Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
942/22.2T8SLV-C.E1
Relator: SUSANA COSTA CABRAL
Descritores: SUSTAÇÃO DA EXECUÇÃO
PENHORA
ANTIGUIDADE
EXECUÇÃO FISCAL
Data do Acordão: 03/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A razão de ser da norma do artigo 794.º, n.º 1, do CPC implica que se verifique a prossecução normal da execução em que a penhora for mais antiga;
II. Essa prossecução não se verifica se, na execução fiscal em que a penhora é mais antiga, foi determinada a suspensão dos procedimentos de venda do imóvel, nos termos do n.º 7 do artigo 244.º do CPPT, por o valor dos encargos registados serem muito superiores ao valor patrimonial do prédio.
III. Nessas circunstâncias, deve admitir-se o prosseguimento da execução comum onde o mesmo bem foi ulteriormente penhorado e que havia sido sustada em face daquela penhora anterior.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Sumário: (…)
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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório:
Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL intentou, em 22-05-2022, ação executiva, com processo ordinário, contra (…), Unipessoal, Lda., (…) e (…) para pagamento do crédito emergente de financiamentos celebrados com os executados, no montante total de € 337.938,71.
A exequente indicou à penhora, entre outros bens, o imóvel sito no Parque Industrial de (…), n.º (…), freguesia de … (…), inscrito na matriz sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…), daquela freguesia, sobre o qual incide hipoteca a favor da exequente.
A execução foi admitida liminarmente, por despacho de 28-06-2022 e citados os executados, não foi deduzida oposição.
No dia 28-11-2023, foi efetuada a penhora do referido prédio urbano tendo o agente de execução feito constar do auto as seguintes observações:
“Sobre o bem penhorado recaem os seguintes ónus ou encargos:
a) Hipotecas Voluntárias a favor do Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL - cfr. Ap. (…), de 2006/01/25; Ap. (…), de 2013/07/12; Ap. (…), de 2015/04/22.
b) Hipoteca Legal a favor I.G.F.S.S. - Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (I.G.F.S.S. – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.) - cfr. Ap. (…), de 2014/04/07; Ap. (…), de 2019/03/13; Ap. (…), de 2023/06/12.
c) Penhora a favor da Fazenda Nacional (Serviço de Finanças de …) – cfr. Ap. (…), de 2023/08/30. (…)”.
Por decisão do Agente de Execução, de 13/12/2023, foi a presente execução sustada quanto ao imóvel penhorado, nos termos do disposto no artigo 794.º do CPC, por já impender sobre este penhora anterior da Fazenda Nacional, registada no Processo executivo fiscal n.º (…) e Apensos, que corre termos no Serviço de Finanças de (…).
A recorrente solicitou em 20/12/2023 ao Serviço de Finanças de (…), informação sobre se processo de execução fiscal em que é executada a (…), Unipessoal, Lda, ainda estava activo, se ainda mantinha interesse na penhora, e se iria iniciar o procedimento de venda do imóvel.
Em resposta, por despacho do Chefe do Serviço de Finanças de (…) de 27/12/2023, a recorrente foi informada que: “o valor total dos encargos registados são em muito superiores ao valor patrimonial do prédio”, e por conseguinte, estão “reunidas as condições para que, nos termos do n.º 7 do artigo 244.º do CPPT, sejam suspensos os procedimentos de venda do imóvel penhorado.”
Em face desta informação, o recorrente, requereu ao Tribunal a quo que:
“reconhecendo e considerando a impossibilidade da venda nas Finanças do prédio penhorado nos presentes autos, ordene o levantamento da sustação da presente execução e o prosseguimento desta quanto ao imóvel sub judice, com vista à sua venda, por não se verificar o circunstancialismo do artigo 794.º, n.º 1, do CPC (pendência de duas ou mais execuções dinâmicas sobre o mesmo bem), notificando-se o Agente de Execução em funções para proceder às citações constantes do artigo 786.º do CPC, com a devida citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos, de modo a que também os direitos desta sejam devidamente acautelados, distribuindo-se o produto da venda em conformidade com o que for determinado na sentença de graduação”.
