Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | FILIPE CÉSAR OSÓRIO | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO URBANO RESOLUÇÃO DO ARRENDAMENTO NÃO USO IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO NULIDADE DA SENTENÇA | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA | ||
Área Temática: | CÍVEL | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | Sumário:
I. Porque os fundamentos estão em consonância com a decisão e a decisão de facto e de direito não contém qualquer ambiguidade ou obscuridade e é perfeitamente inteligível, não se verifica a invocada nulidade da sentença, para efeitos do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC. II. Se os factos que se pretendem impugnar são irrelevantes para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo, impondo-se assim rejeitar a mesma – cfr. art. 130.º, do CPC. III. O não uso do locado por mais de um ano, como fundamento de resolução do contrato de arrendamento previsto no art. 1083.º, n.º 2, a. d), do Código Civil, cessa caso essa ausência se deva à prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, incluindo a familiares – verificando-se assim a excepção prevista no art. 1072.º, n.º 2, al. d), do Código Civil, sem exigência de qualquer outro requisito para tal efeito, ou seja, independentemente do modo como que se concretiza esse apoio. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | *
Apelação n.º 1524/23.7T8EVR.E1 (1.ª Secção Cível) Relator: Filipe César Osório 1.º Adjunto: Sónia Moura 2.º Adjunto: Maria João Sousa e Faro * * ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA * I. RELATÓRIO Ação Declarativa, Processo Comum 1. As partes Autora – AA Ré – BB * 2. Objecto do litígio: Resolução do contrato de arrendamento. A Autora pede que a ré seja condenada a despejar imediatamente o prédio e, ainda, a pagar as rendas vencidas e vincendas até à entrega do prédio, alegando resumidamente que desde data anterior a Dezembro de 2021 a Ré deixou de fazer a sua vida no locado, deixando de aí residir, dormir ou fazer a suas refeições ou manter neste a sua vida social, não obstante manter-se na posse do mesmo, tendo passado a residir na zona do Algarve. Em contraponto, a Ré alegou, para além do mais, que não deixou de residir no locado, mas, por vezes, desloca-se e passa algum tempo em lazer na casa da sua filha em Cidade 1, aí acompanhando os netos, tendo a sua filha sido diagnosticada como portadora de fibromialgia que determina a existência de uma incapacidade de 71%, com carácter permanente, arbitrada já em 2019, que em função do quadro de saúde da filha e, igualmente depressivo, a partir de Fevereiro de 2018 a ré passou a deslocar-se à casa da filha com mais frequência e aí a permanecer durante períodos mais longos devido às crises sofridas por aquela e que a impossibilitavam para as actividades da vida diária, auxiliando-a na realização das tarefas diárias, designadamente cuidado da filha e dos netos. Autora e Ré pedem uma contra a outra a condenação como litigante de má-fé. * 3. Sentença em Primeira Instância: Realizada audiência final foi proferido sentença com o seguinte dispositivo: «Nos termos e fundamentos enunciados, o Tribunal julga a presente acção improcedente por não provada e, em consequência, decide: a) Absolver a ré BB dos pedidos formulados pela autora AA e, em consequência, não declarar resolvido o contrato de arrendamento referente ao imóvel sito na Rua 1, n.º 2, em Cidade 2, e não determinar o despejo imediato do mesmo; b) Julgar improcedente por não provado o incidente de litigância de má fé deduzido contra a autora AA e a ré BB, sendo estas absolvidas dos mesmos; c) Condenar a autora no pagamento das custas processuais da acção; na proporção do respectivo decaimento, que é integral. d) Condenar a autora AA e a ré BB no pagamento das custas processuais referentes aos incidentes de litigância de má fé, fixando-se a taxa de justiça em 1,25 UC a respeito de cada um.». * 4. Recurso de apelação da Ré (Requerimento de 13/12/2023): A Recorrente/Autora interpôs recurso de apelação da sentença com as seguintes conclusões: «1-O presente recurso de Apelação vem interposto da, aliás, mui douta decisao de fls. ….. e seg.s, dos autos, que decidiu absolver a ré BB dos pedidos formulados pela autora AA e, em consequência, não declarar resolvido o contrato de arrendamento referente ao imóvel sito na Rua 1, n.º 2, em Cidade 2, e não determinar o despejo imediato do mesmo. 2 - Com o respeito devido - que é muito - afigura-se-nos que aquela douta sentença recorrida violou o disposto nos art.s 5.º, n.º 2, 411.º, 607.º, n.º 4 e 5, todos do Cód. Proc. Civil; padecendo, outrossim, de erro na apreciação da prova; bem como violou o disposto no art. 1083.º, n.º 2, al. c), a contrario, do Cód. Civil; ademais de padecer da nulidade a que alude o art. 615.º, n.