada por n.º 2, em que habitará HH;


c) - Certo é que tal facto é ainda desmentido pelos Réus e intervenientes principais na posição dos mesmos nos seus depoimentos (DD, VV e WW) bem como de algumas testemunhas, designadamente o Senhor XX, que era genro do Senhor YY e frequentou a casa deste desde 1954 - esta testemunha afirmou quanto aos costumes que nem se dava muito bem com o Réu DD, pelo que seu testemunho, a ser parcial, não o seria certamente a favor deste. Esta testemunha refere explicitamente ao minuto 06:50 do seu depoimento, que os autores tinham acesso ao seu próprio terreno por ambos os lados , isso é, pelo “caminho” em causa e pela Rua 1, confirmando depois ao minuto 13:50 do seu depoimento existirem esses dois acesso para a família ZZ;


d) - Mais refere esta testemunha, ao minuto 17:30 e depois ao minuto 19:30 do seu depoimento, que o caminho terminava , não tinha saída (dali para a frente não havia mais nada), indo por exemplo uma camioneta levar lenha a sua casa e depois saía pelo mesmo caminho, pois não tinha saída - facto que é corroborado pela autora II no seu depoimento ao minuto 29:00, ao referir que a estrada não tinha saída para frente, “aquilo era para quem morava lá”.


e) É também revelador que as partes nos seus depoimentos e algumas testemunhas tenham referido como utilizadores desse “caminho” pessoas e veículos que iam comprar leite, laranjas - produtos que eram produzidos pelos então proprietários do terrenos dos Réus, os sogros do Réu DD - isto significa que não se tratava da população em geral, mas de pessoas que se dirigiam especificamente ao prédio dos réus para adquirir produtos da sua actividade agrícola e pecuária.


13 - Assim, afigura-se que, o que deve resultar provado é que:


- “O “caminho” em causa, não só não tinha saída, terminando numa vereda, não ligando por isso a Rua 1 e a Rua 2, nem esse foi, nem é, o único acesso para duas habitações do prédio dos autores, mais concretamente, as existentes na construção representada como habitação n.º 3 no referido documento n.º 8 junto com a petição inicial”; e dando como provado tal, não pode ser dado como provada a matéria do ponto 11 da matéria de facto provada na sentença.


14 - No ponto 14 da matéria de facto provada, foi considerado provado que:


“Até data não concretamente apurada, os proprietários e/ou residentes dos referidos imóveis inscritos na matriz predial urbana sob o artigo 10400 sempre passaram por aquele caminho, a partir da Rua 1, para a eles acederem, nele circulando livremente, bem como os seus antepassados, não existindo memória, até então, de que o caminho tenha tido uma utilização privada.”


15 - Esta matéria de facto dada como provada foi-o igualmente de forma incorrecta, porquanto:


a) - nenhuma prova foi produzida que que os antepassados dos referidos imóveis sempre tivessem utilizado o caminho e causa, sendo certo que o terreno dos autores resultou de uma desanexação, não existindo como tal antes da aquisição destes.


b) - de igual forma não pode ser dado como provado que os autores nele circulassem livremente, dada a manifesta oposição do Réu DD e dos seus antecessores.


termos em que esta matéria de facto tem de ser considerada como não provada.


16 - Nos ponto 15 e 16 da matéria de facto provada, foi considerado provado que:


“15. Em 17-01-2007, a Câmara Municipal deliberou, por maioria, aprovar o parecer do Sr. Consultor Jurídico.


16. Do referido parecer, subscrito pelo consultor jurídico, consta o seguinte: «Exmo. Senhor Presidente // 1- Em 30 de Novembro de 2004 a Câmara Municipal de Cidade 1 emitiu uma certidão aonde consta que "A Rua que faz ligação entre a Rua 1 com a Rua 2 em Cidade 1, assinada em planta anexa é servida por rede de água, esgotos e eletricidade, se encontra no domínio público….” (sublinhado nosso)


17 - Há várias questões a salientar quanto a estes dois pontos:


a)- Pareceres jurídicos não podem ser tidos como factos provados, mais a mais quando os mesmos são tomados com base em informações de funcionários do município que nem são peritos, pelo menos nos termos da prova pericial atendível em sede de processo cível, nem sequer prestaram depoimento em tribunal, nem prestaram juramento, nem puderam ser contraditados nas alegadas afirmações que por escrito terão proferido.


b) Não pode deixar de se referir que o ”caminho” em causa nos presentes autos, que veremos adiante foi classificado pela Direcção Geral do Território, na certidão constantes dos autos, como “caminho de pé posto ou vereda”, comece desde logo por ser “classificado” pela Câmara Municipal de Cidade 1 como “RUA”!


c) - Mas mais importante é que o que consta do referido parecer, ao referir que a alegada RUA “ é servida por rede de água, esgotos e eletricidade, se encontra no domínio público” é falso!


d) - A alegada RUA, rectius, o “caminho” em causa nos autos, não é servido por rede de água, esgotos e electricidade;


e) - Conforme se pode constatar das fotos do auto de inspecção ao local e das demais fotos juntas à PI, não existe no referido “caminho” qualquer iluminação pública, existem sim alguns postes de electricidade, que são meramente infra estrutura de transporte de energia, e que nem sequer seguem integralmente o traçado do “caminho” em causa, como se pode constatar da declaração e no mapa fornecidos pela E-redes que se encontra junto ao requerimento de 22/09/2022;


f) - A existência de postes para transporte de energia não significa que o “caminho” em causa esteja servido por rede de electricidade, o que sucederia se existisse nele um sistema de iluminação pública, que não existe - de outra forma passaríamos a considerar servido por rede de electricidade qualquer terreno onde passem por via aérea cabos de transporte de energia ecléctica;


g) - O “caminho “ em causa não é igualmente dotado de “rede de esgotos”, conforme se pode constatar na informação da DOP da C.M. de Cidade 1 constante do mesmo requerimento - é apenas mencionado um ramal de drenagem de águas pluviais, não de esgotos, e o mesmo não coincide sequer com o traçado do “caminho” em causa nos autos, pois desenvolve-se ao longo da Rua 1 e cruza com outro que descende da Rua 3, passando sob a casa que fica à esquerda do “caminho” em causa, não passando no “caminho” em causa, nem sob o mesmo (cfr. imagem 2 do referido documento) - sendo certo que o referido “caminho” não possui qualquer infra-estrutura de escoamento ou drenagem de águas pluviais conforme se pode constatar nas diversas fotos constantes do autos;


h) - O caminho em causa igualmente não dispõe de rede de água, a qual se pode constar no mesmo oficio, na figura 1, apenas existe ao longo da Rua 1 - sendo certo que a testemunha AAA refere ao minuto 11:00 do seu depoimento que o contador da água está na estrada e a testemunha SS ao minuto 5:50 do seu depoimento refere quanto à questão da rede água, que existem dois contadores à entrada do terreno , o que efectivamente confirma que o ramal de água passa apenas na Rua 1 e que a canalização que é feita a partir daí, onde se encontram os contadores, são ramais privados e não públicos.


i) - Por ultimo não pode deixar de se referir que a afirmação constante do referido parecer, de que a RUA se encontra no domínio publico não é minimamente concretizada, tanto mais que não foi, nem é praticado qualquer acto de conservação ou manutenção daquele alegado arruamento, como bem confirmam os depoimentos de HH, que ao minuto 21:00 do seu depoimento refere que quem fazia a manutenção do “caminho” era ele e os tios, e ainda o depoimento de NN, que ao minuto 16:30 do seu depoimento refere “eram as irmãs que tratavam daquele bocado, não a Câmara”.


Assim sendo, não pode ser dado como provado que o “caminho” em causa esteja dotado de redes de água, esgotos e electricidade, nem que pertença ao domínio público.


18 - No que diz respeito aos pontos 30, 31 e 33 da matéria de facto provada, convirá realçar o seguinte:


a) - o que consta desses pontos só pode valer na exacta medida do que neles consta, e não fazer a prova dos factos a que aludem; efectivamente,


b) - as confrontações da cadernetas prediais são mencionadas pelos contribuintes aquando das alterações prediais, não resultando de acto da administração nem sendo verificadas, pelo que não se pode extrair que o facto de as confrontações referirem rua ou caminho que esse facto seja um facto autentico, verdeiro, nomeadamente porque titulado por documento;


c) - de igual forma, a conclusão de um topografo, alegadamente contratado por uma das autoras , de que no estudo por ele efectuado conclui “este caminho não é parte integrante de nenhum dos prédios sendo por isso uma área social ou pública”, não pode ser tida como facto provado, porque o mesmo não é “perito”, pelo menos nos termos da prova pericial atendível em sede de processo cível, nem sequer prestou depoimento em tribunal, nem prestou juramento, nem pôde ser contraditado nas alegadas afirmações que por escrito terá proferido, não se permitindo o contraditório sequer da respectiva “razão de ciência”.


19 No que diz respeito ao ponto 35 da matéria de facto provada, convém realçar que a Direcção Geral do Território refere, que o terreno dos autores, com base nos dados cartográficos, confrontaria a nascente com “parte de caminho pé posto ou vereda”, o manifestamente que não será uma rua, nem um caminho para passagem de veículos.


20 - No ponto 36 da matéria de facto provada, foi considerado provado que:


“Em 01-04-2016, a requerente solicitou junto dos serviços competentes da Câmara uma planta de localização do prédio onde se encontra representada uma “Rua”, de acordo com a legenda, no local onde se situa o caminho de que tratam estes autos. “


21 - Convirá igualmente recordar que este facto vale exactamente aquilo que refere, que a Câmara emitiu essa planta , não podendo resultar de tal a prova dos factos em si mesmos:


a) não significa que exista de “facto” uma Rua, nem a legenda da referida planta pode qualificar como tal o quer que seja que não seja efectivamente um arruamento publico, como serão certamente a Rua 1 ou a Rua 2, essas sim com iluminação publica, redes de aguas é electricidade e nome.


b) Nem será a Câmara a entidade competente para qualificar qualquer caminho como público, sendo certo que esse organismo, como se constata nos próprios autos, já disse uma coisa e o seu contrário - que o caminho era público e depois que era privado, ainda que isso valha o que vale, atendendo à falta de competência para tal.


22 - No ponto 37 da matéria de facto provada, foi considerado provado que:


“O caminho, pelo menos num troço de 52 metros, a partir da Rua 1, foi utilizado livremente pelo público e pelos proprietários das habitações ali existentes, desde tempos de que não há memória até datas não concretamente apuradas. “


22 - Na fundamentação da sentença é referido que este facto foi considerado provado com base “ na valoração da prova por declarações de parte, bem como da prova testemunhal”.


23 - O conceito de “tempo imemorial” não é um facto, é um conceito, que tem de ser apreciado com base em factos e a sentença recorrida não se alicerça em qualquer facto concreto para tal.


24 - Deve até concluir-se, em nosso entender, que da prova produzida, resultará o contrário, porquanto:


a) - Na sentença proferida no processo anterior foi dado como provado que o uso em causa se daria desde, então, há 57 anos.


b) -A sentença ora em recurso fala agora em cerca de 60 anos, e de facto, atendendo à prova testemunhal e por declarações produzida, não seria possível ir mais longe, pois os depoimentos referem-se, o mais tardar à década de 50 do Século XX.


c) O facto de as desanexações e criação dos prédios em causa andar precisamente por essa altura, não pode levar a concluir que esse uso é imemorial, que já existe desde ainda antes de haver qualquer memória, o que pressuporia uma origem muitíssimo remota, e não são 50, 60 , ou mesmo 100 anos que cumprem esse requisito de imemoriabilidade.


d) Aliás é a própria Autora II quem no final do seu depoimento de parte, após o minuto 29:00, referindo-se ao “caminho” em causa nos autos, e referindo-se ao anterior proprietário, BBB, refere expressamente “a estrada deixou o senhor para as pessoas passarem lá” - e é esta a única referência em termos de antiguidade que se vislumbrou nos depoimentos prestados, sendo certo que a referência objectiva que se pode encontrar nos autos, será a que se refere à certidão da DGT, que referindo-se ao mapa cadastral de 1951, constata a existência de “um caminho de pé batido ou vereda”.


25 - Não existe assim fundamento de facto para dar como provada a imemoriabilidade pretendida, pelo que tal facto não pode ser considerado provado.


De qualquer forma há que salientar que:


26 - Na classificação adoptada por António Carvalho Martins (“Caminhos públicos e atravessadouros”, Coimbra Editora, 3.ª edição, pag. 59), utilizando conceitos extraídos de outros autores e da jurisprudência, entende-se por:


“- Caminho - é uma via que as pessoas utilizam para ir de uma localidade para outra, de uma povoação para os campos que granjeiam, enfim, quando por lá se têm de fazer e se fazem determinados percursos;


- Atravessadouros - são os direitos que determinadas pessoas, independentemente da figura da servidão pessoal, tinham de atravessar prédio alheio; e


- Atalho - é uma via que encurta um percurso que as pessoas utilizam para um percurso breve em substituição de um percurso menos breve.


Atalho e atravessadouro são noções da mesma realidade.”


27 - No caso dos autos, não se estando perante uma via usada para ir de uma localidade a outra ou de uma povoação para os campos, estaríamos, quando muito, perante um atravessadouro ou atalho.


28 - O artigo 1383.º do C.Cv. aboliu os atravessadouros, desde que não estivessem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões - que não será o caso dos autos, tanto mais que o prédio dos autores nem sequer é encravado.


29 - Por usa vez o artigo 1384.º reconheceu a manutenção dos atravessadouros com posse imemorial, quando os mesmos se dirigissem a ponte ou fonte e manifesta utilidade - que não é o caso dos autos (e ainda assim enquanto não existissem vias publicas para lhes aceder).


30 - Convirá salientar que o “caminho” em causa não é o caminho de acesso à escola primária:


a) - O que existia, pelo menos em 1951, era um caminho de pé batido ou vereda, tal como reconhece a DGT no seu ofício junto aos autos;


b) - Reconhecidamente da prova testemunhal e por declarações, já supra analisada resulta que “o caminho”, vindo do lado da Rua 1, não tinha saída, não iá dar a lado algum;


c) - É facto notório que a Escola Primária existente na zona (Escola Básica dos ...) se situa em Cidade 1, na Rua 4, a que se chega percorrendo o resto da Rua 1 e depois virando para essa mesma Rua;


d) - mesmo que algumas pessoas usassem a vereda existente, esta seria sempre um atalho , não um caminho.


31 - Saliente-se, ainda, que a realidade jurídica actual dos prédios em causa é diferente da que existia há uns anos atrás, na medida em que quer o prédio dos autores quer o prédio dos Réus, não são hoje já prédios rústicos, mas sim prédios urbanos, integrados no limite urbano da actual cidade de Cidade 1, pelo que a consideração de atravessadoiros ou atalhos é em si mesma insusceptível de ser considerada.