Em 17-06-2024, a Mma. Juíza do Tribunal a quo determinou que se solicitasse à AT que informasse se o prédio urbano sito no Parque Industrial de (…), n.º (…), da freguesia de … (…), concelho e distrito de … (…), concelho de (…), inscrito na matriz com o n.º (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) seria vendido na execução fiscal e, na negativa, que esclarecesse o motivo.
A AT informou em 24-06-2024 que o valor dos encargos registados é muito superior ao valor patrimonial do bem referido prédio urbano sito no Parque Industrial de (…), n.º (…), da freguesia de (…), pelo que nos termos do n.º 7 do artigo 244.º do CPPT foram suspensos os procedimentos da venda do imóvel penhorado.
Por despacho proferido no dia 09-07-2024, o Tribunal a quo considerando esta informação, decidiu: “(…) não está em causa a previsão do artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, na redação dada pela Lei n.º 13/2016, de 26 de maio, pelo que entendemos que a presente execução deve manter-se igualmente sustada no que se refere ao identificado imóvel, pelas razões já referidas no despacho proferido em 22.04.2024”.

Inconformado com este despacho, interpôs o Réu o presente recurso, o qual motivou, apresentando a seguinte síntese conclusiva:
a) A ratio legis da norma do artigo 794.º do CPC, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de proteção tanto do devedor executado, como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa situação de dinâmica processual, ou seja, não é suficiente a mera pluralidade de execuções, exigindo-se ainda que estejam em movimento, seguindo o curso processual normal, o que não ocorre no caso em análise.
b) Com o estatuído no seu n.º 1 pretende-se evitar que em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens; a liquidação tem de ser única e, em princípio, há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar.
c) A lei é clara ao impor que havendo mais do que uma penhora sobre um bem o exequente tem de reclamar o seu crédito na execução mais antiga – citado artigo 749.º, n.º 1, do CPC; para se determinar se subsiste esta situação, tem de ser o processo executivo onde primeiro se realizou a penhora (o processo fiscal) a decidir se vai proceder à venda do bem penhorado.
d) Se os serviços competentes para a execução fiscal afirmarem que não vão proceder à venda do bem penhorado, então o tribunal da execução comum já pode concluir que não há a pendência de uma execução sobre os mesmos bens pois o exequente declarou que não se pretende pagar à custa desse bem duplamente penhorado e pode então fazer prosseguir a execução.
e) In casu, existindo inércia da Fazenda Nacional na tramitação da execução fiscal (com penhora anterior), impedindo a venda, nesse processo, de imóvel que não se trata de habitação própria e permanente do executado (artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, na redacção conferida pela Lei n.º 13/2016, de 23/05), afirmando expressamente que não vai vender o prédio penhorado pelo facto do valor total dos encargos registados sobre este serem em muito superiores ao seu valor patrimonial, afigura-se que, inviabilizado na execução fiscal mecanismo algum de tutela do direito do credor garantido pela penhora na execução comum (o credor reclamante, neste caso credor hipotecário, não pode requerer o prosseguimento da execução fiscal em circunstância alguma), não resta outra alternativa, senão o levantamento da sustação da execução comum para que se providencie pela actuação conducente à realização da venda no presente processo executivo cível, com a citação da Fazenda Nacional, a par dos demais credores, para, querendo, reclamar o seu crédito nesta execução, distribuindo-se o produto da venda em conformidade com o que for determinado na sentença de graduação.
f) A lei é clara ao impor que havendo mais do que uma penhora sobre um bem o exequente tem de reclamar o seu crédito na execução mais antiga – citado artigo 749.º, n.º 1, do CPC; para se determinar se subsiste esta situação, tem de ser o processo executivo onde primeiro se realizou a penhora (o processo fiscal) a decidir se vai proceder à venda do bem penhorado.
g) Ora no caso concreto, verificando-se que o Serviço de Finanças de (…) decidiu expressamente e de modo inequívoco, que não vai proceder à venda do bem penhorado no processo de execução fiscal, o tribunal recorrido já pode concluir que não há a pendência de uma execução sobre os mesmos bens, pois a Fazenda Nacional declarou que não se pretende pagar à custa desse bem duplamente penhorado e pode então fazer prosseguir a execução.