º 1, al. c), do Cód. Proc. Civil. Porquanto, 3 – O Tribunal a quo, para dar como provados os factos 8) a 11) da matéria de facto provada, sustenta-se em contradições da sua própria argumentação e prova, designadamente: 4 - analisando os documentos juntos com a Ref.ª 4057464, de 03/07/2024 e Ref.ª 4097727, de 21/08/2024 e confrontando-os com as declarações da Ré, alega que: 5 - “Ao dito, acresce que o relato da ré não se mostra de acordo com a realidade objectivamente apurada quanto a consumos eléctricos, observado à luz das regras de experiência comum.“; 6 – alegando, por outro lado, que: “(…) não é possível concluir, sem mais, que em algum daqueles períodos, a ré não tenha realizado aquelas actividades (atentas as suas declarações), na medida em que os consumos objectivamente apurados permitem concluir pela existência de uma utilização do locado, ainda que claramente divergente da norma (a utilização tendencialmente permanente).” 7 - Mais, as declarações da filha da Ré foram no sentido de que a sua mãe apenas se ausentava do locado para a ir auxiliar no Algarve, com os netos, mas que gostava da casinha dela, onde voltava sempre que tem oportunidade, pelo que, impunha-se que o Tribunal a quo, ao dar como provado que era pouco frequente a estadia da Ré no locado, desse como provado que, na sua ausência, a Ré encontrava-se no Algarve, a auxiliar os netos e que só pontualmente regressava a Cidade 2 – vd. CC, depoimento prestado dia 11/10/2024, das 14:56:00 às 15:18:49, pág.s 53 a 66, da transcrição: 00:21:27 a 00:22.15 e 00:08:20 a 0:10:40. 8 - Mais, a documentação junta juntos com a Ref.ª 4057464, de 03/07/2024 e Ref.ª 4097727, de 21/08/2024, impunha, na nossa modesta opinião e conjugada com o depoimento da testemunha atrás transcrito, que fossem dado como provados os factos constantes das alíneas E e F. 9 - Termos em que, considerando os meios de prova atrás identificados, impunha-se uma decisão diversa quanto à matéria de facto não provada, nas alíneas E e F, devendo passar a dar-se como provada a factualidade aí descrita; bem como deverá ser dado como provado que o agregado familiar da filha da Ré é composto por esta, pelo seu filho, por três filhos do casal, com 14 anos, 17 anos e um maior, já casado e que as deslocações da Ré se pretendiam com a ajuda com os filhos da testemunha. 10 – A decisão em crise padece, igualmente, do vício a que alude o art. 615.º, n.º 1. al. b), do Cód. Proc. Civil e viola do disposto no art. 607, n.º 4, do CPC, conclusão que somos forçados a alcançar compulsado o infra alegado; senão vejamos: 11 - Não obstante o julgador ser livre, ao apreciar as provas, a sua apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”. 12 - A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência. 13 - No caso em apreço, o Tribunal a quo alega que a prova documental que possui, de consumos de energia eléctrica e de água, onde se comprova que a Ré chegou a não ter quaisquer consumos desses bens fornecidos por 10 meses consecutivos, prova, de forma evidente “(…) que, na esmagadora maioria do tempo, a ré não permaneceu no imóvel e ali realizou as actividades tipicamente desenvolvidas” – o sublinhado é nosso. 14 - E posteriormente, em contradição com dados concretos isentos e imparciais, o Tribunal a quo, alega que as declarações de parte da Ré, que afirma que lá realizava normalmente as duas tarefas domesticas, fazem perigar aquela outra prova. 15 - Na nossa modesta opinião, além de incongruente e contraditória entre si, a fundamentação, em que o Tribunal recorrido sustenta a sua decisão, é contrária a quaisquer regras da experiencia comum, violando, assim, o disposto nos art.s 607., n.º 4 e 5 e o art. 411.º, ambos do CPC. 16 - Até apenas os arrogados “padrões de normalidade”, apenas com base naquela prova documental, impunham e impõem uma decisão completamente diversa sobre a factualidade em causa, designadamente, que as alíneas A, E e F) dos factos não provados fossem dadas como provadas. 17 - Contudo, a violação da lei, na decisão em crise não se resume à sobredita, pois que, basta compulsarmos os factos dados como provados nos pontos 8 e 11, para atentarmos que, além de ambígua a resposta à matéria de facto, é ostensiva a violação do disposto no art. 407.º, do CPC, porquanto, da mesma conclui-se pela não procura da verdade e justa composição do litigio. 18 - Considerando que expressões como “reduzida frequência” e “períodos de tempo não concretamente apurados” – vd art.s 8.º a 10.º, dos factos provados - não permitem, na nossa modesta opinião, concluir pela residencia efectiva da Ré no locado, nem pelo apuramento da verdade, mais quando, se compulsarmos a documentação remetida pela EDP, a Ré esteve períodos consecutivos (chegaram a 10 meses) sem qualquer consumo de electricidade (incluindo frigoríficos e o mínimo necessário à residência, de uma pessoa media, numa habitação). 