32 - Nos pontos 48 e 49 da matéria de facto provada, foi considerado provado o seguinte:


“48. O caminho que liga a Rua 2 à Rua 1 encontra-se servido por rede de electricidade desde 1976.


49. A rede pública de abastecimento de água foi executada no referido caminho pelo Município de Cidade 1 em 1982, o mesmo acontecendo com a rede pública de esgotos. “


33 - Tal matéria está incorrectamente assente como provada, não o podendo ser, porquanto, como já supra referido:


a) - o “caminho” em causa nos autos, não é servido por rede de água, esgotos e electricidade:


b) - conforme se pode constatar das fotos do auto de inspecção ao local e das demais fotos juntas à PI, não existe no referido “caminho” qualquer iluminação pública, existem sim alguns postes de electricidade, que são meramente infra estrutura de transporte de energia, e que nem sequer seguem integralmente o traçado do caminho em causa, como se pode constatar da declaração e no mapa fornecidos pela E-redes que se encontra junto ao requerimento de 22/09/2022;


c) - a existência de postes para transporte de energia não significa que o “caminho” em causa esteja servido por rede de electricidade, o que sucederia se existisse nele um sistema de iluminação pública, que não existe (de outra forma passaríamos a considerar servido por rede de electricidade qualquer terreno rustico onde passem por via aérea, ou até subterrânea, cabos de transporte de energia eléctrica;


d) - o “caminho “ em causa não é igualmente dotado de “rede de esgotos”, conforme se pode constatar na informação da DOP da C.M. de Cidade 1 constante do mesmo requerimento - é apenas mencionado um ramal de drenagem de águas pluviais, não de esgotos, e o mesmo não coincide sequer com o traçado do “caminho” em causa nos autos, pois desenvolve-se ao longo da Rua 1 e cruza com outro que descende da Rua 3, passando sob a casa que fica à esquerda do “caminho” em causa, não passando no “caminho” em causa, nem sob o mesmo (cfr. imagem 2) - sendo certo que o referido “caminho” não possui qualquer infra-estrutura de escoamento ou drenagem de águas pluviais conforme se pode constatar nas diversas fotos constantes do autos;


e) - o caminho em causa igualmente não dispõe de rede de água, a qual se pode constatar no mesmo oficio, na figura 1, apenas existe ao longo da Rua 1 - sendo certo que a testemunha AAA refere ao minuto 11:00 do seu depoimento que o contador da água está na estrada e a testemunha SS ao minuto 5:50 refere quanto à questão da rede água, que existem dois contadores à entrada do terreno , o que efectivamente confirma que o ramal de água passa apenas na Rua 1 e que a canalização que é feita a partir, onde se encontram os contadores, são ramais privados e não públicos.


34 - É esclarecedor que o oficio em causa venham estabelecer as datas de 1976 e 1982 para a criação dessas alegadas redes de electricidade, água e esgotos, o que certamente afasta aquele caracter imemorial, ancestral, cuja prova se pretenderia fazer.


35- No ponto 50 da matéria de facto provada, foi considerado provado que:


“O caminho sito entre a Rua 1 e a Rua 2 e que liga estas duas ruas, representado com o n.º 1 no referido documento n.º 8, junto com a petição inicial é o único acesso actualmente existente para a habitação representada como habitação n.º 3 no referido documento n.º 8 junto com a petição inicial”


36 - Já supra verificámos que este ponto está incorrectamente tido como provado, porquanto como já referimos:


a) - O prédio dos autores não é um prédio encravado, por confrontar a Norte com a Rua 1 (cfr. docs. 6, 8, 18 junto à PI, foto 5 do auto de inspecção judicial, foto 2 do requerimento de 30/10/2023), sendo perfeitamente perceptível, para além de uma segunda habitação dos autores (“2 - habitação autores”, no doc. 8 junto à PI) existe ainda uma larga faixa de terreno do terreno dos autores a confinar com a Rua 1 - que nos depoimentos de parte de MM, cfr. minuto 25:00 e seguintes, não é utilizado para entrar na sua propriedade porque “tem oliveiras” e “fazem lá horta”, ou do testemunho de SS, filha da Autora, que no seu depoimento, ao minuto 15:00 e seguintes, refere que para passar pelo terreno , ao lado da casa do primo, “só a pé”, “pelo quintal do primo” e que “se o primo não deixar não pode passar”.


b) Assim, directamente através da Rua 1, e passando ao lado da Habitação 2, os autores podem, querendo, aceder à habitação 3, não estando esta encravada, nem tendo como único acesso o “caminho” em causa nos autos.


c) Recorde-se que o prédio dos Autores e dos intervenientes principais se encontra inscrito a favor deles todos (KK, GG, MM, TT, JJ, NN, UU, II, OO, AA, FF, LL e EE), em comum, sem determinação de parte ou direito, pelo que se afigurará no mínimo caricato que, havendo comunicação directa do prédio para a Rua 1, seja colocada, por alguns dos consortes, a questão de não poderem atravessar “o quintal” do HH, que terá construído a habitação “2” no terreno de todos, e de estarem sujeitos a “autorização” do primo.


d) - Não deixa de ser curioso como não se pretenda contender com o alegado “quintal” do primo, a quem até se reconhece a legitimidade para não autorizar a passagem, num terreno que juridicamente é de todos, mas ao invés se pretenda garantir a passagem por terreno que manifestamente não integra o prédio dos autores.


37 - A passagem que os autores e intervenientes principais pretendem em terreno que manifestamente não é seu, sempre seria, e é, possível, pelo seu próprio terreno, apenas o não sendo porque, perdoe-se a expressão, não lhes convém - seja porque não querem arrancar ou contornar uma oliveira, ou várias, ou não querem prescindir de parte da horta ou não querem perturbar o que seria “o quintal” do primo, que tem a particularidade de se situar no terreno de todos eles.


38 - No ponto 54 da matéria de facto provada, foi considerado provado que: “O caminho referido, que faz a ligação entre a Rua 2 e a Rua 1 era utilizado pela generalidade da população em Cidade 1, para aceder a escolas, peixaria e lavandaria, habitações ou outros locais”


39 - Tal facto foi incorrectamente julgado como provado, porquanto:


a) - Já expôs supra que o “Caminho” em causa, não ia dar a lado algum:


b) - tal facto é desmentido pelos Réus e intervenientes principais na posição dos mesmos nos seus depoimentos (DD, VV e WW) bem como de algumas testemunhas, designadamente o Senhor XX, que era genro do Senhor YY e frequentou a casa deste desde 1954.


c) - Esta testemunha, XX, (que inclusivamente afirmou quanto aos costumes que nem se dava muito bem com o Réu DD, pelo que seu testemunho, a ser parcial, não o seria certamente a favor deste) refere explicitamente ao minuto 17:30 e depois ao minuto 19:30 do seu depoimento, que o caminho terminava , não tinha saída (dali para a frente não havia mais nada), indo por exemplo uma camioneta levar lenha a sua casa e depois saía pelo mesmo caminho, pois não tinha saída - facto que é corroborado pela autora II no seu depoimento ao minuto 29:00, ao referir que a estrada não tinha saída para frente, “aquilo era para quem morava lá”.


d) - Não tendo saída parece evidente que quem quer que fosse, seja para a peixaria, a escola, lavandaria ou o mais que houvesse, não seria de carro, pois teriam de voltar para trás pelo mesmo caminho, pois não havia saída, apenas se vislumbrando que o pudessem fazer, por caminho de pé posto ou vereda, como aliás apenas reconhece existir a certidão da DGT, tratando-se por isso mesmo de um atalho, que não de um caminho.


e) - No seu depoimento de parte, o autor NN, ao minuto 16,30, refira que passava lá toda a gente”, para depois concretizar “quem ia à escola”, referindo depois que “havia uma vereda!” - Pergunta-se se é crível que o acesso à escola fosse uma vereda e se é crível que lá passasse toda a gente?


E mais importante que isso, não seria esse atalho o único acesso a tais locais, senão além das pessoas que iam à peixaria, teria de passar o camião do peixe, os professores da escola, os contínuos.


f) - É certo que por ali passariam os proprietários das casas que ai se encontravam, que seriam os “YY e os CCC”, e que se pretendesse dirigir a essas duas habitações, mas certamente que isso não seria como consta provado a generalidade da população de Cidade 1!


g) - É também revelador que as partes nos seus depoimentos e algumas testemunhas tenham referido como utilizadores desse “caminho” pessoas e veículos que iam comprar leite, laranjas - produtos que eram produzidos pelos então proprietários do terrenos dos Réus, os sogros do Réu DD - isto significa que não se tratava da população em geral, mas de pessoas que se dirigiam especificamente ao prédio dos réus para adquirir produtos da sua actividade agrícola e pecuária.


40 - Assim, afigura-se que, o que deve resultar provado é que não pode ser dado como provado o conteúdo deste ponto 54, uma vez que apenas se poeria considerar provado que:


- “O “caminho” em causa, não só não tinha saída, terminando numa vereda, não ligando por isso a Rua 1 e a Rua 2, nem esse foi, nem é, o único acesso para duas habitações do prédio dos autores, mais concretamente, as existentes na construção representada como habitação n.º 3 no referido documento n.º 8 junto com a petição inicial”;


Pelo que dando como provado tal, não pode ser dado como provada a matéria do ponto 54 da matéria de facto provada na sentença.


41 - Não foi considerado provada a matéria do ponto N, da matéria de facto não provada:


“E. Na entrada do caminho pela Rua 1 existiam marcos delimitadores que foram retirados do terreno pelo requerido, em data não concretamente apurada.”


42 - São vários os depoimentos das partes e das testemunhas que referem a existência de marcos, sendo um dos Marcos à entrada da estrada, o qual ficaria encostado à habitação dos autores designada como habitação n.º2 (veja-se, v.g., EE ao minuto 39:00 e HH, ao minuto 18:40) que referem a existência desse marco, e o facto de o mesmo ter sido removido, desconhecendo-se por quem.


43 - Sendo importante o facto de terem existido marcos de delimitação da propriedade, nomeadamente nesse sitio, mas sendo igualmente certo que tais marcos não se encontra actualmente no local, à vista, desconhecendo-se quem os tenha removido, deverá ser dado como provado que:


“Na entrada do caminho pela Rua 1 existiam marcos delimitadores que foram retirados do terreno, não se tendo apurado por quem nem a data concretamente apurada”


***


44 - Tendo em consideração a matéria de facto que deve efectivamente ser considerada provada e não provada, afigura-se manifesto que não pode ser julgado procedente o pedido de “Declarar a natureza pública do caminho, pelo menos no troço de 52 metros em linha reta, a partir da Rua 1, que se situa a nascente do prédio dos autores identificado no facto 1 e a poente do prédio dos réus identificado no facto 6, porquanto o mesmo não satisfaz os requisitos que seriam sempre exigíveis para essa declaração.


45 - O “caminho” em causa não é destinado ao uso público, ao uso de todos, mas apenas o seria, na configuração que lhe foi reconhecida, por conjunto restrito de pessoas, que seriam os proprietários dos dois prédios urbanos em causa, isto é, autores e réus, e o conjunto sempre limitado de pessoas que pretendam aceder a esses dois imóveis, que certamente não é toda a população de Cidade 1;


46 - A utilização desse “caminho” há mais de 60 anos, não tornaria nunca essa utilização imemorial;


47 - Não existe qualquer utilização imemorial do alegado caminho entre a actual Rua 1 e a actual Rua 2, que existirão elas mesma apenas desde os anos 60 do século passado - sendo aliás várias vezes referido na prova testemunhal e por declarações referida que o “caminho” não ia dar a lado algum, não tinha saída, pelo que não se pode considerar que o mesmo desde tempos imemoriais liga duas ruas… que então nem sequer existiam.


48 - É referido até várias vezes, cujo supra já especificadamente se referiu, que o caminho não tinha saída, quem entrasse então, pela actual Rua 1 e tinham de sair pelo mesmo caminho;


49 - Que se saiba nenhuma entidade publica reivindicou até hoje a propriedade do terreno a que e refere o “caminho” em causa, nem o mesmo é um “baldio”, nem o mesmo foi expropriado ou objecto de apropriação por qualquer entidade pública, de onde se afigura não poder ser aplicável a pretendida limitação a que se refere o acórdão do STJ de 28-05-2013 (processo n.º 3425/03.6TBGDM.P2.S1), publicado em www.dgsi.pt, segundo o qual: «A interpretação restritiva do assento de 19-04-1989, de acordo com a qual os caminhos devem considerar-se públicos quando, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato público e afectados a interesses colectivos de certo grau ou relevância, pressupõe que tais caminhos atravessam propriedades privadas.»


50 - Sempre se dirá que essa interpretação restritiva, esse pressuposto de não atravessarem propriedades privadas, será, devidamente analisado, o mesmo que referir que teria de atravessar prioridades que não fossem privadas - o que por certo não está demonstrado nos autos.


51 - A decisão proferida no processo n.º 940/14.8T8MMN, ao não considerar provado quais os limites da propriedade dos aqui Réus, jamais poderá constituir caso julgado no sentido de impedir os Réus de vir a demonstrar judicialmente quais os limites concretos desse terreno, nem que seja numa acção de demarcação que se dirá deveria ter sido já intentada e que provavelmente o terá de ser, e muito menos pode conduzir a que na presente acção nem se pudesse sequer considerar, como se fundamenta na decisão, a questão da propriedade privada dos Réus sobre o terreno do “caminho” em causa.


52 - A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 1305.º, 1308.º, 1356.º e 1383.º do Código Civil, bem como o disposto no Assento do STJ de 19/04/1989.”


7. Foram apresentadas contra-alegações, onde os AA. pugnaram pela improcedência do recurso.


8. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Questões a Decidir


O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).


No caso em apreço importa apreciar:


a) a impugnação da decisão de facto;


b) se o caminho em discussão nos autos deve ser considerado público.


III – Fundamentação de facto


1. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:


“1. A aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 5759 da freguesia de Cidade 1, situado em ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 10400, que corresponde ao antigo artigo matricial rústico nº 159, secção K, encontra-se registada a favor dos autores, por sucessão nas heranças abertas por óbito de DDD e de EEE.


2. O antigo prédio rústico nº 159, e agora urbano nº 10400, contém duas habitações, representadas como habitação n.ºs 2 e 3 no documento n.º 8 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido.