h) Pelo que, andou mal o Tribunal a quo ao ter mantido a sustação / suspensão da execução decidindo, incorretamente, pelo indeferimento do levantamento da sustação, não valorando convenientemente os factos concretos e a prova produzida, nem fazendo correta interpretação e aplicação da lei ao caso aplicável.
i) Nestes termos e nos demais de Direito e sempre com o douto suprimento de V. Exas. e verificando-se os pressupostos legalmente previstos para a apreciação do presente recurso de apelação, deve o despacho recorrido ser revogado, e substituído por outro que dando provimento ao recurso, que, defira o pedido de levantamento da sustação / suspensão formulado pela exequente, ora recorrente, com vista ao prosseguimento da presente instância executiva, possibilitando a venda do imóvel penhorado nos presentes autos.
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Não foram oferecidas contra-alegações.

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O objeto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões do recorrente, conforme resulta dos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Por conseguinte, importa apreciar se deve ser determinado o levantamento da suspensão/sustação da execução, ordenada nos termos do disposto no artigo 794.º do CPC, quanto ao bem imóvel, sito no Parque Industrial de (…), n.º (…), com vista ao prosseguimento da presente instância executiva, possibilitando a venda do referido imóvel, por o processo de execução fiscal em que o referido imóvel foi anteriormente penhorado, se encontrar suspenso, ao abrigo do n.º 7 do artigo 244.º do CPPT por “o valor dos encargos serem em muito superiores ao valor patrimonial do prédio”.
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2. Fundamentação
Os factos relevantes para apreciação do recurso são os que constam do relatório supra, a que acresce o seguinte:
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Insurge-se o exequente/apelante quanto à decisão do Tribunal a quo que indeferiu o pedido de levantamento da suspensão da execução relativamente ao imóvel penhorado nos autos descrito na CRP de (…) sob o n.º (…).
O Tribunal sustentou, em suma, que: “(…) não está em causa a previsão do artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, na redação dada pela Lei n.º 13/2016, de 26 de maio, pelo que entendemos que a presente execução deve manter-se igualmente sustada no que se refere ao identificado imóvel, pelas razões já referidas no despacho proferido em 22.04.2024.”
No referido despacho de 22-04-2024, o Tribunal a quo considerou que tem sido admitido jurisprudencialmente que a segunda execução (sustada nos termos do artigo 794.º por já incidir sobre o bem penhora anterior à ordem de outro processo) prossiga nos casos em que sobre o bem imóvel que constitua a casa de morada de família do executado incida penhora prévia a favor da Fazenda Nacional, porém não é o caso dos autos.
De facto, a jurisprudência tem admitido o levantamento da sustação da execução comum quando não pode proceder-se à venda do imóvel penhorado na execução fiscal, dado o disposto no artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, por estar em causa a casa de morada de família do Executado. Tem-se entendido que essa execução fiscal não está em condições de salvaguardar o direito do exequente comum a ver aí efetivado o seu crédito. Neste sentido, decidiram os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/2021, proc. n.º 906/18.0T8AGH.L1.S1, e de 31/10/2023, proc. n.º 2245/19.0T8ACB-A.C1.S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
No caso concreto, a presente execução foi sustada nos termos do disposto no artigo 794.º do CPC, mas na execução fiscal em que o bem imóvel foi primeiramente penhorado não está em causa a previsão do artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, na redação dada pela Lei n.º 13/2016, de 26 de maio, que determina que “não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.”.
Na execução fiscal que determinou a sustação da presente execução, os procedimentos da venda do imóvel subsequentemente penhorado nestes autos foram suspensos, nos termos do n.º 7 do artigo 244.º do CPPT “porque o valor dos encargos registados sobre o imóvel penhorado são em muito superiores ao valor patrimonial do prédio.”