19 - Mais, se atentarmos ao teor do ponto 8 dos factos provados:” Entre Dezembro de 2021 e a propositura da acção, a ré recebeu a correspondência e, com reduzida frequência, tomou refeições, pernoitou e recebeu amigos no imóvel referido em 1).”, concluimos que não se entende o iter cognoscitivo do Tribunal a quo, quando reconhece que afinal foi com reduzida frequência que a Ré esteve no locado em 2 anos corridos e, após, as declarações da Ré em que desenvolvia habitualmente as suas tarefas domesticas e dormia no locado, servem para contraditar os consumos de electricidade e água, juntos, aos autos nos termos sobreditos. 20. Mais, não se logra alcançar qual o «raciocínio” seguido pelo Tribunal a quo quando afirma, naquele ponto 8, que a Ré esteve reduzidas vezes no locado em dois anos ininterruptos e, após, dá como não provado que: F. Que a ré tenha organizado a sua vida em localidade distinta da povoação do locado, com carácter de permanência. 21. É manifesta a contradição/obscuridade/ambiguidade da sentença recorrida, pois que, a factualidade dada como provada no ponto 11 está em contradição evidente com a que é dada como provada no ponto 8, dos factos provados, senão vejamos: 8. Entre Dezembro de 2021 e a propositura da acção, a ré recebeu a correspondência e, com reduzida frequência, tomou refeições, pernoitou e recebeu amigos no imóvel referido em 1). 11. Durante o período referido em 8), a ré regressou ao imóvel locado, onde pernoitou. 22 . É manifesto que o ponto 11 pretende dar como provado que a Ré reside no locado, onde o ponto 8 dos factos provados dá como provado que não. 23 – O Tribunal a quo violou, ademais, o disposto no art. 1083.º, n.º 2, al. c), do CC, à contraio, pois que, não se verificam os pressupostos da inexigibilidade de residência da Ré no locado e tal constata-se não só pelo facto de, pelo senso comum, a jovens de 14 e 17 anos já não andarem a ser levados e trazidos pelos pais/avós das escolas, como pelo facto de um filho adulto e casado, residente com os pais também os auxiliar na gestão domestica da família. 24 - Termos em que, atenta a violação de lei atrás alegada, deverá, outrossim, a sentença recorrida ser revogada, com as demais consequências legais.». * 5. Resposta A Ré apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida. * 6. Objecto do recurso – Questões a Decidir: – Da nulidade da sentença; – Da impugnação da matéria de facto; – Da reapreciação jurídica da causa. * II. FUNDAMENTAÇÃO 7. É o seguinte o teor da decisão de facto constante da sentença recorrida: «Da prova produzida resultaram provados os seguintes factos: 1. Pela apresentação n.º 13 de 30/01/1992, encontra-se averbada a aquisição pela autora AA da propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua 1 n.º 2, 4, 6, 8 e 10, em Cidade 2, descrito na Conservatória de Registo Predial de Cidade 2 sob o n.º 667 da freguesia SA e inscrito na matriz sob o n.º 6197 da freguesia de SA. 2. Por acordo outorgado em 28/10/1972, DD (pai da autora) declarou dar em arrendamento a EE (ex-cônjuge da ré BB), que aceitou, o imóvel correspondente ao n.º 2 do prédio referido em 1), pelo período de seis meses, com início em 1/11/1972, prorrogável por igual período, comprometendo-se o segundo a proceder ao pagamento de renda mensal no valor de 1200$00. 3. A renda mensal actual estabelecida pela cedência do imóvel referido em 2) cifra-se em €68,31. 4. De modo e data, não concretamente apurada, a ré assumiu a posição de EE no acordo referido em 2). 5. Por comunicação da autora remetida à ré e por esta recebida em 16/06/2023, foi pela primeira comunicada à segunda a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de residência permanente da ré no locado, desde data anterior a Dezembro de 2021, tendo passado a residir na zona do Algarve. 6. Por carta datada de 11/07/2023, remetida pela ré à autora, que a recebeu, a primeira comunicou à segunda que manteve e mantém o uso efectivo do locado, refutando que tenha passado a residir no Algarve. 7. Em data não concretamente apurada, foi reparado o telhado do imóvel referido em 1), o qual é comum com o prédio vizinho. 8. Entre Dezembro de 2021 e a propositura da acção, a ré recebeu a correspondência e, com reduzida frequência, tomou refeições, pernoitou e recebeu amigos no imóvel referido em 1). 9. Durante o período de tempo referido em 8), a ré deslocou-se, por períodos de tempo não concretamente apurados, para a habitação de CC, sua filha, em Cidade 1. 10. Nas ocasiões referidas em 9), por períodos de tempo de duração não apurada, a ré pernoitou na habitação da filha e realizou nesta tarefas domésticas tais como cozinhar, proceder à higienização da habitação e, ainda, prestar assistência à filha e aos netos em razão das limitações físicas daquela. 11. Durante o período referido em 8), a ré regressou ao imóvel locado, onde pernoitou. 