3. A habitação n.º 2 está junta à Rua 1, com a qual confronta a norte, e tem acesso direto para esta rua.


4. A habitação n.º 3 situa-se a sul da habitação n.º 2.


5. A construção representada como “habitação n.º 3” contém dois fogos, contendo por isso duas habitações.


6. A aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3202, da freguesia de Cidade 1, em Cidade 1, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 7391 encontra-se registada a favor dos réus.


7. O prédio suprarreferido onde os réus CC e DD residem, encontra-se representado como habitação 4 no documento n.º 8 junto com a petição inicial.


8. O referido prédio localiza-se a nascente do prédio dos autores, com acesso pela Rua 2.


9. Da caderneta predial urbana do prédio inscrito na matriz sob o artigo 7391, bem como na descrição predial sob o n.º 3202, a favor dos réus, consta que o prédio em causa se situa na Rua 1, n.º 35º-B.


10. Os réus recebem a correspondência no referido prédio através da morada Rua 2, Nº 22, ... Cidade 1.


11. O caminho sito entre a Rua 1 e a Rua 2 e que liga estas duas ruas, representado com o n.º 1 no referido documento n.º 8, junto com a petição inicial foi sempre o único acesso utilizado para duas habitações do prédio dos autores, mais concretamente, as existentes na construção representada como habitação n.º 3 no referido documento n.º 8 junto com a petição inicial.


12. Por seu turno, a habitação representada como habitação n.º 2 no documento n.º 8 junto com a petição inicial tem entrada direta pela Rua 1.


13. O outro possível acesso através da Rua 2 está vedado pelo requerido, sinalizado como “propriedade privada” e nunca foi utilizado pelos requerentes para acederem às suas casas.


14. Até data não concretamente apurada, os proprietários e/ou residentes dos referidos imóveis inscritos na matriz predial urbana sob o artigo 10400 sempre passaram por aquele caminho, a partir da Rua 1, para a eles acederem, nele circulando livremente, bem como os seus antepassados, não existindo memória, até então, de que o caminho tenha tido uma utilização privada.


15. Em 17-01-2007, a Câmara Municipal deliberou, por maioria, aprovar o parecer do Sr. Consultor Jurídico.


16. Do referido parecer, subscrito pelo consultor jurídico, consta o seguinte: «Exmo. Senhor Presidente // 1- Em 30 de Novembro de 2004 a Câmara Municipal de Cidade 1 emitiu uma certidão aonde consta que "A Rua que faz ligação entre a Rua 1 com a Rua 2 em Cidade 1, assinada em planta anexa é servida por rede de água, esgotos e eletricidade, se encontra no domínio público, motivos pelos quais se entende que a mesma é pública." // 2- A declaração constante de tal certidão teve por base a informação dos serviços. // 3- Vários cidadãos residentes no local ou proprietários de prédios servidos pela Rua em questão nomeadamente FFF vieram reclamar junto da Câmara Municipal de Cidade 1, quanto ao facto de o acesso à Rua em questão na parte que serve o prédio de que é proprietária, sito na Rua 1 (prolongamento n.º 35 - C) em Cidade 1 ter sido vedado pelo Sr. DD. // 4- Face a tais participações os senhores fiscais municipais, em 06.11.06, elaboraram a seguinte informação (...). // "Deslocámo-nos ao local com a finalidade de averiguar que obstruiu a passagem que liga a Rua 1 à Rua 2, e após conversa verbal com o Sr. DD, o mesmo nos confirmou que colocou os obstáculos (corrente metálica, um obstáculo com chapas de zinco e uma vedação tipo rede metálica conforme fotografias em anexo e assinaladas na planta de localização anexa)". // 5- Como decidiu o do S.T.J. em Assento de Abril de 1989 e é, hoje, jurisprudência dominante que (...) // "Um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção. (...) // Esta orientação é a que melhor se adapta às realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos, e assim se obstar à apropriação de coisas públicas por particulares, com sobreposição do interesse público por interesses privados. // Basta, portanto, para a qualificação de um caminho como caminho público o facto de certa faixa de terreno estar afeta ao trânsito de pessoas sem discriminação. // “É assim, suficiente para um caminho ser considerado público o uso direto e imediato pelo o público, não se tornando necessário que ela tenha sido apropriado ou produzido por pessoa coletiva de direito público e que esta haja praticado atos de administração, jurisdição ou conservação." // 5- Neste quadro dúvidas não restam que o mencionado DD se apropriou, indevidamente, de um bem público, que ocupa também indevidamente, causando elevados prejuízos aos utilizadores da rua pública. // 7- Em 17 de Novembro do corrente ano na companhia do Sr. Vereador Dr. GGG deslocámo-nos ao local em questão com o objetivo de fazer uma inspeção informal ao mesmo. // 7.1-Em 29 de Novembro de 2006 repeti tal inspeção acompanhado do Sr. Fiscal Municipal HHH. // 8- De tais inspeções conclui o seguinte: // a) Que o troço da Rua em questão que liga à Rua 1 em Cidade 1 e que na planta que anexo se encontra marcada a vermelho, tem todas as características que permitem defini-lo como constituindo um caminho público, uma vez que é utilizado por todas as pessoas, serve um conjunto de edifícios existente no mesmo traçado e é conservado e mantido pelos serviços da Autarquia. // b) Tal troço tem 52 metros de comprimento medidos a partir da Rua 1. // c) O restante troço que liga o ponto onde termina o troço anterior e a Rua 2 com cerca de 92 metros de comprimento e demarcada a verde na planta anexa, serve algumas habitações aí existentes, não é mantido nem conservado pela Câmara Municipal e apesar de ter sido utilizado livremente não revela ter utilização de forma permanente e frequente pela comunidade aí residente. // Neste quadro entendo propor à Exma. Câmara que delibere o seguinte: // 1- Revogue parcialmente o despacho que esteve na base da certidão camarária de 30/11/2004, limitando o caminho público à parte da Rua que faz a ligação entre a Rua 1 a partir desta por uma extensão de 52 metros comprimento e 3 metros de largura. // 2- Apure mais, pormenorizadamente, se a parte restante do caminho até à Rua 2 constitui, ou não, um caminho público, ordenando nomeadamente as seguintes diligências: // a) Ouvir em declaração os proprietários confinantes com tal troço de Rua de modo a apurar o estatuto do mesmo. // b) Solicitar à Junta de Freguesia de Cidade 1 informação sobre a classificação de tal troço. // c) Pedir aos Serviços Técnicos que informem se nas plantas de localização de tal troço, o mesmo é identificado como constituindo um caminho público. // 3- Deverá ainda a Câmara Municipal deliberar: // a) Intimar o Sr. DD para no prazo de 5 dias, desocupar e desobstruir a rua pública que liga as Rua 1 e Rua 2 em Cidade 1, no troço de 52 metros a partir da Rua 1, retirando da mesma, a expensas suas, todo o material que nela colocou, nomeadamente, a corrente metálica, o obstáculo feito com chapas de zinco e a vedação tipo rede metálica. // b) De que na parte restante do troço não poderá colocar e manter qualquer obstáculo, seja porque forma for, que impeça a livre circulação de pessoas e bens até que sejam concluídos os atos da inspeção referida no n.º 2 do número anterior. // c) Caso o não faça a Câmara Municipal retirará, ela própria, todos os obstáculos atrás referidos e exigirá ao intimado o pagamento de todas as despesas que venha a efetuar com trabalhos necessários à prossecução de tais objectivos. // d) Deverá, ainda, ser notificado de que o não cumprimento da presente deliberação o fará incorrer na prática de um crime de desobediência. // e) Accionar todos os mecanismos judiciais necessários ao integral cumprimento da presente deliberação.»


17. Em data não apurada, a ré III intentou ação declarativa de condenação contra JJJ, KKK, OO, LLL, TT, II, MMM, MM e NN, que veio a correr termos no Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo, Juiz 2, sob o n.º 940/14.8...


18. Na referida ação peticionando o seguinte: “- condenação dos Réus a reconhecerem a propriedade plena dos herdeiros de NNN e OOO, sobre o prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua 1 nº 55-B, freguesia de Cidade 1, com a área coberta de 80m2 e descoberta de 1420m2, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 7391 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o nº 3202; - condenação dos Réus a reconhecerem os limites da estrema que delimitam os prédios confinantes de réus e dos herdeiros de NNN e OOO, feito em linha reta a partir dos marcos existentes no limite sul do prédio destes e que, junto à Rua 1, mede 5 metros de largura; - condenação dos Réus a absterem-se de quaisquer atos que possam por em causa o direito de propriedade dos herdeiros de NNN e OOO, relativamente ao identificado prédio.”


19. No âmbito do pedido formulado pela ré, naquela ação, pretendia a ré o reconhecimento da propriedade sobre o caminho sito entre a Rua 1 e a Rua 2 e que liga estas duas ruas, representado com o n.º 1 no referido documento n.º 8, junto com a petição inicial.


20. Os ali réus e aqui autores contestaram e deduziram reconvenção peticionando a condenação da então autora, aqui ré, a reconhecer o caminho como uma servidão adquirida pelos réus, por usucapião, a condenação da então autora, aqui ré, no reconhecimento do prédio dos então réus na sua totalidade, a retificação das confrontações nas finanças, uma vez que as mesmas foram indevidamente retificadas e a condenação da então autora, aqui ré, a abster-se de praticar atos que perturbem, prejudiquem ou diminuam a propriedade dos então Réus.


21. Em 07-01-2015 foi proferida sentença, transitada em julgado em 26-11-2018, que julgou a ação parcialmente procedente por provada e decidiu: «a) Condenar os Réus a reconhecerem a propriedade dos herdeiros de NNN e OOO, sobre o prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua 1, nº 55-B, freguesia de Cidade 1, com a área coberta de 80 metros quadrados e descoberta de 1420 metros quadrados, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 7391 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o nº 03202; b) Condenar a autora a reconhecer a propriedade dos réus do prédio rústico composto de cultura arvense, que tem implantado uma casa com a área de 112 m2 e de área descoberta de 2 638 m2, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Cidade 1 sob o artº 159 da secção; c) Absolver os réus do demais peticionado pela autora; d) Absolver a autora do demais peticionados pelos réus.»


22. Foi interposto recurso da referida sentença, recurso esse julgado improcedente, mantendo-se, assim, a sentença recorrida.


23. O réu DD, a partir de data não concretamente apurada, ao longo do tempo, colocou obstáculos à entrada do caminho, enviou cartas aos autores, nomeadamente, com o teor dos documentos juntos sob o n.º 12 com a petição inicial.


24. Em 25-07-2019, a Câmara Municipal deliberou, por maioria, revogar a deliberação de 17-01-2007, nos termos que constam do parecer jurídico datado de 28-06-2019.


25. Do parecer de 28-06-2019 subscrito por PPP, consta o seguinte: «1- DD, veio juntar ao processo administrativo, certidão de sentença proferida no processo 940/14.0..., com indicação do respetivo trânsito em julgado, requereu ainda que a Câmara Municipal reveja a sua deliberação de 17/01/2007, no sentido de declarar que, o caminho que atravessa a sua propriedade melhor identificado no processo administrativo 84/2012, seja declarado privado e não público. // 2- A decisão atrás referida de 17/01/2007 que reconheceu como público o caminho que atravessa a propriedade do requerente, encontra-se suspensa por despacho do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Cidade 1 de 16/08/2008 despacho esse sustentado no parecer da técnica superior Dra. QQQ, na mesma data. // 3- Tal parecer propõe à Câmara Municipal de Cidade 1, que em virtude de existir um litígio judicial, tendo por objeto o caminho em causa, a classificação do mesmo, devia ser sustada até que fosse proferida sentença transitada em julgado no referido processo. // 4- O despacho atrás referido, foi comunicado ao Tribunal Administrativo de Beja por ofício de 20/03/2015 e destinado ao processo 387/08.7... BEJA, Unidade Orgânica de Execuções, no qual a Câmara Municipal de Cidade 1 é parte. // 5- Consultada a sentença atrás referida constata-se que a mesma não reconhece nem deixa de reconhecer o referido caminho como público, pois o Tribunal não se pronunciou sobre tal qualificação. // 6- Não podemos, todavia omitir a circunstância do Tribunal não ter declarado contrariamente ao que era pretendido pelos vizinhos do requerente, que o mencionado caminho não constituía uma servidão de passagem do prédio daqueles. // 7- A decisão do Tribunal, pela restrita amplitude no que concerne à definição e qualificação do caminho, pode colocar em causa os fundamentos que estiveram na origem da deliberação da Câmara Municipal de Cidade 1 de 17/01/2007 // 8- Motivo pelo qual, se propõe que a Câmara Municipal de Cidade 1. sustentando-se na referida sentença revogue para todos os efeitos legais a sua deliberação de 17/01/2007. // 9- Tal revogação deverá ser notificada a todas as partes interessadas na utilização e qualificação do caminho em causa».


26. Atualmente, o caminho não tem obstáculos, mas os proprietários dos imóveis não o utilizam devido à conduta ameaçadora do réu.


27. A caderneta predial rústica antiga do prédio inscrito na matriz com o n.º 159, secção K, emitida pelo serviço de Finanças de Cidade 1 em 17-08-1966, continha um esboço do prédio desenhado à escala 1/5000, junta com a petição inicial sob o documento n.º 15, cujo teor se dá por reproduzido.


28. Numa caderneta posterior do mesmo prédio rústico, de 04-05-2016, mantém-se a mesma área, mas não faz referência a confrontações.


29. Consta da referida caderneta predial urbana referente ao artigo matricial n.º 10400 que deste prédio fazem parte duas habitações (“andar ou divisão com utilização independente”).


30. Uma dessas casas (assinalada como habitação 3 no referido documento n.º 8 junto com a petição inicial, que tem entrada pela Rua 1), correspondente ao artigo matricial urbano n.º 5376, que confronta a Norte com a Rua 1, cuja caderneta predial emitida pelo Serviço de Finanças de Cidade 1 em 13-04-2011, menciona a confrontação a Nascente com “Rua de serventia”.


31. Em data posterior a 14-04-2016, foi emitida a nova caderneta predial do mesmo prédio, agora inscrito na matriz predial urbana com o artigo 10400, onde constam as duas habitações que antes integravam o artigo rústico, na qual surge a confrontação a Nascente com “Caminho particular e RRR”.


32. A título particular, a autora AA solicitou a um técnico de topografia um estudo sobre a delimitação do referido prédio rústico n.º 159.


33. No referido estudo, o topógrafo conclui que “este caminho não é parte integrante de nenhum dos prédios sendo por isso uma área social ou pública”.


34. A Autora solicitou, aos serviços da Direção Geral do Território, que emitisse um parecer sobre as confrontações do prédio correspondente à antiga matriz rústica nº 159, secção K, pertencente à herança, atual matriz urbana nº 10400.