Ora, não obstante o fundamento da sustação da venda na execução fiscal não ser idêntico, a razão que determina que a jurisprudência entenda que a execução comum (em que o imóvel foi penhorado em segundo lugar) prossiga, naquelas situações, aplica-se também na situação dos autos. Vejamos:
Com o estatuído no nº 1 do artigo 794.º do CPC pretende-se evitar que em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens; a liquidação tem de ser única e, em princípio, há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar.
A sustação da execução mais recente pressupõe que o exequente credor possa reclamar o seu crédito na execução mais antiga. Ora, nas execuções fiscais por força do disposto no artigo 244.º do CPPT tal não se mostra possível. Por isso, tem sido entendido que a razão de ser do prescrito no artigo 794.º do CPC, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de proteção tanto do devedor executado, como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa situação de dinâmica processual, ou seja, não é suficiente a mera pluralidade de execuções, exigindo-se ainda que estejam em movimento, seguindo o curso processual normal, o que não ocorre no caso em análise.
In casu, estando a realização da venda do imóvel, na execução fiscal, suspensa nos termos do n.º 7 do artigo 244.º em virtude do valor dos encargos registados serem muito superiores ao valor patrimonial do prédio”, e inexistindo qualquer mecanismo de tutela do direito do credor garantido pela penhora na execução comum (o credor reclamante, neste caso credor hipotecário, não pode requerer o prosseguimento da execução fiscal em circunstância alguma), não resta outra alternativa, para possibilitar ao credor a realização do seu crédito, senão o levantamento da sustação da execução comum para que se providencie pela atuação conducente à realização da venda no presente processo executivo cível, com a citação da Fazenda Nacional, a par dos demais credores, para, querendo, reclamar o seu crédito nesta execução, distribuindo-se o produto da venda em conformidade com o que for determinado na sentença de graduação.
O entendimento contrário, posterga o direito de propriedade privada constitucionalmente garantido e a garantia do credor à satisfação do seu crédito (artigo 62.º, n.º 1, da CRP), tornando desproporcional e onerosa a satisfação do direito do exequente.
Concluímos, por todo o exposto, que tendo sido na execução fiscal determinada a suspensão do procedimento da venda do imóvel penhorado, em virtude dos encargos serem em muito superiores ao valor do prédio, nos termos do n.º 7 do artigo 244.º do CPPT, deve ser deferido o pedido do exequente, formulado nos presentes autos, de levantamento da sustação da execução, ordenada nos termos do artigo 794.º do CPC, e determinar-se o seu prosseguimento, com vista à venda do bem imóvel, podendo a Fazenda Nacional reclamar nesta (execução comum) o seu crédito, que será objeto de verificação e graduação de créditos para o ressarcimento do crédito do exequente.
Esta foi, aliás, a tese sufragada no recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05-03-2024, publicado in www.dgsi.pt, em que se decidiu que: “Com efeito, inaceitável seria que o bem penhorado não pudesse ser vendido na execução fiscal, por compreensível desinteresse da AT, pois que o produto na venda não haveria de reverter para si, mas para um credor hipotecário com crédito prevalecente sobre o seu; e que também não pudesse ser vendido na execução comum, por esta estar sustada por causa daquela execução fiscal anunciadamente imobilizada. (….) Perante o não prosseguimento de uma execução fiscal, determinado nos termos do n.º 7 do artigo 244.º do CPPT, por o valor dos créditos reclamados por outros credores, nessa execução fiscal, ser manifestamente superior ao da dívida exequenda, deve admitir-se o prosseguimento da execução comum onde o mesmo bem havia sido ulteriormente penhorado e que havia sido sustada em face daquela penhora anterior”.
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3. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao presente recurso de apelação, revogando a decisão recorrida, que substituem por outra que, deferindo o requerido pelo Recorrente / exequente, determina o levantamento da sustação da presente execução quanto ao bem imóvel supra identificado e determina, nessa parte, o prosseguimento da execução.
Custas pelos apelados (artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC).
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Évora, 13 de março de 2025
Susana Ferrão da Costa Cabral (Relatora)
Ana Pessoa
Maria João Sousa e Faro
(documento com assinaturas electrónicas)