12. Em 29/09/2020, a filha da ré, CC, foi diagnosticada como portadora de fibromialgia, com progressiva degradação da qualidade de vida, encontrando-se dependente por fases, de terceiros, para a execução das actividades da vida diária e não se encontrava em condições de cumprir as suas funções profissionais. 13. Durante o período referido em 8), em número e duração não concretamente apurados, a filha da ré sofreu um quadro de dor difusa incapacidade, a qual interferiu negativamente com a realização das suas actividades diárias. 14. Em 15/10/2021, a filha da ré, CC, apresentada um quadro de humor depressivo, com sentimento constante de desesperança com origem em doença crónica incapacitante das actividades da vida diária. 15. Em 21/10/2021, a filha da ré apresentada um quadro de dor difusa incapacidade com agravamento progressivo, apresentando ainda sintomas depressivos que interferem com as suas actividades diárias. 16. Por atestado médico multiusos, emitido em 25/07/2019, pela Administração Regional de Saúde do Algarve, através do Agrupamento de Centros de Saúde do Barlavento, foi atribuída à filha da ré, CC, um grau de incapacidade permanente de 71%. 17. A presente acção foi intentada em 04/09/2023. * Resultaram não provados os seguintes factos: A. Que a partir de Dezembro de 2021, a ré tenha deixado de dormir no locado referido em 1), de fazer as suas refeições ou de aí manter a sua vida social. B. Que a partir de Dezembro de 2021, a ré tenha passado a residir no Algarve. C. Que a ré tenha exigido à autora que aquela reparasse o telhado do imóvel referido em 2). D. Que a autora tenha despedido a quantia de €4000,00 para reparação do telhado do imóvel cedido à ré. E. Que a ré se desloque pontualmente ao locado para dormir uma ou duas noites por mês. F. Que a ré tenha organizado a sua vida em localidade distinta da povoação do locado, com carácter de permanência. G. Que a autora tenha deduzido, em juízo, pretensão sabendo que a mesma não tinha fundamento. H. Que a ré tenha deduzido, em juízo, defesa sabendo que a mesma não tinha fundamento ou que tenha alterado a verdade dos factos.». * 8. Da nulidade da sentença por oposição dos fundamentos com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível – cfr. art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC: A nulidade a que se reporta a 1.ª parte da al. c) ocorre “quando existe incompatibilidade entre os fundamentos de direito e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente (STJ 8-9-21, 1592/19, STJ 3-3-21, 3157/17, STJ 29-10-20, 1872/18).” – Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. I., Almedina, pág. 793-794. A decisão judicial é obscura “quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Em STJ 20-5-21, 69/11 e STJ 8-10-20, 1886/19, decidiu-se que a ambiguidade ou obscuridade prevista na al. c) só releva quando torne a parte decisória ininteligível, o que ocorre quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, no 1, do CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.” – Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. I., Almedina, pág. 794. Como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/05/20241 (Nelson Borges Carneiro, proc. n.º 311/18.9T8PVZ.P1.S1, www.dgsi.pt), “A nulidade da sentença prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier a ser expresso.”. A Recorrente considera essencialmente que a fundamentação de facto das alíneas A), E) e F) é “incongruente e contraditória entre si” e ainda “contrária a quaisquer regras da experiencia comum” e é “ambígua” a factualidade dos factos provados dos pontos 8 e 11. Para fundamentar a sua pretensão a Recorrente alegou o seguinte: - «…o Tribunal a quo alega que a prova documental que possui, de consumos de energia eléctrica e de água, onde se comprova que a Ré chegou a não ter quaisquer consumos desses bens fornecidos por 10 meses consecutivos, prova, de forma evidente “(…) que, na esmagadora maioria do tempo, a ré não permaneceu no imóvel e ali realizou as actividades tipicamente desenvolvidas». - «E posteriormente, em contradição com dados concretos isentos e imparciais, o Tribunal a quo, alega que as declarações de parte da Ré, que afirma que lá realizava normalmente as duas tarefas domesticas, fazem perigar aquela outra prova.». - «Até apenas os arrogados “padrões de normalidade”, apenas com base naquela prova documental, impunham e impõem uma decisão completamente diversa sobre a factualidade em causa, designadamente, que as alíneas A, E e F) dos factos não provados fossem dadas como provadas.». Importa desde já referir que não existe qualquer contradição entre a decisão de facto e os documentos invocados pela Recorrente, antes pelo contrário, tais documentos confirmam esses factos. De resto, a eventual discordância relativamente a factos dados como provados em virtude de certos “documentos”, “declarações de parte” ou “padrões da normalidade” os contrariarem configura fundamento típico de impugnação da decisão de facto e não de nulidade da decisão. A Recorrente alegou ainda o seguinte: - As «expressões como “reduzida frequência” e “períodos de tempo não concretamente apurados” – vd art.s 8.