35. Da certidão emitida pela DGT, datada de 13-05-2016, junta aos autos com a petição inicial sob documento n.º 18 consta o seguinte: «SSS, Subdiretora-Geral do Território, certifica, a requerimento de AA, que de acordo com os elementos constantes dos arquivos desta DGT, a unidade predial identificada como prédio n.º 159 da secção K da freguesia de Cidade 1, do concelho de Cidade 1: - Confronta: a norte com a área social da folha (estrada); a nascente com a área social da folha (parte de caminho pé posto ou vereda, como aliás está representado na cópia anexa extraída da matriz cadastral originária do levantamento topográfico aquando da execução cadastral, rubricada e autenticada com o selo branco em uso nesta Direção-Geral, e, parte área urbana); a sul com o prédio n.º 552 e a poente com a área social da folha (área urbana); - Tem a configuração geométrica assinalada a amarelo, conforme consta na cópia anexa extraída da referida secção cadastral, rubricada e autenticada com o selo branco em uso nesta Direção-Geral, a qual faz parte integrante desta certidão; - Não tem na sua representação geográfica qualquer representação de caminho para carros ou de pé posto ou vereda; (…)»


36. Em 01-04-2016, a requerente solicitou junto dos serviços competentes da Câmara uma planta de localização do prédio onde se encontra representada uma “Rua”, de acordo com a legenda, no local onde se situa o caminho de que tratam estes autos.


37. O caminho, pelo menos num troço de 52 metros, a partir da Rua 1, foi utilizado livremente pelo público e pelos proprietários das habitações ali existentes, desde tempos de que não há memória até datas não concretamente apuradas.


38. A partir de data não concretamente apurada, apenas as pessoas que se dirigissem às habitações pertencentes aos autores e respetivos familiares, circulavam nesse troço de caminho para aceder às referidas habitações.


39. Em 14-05-2019, o réu requereu a junção ao PA nº 84/12 junto da Câmara Municipal de Cidade 1 da certidão do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º 940/14.0...


40. Em 28-06-2019, foi emitido novo parecer, pelo gabinete de apoio jurídico da Câmara Municipal de Cidade 1, assinado por PPP, propondo que a Câmara Municipal de Cidade 1, sustentando-se na referida sentença revogue para todos os efeitos legais, a sua deliberação de 17-01-2007.


41. Em 25-07-2019, a Câmara Municipal de Cidade 1 deliberou, por maioria, com a abstenção da vereadora TTT, revogar para todos os efeitos legais a sua deliberação de 17-01-2007, declarando que o caminho que atravessa a propriedade de DD seja considerado privado e não publico.


42. Em data não concretamente apurada foi intentada pela autora AA junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja ação administrativa para impugnação de ato administrativo, juntamente com uma providência cautelar de suspensão de eficácia de ato administrativo, na qual se impugnava a deliberação da Câmara Municipal de Cidade 1 proferida em 25-07-2019.


43. Declarava tal deliberação que “… o caminho que atravessa a propriedade de DD, melhor identificado no processo administrativo 84/2012, seja considerado privado e não público.”


44. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja considerou que a competência para decidir sobre a natureza pública ou privada do caminho é atribuída aos tribunais comuns.


45. Em consequência, foi requerida a remessa do processo para o tribunal judicial competente, na expectativa de que tal questão controvertida fosse definitivamente decidida, permitindo por fim ao litígio entre as partes.


46. O processo veio a ser distribuído sob o n.º 27/20.6... ao Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo, J2, que indeferiu liminarmente em 15-07-2020.


47. O caminho que faz a ligação entre a Rua 2 e a Rua 1 não é atualmente utilizado pelo público em geral, pois encontra-se vedada a ligação para a Rua 2, apenas sendo possível fazer a parte do troço que existe até à “habitação 3” representada no documento n.º 8 junto com a PI.


48. O caminho que liga a Rua 2 à Rua 1 encontra-se servido por rede de eletricidade desde 1976.


49. A rede pública de abastecimento de água foi executada no referido caminho pelo Município de Cidade 1 em 1982, o mesmo acontecendo com a rede pública de esgotos.


50. O caminho sito entre a Rua 1 e a Rua 2 e que liga estas duas ruas, representado com o n.º 1 no referido documento n.º 8, junto com a petição inicial é o único acesso atualmente existente para a habitação representada como habitação n.º 3 no referido documento n.º 8 junto com a petição inicial.


51. Na sentença proferida no âmbito do processo n.º 940/14.0... foram dados como provados, entre outros os seguintes factos:


«d) Há mais de 57 anos que, os pais dos réus e depois, estes, passam numa faixa de terreno, com cerca de 1, 50 m, junto à estrema poente do prédio referido em a), quer com carros, quer com carroças puxadas por animais (resposta ao artigo 12º da base instrutória).


e) Sem interrupção (resposta ao artigo 13º da base instrutória).


f) À vista de toda a gente (resposta ao artigo 15º da base instrutória).»


52. A construção representada como “habitação n.º 3” no documento n.º 8 junto com a petição inicial esteve habitada até cerca de 2016.


53. Até datas não concretamente apuradas, tanto o caminho que liga a Rua 2 à Rua 1, como a Rua 1 eram de terra batida, sendo esta última atualmente pavimentada.


54. O caminho referido, que faz a ligação entre a Rua 2 e a Rua 1 era utilizado pela generalidade da população em Cidade 1, para aceder a escolas, peixaria e lavandaria, habitações ou outros locais.”


2. E julgou não provados os seguintes factos:


“A. Recentemente, no início do mês de maio de 2020, para evitar que alguém da família se dirija ao local, a autora contratou um trabalhador para limpar as ervas que circundam as habitações.


B. Mantendo a mesma conduta que deu origem a este litígio, o réu DD impediu a entrada do trabalhador, proferiu ameaças e furou os pneus do automóvel em que este se deslocava.


C. A caderneta predial urbana do prédio inscrito na matriz sob o artigo 10400 foi obtida no âmbito de um projeto de legalização e destaque de uma parcela de terreno a efetuar no referido prédio, de modo a permitir a sua partilha pelos herdeiros.


D. O réu DD continua a enviar aos autores cartas.


E. Na entrada do caminho pela Rua 1 existiam marcos delimitadores que foram retirados do terreno pelo requerido, em data não concretamente apurada.


F. A ação intentada pela ré III deu entrada em 2002 como ação declarativa de condenação, sob a forma ordinária, a que foi atribuído o nº ..., do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Montemor-o-Novo, tendo vindo a ser alvo de renumeração para o n.º 940/14.0..., da secção de Competência Genérica da instancia local de Montemor-o-Novo, J2.


G. Foi o pai da ré que construiu o caminho em discussão nos autos.


H. O caminho em discussão encontra-se no terreno dos Réus, dentro dos marcos que lá existiam e que foram arrancados por terceiros.”


3. No n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, norma atinente à “modificabilidade da decisão de facto”, prescreve-se que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”


E no artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, estabelece-se que:


“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:


a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;


b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;


c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:


a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;


b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”


A ideia fundamental que se extrai da norma transcrita é a de que deve o recorrente delimitar de forma clara o objeto do recurso, identificando os segmentos da decisão de facto que pretende impugnar e os meios de prova que impõem decisão diversa.


A razão desta exigência encontra-se na circunstância dos recursos se destinarem à reapreciação das decisões proferidas em 1ª instância e não à prolação de uma decisão inteiramente nova (entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.06.2018 (Jorge Teixeira), Processo n.º 123/11.0TBCBT.G1, e do Tribunal da Relação do Porto de 08.03.2021 (Fátima Andrade), Processo n.º 16/19.3T8PRD.P1, ambos in http://www.dgsi.pt/).


Constata-se que o Recorrente indicou os pontos de facto de cuja decisão discorda, bem como os meios de prova que, no seu entendimento, impõem decisão diversa, apontando ainda a decisão que se lhe afigura que seria a mais correta em face desses meios de prova.


Importa ainda assinalar que, por força do atual regime de recursos compete ao Tribunal da Relação apreciar a prova sindicada pelo recorrente, de acordo com as regras legais pertinentes, em ordem a formar a sua própria convicção, “por isso, a Relação poderá e deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado.” (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., Coimbra, 2022, p. 348).


Não se trata, no entanto, de um poder de modificação irrestrito, precisamente porque não se visa proferir uma decisão inteiramente nova, mas apenas de reapreciar a decisão proferida pela 1ª Instância, assim, “se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do Tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à correspondente modificação da decisão.” (Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 350).


No mesmo sentido se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017 (Maria João Matos) (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, in http://www.dgsi.pt/) que:


“I. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).”


4. Passamos à impugnação da decisão de facto.


4.1. O Tribunal a quo fez a apreciação detalhada dos factos provados e não provados, a que acrescentou uma introdução onde analisou globalmente os meios de prova produzidos, com o seguinte teor:


“Em primeiro lugar, o Tribunal efetuou a inspeção judicial ao local, onde percecionou a configuração atual dos espaços a que o processo se reporta, designadamente, a entrada para os prédios das partes a partir da Rua 1, onde se encontra um troço com cerca de 50 metros até um poço, estando do lado esquerdo, a sul de um outro prédio que não está em discussão nos autos, o prédio dos réus e do lado direito, o prédio dos autores. Nesse local foi possível visualizar alguma vegetação existente nesse troço evidenciando falta de utilização recente, o que é corroborado pelos articulados, desde logo pelos autores, bem como pelas fotografias captadas aquando da inspeção judicial e juntas aos autos sob a ref. 33560255. (…)


Foram ouvidos em declarações de partes, do lado dos autores, II, EE, HH, MM, NN, e do lado dos réus, DD, VV e WW.


Foram ouvidos e valorados os respetivos depoimentos das testemunhas dos autores, AAA, SS, XX, UUU, VVV, WWW, bem como das testemunhas dos réus, XXX e YYY.


Em síntese, importa referir que os autores II, EE, MM e NN (todos nascidos entre 1938 e 1949) descreveram que as pessoas passavam pelo caminho que faz a ligação entre a Rua 1 e a Rua 2. Referiram que passavam pessoas (incluindo alguns dos autores) para levar crianças à escola, para ir à peixaria, que passavam pessoas da “tropa” para levar roupa à lavandaria, entre outras situações. Também referiram todos que desde que têm memória, sempre aquele caminho foi usado por quem queria usar o caminho e que o troço que permite chegar perto da habitação representada como n.º 3 no documento n.º 8 junto com a petição inicial, ou seja, a construção que se encontra mais a sul, no prédio dos autores, foi sempre usado pelos autores e pelos seus familiares e antepassados para aceder à referida habitação.


Também as testemunhas AAA, SS, XX, UUU, VVV, WWW vieram corroborar esta factualidade de que a população em geral utilizava o caminho em causa, antes de serem construídas outras ligações alternativas.


Algumas das testemunhas referiram que esse caminho tinha um nome, Rua 5, e que o carteiro ia lá entregar a correspondência, passando nesse caminho (nomeadamente, depoimentos das testemunhas AAA, SS e XX).


Se é certo que algumas das testemunhas têm ligações familiares aos autores (AAA, SS, VVV e UUU), outras testemunhas não têm tais ligações familiares, não se vislumbrando qualquer motivo para não prestar depoimento com verdade, designadamente, as testemunhas WWW e XX. Esta última testemunha explicou que conhece o local em questão, desde 1954, porque os sogros eram os ZZZ (família referida por diversos autores e testemunhas que residia também noutro prédio contíguo e para o qual se acedia pelo mesmo caminho em causa) e que começou a frequentar o local quando começou a namorar, vindo depois a casar, sendo que depois disso, continuou a frequentar a casa dos sogros. Referiu que o caminho em causa era utilizado por quem precisasse de passar e que passava lá toda a gente, “os miúdos para a escola e a família CCC”. Referiu também que a dada altura, o réu começou a impedir a passagem e depois o depoente acabou por lhe vender a propriedade.


Ora, o conjunto das declarações de partes, com os depoimentos das testemunhas, incluindo testemunhas não relacionadas com a família dos autores, todos coincidentes, permitem ao Tribunal alcançar a convicção de que efetivamente o caminho que existia entre as ruas Rua 2 e Rua 1 era utilizado por todos quantos queriam, desde tempos de que não há memória, sendo que esse caminho deixou de ser utilizado após obstáculos colocados pelo réu, mantendo-se apenas em utilização a parte do troço que permite aceder à habitação dos autores (representada como habitação n.º 3 no documento n.º 8 junto com a petição inicial, ou seja, a construção existente a sul da construção que se encontra junto à Rua 1). É evidente que se o acesso à Rua 2, entretanto foi vedado, esse troço deixou de ser usado pela população em geral (porventura também porque foram sendo construídas vias alternativas em redor das propriedades) e que o troço de acesso à habitação dos autores apenas passou a ser utilizado, não pela população em geral, mas pelos autores e pessoas que quisessem aceder à habitação dos autores, fossem conhecidos, familiares, carteiro, etc.


Também importa referir que apesar de as declarações de parte dos réus DD e VV contrariam aquelas declarações e depoimentos, o mesmo não se pode dizer das declarações de parte do réu WW, que referiu, entre o mais, que sempre foram passando algumas pessoas no referido caminho, duas ou três pessoas por dia. Que esse era o sítio onde brincava quando era criança e pensa que as pessoas utilizavam esse caminho como atalho. Que os caminhos foram sendo fechados gradualmente e o seu avô também fechou. Também referiu que isto acontecia, aparentemente, contra a vontade dos avós, apesar de se depreender também das suas declarações que durante a maior parte do período em que esse caminho foi utilizado por outras pessoas, os avós não obstaram a tal utilização. Referiu ainda que a sua família (pais e irmã), ou seja, os réus DD e VV e a sua mãe viveram na Guiné entre 1968 e 1974, pelo que pelo menos durante esse período, o Tribunal fica com dúvidas sobre o que possam ter presenciado no local em questão.


Volvendo ainda à prova documental, não deixa de ser relevante a informação cadastral mais antiga junta aos autos, designadamente, a certidão da Direção Geral do Território junta aos autos com a petição inicia, de onde resulta que o prédio inscrito na matriz com o artigo 159 da secção K da freguesia de Cidade 1 confronta a nascente com «área social da folha (parte caminho de pé posto ou vereda, como aliás está representado na cópia anexa extraída da matriz cadastral originária do levantamento topográfico aquando da execução cadastral (…).»


Ora, ponderando todos os elementos de prova, designadamente, a prova documental, onde se inclui não apenas a certidão da direção geral do território, mas também a caderneta predial antiga e os depoimentos das testemunhas, conjugados com as declarações de parte dos autores e do réu WW, apenas se pode concluir que efetivamente o caminho que liga a Rua 2 e a Rua 1 era utilizado pelo público em geral.”