º a 10.º, dos factos provados - não permitem, na nossa modesta opinião, concluir pela residencia efectiva da Ré no locado, nem pelo apuramento da verdade, mais quando, se compulsarmos a documentação remetida pela EDP, a Ré esteve períodos consecutivos (chegaram a 10 meses) sem qualquer consumo de electricidade (incluindo frigoríficos e o mínimo necessário à residência, de uma pessoa media, numa habitação).». - «…se atentarmos ao teor do ponto 8 dos factos provados:” Entre Dezembro de 2021 e a propositura da acção, a ré recebeu a correspondência e, com reduzida frequência, tomou refeições, pernoitou e recebeu amigos no imóvel referido em 1).”, concluimos que não se entende o iter cognoscitivo do Tribunal a quo, quando reconhece que afinal foi com reduzida frequência que a Ré esteve no locado em 2 anos corridos e, após, as declarações da Ré em que desenvolvia habitualmente as suas tarefas domesticas e dormia no locado, servem para contraditar os consumos de electricidade e água, juntos, aos autos nos termos sobreditos». - «…não se logra alcançar qual o «raciocínio” seguido pelo Tribunal a quo quando afirma, naquele ponto 8, que a Ré esteve reduzidas vezes no locado em dois anos ininterruptos e, após, dá como não provado que: F. Que a ré tenha organizado a sua vida em localidade distinta da povoação do locado, com carácter de permanência.». - “É manifesta a contradição/obscuridade/ambiguidade da sentença recorrida, pois que, a factualidade dada como provada no ponto 11 está em contradição evidente com a que é dada como provada no ponto 8, dos factos provados, senão vejamos: 8. Entre Dezembro de 2021 e a propositura da acção, a ré recebeu a correspondência e, com reduzida frequência, tomou refeições, pernoitou e recebeu amigos no imóvel referido em 1). 11. Durante o período referido em 8), a ré regressou ao imóvel locado, onde pernoitou. É manifesto que o ponto 11 pretende dar como provado que a Ré reside no locado, onde o ponto 8 dos factos provados dá como provado que não.». Vejamos mais em pormenor os factos provados dos pontos 8 a 11: “8. Entre Dezembro de 2021 e a propositura da acção, a ré recebeu a correspondência e, com reduzida frequência, tomou refeições, pernoitou e recebeu amigos no imóvel referido em 1). 9. Durante o período de tempo referido em 8), a ré deslocou-se, por períodos de tempo não concretamente apurados, para a habitação de CC, sua filha, em Cidade 1. 10. Nas ocasiões referidas em 9), por períodos de tempo de duração não apurada, a ré pernoitou na habitação da filha e realizou nesta tarefas domésticas tais como cozinhar, proceder à higienização da habitação e, ainda, prestar assistência à filha e aos netos em razão das limitações físicas daquela. 11. Durante o período referido em 8), a ré regressou ao imóvel locado, onde pernoitou.”. Analisados os factos provados não se vislumbra qualquer contradição ou ambiguidade entre o ponto 8 e o ponto 11, uma vez que da conjugação de ambos resulta o seguinte: 8 - Entre Dezembro de 2021 e a propositura da acção … com reduzida frequência, tomou refeições, pernoitou e recebeu amigos no imóvel; 11 - Durante o período referido em 8) [Entre Dezembro de 2021 e a propositura da acção], a ré regressou ao imóvel locado, onde pernoitou; Então, da conjugação destes pontos de facto verifica-se claramente que no período de tempo compreendido entre dezembro de 2021 e a propositura da acção, com reduzida frequência, a ré regressou ao imóvel locado, onde pernoitou, altura em que tomou refeições, pernoitou e recebeu amigos no imóvel. Note-se que há uma remissão expressa do ponto 11 para o ponto 8. Parece existir apenas alguma redundância uma vez que tanto no ponto 8 como no ponto 11 consta que a Recorrida “pernoitou… no imóvel” e “pernoitou … no imóvel locado”, no entanto, é uma redundância aparente porque os factos do ponto 11 resultam na sequência do pontos 9 e 10 em que refere as deslocações da Recorrida para casa da filha em Cidade 1 – sendo compreensível a referência de novo às deslocações ao locado para transmitir a ideia da circularidade existente nas deslocações entre o locado e a casa da filha da Recorrida. E a referência a “períodos de tempo não apurados” nas deslocações da Recorrida a Cidade 1 também não estão em contradição com a “reduzida frequência” em que esta regressou ao locado, bem pelo contrário, estão perfeitamente consonantes. A Recorrente entende que deveria antes considerar-se que na “esmagadora maioria do tempo” a Recorrida não permaneceu no imóvel, no entanto, se está provado que a Recorrente ia ao locado com “reduzida frequência” podemos afirmar que é praticamente o mesmo que não ir ao locado na “esmagadora maioria do tempo”, apesar de serem ambos conceitos algo genéricos. Deste modo, não existe qualquer contradição, obscuridade, ambiguidade ou ininteligibilidade da sentença recorrida quanto aos referidos factos provados entre si considerados. Vejamos agora os factos não provados das alíneas A), E) e F): “A. Que a partir de Dezembro de 2021, a ré tenha deixado de dormir no locado referido em 1), de fazer as suas refeições ou de aí manter a sua vida social. (…) E. Que a ré se desloque pontualmente ao locado para dormir uma ou duas noites por mês. F. Que a ré tenha organizado a sua vida em localidade distinta da povoação do locado, com carácter de permanência.”