4.2. Ponto 11. da matéria de facto provada


Consta do ponto 11. que “O caminho sito entre a Rua 1 e a Rua 2 e que liga estas duas ruas, representado com o n.º 1 no referido documento n.º 8, junto com a petição inicial foi sempre o único acesso utilizado para duas habitações do prédio dos autores, mais concretamente, as existentes na construção representada como habitação n.º 3 no referido documento n.º 8 junto com a petição inicial.”


A este propósito escreveu especificamente o Tribunal a quo que “O facto 11, além de ter resultado da extensa prova por declarações de parte e testemunhal dos autores, em bom rigor também não foi contrariada pela prova produzida pelos réus, sendo que é essa a causa dos conflitos entre as partes, a circunstância de os autores terem sempre utilizado aquele troço para acederem às habitações existentes.”


Os RR. pretendem que este facto seja alterado, passando a consignar-se no mesmo que “o caminho em causa, não só não tinha saída, terminando numa vereda, não ligando por isso a Rua 1 e a Rua 2, nem esse foi, nem é, o único acesso para duas habitações do prédio dos autores, mais concretamente, as existentes na construção representada como habitação n.º 3 no referido documento n.º 8 junto com a petição inicial.”


Apontam, para tanto, os depoimentos dos RR. DD, VV e AAAA, bem como da A. II e da testemunha XX.


Ora, quanto à primeira parte da impugnação do ponto em apreço, será detalhadamente apreciada a propósito do ponto 54., onde se conclui pela sua improcedência, pelo que se remete para aí.


Quanto à segunda parte da impugnação, afigura-se que existe uma diferença de relevo entre o facto enunciado pelo Tribunal a quo e o facto proposto pelos RR., a saber, o Tribunal afirma que o caminho era o “utilizado” para aceder às duas habitações em causa, enquanto os RR. afirmam que esse caminho não era o único “acesso” às habitações.


Neste ponto 11. não está em causa saber se existia um único ou mais caminhos para aceder às duas habitações, mas antes e diversamente qual o caminho utilizado para esse efeito.


Assim, a prova indicada pelos RR. não contraria o facto em apreço, sublinhando-se que a testemunha XX referiu existirem dois acessos para as habitações dos AA., porém, declarou também que apenas relativamente ao caminho em discussão nos autos podia afirmar sem dúvidas que era usado pelos AA., como se constatou na audição integral do seu depoimento, a que se procedeu.


Deve, consequentemente, manter-se integralmente este facto provado.


4.3. Ponto 14. da matéria de facto provada


Neste ponto da matéria de facto foi consignado que “Até data não concretamente apurada, os proprietários e/ou residentes dos referidos imóveis inscritos na matriz predial urbana sob o artigo 10400 sempre passaram por aquele caminho, a partir da Rua 1, para a eles acederem, nele circulando livremente, bem como os seus antepassados, não existindo memória, até então, de que o caminho tenha tido uma utilização privada.”


A este propósito escreveu especificamente o Tribunal a quo que “O facto 14 foi dado como provado em consequência da valoração que o Tribunal fez da prova por declarações de parte, bem como da prova testemunhal dos autores, mais concretamente II, EE, MM e NN.”


Os RR. pretendem que este facto seja julgado não provado, suportando a sua discordância no facto do prédio dos AA. ter resultado de uma desanexação, não existindo antes desse facto, bem como na circunstância de estar provada a oposição do R. DD e dos seus antecessores à passagem no caminho.


Ora, o prédio a que corresponde o artigo matricial 10400 integra duas habitações, sendo uma a casa que está junta à Rua 1 (casa n.º 2) e a outra a casa que está a sul da primeira (casa n.º 3).


Assim, o ponto da matéria de facto em apreço reporta-se ao artigo matricial onde constam ambas as casas.


Por outro lado, ficou vertido no ponto 23. da matéria de facto que o R. colocou obstáculos à entrada do caminho e enviou cartas aos AA., juntas aos autos com a p.i. como doc. 12, extraindo-se de tais cartas que nas mesmas o R. se opõe ao uso do caminho pelos AA..


Foi referido nesse ponto 23. que a oposição do R. se manifestou a partir de data não concretamente apurada, todavia, no ponto 16. foi vertido o teor de um parecer camarário emitido por causa de participações efetuadas por cidadãos, relativas ao facto do R. ter vedado o acesso ao caminho, participações estas que datam do ano de 2006, tendo, nesta sequência, o R. sido intimado a cessar essa atuação.


Aliás, o Tribunal a quo mencionou isso mesmo na sua motivação do ponto 23.: “O facto 23 foi extraído das cartas juntas pelos autores com a petição inicial da autoria do réu, dirigidas aos autores, bem como dos ofícios que constam do processo administrativo, nomeadamente, dirigidos ao réu, da autoria da Câmara Municipal no sentido de intimar o réu a desimpedir o caminho. Apesar de se tratar de prova indireta, estes elementos são suficientemente convincentes para gerar a convicção no Tribunal de que tais factos ocorreram.”


Trata-se, além disso, de factos referidos em audiência por EE e pelas testemunhas AAA, SS e XX, os quais, de uma forma geral, não lograram situar estes acontecimentos no tempo, com exceção da testemunha SS, que referiu que o R. iniciou esta atuação depois de 1993, o que é coerente com a baliza temporal que resulta do aludido ponto 16..


Deve, consequentemente, alterar-se o facto provado 14., passando a ter a seguinte redação:


“Até data não concretamente apurada, os proprietários e/ou residentes dos referidos imóveis inscritos na matriz predial urbana sob o artigo 10400 sempre passaram por aquele caminho, a partir da Rua 1, para a eles acederem, nele circulando livremente, bem como os seus antepassados, não existindo memória, até então, de que o caminho tenha tido uma utilização privada, sem prejuízo do que se mostra provado sob 23.”


Esta alteração deve repercutir-se no acima citado ponto 23. da matéria de facto, o qual deverá, consequentemente, passar a ter a seguinte redação:


“23. O réu DD, pelo menos, a partir do ano de 2006, ao longo do tempo, colocou obstáculos à entrada do caminho, enviou cartas aos autores, nomeadamente, com o teor dos documentos juntos sob o n.º 12 com a petição inicial.”


4.4. Pontos 15. e 16. da matéria de facto provada


Nos referidos factos consta a transcrição de um parecer emitido por um jurista da Câmara Municipal de Cidade 1 e a menção da aprovação desse parecer pela Câmara Municipal.


A este propósito escreveu especificamente o Tribunal a quo que “Os factos 15 e 16 foram extraídos da certidão da deliberação da Câmara Municipal de Cidade 1 e parecer jurídico, juntos com a petição inicial, bem como no âmbito do processo administrativo junto pelos réus.”


Nas alegações dissentem os RR. destes factos com dois fundamentos: um parecer jurídico não é um facto; o parecer jurídico em causa enferma de erros.


Quanto ao primeiro argumento, assiste razão aos RR., embora deva salientar-se que a emissão do parecer é, no caso concreto, uma vicissitude do conflito relacionado com este caminho, que assume relevância factual sob a perspetiva do encadeamento dos acontecimentos que integram esse conflito, conjuntamente com as ações judiciais que correram termos entre as partes com o mesmo objeto.


No mais, há que distinguir o conteúdo do parecer, que é incontestavelmente aquele que consta da matéria de facto, aliás, entre aspas e em itálico, assinalando precisamente que se trata da transcrição de um documento; e a força probatória do parecer, o qual, efetivamente, não constitui uma perícia, mas apenas um documento.


A circunstância do teor do parecer estar transcrito na matéria de facto provada não determina, assim, que se julguem provados os factos que daí constam, nem faria sentido que tal sucedesse, porquanto o parecer aborda precisamente o objeto do litígio desta ação.


Assinale-se ainda que o Tribunal a quo ponderou tal parecer precisamente enquanto documento, como resulta com toda a clareza da motivação da decisão de facto, onde se escreveu que “Foram valorados os documentos emitidos pela Câmara Municipal, seja o processo administrativo junto pelos réus, bem como as certidões dos pareceres e deliberações camarárias juntas pela autora.”


Devem, assim, manter-se os factos provados sob 15. e 16..


4.5. Pontos 30. a 33. da matéria de facto provada


Consta dos pontos 30. e 31. a descrição do teor das cadernetas prediais relativamente à descrição do prédio dos AA., e do ponto 33. o teor de um estudo encomendado pela A. AA a um topógrafo, constando este último do ponto 32..


As razões da discordância dos RR. relativamente aos pontos 30. a 31. e 33. são idênticas àquelas que foram indicadas com respeito aos pontos 15. e 16..


Assim, reiteramos o que acima dissemos sobre a distinção entre factos e documentos, sublinhando que as cadernetas prediais são documentos autênticos no que respeita à existência de uma inscrição com aquele conteúdo, mas não fazem prova de que o prédio descrito pertença a quem lá se indica como sendo o titular do direito, nem fazem prova de que a composição do prédio corresponda a essa descrição.


Já no que concerne ao facto 33., bem como ao precedente facto 32., que está diretamente ligado a este, consubstanciam a pura descrição de um meio de prova, sujeito à livre apreciação do julgador, sem qualquer outra relevância, isto é, não podem ser considerados factos.


Deste modo, devem manter-se os pontos 30. e 31., mas devem ser eliminados os pontos 32. e 33..


Sem prejuízo, há um evidente lapso de escrita no ponto 30., onde se refere que a habitação 3 tem entrada pela Rua 1, pois resulta dos pontos 3. e 12. que a habitação que tem entrada direta pela Rua 1 é a 2, pelo que se determina a correção desse lapso de escrita, de modo que no ponto 30., onde se lê “habitação 3”, se leia “habitação 2”.


4.6. Pontos 34. a 35. da matéria de facto provada


Nos pontos indicados consignou-se que a A. requereu à Direção-Geral do Território a emissão de um parecer sobre as confrontações do prédio inscrito em seu nome na matriz e transcreveu-se, de seguida, o teor desse parecer.


No recurso, os RR. tecem considerações quanto à força probatória do parecer, mas nada requerem a este propósito.


Importa, não obstante, dizer que, ao contrário do que mostra alegado na petição inicial (artigo 60.), a certidão emitida pela Direção-Geral do Território não constitui prova plena da natureza pública do caminho.


Pese embora se trate de um documento autêntico, em virtude de ser emitido por uma entidade dotada de poderes públicos e na esfera das suas atribuições, essa força probatória está reservada para os factos que são objeto da perceção direta da entidade (artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil), o que não sucede com os factos em apreço, cuja correspondência com a realidade não está garantida.


Veja-se, com efeito, que estamos em presença de uma informação assente no cadastro geométrico da propriedade rústica, efetuado em 1951/1952, conforme resulta da referida certidão.


Neste sentido pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.09.2010 (Lopes do Rego) (Processo n.º 398/04.1TBPNI.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/):


“1. Face ao quadro normativo aplicável à organização do cadastro geométrico em determinado concelho, executado em 1976, com base na disciplina constante do DL 12451 , a que sucedeu o DL 143/82, não pode afirmar-se, - perante as regras técnicas e procedimentais aplicadas à execução do referido cadastro, - que os elementos por ele documentados quanto à exacta delimitação dos prédios devam dispor de força probatória plena, que iniba às partes em litígio a demonstração dos seus direitos por via judicial através da produção de outros meios de prova – cabendo ao juiz valorar livremente todos esses elementos e formar a sua livre convicção sobre a matéria litigiosa.


2. Não é possível inferir de uma norma constitucional com a latitude e natureza do art 9º da CRP resposta cabal quanto à questão do referido valor probatório dos elementos do cadastro predial: não estando obviamente em causa que constitui tarefa relevante do Estado garantir o ordenamento do território e que um cadastro adequado e fiável constitui instrumento importante para a plena realização de tal tarefa pública, - ao permitir conhecer com segurança a estrutura fundiária e a propriedade do solo, - não pode evidentemente inferir-se de tal incumbência constitucional do Estado qual o concreto valor probatório que deve ser atribuído aos elementos que constem do cadastro elaborado – o qual está necessariamente conexionado com a fiabilidade técnica, as regras procedimentais e as garantias a que o procedimento que conduziu à concreta delimitação cadastral dos prédios terá obedecido, nos termos das disposições legais e regulamentares aplicáveis.”


Assim, por razões de coerência interna da decisão de facto, devem ser eliminados estes dois pontos, que não contêm factos, antes descrevem simplesmente um meio de prova, sujeito à livre apreciação do julgador.


4.7. Ponto 36. da matéria de facto provada


Neste ponto da matéria de facto consignou-se que a Requerente solicitou aos serviços camarários uma planta de localização do prédio.


Os RR. tecem considerações quanto à força probatória da planta, mas nada requerem a este propósito.


No entanto, de novo por razões de coerência interna da decisão de facto, deve ser eliminado este ponto, que não contém um facto, antes descreve simplesmente um meio de prova, sujeito à livre apreciação do julgador.


4.8. Ponto 37. da matéria de facto provada


Consta deste ponto que “O caminho, pelo menos num troço de 52 metros, a partir da Rua 1, foi utilizado livremente pelo público e pelos proprietários das habitações ali existentes, desde tempos de que não há memória até datas não concretamente apuradas.”


O Tribunal a quo escreveu, a este propósito, que “Os factos 37 e 38 foram extraídos da valoração da prova por declarações de parte, bem como da prova testemunhal, nos termos já supra explicitados.”


Dissentem os RR. deste ponto, alegando que a imemoriabilidade do uso que constitui um dos requisitos da caracterização do caminho como público não é um facto, mas um conceito de direito; que na sentença proferida no Processo n.º 940/14.8... se julgou provada uma utilização que remonta a 57 anos; que na sentença proferida nestes autos fala-se em “cerca de 60 anos” e que a prova produzida nos autos não permite ir além dos 60 anos aludidos na sentença; e que não são 50, 60, ou mesmo 100 anos, que cumprem o requisito de imemoriabilidade; a realidade jurídica atual dos prédios é distinta daquela que existia no passado, na medida em que o prédio dos AA. e o prédio dos RR. são agora urbanos e não rústicos, e estão integrados no limite urbano da cidade de Cidade 1.


Ora, afigura-se que o facto em discussão respeita a saber há quanto tempo este caminho era utilizado, isto é, trata-se de saber se não é possível afirmar a duração desse uso, de tal modo o mesmo é recuado no tempo, ou se, pelo contrário, é possível situar o início dessa utilização numa data exata ou aproximada.


Sob esta perspetiva, o início da utilização desde tempo de que não há memória é um facto.


Compulsada a sentença, verifica-se, porém, como apontam os RR., que o Tribunal a quo aludiu, em sede de fundamentação de direito, a um período temporal específico de utilização do caminho, que situa “há mais de 60 anos.”


No entanto, há uma diferença entre “cerca de 60 anos” e “mais de 60 anos”, porquanto ali encontra-se um início fixo há 60 anos, enquanto aqui se admite o recuo do início da utilização para data indeterminada que excede os 60 anos.


Advogam, então, os RR. que da prova por declarações e da prova testemunhal se alcançam os aludidos 60 anos, atendendo a que as pessoas ouvidas se reportam, o mais tardar, à década de 50 do século XX.


Auditada a prova, constata-se que as seguintes partes e testemunhas confirmaram a existência do caminho desde que têm memória e a sua utilização por quem morava nas habitações que o ladeiam, bem como por outras pessoas que aí passavam:


- a A. II, filha de DDD, nascida em 1938, morou no prédio em causa até aos seus 21 anos de idade (1959), quando casou com a testemunha UUU;


- a A. EE, neta de DDD, nascida em 1949, viveu ali até ao seu casamento, há 50 anos (1973), mas continuou a frequentar o caminho, para levar os seus filhos à escola;


- a A. MM, filha de DDD, nascida em 1946, viveu ali até aos seus 25, 26 ou 27 anos de idade (1971, 1972 ou 1973);


- o A. NN, filho de DDD, nascido em 1949, viveu ali até casar, o que sucedeu quando tinha 21 ou 22 anos de idade (1970 ou 1971);


- a testemunha AAA, mulher do A. NN, nascida em 1952, morava na vizinhança, declarou conhecer aquele caminho desde os seus 4 anos de idade, foi viver para casa dos sogros quando casou, foi depois para o Luxemburgo, com 26 anos de idade (1978) e lá permaneceu 23 anos, regressando, então, à localidade (2001);


- a testemunha SS, neta de DDD, nascida em 1969, viveu ali até aos seus 13/14 anos de idade (1982 ou 1983), mas voltou após a morte da sua avó, em 1993, tendo nessa ocasião passado a frequentar diariamente a casa onde, à data, morava a sua tia KKK, que tomava conta do filho bebé da testemunha, enquanto esta ia trabalhar;


- a testemunha XX, conhece o local desde 1954, quando começou a namorar a sua mulher, tendo continuado a frequentar o local após o casamento, ocorrido em 1960, ainda que apenas aos fins-de-semana e nas férias;


- a testemunha UUU, casado com a A. II, nascido em 1936, morou na vizinhança desde os seus 6 anos de idade (1942), começou a frequentar a casa da sua futura mulher quando tinha 16 anos de idade (1952), tendo continuado a frequentar a casa dos sogros após o casamento, pois estes tomavam conta dos seus filhos, enquanto a testemunha e a mulher iam trabalhar;


- a testemunha VVV, prima dos AA., nascida em 1948, morou na vizinhança, lembra-se de ir brincar com as suas primas ao prédio em discussão nos autos com 5 ou 6 anos de idade (1953 ou 1954);


- a testemunha BBBB, nascida em 1956, mora na vizinhança.


Todas as pessoas ouvidas descreveram unanimemente este caminho como sendo de terra batida, estado em que, aliás, ainda se encontra, como se observa, designadamente, nas fotos da inspeção ao local juntas aos autos.


Por outro lado, na certidão emitida pela Direção-Geral do Território, onde se faz a descrição de um caminho “de pé posto ou vereda”, reporta-se tal referência à “Campanha de 1951/2” (doc. 18 junto com a p.i.).


Com respeito à origem do caminho, efetivamente, a A. II aludiu a que “a estrada deixou o senhor para as pessoas passarem lá”, mas disse também “quem vendeu o terreno, não sei quem foi”, e acrescentou “o que eu sei dizer é que morei lá uma data de anos e os meus avós iam lá e nasci lá e criei lá e aquela estrada foi sempre, sempre ali”.


Aliás, a mesma afirmação foi repetida pela A. EE, que disse que “foi o senhor que vendeu os terrenos que deixou aquela rua para toda a gente passar”, senhor que a A., de igual modo, não identificou, tendo explicado que ouvia os seus pais falarem neste assunto. Referiu ainda que o seu pai nasceu e viveu ali, tendo falecido aos 82 anos de idade, há 17 anos, e afirmou que o caminho tem mais de 100 anos de uso, confirmando não ter memória da data em que o caminho começou a ser usado.


Esta A. mencionou o facto deste alegado senhor ter vendido o terreno aos lotes, o que converge com o depoimento do R. DD.


Tudo visto, o conhecimento direto das pessoas ouvidas em audiência e o conhecimento obtido por via dos antepassados recua ao tempo dos pais dos AA. mais velhos/avós dos AA. mais novos, apontando para duas gerações de utilização do caminho, pelo que a utilização em causa se prolongou por mais de 60 anos, como se afirmou na sentença.


Afigura-se, deste modo, que o ponto 37. deve ser alterado, de modo a corresponder à prova produzida nos autos, aí devendo ser consignado que o caminho é utilizado há mais de 60 anos:


O caminho, pelo menos num troço de 52 metros, a partir da Rua 1, foi utilizado livremente pelo público e pelos proprietários das habitações ali existentes, desde há mais de 60 anos até datas não concretamente apuradas.”


Quanto à questão de saber se este período temporal de utilização preenche os requisitos necessários para se poder qualificar o caminho como público, trata-se de matéria a abordar na fundamentação de direito.


4.9. Pontos 48. e 49. da matéria de facto provada


Nos pontos referidos consignou-se que o caminho é servido por rede pública de eletricidade, e que em tal caminho foi executada rede de abastecimento de água e rede de esgotos.


O Tribunal a quo escreveu, a este propósito, que “Os factos 48 e 49 foram extraídos da informação transmitida pela Câmara Municipal no seu ofício remetido aos autos em 22-09-2022 (ref. 3378054), conjugado ainda com a inspeção judicial ao local onde foi possível visualizar instalação de cabos elétricos de fornecimento de eletricidade às habitações dos autores que se encontram mais afastadas da Rua 1. Também as testemunhas SS, AAA, UUU corroboraram esta informação no sentido de que as habitações em casa tinham eletricidade, respetivo contador, ligação ao esgoto e fornecimento de água.”


Os RR. dissentem deste entendimento, alegando que o caminho não possui iluminação pública e que existem apenas alguns postes de eletricidade, os quais nem sequer seguem integralmente o traçado do caminho; que não existe rede de esgotos, apenas um ramal de drenagem de águas pluviais, e este não coincide com o traçado do caminho; que o caminho não é atravessado por rede de abastecimento de água.


Apontam, em suporte da sua impugnação, as fotos da inspeção ao local, a declaração e mapa fornecidos pela E-Redes, a informação da Câmara Municipal de Cidade 1, bem como os depoimentos das testemunhas AAA e SS.


No ofício enviado pela Câmara Municipal de Cidade 1, a 21.09.2022, afirma-se a existência de ramal de eletricidade, água e esgotos no caminho, remetendo-se para as informações anexas.


No respetivo anexo I, uma comunicação da E-Redes, onde se contém um mapa, retira-se que o ramal de eletricidade acompanha o caminho, pois a legenda indica que o traço vermelho representa a rede aérea e os círculos negros e brancos representam as estruturas de apoio, o que se mostra conforme com o que se visualizou na inspeção ao local, atentas as respetivas fotos juntas aos autos.


Sublinhe-se que estar o caminho servido de rede de eletricidade não implica que aí exista iluminação pública, significa apenas que o caminho é dotado dessas infraestruturas, o que se verifica que sucede.


Relativamente aos ramais de água e esgotos, o anexo II àquele ofício consubstancia uma informação dos serviços camarários onde se contêm duas imagens, uma relativa à infraestrutura de rede de águas e outra à infraestrutura da rede de esgotos (“águas residuais”), a partir das quais se pode extrair a conclusão de que na Rua 1 existem essas redes, conforme consta da informação, que respeita precisamente às “Infraestruturas públicas Rua 1”.


Por outro lado, auditada a prova, as testemunhas acima indicadas, bem como a testemunha CCCC, referida pelo Tribunal a quo, afirmam existir água canalizada, eletricidade e esgotos nas habitações dos AA..


Ora, no ponto 49. afirma-se que a rede de abastecimento de água foi “executada” no caminho e que o mesmo aconteceu com a rede de esgotos, o que, como decorre do ora exposto, não está demonstrado que suceda, atento o teor da informação dos serviços camarários, a que acresce a circunstância das habitações dos AA. possuírem água canalizada e saneamento não implicar necessariamente que essas infraestruturas tenham sido “executadas” no caminho.


Aliás, nas fotos atinentes à inspeção ao local não se vislumbra qualquer equipamento que revele a presença, no caminho, dessas infraestruturas, nomeadamente, tampas de saneamento.


Consequentemente, o ponto 49. deve passar para o elenco dos factos não provados, passando a constituir o ponto I..


4.10. Ponto 50. da matéria de facto provada


Afirma-se, neste ponto, que o caminho é o único acesso à habitação n.º 3 descrita na planta junta como doc. 8 com a p.i..


O Tribunal a quo motivou assim este facto: “O facto 50 foi dado como provado considerando a prova por inspeção judicial conjugada com a prova por declarações de parte e testemunhal produzida. Concretizando, o que se verifica é que neste momento não está “construído” qualquer outro caminho/acesso para a referida habitação, o que não significa que não possa vir a ser feito um outro acesso. Ou seja, da perceção do Tribunal ao visualizar o prédio dos autores, parece que tal hipótese não é impossível, fazendo uma obra e obtendo as competentes licenças junto da Câmara Municipal. Contudo, não foi produzida qualquer prova sobre a viabilidade (jurídica e material) de abrir novos caminhos dentro da propriedade dos autores, pelo que o Tribunal não pode alcançar qualquer convicção quanto a essa viabilidade, na falta de outros elementos de prova que competia aos réus produzir em face ao alegado por si.”


A discordância dos RR. assenta na circunstância de entenderem estar demonstrado que a habitação indicada está dentro de um prédio onde existe outro edifício, sendo que o prédio confronta diretamente com a Rua 1; a razão alegada pelos AA. que prestaram declarações para não usarem este acesso da Rua 1 reside no facto de se encontrar ocupado com horta e oliveiras, para além de que a primeira casa em face da entrada pertence ao primo HH, que pode não permitir a passagem, contudo, este prédio está adquirido em comunhão, com fundamento em sucessão hereditária.


Ora, neste ponto 50. o que está em discussão é unicamente saber se existe ou não outro acesso à habitação representada graficamente com o n.º 3.


Assim, a resposta é positiva, pois, efetivamente, o prédio em causa, que confronta diretamente com a Rua 1, tem uma única descrição predial, apesar de nele se encontrarem implantadas duas habitações, uma das quais é aquela a que corresponde o n.º 3 na referida planta, e pertence em comum às heranças indivisas de DDD e EEE (factos provados 1., 2. e 30.).


Não releva, pois, para este efeito, a concreta utilização que os herdeiros das heranças indivisas dão ao património que se encontra em comunhão, nem, de todo o modo, os AA. alegaram qualquer facto a esse respeito nos autos.


Em consequência, deve ser eliminado o facto provado sob 50..


4.11. Ponto 54. da matéria de facto provada


No ponto 54. consignou-se que “O caminho referido, que faz a ligação entre a Rua 2 e a Rua 1 era utilizado pela generalidade da população em Cidade 1, para aceder a escolas, peixaria e lavandaria, habitações ou outros locais.”


O Tribunal a quo motivou assim a sua resposta: “O facto 54 foi extraído dos depoimentos das testemunhas AAA, SS, XX, UUU, VVV, WWW, em consonância com as declarações de partes dos autores.”


Os RR. requerem que se altere o facto em apreço nos mesmos exatos termos propostos para o ponto 11..


Alegam, para tanto, que o caminho aludido não tinha saída; de todo o modo, apenas se chegava a algum lugar a pé, pelo que se tratava antes de um atalho; as pessoas ouvidas em audiência que falaram em deslocar-se ali para comprar leite ou laranjas iam ter com os sogros do R., que vendiam estes produtos da sua atividade agrícola e pecuária.


Sustentam estas afirmações nas declarações dos RR., bem como nas declarações dos AA. II e NN, e no depoimento da testemunha XX.


Ora, no que respeita ao acesso à casa dos AA., trata-se de matéria já abordada no ponto 50., pelo que se remete para aí.


No mais, auditada a prova, constata-se que a A. II referiu expressamente que o caminho terminava na casa da D. Quitéria, que não tinha seguimento para a frente, que não servia para atravessar de uma rua para a outra e que aquilo era para quem morava lá.


A testemunha XX mencionou também que o caminho terminava na última casa, a casa da família CCC, contudo, perguntado diretamente pela Senhora Juíza se “era um caminho sem saída?”, respondeu “não digo que seja sem saída, porque as pessoas passavam, portanto, iam para qualquer lado”, e de seguida, à pergunta “mas o senhor não conhece, é isso?”, respondeu “não conheço, e não havia nada construído aí”.


A mesma testemunha aludiu ainda à camioneta que levava a lenha, a qual, quando se retirava do local, voltava para trás.


O A. NN e a testemunha AAA, marido e mulher, explicaram que a seguir ao caminho havia uma vereda, por onde se passava para a escola.


Disse a testemunha AAA que “ali havia uma estrada, mais para a frente havia uma vereda que ia parar lá à ponta, quase à rua da escola, ia tudo por ali”, e adiante respondeu, a propósito do mesmo tema, “não iam dar a volta lá acima os gaiatos para a escola, iam por ali”.


A mesma testemunha referiu que circulou ali com o veículo que usava quando se dedicava à venda de fruta.


Também as testemunhas VVV e BBBB descreveram o caminho indicando que este terminava na última residência, após o que se seguia uma vereda, onde apenas se circulava a pé.


Aliás, a testemunha VVV foi diretamente questionada sobre se em algum momento o caminho teria sido alargado para permitir que os carros aí passassem e respondeu perentoriamente “nunca”, explicando que para tirar os carros as pessoas tinham que “fazer o caminho inverso”.


É certo que a R. VV declarou que a escola não ficava ali, e como se depreende do acima referido, de facto, a escola ficava noutro lugar, sendo o caminho e a vereda usados como um atalho, para os gaiatos não darem volta por cima, como assinalou a testemunha AAA.


A R. VV negou, de igual modo, que as pessoas usassem o caminho para se deslocarem à peixaria, porquanto só existia uma senhora que vendia o peixe porta a porta, com uma carrinha.


Todavia, a testemunha AAA referiu que essa dita senhora também vendia peixe na sua casa, quando tinha sobras da venda ambulante, e a casa situava-se no caminho em causa.