. Vejamos mais em pormenor: Afirmar-se que a Recorrida a partir de dezembro de 2021 deixou de ir ao locado durante todo o período de tempo em causa, ou seja, nunca foi ao locado (al. A) dos factos não provados) não é o mesmo que ali se deslocar com reduzida frequência (como consta do ponto 8 dos factos provados), por isso tais factos provados e não provados são perfeitamente compatíveis entre si. A factualidade não provada da al. E) significa apenas que não se conseguiu concretizar a periodicidade das reduzidas deslocações da Recorrida ao locado e nada mais do que isso, por isso tais factos não provados são perfeitamente compatíveis com os demais. A factualidade não provada da al. F) em contraponto com a provada dos pontos 9 e 10 significa que, apesar da Recorrida se deslocar a casa da filha em Cidade 1 não se encontra ali a viver permanentemente nem aí organiza a sua vida, por isso tais factos provados e não provados são perfeitamente compatíveis entre si. Deste modo, não existe qualquer contradição, obscuridade, ambiguidade ou ininteligibilidade entre os referidos factos não provados com os factos provados dos pontos 8 a 11. Finalmente, é incompreensível que a Recorrente entenda que na sentença recorrida se conclui pela “residência efectiva no locado” quando se considerou expressa e claramente no enquadramento jurídico da sentença recorrida que os factos provados consubstanciam uma situação de não uso do locado para efeitos disposto no artigo 1083.º, n.º 2, al. c), do Código Civil. E considerou-se ainda na sentença recorrida que o não uso do locado apenas não é fundamento de resolução em virtude da verificação da excepção prevista no art. 1072.º, n.º 2, al. d), do Código Civil, com fundamento na assistência prestada pela Recorrida à sua filha com incapacidade de 71%. Deste modo, também não existe qualquer contradição, ambiguidade, obscuridade, ou ininteligibilidade entre os factos, a fundamentação e a decisão. Em suma, porque os fundamentos estão em consonância com a decisão e a decisão de facto e de direito não contém qualquer ambiguidade ou obscuridade e é perfeitamente inteligível, não se verifica a invocada nulidade da sentença, para efeitos do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC. * 9. Impugnação da decisão da matéria de facto: A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está sujeita a determinadas regras ou ónus sob pena de rejeição e o incumprimento destas regras também deve ser oficiosamente conhecido. Dispõe o art. 640.º, do CPC, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte: 1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 – O disposto nos 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do no 2 do artigo 636.º. A previsão destes ónus tem razão de ser, quer para garantia do contraditório, quer para efeito de rigorosa delimitação do objeto do recurso, até porque o sistema consagrado não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, não é compreensível que a verificação do cumprimento de tais ónus se transforme num exercício meramente burocrático2. Por sua vez, se a decisão de facto for considerada irrelevante, ou seja, se os factos impugnados não tiverem impacto na decisão final do processo, a impugnação pode ser considerada inútil. Com efeito, como decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/07/20213 (Fernando Batista, proc. n.º 65/18.9T8EPS.G1.S1, www.dgsi.pt), “Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo. O mesmo é dizer que só se justifica que a Relação faça uso dos poderes de controlo da matéria de facto da 1ª instância quando essa actividade da Relação recaia sobre factos que tenham interesse para a decisão da causa, ut artº 130º do CPC. Quando assim não ocorre, a Relação deve abster-se de apreciar tal impugnação.”. Ora, no caso concreto em apreciação é precisamente isso que sucede, seno inútil e mesmo incompreensível a impugnação, já que a Recorrente pretende colocar em causa os factos provados constantes dos pontos 8 a 11 e os factos não provados das alíneas A), E) e F), no entanto, como já tivemos oportunidade de aflorar supra a propósito da invocada nulidade da sentença, na fundamentação jurídica esta considerou expressa e claramente que os factos provados consubstanciam uma situação de não uso do locado para efeitos disposto no artigo 1083.º, n.