Sublinhe-se adicionalmente que a afirmação vaga da testemunha XX de que as pessoas iam para algum lugar que ele não sabia identificar não autoriza que se considere provado que havia outros destinos para além daqueles expressamente mencionados pelas testemunhas ou partes. Efetivamente, neste segmento do seu depoimento a testemunha expressa desconhecimento da realidade.


Ou seja, existia um caminho a partir da Rua 1, com a entrada que se vê na foto 1 obtida em sede de inspeção ao local, sendo essa passagem larga ao ponto de permitir que um veículo aí circulasse, porém, mais à frente, o caminho terminava, passando a ser apenas uma vereda, que consentia unicamente a circulação a pé.


O caminho com a largura que admitia a passagem de um veículo alcançava as habitações ali existentes, que se cingiam às casas dos AA., a casa dos sogros do R. DD, a casa da família YY e a casa da família CCC, terminando na última casa.


Isto mesmo se extrai, de igual modo, das declarações dos RR., os quais explicaram que os sogros do R. DD tiveram vacaria, vendendo o leite que produziam, assim como vendiam produtos hortícolas da sua propriedade, o que motivava a deslocação através do caminho pelas pessoas que pretendiam comprar estes bens.


Estas casas terminavam, assim, antes da Rua 2, consubstanciando o troço de 52 metros de comprimento, a partir da Rua 1, mencionado no ponto 37., como resulta do parecer vertido no ponto 16., bem como do ofício remetido pelo Presidente da Junta de Freguesia de Cidade 1 ao Presidente da Câmara Municipal de Cidade 1, datado de 05.03.2007, junto aos autos com o requerimento dos RR. de 04.12.2020, onde se diz que:


“a) O troço da Rua 1 até frente à Rua 2 (…) sempre foi utilizado pelos moradores da zona a pé, de bicicleta, de carroça e mesmo de veículo automóvel.


b) Relativamente ao troço restante até à Rua 2 (…) não teve essa utilização, sendo uma simples vereda (passagem de peões)”.


Por outro lado, não pode afirmar-se que o caminho permitisse o acesso a escolas, na medida em que o caminho não alcançava a única escola referida em audiência, à qual apenas se conseguia aceder através de uma vereda, situada após o fim do caminho, nem pode afirmar-se, por isso, que o caminho permitisse ir a outros locais, estando apenas assente que o caminho permitia aceder à peixaria, à lavandaria e as habitações.


Assim, o facto 54. deve ter a seguinte redação:


O caminho referido, com o comprimento de 52 metros, a partir da Rua 1, era utilizado pela generalidade da população em Cidade 1, para aceder a peixaria, lavandaria e habitações.”


4.12. Ponto E. da matéria de facto não provada


Neste ponto foi julgado não provado que existiam marcos delimitadores e que estes foram retirados pelo R..


O Tribunal a quo motivou assim a sua resposta: “No que respeita aos factos C a G não foi produzida qualquer prova que permitisse dar tais factos como provados.”


Dissentem os RR. desta decisão, advogando que a prova produzida nos autos sustenta a afirmação de que existiram marcos, apontando, concretamente, os depoimentos de EE e HH.


Auditada a prova, conclui-se que, efetivamente, quer as pessoas aludidas, quer ainda MM, NN, DD, SS, VV e UUU referem a existência de marcos de forma consistente e parcialmente coincidente.


Assim, HH falou de um marco, à entrada do caminho; SS confirmou a existência de dois marcos, à entrada do caminho, um de cada lado; DDDD, MM e VV aludiram a dois marcos, sendo um à entrada do caminho e outro junto do poço; DD falou de três marcos, sendo dois à entrada do caminho e um junto ao poço; NN apontou três marcos, sendo um à entrada do caminho, do lado direito, outro ao meio e o último ao pé do poço, e precisou que o marco do meio é o único que ainda se encontra no seu lugar; UUU apontou a existência de marcos no caminho e ao pé do poço.


Aliás, na certidão emitida pela Direção-Geral do Território são assinalados marcos, sendo à entrada do caminho e mais à frente, em lugar que se afigura poder coincidir com o poço, atentas as fotografias do local juntas aos autos pelos AA. (doc. 11 junto com a p.i.), bem como as fotos obtidas na inspeção ao local.


Ou seja, concatenando todos os meios de prova apontados, podemos concluir, com segurança, que existia um marco na entrada do caminho, por ser tal facto reconhecido em todos os depoimentos e encontrar ainda apoio na referida certidão.


Sem prejuízo, refira-se que na resposta ao ponto H. da matéria de facto não provada, onde, de novo, se alude a marcos delimitadores, o Tribunal a quo afirma, de igual modo, não ter sido produzida prova nos autos que suporte esse facto, mas acrescenta que tal facto também não foi julgado provado no Processo n.º 940/14.0..., ainda que não retire quaisquer consequências deste argumento.


Ora, o Processo n.º 940/14.0... constitui uma ação de demarcação que correu termos entre as partes com respeito aos prédios aqui em causa, a qual foi julgada improcedente, tendo nela sido julgada não provada, designadamente, a existência de marcos.


O trânsito em julgado daquela sentença poderia suscitar a questão do caso julgado material, porém, como tem vindo ser decidido de modo consensual na jurisprudência, a força de caso julgado material abrange o segmento decisório da sentença e a fundamentação que constitua antecedente lógico necessário daquela decisão, mas não alcança a decisão de facto isoladamente considerada, como se enunciou, entre outros, nos seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (ambos in http://www.dgsi.pt/):


- de 11.11.2021 (Rosa Tching) (Processo n.º 1360/20.2T8PNF.P1.S1):


“I. O caso julgado resultante do trânsito em julgado da sentença proferida num primeiro processo, não se estende aos factos aí dados como provados para efeito desses mesmos factos poderem ser invocados, isoladamente, da decisão a que serviram de base, num outro processo.


II. Os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente.”


- de 19.09.2024 (Fernando Baptista) (Processo n.º 3042/21.9T8PRT.S2):


“III. A força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.


IV. Os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram. Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objectivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo.”


Aliás, o ponto E. provém do artigo 45º da petição inicial, sendo aí alegado pelos AA. para suportar a conclusão de que o caminho é público, enquanto o ponto H. provém dos artigos 120º e 121º da contestação, visando sustentar a conclusão de que o caminho é privado e pertence aos RR..


Ou seja, a sentença transitada em julgado que foi proferida no Processo n.º 940/14.0... não impede que se julgue provado que existiram marcos e que estes foram retirados, mas não consente que se julgue provado que o caminho se integra no prédio dos RR., sendo delimitado por esses marcos, pois esta afirmação contraria diretamente o caso julgado formado sobre a decisão que julgou improcedente o pedido formulado pelos aqui RR. naquela ação.


Consequentemente, deve ser alterado o ponto E. e deve permanecer inalterado o ponto H..


O ponto E. deve, deste modo, deverá passar para o elenco dos factos provados, com o n.º 55, nos seguintes termos:


“Na entrada do caminho existia um marco delimitador que foi retirado, não se tendo apurado por quem nem a data em que tal sucedeu.”


IV – Fundamentação de direito


1. No caso em apreço alegam os AA. que o caminho, com a extensão de 52 metros de comprimento, que liga a Rua 1 à Rua 2, constitui um caminho público, pedindo a respetiva declaração e a condenação dos RR. a não obstarem à sua utilização.


Sustentam, diversamente, os RR. que se está em presença de um atravessadouro, os quais foram extintos, pelo que apenas poderia tratar-se de uma servidão, mas o prédio dos AA. não está encravado.


2. Atravessadouros e caminhos públicos


2.1. Deste modo, a questão a dirimir nos presentes autos prende-se apenas com a apreciação da pretendida qualificação do caminho em causa como público, o que convoca os artigos 1383.º e 1384.º do Código Civil, onde se diz o seguinte:


- Artigo 1383.º (“Abolição dos atravessadouros”)


“Consideram-se abolidos os atravessadouros, por mais antigos que sejam, desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões.”


- Artigo 1384.º (“Atravessadouros reconhecidos”)


“São, porém, reconhecidos os atravessadouros com posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas destinadas à utilização ou aproveitamento de uma ou outra, bem como os admitidos em legislação especial.”


Gabriela Páris Fernandes (Comentário ao Código Civil: direito das coisas, coord. de Henrique Sousa Antunes, Lisboa, 2021, pp. 325 e 331) explica que a reação adversa do legislador relativamente aos atravessadouros recua ao tempo da Lei de 9 de julho de 1773, em cujo § XII se estabeleceu a extinção, mediante ação judicial, dos caminhos que atravessassem propriedades particulares que não fossem constituídos por justo título, ainda que tais caminhos ou atravessadouros existissem desde tempos imemoriais, permitindo-se apenas os atravessadouros que se dirigissem a fonte ou ponte com manifesta utilidade pública e os que dirigissem a prédio encravado.


Um atravessadouro é, pois, “um caminho particular, sobre terreno particular, destinado essencialmente a encurtar trajeto para certo ponto e sendo o seu leito parte integrante do prédio atravessado” (idem, p. 331).


Constituem, assim, uma limitação ao direito de propriedade privada em benefício do público ou dos habitantes de uma certa circunscrição, ou ainda de um prédio determinado (ibidem).


Dos atravessadouros se distinguem os caminhos públicos, possuindo as duas figuras em comum “a característica de serem vias de comunicação utilizadas pelo público” (idem, p. 332).


Tradicionalmente, os caminhos públicos eram considerados como sendo parte do domínio público, o que produziu orientações diversas sobre os requisitos a preencher para alcançar essa qualificação, desde aqueles que entendiam que a propriedade do leito do caminho devia pertencer a uma entidade de direito público, até àqueles que entendiam ser suficiente, para o efeito, que a entidade de direito público fosse titular de um direito real menor, havendo ainda quem admitisse que o caminho público consubstanciasse um encargo estabelecido sobre bens de particulares em proveito público (idem, pp. 332 a 333).


Na vigência do Código Civil de 1867 conviveram a orientação segundo a qual o caminho era público quando utilizado por tempos imemoriais e desde que tivesse sido construído ou apropriado legitimamente pelo Estado ou outra pessoa coletiva de direito público, que o mantém sob a sua jurisdição ou administração, e a orientação, diversa desta, que considerava não ser necessário este segundo requisito para a qualificação do caminho como público (idem, pp. 335-336).


É neste cenário de divergência jurisprudencial que surge o Assento de 19.04.1989 (in DR, Série I, de 02.06.1989) – hoje com valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (artigo 17.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 329.º-A/95, de 12.12) -, com a intenção de resolver a querela a favor da segunda orientação apontada, dizendo-se, então, no Assento que “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.


No entanto, entendeu-se que a solução adotada podia gerar a dificuldade da distinção entre os caminhos públicos e os atravessadouros, distinção muito relevante atenta a extinção dos atravessadouros, pelo que se desenvolveu na jurisprudência uma interpretação restritiva do Assento, nos termos da qual se exige que a utilidade pública do caminho corresponda à “satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância” (idem, p. 336).


Como se sublinhou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2004 (Silva Salazar) (Processo n.º 03A3433, in http://www.dgsi.pt/): “se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais. (…)


Acresce que, para se decidir da relevância necessária dos interesses públicos a satisfazer por meio da utilização do caminho ou terreno para este poder ser classificado como público, há que ter em conta em primeira linha, por um lado, o número normal de utilizadores, e, por outro lado, a importância que o fim visado tem para estes, à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições e não de opiniões externas.”


A jurisprudência veio, entretanto, a ajustar a interpretação restritiva do Assento, considerando que “No caso de passagem ou caminho, que não se integra em nenhuma propriedade privada, existente num lugar e que desde tempos imemoriais liga duas ruas desse lugar, a prova do seu uso imemorial pela população basta para se considerar tal caminho como caminho público, não se impondo qualquer interpretação restritiva do assento” (Acórdão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2018 (Hélder Almeida) (Processo n.º 1334/11.4TBBGC.G1.S1, in http://www.dgsi.pt/).


Como se aduz no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.01.2024 (Cristina Neves) (Processo n.º 1292/20.4T8CTB.C1, in http://www.dgsi.pt/):


“III – A interpretação restritiva deste Assento pressupõe que os caminhos, nele contemplados, atravessam propriedades privadas, o que justifica a ponderação entre os direitos dos particulares cujos terrenos são atravessados por estes caminhos e o interesse público das populações na sua utilização, com prevalência dos segundos.”


Em conclusão, é o seguinte o enquadramento atual do tema na jurisprudência, na formulação do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16.12.2024 (Maria Adelaide Domingos) (Processo n.º 45/20.4T8PTG.E1):


“1- Em face do Assento de 19-04-1989 e da jurisprudência posterior emanada pelo STJ que aplicou e interpretou a jurisprudência uniformizadora, a qualificação de um caminho como público pode basear-se no seguinte:


- no facto do mesmo ser propriedade de entidade de direito público e estar afeto à utilidade pública;


- ou no seu uso direto e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, visando a satisfação de interesses coletivos relevantes, ou seja, interesses coletivos de certo grau ou relevância;


- ou, no caso, do caminho não integrar nenhuma propriedade privada, desde que se prove o uso imemorial pela população.”


2.2. Imemoriabilidade


Relativamente à posse imemorial, recua este conceito ao Direito Romano ou ao direito germânico, constando referência ao mesmo no Código Civil de 1867, a propósito das servidões não aparentes e das servidões descontínuas (Gabriela Páris Fernandes, ob. cit., p. 342).


Sendo a ideia fundamental subjacente à posse imemorial a de que não existe noção de quando a mesma se iniciou, por se tratar de facto do qual não se tem conhecimento direto, nem por transmissão dos antecessores, em virtude de se tratar de um facto muito recuado no tempo, tem-se discutido, não obstante, se existe um tempo mínimo para se falar em posse imemorial (idem, p. 343).