º 2, al. c), do Código Civil. Ou seja, não existem quaisquer dúvidas que, apesar da utilização intermitente do locado que resulta dos factos provados, bem ou mal, a sentença recorrida entende que se verifica o não uso do locado, para efeitos do disposto no art. 1083.º, n.º 2, al. c), como defende precisamente a Recorrente para fundamentar a presente acção. A presente acção improcede apenas porque ficou provado que o constatado não uso do locado pela Recorrida é lícito por ter ficado demonstrado que esta se desloca a casa da filha para lhe dar assistência por padecer de incapacidade de 71%, ou seja, por se verifica a excepção prevista no art. 1072.º, n.º 2, al. d), do Código Civil. Importa destacar que já relativamente à factualidade dada como provada relativa à incapacidade de 71% da filha da Recorrente não se insurgiu a ora Recorrente, considerando-se definitivamente fixada. Ou dito de outro modo, é assim inútil apreciar os factos impugnados pela Recorrente porque foi precisamente com base neles que a sentença recorrida entendeu verificar-se o não uso do locado invocado por aquela. Finalmente, resta apenas dizer que a Recorrente entende ainda, muito resumidamente, que deveria considerar-se provado que “o agregado familiar da filha da Ré é composto por esta, pelo seu filho, por três filhos do casal, com 14 anos, 17 anos e um maior, já casado e que as deslocações da Ré se pretendiam com a ajuda com os filhos da testemunha”. No entanto, esta impugnação da matéria de facto continua a ser irrelevante porque a verificação da excepção acima referida, prevista no art. 1072.º, n.º 2, al. d), do Código Civil, basta que tal ausência se deva à prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, incluindo a familiares, como sucede no caso concreto – verificando-se assim a excepção prevista no art. 1072.º, n.º 2, al. d), do Código Civil, sem exigência de qualquer outro requisito para tal efeito. prestação de assistência a pessoa com mais de 60% de incapacidade, o que é o caso, não se exigindo qualquer outro requisito para o efeito, ou seja, é indiferente qual o agregado familiar onde se insere a pessoa incapacitada – sendo assim inútil a sua apreciação. Deste modo, em suma, rejeita-se a apreciação da impugnação da matéria de facto por ser inútil para o desfecho da causa – cfr. art. 130.º, do CPC. * 10. Reapreciação jurídica da causa Considerando o insucesso/rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não vemos razões para alteração do enquadramento jurídico efectuado pela sentença recorrida ao qual aderimos. Com relevância, consta da sentença recorrida a seguinte fundamentação: «Sendo claros: a ré, no período em apreço, empregou a coisa locada com uma intensidade manifestamente inferior à norma, permitindo a conclusão que procedeu, interpoladamente, à utilização que se esperaria que ocorresse durante o período de um mês, repartida durante cerca de dois anos. Contudo, verifica-se que, no período em apreço, a ré permaneceu em Cidade 1, na residência da filha CC, com o escopo de lhe prestar assistência vivencial porquanto a mesma padece de incapacidade permanente de 71% (consubstanciando, nos termos do artigo 1072.º, n.º2, al. d) do Código Civil, uma discapacidade legalmente qualificada como deficiência nos termos previstos no artigo 1.º da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009), decorrente de padecer de fibromialgia que a limita na realização das actividades da vida diária, nomeadamente na ministração de cuidados aos filhos, netos da ré. Ora, ponderadas as circunstâncias do caso, ainda que a factualidade apurada permita concluir pela verificação de uma situação de não uso do locado (na medida em que a intensidade com que a ré procedeu à utilização daquele fogo habitacional diverge claramente da norma, sendo manifestamente inferior), apurou-se, todavia, que a omissão pela ré do dever de utilizar o locado apresenta carácter lícito ex vi artigo 1072.º, n.º2, al. d) do Código Civil, na medida em que assenta na prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau de incapacidade superior a 60% em cumprimento, aliás, dos deveres de auxílio e assistência previstos no artigo 1874.º, n.º1 do Código Civil. Por conseguinte, ainda que se apure a ocorrência de uma situação de não uso apta a, em tese, justificar o preenchimento do disposto no artigo 1083.º, n.