Assim, evoluiu-se para a ideia de uma posse centenária (ibidem) e, ainda que de modo não inteiramente consensual, a jurisprudência tem vindo a apontar balizas temporais, como se constata nos seguintes arestos (todos in http://www.dgsi.pt/):


- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2004 (Silva Salazar) (Processo n.º 03A3433):


“É certo que na descrição daqueles factos são utilizadas as expressões "desde tempos que excedem a memória dos vivos, ou, pelo menos, desde há mais de 50 anos seguidos", quanto ao caminho de pé e carro; "desde tempos que excedem a memória dos vivos, e, pelo menos, durante mais de 50 anos", quanto ao caminho de pé; e "desde sempre ou, pelo menos, desde há 50 anos", quanto à parcela de terreno. Trata-se de expressões que poderiam suscitar dúvidas, levando a que não se soubesse se o início da utilização dos caminhos e da parcela de terreno teve lugar há cerca de cinquenta anos ou em momento desconhecido por ser muito mais antigo. No entanto, tais dúvidas desaparecem se se tiver em conta que não se trata de expressões incompatíveis mas, pelo contrário, perfeitamente conciliáveis, cujo significado normal é simplesmente o de que as pessoas se lembram da utilização dos caminhos e do terreno pelo público pelo menos desde há 50 ou mais anos, sabendo porém que essa utilização começou antes mas não recordando o seu início por este já ter saído da memória dos vivos devido à sua antiguidade; os 50 anos constituem apenas o limite mínimo do tempo da utilização pública que os vivos recordam, mas não um limite máximo, que é ignorado, por ser desconhecido, como se provou, o momento do início dessa utilização pública. Só esse pode ser o significado lógico das expressões utilizadas, apontando em consequência para que o uso pelo público tem tido lugar desde tempos imemoriais.”


- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.09.2014 (Maria dos Prazeres Beleza) (Processo n.º 44/1999.E2.S1):


“III - O tempo de memória útil das pessoas – isto é, de memória que pode fundamentar um juízo de prova, em tribunal – não coincide manifestamente com o tempo médio de vida do ser humano, sendo que é o tempo de memória útil que deve relevar para determinar se a memória das pessoas vivas recorda o início da utilização directa ou indirectamente.


IV - Considera-se imemorial, para efeitos de classificação de um caminho como público, o uso de um caminho que ocorre há mais de 60 anos.”


- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01.06.2005 (António Ribeiro) (Processo n.º 1691/04-1):


“III. Posse imemorial é aquela que se perde na memória dos homens e dos tempos – de que já não há memória de quando se iniciou – não integrando tal conceito uma posse exercida há mais de 30, 40 e 50 anos”.


- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.10.2012 (Falcão de Magalhães) (Processo n.º 50/09.1TBALD.C1):


“Quando o Réu alega que o caminho existe “…seguramente há mais de 40, 50, 60 anos”, só pode querer significar que tal existência, embora podendo ultrapassá-los, rondará os 60 anos. É claro que a expressão “há mais de” permite até admitir os 150, ou mais anos, mas, se fosse essa a intenção do Réu, não se entenderia a referência aos 40 anos, ou mesmo aos 60 anos.


Ora o lapso de tempo de 60, 70, ou, mesmo, 80 anos, não é suficiente, sequer, para o seu início não ser recordado pelos vivos, pelo que nos parece haver um certa contradição na alegação do Réu quando, depois de afirmar que o caminho público existe desde tempos imemoriais, concretiza “…seguramente há mais de 40, 50, 60 anos”.


É certo que já se entendeu também que a circunstância de ser possível apurar a data do início da utilização do caminho obsta à qualificação do uso como imemorial, como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30.11.2017 (Helena Melo) (Processo n.º 1334/11.4TBBGC.G1, in http://www.dgsi.pt/):


“São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.


Tendo os RR. invocado que a passagem era feita através de um determinado caminho há mais de 15, 20, 30, 50 anos, a datação dos factos afasta desde logo a imemorabilidade.”


Todavia, Rui Pinto Duarte (Curso de Direitos Reais, 4ª ed., 2020, p. 116) diverge desta orientação, argumentando que Pires de Lima e Antunes Varela “advertem que a existência de um documento que revele o início da posse não destrói, só por si, a sua natureza imemorial.


Na esteira de Pires de Lima e Antunes Varela, parece-nos que não é possível negar a imemoriabilidade, para os fins em causa no art. 1384 e no assento, com base na possibilidade de datação do início do acontecimento. (…)


Não há dúvida de que o significado dicionarístico de «imemorial» é «tão antigo que não há memória das suas origens». No entanto, é de lembrar que ao tempo em que se formou o conceito de posse imemorial o oral predominava sobre o escrito e o testemunho sobre o documento. Essa alteração de paradigmas civilizacionais tem de ser tida em conta na interpretação da palavra «imemorial», no contexto em causa.”


2.3. Elencamos, de seguida, alguns arestos mais recentes sobre o tema (todos in http://www.dgsi.pt/):


- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2018 (Hélder Almeida) (Processo n.º 1334/11.4TBBGC.G1.S1):


“V - Provando-se que o caminho em causa nos autos era apenas utilizado pelos proprietários dos prédios a que dava acesso – uns não identificados e outros os antecessores das partes – e uma vez que a existência de um acesso aberto a pessoas determinadas ou a um círculo determinado de pessoas é insuficiente para se falar de “utilização pública”, sendo mister a sua utilização por uma generalidade de pessoas, não pode senão concluir-se pela impossibilidade considerar o ajuizado caminho como sendo um “caminho público”.”


- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.10.2014 (Maria Domingas Simões) (Processo n.º 36/11.6TBOFR.C1):


“III. Não satisfaz o assinalado critério a utilização há mais de 30, 40, 50 e mesmo 100 anos, de um caminho, parte em alcatrão e parte em terra batida e pedra, que se limita e limitou a permitir o acesso a diversas fazendas, cujos proprietários para esse efeito o utilizavam, assim denunciando um uso circunscrito e subordinado a interesses de carácter meramente privatístico.”


- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.09.2015 (Luís Cravo) (Processo n.º 552/12.2TBAMT.P1):


“III – Caminhos públicos são os que, desde tempos imemoriais - passado que já não consente a memória humana direta dos factos - estão no uso direto e imediato do público, envolvente de utilidade pública, caracterizada pelo destino de satisfação de interesses coletivos relevantes.


IV – O que ocorre relativamente a um caminho que ligando duas zonas do lugar/ povoação da …, permite aos respetivos moradores encurtar a ligação em cerca de 1900 m, mais concretamente entre a Rua … e a Rua …, permitindo aos moradores daquela aceder à escola, minimercado, festas e romarias, locais de trabalho, campos de cultivo e residências de familiares existentes/sitas nesta última, sendo que nesta existem igualmente transportes públicos camarários e um contentor de lixo, bem como permite, a partir da Rua … (estrada principal), aceder às casas de habitação existentes no …, donde a conclusão de que tal caminho é uma ligação com interesse local, destinado ao trânsito de pessoas (pedonal) e incorporado no sistema viário da zona.


V – Assim, apurada a existência de um tal caminho público, em parte confinante com o prédio dos aqui RR./recorridos, não é legítimo por parte destes impedirem o trânsito pelo seu prédio, na parte em que ele é atravessado por aquele caminho público.”


- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.11.2022 (Conceição Saavedra) (Processo n.º 1952/20.0T8FNC.L1-7):


“III - Constitui caminho do domínio público, e não mero atravessadouro, o caminho pedonal afeto ao uso direto e imediato do público e da comunidade local, desde tempos imemoriais, para aceder, além do mais, ao Centro de Saúde ou à rede viária de transportes públicos, ou, ainda, ao Mercado ou à igreja, sendo o mais curto e o menos íngreme, devendo entender-se que tal utilização satisfaz interesses coletivos de certo grau e relevância.”


- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30.03.2023 (Alexandra Viana Lopes) (Processo n.º 656/20.8T8VRL.G1):


“A existência de um traçado aberto desde tempos imemoriais, que não dá apenas acesso aos prédios com que confronta mas que faz a ligação entre duas vias públicas, pelo qual qualquer pessoa poderia passar e passava, dentro da freguesia e para acesso a outras aldeias, permite classificá-lo como caminho público, de acordo com a doutrina do assento nº 7 de 19.04.1989, com valor atual de acórdão uniformizador de jurisprudência, aplicável sem necessidade de restrição (nomeadamente face à falta de alegação e prova que o caminho provado atravessasse prédios particulares).”


- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16.12.2024 (Maria Adelaide Domingos) (Processo n.º 45/20.4T8PTG.E1):


“2. Não é de classificar como caminho público um trajeto que apenas é usado pelos proprietários dos terrenos que por ele são servidos por faltar o requisito «utilização pelo público» ou pela «população», pressuposto que tem de se verificar em qualquer uma das três situações referidas em 1.”


3. O caso concreto


3.1. Da matéria de facto provada não decorre, desde logo, que o caminho em causa seja propriedade de um ente de direito público.


Por outro lado, não está provado que tal caminho integre o prédio do qual os RR. são proprietários, o que se mostra conforme à sentença transitada em julgado que foi proferida no Processo n.º 940/14.0...


Nessa ação foi autora a aqui R. CC, e foram réus a aqui A. MMM, bem como JJJ, KKK, OO, LLL, TT, II, MM e NN, tendo sido peticionada a declaração de que o caminho aqui em discussão integra esse prédio, e foi deduzida reconvenção, visando o reconhecimento do referido caminho como uma servidão adquirida pelos aqui AA. (factos provados sob 17. a 20.).


A sentença proferida em tal ação julgou aquele pedido e a reconvenção improcedentes, tendo sido confirmada em recurso (factos provados sob 21. a 22.).


Assim, no que respeita à questão de saber se o caminho integra o prédio dos RR., bem como, aliás, no que respeita à questão da servidão a favor dos aqui AA., que constituiu o objeto da reconvenção deduzida naquela ação, o trânsito em julgado da sentença nela proferida torna essa sentença imutável, impedindo nova discussão sobre as mesmas questões (artigo 619.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


Consequentemente, à luz da jurisprudência acima citada, o reconhecimento da natureza pública do caminho depende, na situação vertente, da demonstração de que é usado pela população em geral e de que tal uso é imemorial.


3.2. Importa, então, ponderar, em particular, os seguintes factos provados:


“11. O caminho sito entre a Rua 1 e a Rua 2 e que liga estas duas ruas, representado com o n.º 1 no referido documento n.º 8, junto com a petição inicial foi sempre o único acesso utilizado para duas habitações do prédio dos autores, mais concretamente, as existentes na construção representada como habitação n.º 3 no referido documento n.º 8 junto com a petição inicial.


12. Por seu turno, a habitação representada como habitação n.º 2 no documento n.º 8 junto com a petição inicial tem entrada direta pela Rua 1.


13. O outro possível acesso através da Rua 2 está vedado pelo requerido, sinalizado como “propriedade privada” e nunca foi utilizado pelos requerentes para acederem às suas casas.


14. Até data não concretamente apurada, os proprietários e/ou residentes dos referidos imóveis inscritos na matriz predial urbana sob o artigo 10400 sempre passaram por aquele caminho, a partir da Rua 1, para a eles acederem, nele circulando livremente, bem como os seus antepassados, não existindo memória, até então, de que o caminho tenha tido uma utilização privada, sem prejuízo do que se mostra provado sob 23.


23. O réu DD, pelo menos, a partir do ano de 2006, ao longo do tempo, colocou obstáculos à entrada do caminho, enviou cartas aos autores, nomeadamente, com o teor dos documentos juntos sob o n.º 12 com a petição inicial.


26. Atualmente, o caminho não tem obstáculos, mas os proprietários dos imóveis não o utilizam devido à conduta ameaçadora do réu.


37. O caminho, pelo menos num troço de 52 metros, a partir da Rua 1, foi utilizado livremente pelo público e pelos proprietários das habitações ali existentes, desde há mais de 60 anos até datas não concretamente apuradas.”


38. A partir de data não concretamente apurada, apenas as pessoas que se dirigissem às habitações pertencentes aos autores e respetivos familiares, circulavam nesse troço de caminho para aceder às referidas habitações.


47. O caminho que faz a ligação entre a Rua 2 e a Rua 1 não é atualmente utilizado pelo público em geral, pois encontra-se vedada a ligação para a Rua 2, apenas sendo possível fazer a parte do troço que existe até à “habitação 3” representada no documento n.º 8 junto com a PI.


48. O caminho que liga a Rua 2 à Rua 1 encontra-se servido por rede de eletricidade desde 1976.


53. Até datas não concretamente apuradas, tanto o caminho que liga a Rua 2 à Rua 1, como a Rua 1 eram de terra batida, sendo esta última atualmente pavimentada.


54. O caminho referido, com o comprimento de 52 metros, a partir da Rua 1, era utilizado pela generalidade da população em Cidade 1, para aceder a peixaria, lavandaria e habitações.”


No caso em apreço o caminho era utilizado por todas as pessoas que habitavam nas casas que o ladeiam, assim como por outras pessoas que aí se deslocavam para irem à lavandaria e à peixaria.


Está provada a utilização do caminho por mais de 60 anos.


Como se disse acima, é controversa a questão de saber se a existência de uma baliza temporal obsta à imemoriabilidade, mas entendemos acompanhar aqueles que entendem que o aludido longo prazo de mais de 60 anos preenche o requisito em apreço.


Esse caminho veio a ser fechado pelo R., pelo que apenas mantiveram acesso ao mesmo as pessoas que se dirigiam às casas dos AA., sendo que mesmo estas começaram a enfrentar os obstáculos a esse acesso introduzidos pelo R..


Argumenta-se na sentença recorrida que estas vicissitudes que conduziram a que atualmente o caminho não seja utilizado, não obstam à qualificação do caminho como público, porquanto “também resulta provado que tal se deve à conduta do réu, sendo que a conduta do réu não é, nem poderia ser, apta a fazer perder a natureza pública do caminho em causa.”


O mesmo é dizer, o caminho não foi abandonado pelas pessoas que o utilizavam, antes a cessação dessa utilização resultou de uma intervenção alheia à sua vontade, o que não determina, efetivamente, a sua descaracterização como caminho público, conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.2004 (Araújo Barros) (Processo n.º 04B2576, in http://www.dgsi.pt/):


“3. Para a caracterização da dominialidade pública de um caminho há que atender a todos os factos reveladores do interesse público e do uso directo, imediato e imemorial do caminho pelo público, desde o início da afectação a tal uso.


4. Não basta a posterior falta de utilização pelo público para determinar a desafectação tácita da finalidade colectiva do bem público, pela razão simples de que tal falta de utilização pode resultar de factos diferentes do desaparecimento da utilidade pública a cuja satisfação o bem público se encontrava afecto.


5. A desafectação tácita das coisas públicas apenas será de aceitar nos casos em que exista uma mudança de situações ou de circunstâncias que haja modificado o condicionalismo de facto necessariamente pressuposto pela qualificação jurídica.”


No mais, estando provado que o uso do caminho se prolonga desde tempos imemoriais, resta concluir que estão provados os requisitos de que depende o reconhecimento da natureza pública do caminho, pelo que deve ser confirmada a sentença recorrida.


4. Custas


As custas do recurso são da responsabilidade dos RR., em virtude de ser o mesmo julgado improcedente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).


V – Dispositivo


Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.


Custas pelos RR..


Notifique e registe.


Sónia Moura (Relatora)


Manuel Bargado (1º Adjunto)


Filipe Aveiro Marques (2º Adjunto)