º2, al. c) do Código Civil, verifica-se que as circunstâncias do caso impõe que se conclua pelo carácter lícito desse não uso, atentas as razões que a determinaram. Ademais e ainda que assim não fosse, para que seja admissível a resolução do contrato de arrendamento, atenta a sua importância no comércio jurídico, impõe a lei que o incumprimento invocado pelo senhorio torne, pela sua gravidade ou consequências, inexigível a manutenção do contrato. Deste modo, o legislador subordina a extinção do contrato à verificação de um incumprimento cuja intensidade, no contexto do contrato, impeça objectiva e subjectivamente a sua permanência. Por conseguinte, são requisitos da resolução do contrato de arrendamento, para além da existência de uma situação de incumprimento, a demonstração da inexigibilidade da manutenção da relação locatícia. Como ensina ALBERTINA PEDROSO, “Resolução do contrato de arrendamento no novo e novíssimo regime do arrendamento urbano”, In: Julgar, 19 – 2013, 45 ss. “a gravidade do incumprimento fundador do direito à resolução do contrato há-de aferir-se quer pela própria natureza da infracção — actuação/omissão substancialmente grave — quer pelas consequências ou efeitos que provoca — e que tornam tal incumprimento grave — quer ainda pela reiteração da conduta violadora das obrigações assumidas — que, por essa via, também é qualificável como grave —, tudo de tal forma que não seja razoavelmente exigível à outra parte a manutenção do arrendamento”. Atente-se ainda ao lapidar acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/03/2019, proc. 1047/15.8T8LMG, segundo o qual a inexigibilidade de manutenção do contrato por força da gravidade ou das consequências do incumprimento do arrendatário corresponde ao requisito que permite distinguir as situações de incumprimento cuja gravidade justifica a resolução do contrato das situações de incumprimento que, pelo seu carácter isolado ou pela sua irrelevância ou insignificância, não poderão ter idoneidade, em face dos princípios gerais de Direito e das regras de boa-fé, para determinar a cessação da relação contratual. Neste particular, as razões assistenciais que determinaram o não uso do locado mostrar-se-iam igualmente relevantes quanto ao preenchimento do aludido requisito, impondo-se a ponderação, de natureza valorativa, a respeito da putativa inexigibilidade da manutenção do contrato de arrendamento. Ora, pese embora não se olvide que o valor liquidado pela ré a título de renda divirja claramente do valor de mercado para bens de idêntica natureza, a verdade é que a inexigibilidade da manutenção do contrato de arrendamento deverá ser observada tendo por referência o dever pretensamente violado. No caso, tendo em consideração o manifesto conflito de deveres existentes na esfera da ré, a duração do contrato de arrendamento sem que exista registo do incumprimento de outros deveres provenientes do vínculo, sempre se concluiria pela não verificação do aludido requisito extintivo do contrato de arrendamento, previsto no artigo 1083.º, n.º2 do Código Civil, o que determinaria a frustração da pretensão da autora Em conclusão, pese embora se demonstre o não uso do locado, dada a natureza lícita de tal ocorrência e, ainda, que não se mostra inexigível a manutenção do contrato de arrendamento, claudicam os fundamentos de resolução do contrato de arrendamento invocados pela autora, havendo, por isso, a acção de improceder a respeito de ambos os pedidos.». Resta apenas aderir à fundamentação descrita e salientar que o não uso do locado por mais de um ano, como fundamento de resolução do contrato de arrendamento previsto no art. 1083.º, n.º 2, a. d), do Código Civil, cessa caso essa ausência se deva à prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, incluindo a familiares – verificando-se assim a excepção prevista no art. 1072.º, n.º 2, al. d), do Código Civil, sem exigência de qualquer outro requisito para tal efeito, ou seja, independentemente do modo como que se concretiza esse apoio, que é precisamente o que sucede no caso concreto relativamente à filha da Recorrida com 71% de incapacidade. Ou dito de outro modo, a verificação daquela excepção basta-se com a prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, incluindo a familiares, sendo desnecessário concretizar ou pormenorizar que tipo de apoios são esses. Nesta sequência, concluímos como se concluiu na sentença recorrida: pese embora se demonstre o não uso do locado, dada a natureza lícita de tal ocorrência claudicam os fundamentos de resolução do contrato de arrendamento invocados pela Recorrente, importa julgar improcedente o recurso de apelação e confirmar a decisão de absolvição da Recorrida/Ré. * 10. Responsabilidade Tributária As custas do recurso de Apelação são da responsabilidade da Recorrente. * III. DISPOSITIVO Nos termos e fundamentos expostos, 1. Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente/Autora e, em consequência, confirmar a sentença recorrida. 2. Custas do recurso de Apelação da responsabilidade da Recorrente/Autora. 3. Registe e notifique. * Évora, data e assinaturas certificadas Relator: Filipe César Osório 1.º Adjunto: Sónia Moura 2.º Adjunto: Maria João Sousa e Faro
______________________________________ 1. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f4c369730e08ba8680258b17002e112a?OpenDocument↩︎ 2. António Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. I, Almedina, 2022, pág. 831.↩︎ 3. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/19c3ddcb0fbc504980258714004da030?OpenDocument↩︎ |